1
Mais um serão, que terminará às 6 da manhã seguinte, quando a outra turma assumirá o comando do novo expediente que irá até às 18hs. Refletindo, Tadeu vai descendo a escadaria longa, estreita. Nas laterais as residências conjugadas de porta, janela e algumas com a varanda e o murinho à frente, com o portão baixo. Vida sacrificada essa sua. Um dia se libertará de tudo, encontrar-se-á com outro emprego, outra vida?
- Só o futuro dirá.
Sim, o futuro lhe responderá. Por enquanto, é se acomodar em ser operador da impressora, para ganhar a própria sobrevivência e a da mulher, a Rita. Vence os degraus. A barraca à esquerda, com dois homens bebendo, debruçados no balcãozinho de fora, conversando. O barraqueiro negro, Seu Júlio, sentado à frente da mesma, seguindo o movimento da rua, com pedestres, carros e motos.
- Boa noite.
- Boa Noite Tadeu.
Ele sorri, adianta-se. Conhece todos daqui do bairro. É bom, prático se fazer popular. O lugar é “carregado”, tem de tudo...
Caminha. Cabisbaixo. Apressando-se.
Sem tardar, “bate” o cartão.
- Tás no serão Tadeu?
Indaga o vigilante atrás do birô, indiscreto como sempre.
- Pois é, Zé. Serão.
Repõe o cartão no quadro ao lado do relógio, na parede e, vencendo os degraus à direita, encaminha-se ao salão adiante, o chamado “coração da fábrica”.
A noite então já envolve os telhados das seções conjugadas. O bueiro estreito, com prido, destaca-se, cortando-a. A zoada ritmada das máquinas já se faz ouvir.
- No serão também colega?
Voltando-se de lado, responde:
- Tou Negrinho. Começo hoje.
- É bom porque a gente fatura mais um pouco.
- É isso aí.
Adentram no salão gigantesco. E se apressam em trocar de roupa, vestir os macacões. Assumir as funções.
Fora, no lado oposto do muro que limita o domínio da indústria com a avenida, os veículos transitam nessa em velocidade, aproveitando o pouco movimento, prenúncio de que a noite amadurece. E os sons dos pneus e buzinas se fazem ouvir.
Tadeu pressiona o botão e a impressora começa a trabalhar. Toc, toc, toc, toc...
Sentando-se no banquinho próximo, ele segue as caixas abertas, descendo na esteira.
Um dia, quem sabe? Talvez se encontre “noutra”... Esperançoso sorri, aquietando a alma.
2
- É degrau demais pra o meu gosto.
Reclama baixinho, em desabafo, o sujeito magro, alto, amulatado, de roupa e sapatos brancos.
Veste-se assim quando vai trabalhar, executar a nova “missão”.
- Estão aqui os retratos, o endereço do safado e tua parte.
A mão bem tratada lhe passou o envelope com as fotos e as cédulas.
Recebeu-o. Sério. Concentrado no que o doutor lhe falava, esclarecendo-se.
- A outra parte só depois do “serviço” feito... Tudo certo?
Então ergueu o rosto e fitando o outro nos olhos apertados pela gordura das faces amareladas, respondeu:
- Tudo certo.
Novamente a mão veio ao seu encontro, apertou-a, concluindo a entrevista e, erguendo-se:
- Vou agir, doutor. Pode ficar calmo.
- Sei sei. Conheço o seu potencial. Tchau!
Saiu devagar da sala larga, bem mobiliada, moderna. Movia-se se autocontrolando, pois sabia estar sendo seguido pelos olhos analíticos do doutor.
Agora, é entrar no carro, que está na garagem da rua transversal e ir cumprir sua “missão”...
Vencendo a escadaria, encontra os dois homens na barraca, bebendo.
- Tudo “jóia” aí amigos?
- Tudo “nos conforme”, Ivan.
Ele se adianta, apressando-se, para evitar uma provável indagação, dar “bandeira” do próprio “serviço”...
Um dos homens com os olhos segue-lhe e, para o outro, que também acompanha a figura já reduzida pela distância:
- O de “branco” vai trabalhar...
O silêncio então os abraça, na conveniência prática, necessária à própria sobrevivência. É a lei do bairro, a voz que cala.
Na cadeira à frente do estabelecimento, o barraqueiro finge cochilar. Também prático conhecedor que é da poderosa lei, enquanto a noite “madura” tudo envolve. Residências. Veículos. Pedestres. E o automóvel que ganha a avenida praticamente deserta.
Dirigindo-o, o homem antever a cena. O senhor gordo, bem-vestido ao entrar na rua, saltar e ser atingido...
- Assim é que funciona.
Acelera. Indo ao encontro do que planejou e executará.
3
O desejo de repente chega e vai dominando-o... Abandona a janela, de onde vê o céu e a lua cheia passeando devagarzinho. Cruza o quarto. Abre a porta e desce a escada em caracol. Apressado.
Na sala embaixo, a mulher idosa segue-o com os olhos críticos, contudo, nada pergunta, pois sabe que o rapaz não lhe responderá. Ele em passos largos corta o ambiente e abre a porta envidraçada.
A mulher desvia os olhos, fingindo se prender às cenas da novela, na televisão defronte. A porte bate, macia, fechando-se.
- Silvinho saiu...
Diz baixinho, resumindo-se. Para onde irá esse menino nessa hora noturna? Algum encontro amoroso?
- Essa mocidade de hoje é assim mesmo: cheia de novidades, avançada!
Outra vez fala, e busca se limitar à história repetitiva do drama amoroso, na telinha.
No carro, o rapazinho sente o gosto adocicado do que sugará. E os caninos crescem. Suando, acelera.
No céu, a lua passeia tranqüila, testemunha das cenas e mistérios noturnos.
Adiante, a jovem esguia caminha, rebolando as ancas no charme próprio da idade.
O automóvel estaciona ao meio-fio.
- Você quer uma carona, morena bonita?
O carrão cinza, importado, o rosto de traços corretos do seu condutor, de cabeleira negra, grande, na moda...
- Tá bem, aceito.
A porta se abre, e a adolescente entra. Sorrindo, vai de rosto voltado ao que o carro deixa para trás. Residências. Um ou outro pedestre. Uma moto. A praça deserta. “Curte” o passeio, inocente do que a espera.
Logo, Silvinho desvia o carro e estaciona no terreno baldio.
Perplexa a moreninha indaga:
- Mas... O que houve?
Os lábios se abrem no sorriso cruel e...
No céu, a lua então se esconde numa nuvem, para não presenciar.
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