1
Ela estará na cadeira-de-rodas esperando-o, como sempre.
O rosto sério, tristonho. Os cabelos negros, com poucos fios brancos. O corpo moreno, bem-proporcionado. O olhar perdido nas residências que dali do terracinho enxerga, com as escadarias, os moradores subindo-as ou descendo-as, no movimento natural do início da noite. Escutando a zoada de motos, carros passando na rua transversal. Um cão latindo próximo. O vento circulando frio, contudo, agradável... Sim, ela o aguarda fiel ao compromisso de boa companheira. Ah, se não tivesse de ver a cena repetida há quanto tempo?
- Cinco anos.
Resume-se, em voz baixinha e dirige, regressando, enquanto a avenida vai ganhando mais veículos ante o retorno dos trabalhadores aos lares. Precisa se apressar, para evitar um possível “engarrafamento”. Acelera.
Nas calçadas laterais pedestres se movem, em número crescido, são os outros trabalhadores em sentido às paradas dos coletivos que os conduzirá às residências em bairros afastados. Até quando enxergará essas cenas após o término dos expedientes diários? Um dia, não mais as presenciará...
Contorna a praça, com colegiais namorando nos bancos, velhos jogando dominó no abrigo ao centro. A igreja antiga defronte, de porta aberta, os bancos vazios, a imagem do crucificado aos fundos. Avança. Aí de repente, percebe o “engarrafamento” provavelmente em conseqüência de uma batida ou de alguém acidentado.
- Tava demorando!
Então, tentando se conter, diminui a marcha. Obediente à realidade inesperada. Atrás carros buzinam impacientes.
- Esses porras não vêm que não posso andar?
Em gesto apressado desce os vidros laterais, suando, nervoso.
- Cidade desgraçada!
Os automóveis parados. As buzinas. Os xingamentos aos gritos. O vento adentrando, acariciando-lhe as faces tensas, contrariadas. A adolescente esguia, bonita movendo-se na calçada. A bicicleta que passa entre os carros...
Espera. Respirando alto, mais uma vez tentando se conter.
2
A mocinha chega ao terracinho e vendo a patroa cochilando, nada fala, respeitando-lhe o repouso. Entende-a. É mesmo doloroso a gente se ver assim sem andar, presa numa cadeira... Por que para uns a cruz é tão pesada? Ah, quisera obter essa resposta.
- Ritinha?
Desperta de repente a mulher, fitando-a.
- Sim, D. Marly.
Responde sorrindo a mocinha, e em seguida inquire:
- A senhora quer mais alguma coisa? Tá na minha hora...
Fugindo a atenção às casinhas iluminadas com a noite amadurecendo-se a mulher responde:
- Quero não, Ritinha. Pode “largar”.
- Até amanhã, D. Marly.
- Vai com Deus, essa menina.
A jovem passa, cruza o jardinzinho, abre o portão, fecha-o por fora, e desce a rua inclinada.
D. Marly impulsiona a cadeira, adentrando na sala conjugada. Verá se a Ritinha deixou tudo certo, se fez a sopa que lhe pediu...
A cadeira move-se devagar, cortando a sala, a seguinte em sentido à cozinha, ao lado esquerdo. Por que o Germano demora? Alguma coisa lhe ocorreu. Ele já deveria ter chegado...
Com o coração aflito avizinha-se do fogão. Para inspecionar. Reentregada à função doméstica.
3
Outra vez no terracinho.
Por que o Germano tarda, o que lhe terá acontecido? Ele é sempre “certinho”, muito pontual... O coração aperta angustiado e de repente, ela sente a pontada. Suando, põe a mão aberta sobre o peito, massageando-o, na tentativa inútil de diminuir as pulsações que aumentam.
- O que será isso Santo Pai?
Precisa mesmo se consultar. Deveria ter se cuidado... A dor cresce, cortando-lhe o tronco, expandindo-se pelo braço esquerdo, adormecendo os dedos da mão branca, sem sangue.
De uma casa vizinha, chega o grito de uma criança chorando. O cachorro retorna a latir. As luzinhas das casas no morro cintilam, enchendo de beleza à noite. Os carros passam na rua transversal, embaixo... Enquanto molhada em suor frio, dentro de sua dor e solidão D. Marly se contorce, na cadeira que oscila, devido ao tremor do seu corpo.
4
O automóvel se aproxima, subindo a rua estreita.
Conduzindo-o, Germano sente de súbito um receio, como um aviso... E, quando assim, nunca se engana. Algo acontecerá.
O carro chega e entrando no oitão da residência, estaciona. Germano abre a porta e saltando, caminha apressado ao encontro da mulher na cadeira, no terracinho e, avizinhando-se, então, com os olhos perplexos entende.
Abaixa-se e preso ao que o subjuga beija a face pálida, muito fria de D. Marly. E sente as lágrimas caindo, no rosto, por a dor da querida perda.
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