CASSIANO RICARDO , UM POETA DO SÉCULO XX
Geraldo Affonso
No recente fim de século e de milênio , os meios de comunicação procuraram apontar tanto aqui em nossa pátria como alhures as personalidades que se destacaram nos vários segmentos das manifestações que integram o universo cultural . Dentro dessa perspectiva eu também questionaria qual teria sido a grande, a maior personalidade poética brasileira do século XX. Evidentemente que numa rápida lembrança , alguns nomes sufragados pela mídia e pela divulgação de suas obras surgiriam de pronto . Assim, de acordo com a preferência dos leitores ou dos críticos , nomes como os de Carlos Drummond de Andrade , Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, João Cabral de Melo Neto, Vinícius de Moraes , ou ainda recuando aos primórdios do século para incluir o parnasiano Olavo Bilac , qualquer um deles poderia ser apontado como o Poeta Brasileiro do Século e com todos os louvores, porque possuem indiscutível valor literário.
Por esse Brasil a fora , quantos outros poetas também de indiscutível valor poderiam fazer parte dessa plêiade de privilegiados , se houvessem conseguido furar o bloqueio da obscuridade . Talvez centenas , pois não há cidade brasileira que não tenha o ser versejador e, sem dúvida, muitos de talento igual ou até melhor do que o de alguns que alcançaram a notoriedade. Até mesmo entre os poetas do meu cantinho de Minas Gerais, Ouro Fino , pelo menos, os nomes de Maurício de Moraes e Rui Apocalypse poderiam com toda justiça figurar em qualquer listagem de grandes poetas do século , se também houvessem conseguido penetrar no fechado círculo das igrejas literárias , das grandes editoras ou das badalações da crítica .
A poesia é uma arte que toca a sensibilidade do leitor e, na verdade, cada um de nós a sente de modo particular , ou seja, de acordo com a nossa própria sensibilidade . Assim. a tarefa de se apontar o melhor, o poeta do século , não é coisa das mais fáceis , pois o melhor para uns já não o será para outros. Levando-se em consideração essa dificuldade, entre os poetas brasileiros do século XX eu situaria o paulista Cassiano Ricardo , não como o melhor , pois não me atreveria a apontar um apenas entre tantos outros que apresentaram obras memoráveis, mas como aquele que mais atingiu a minha sensibilidade de leitor . Justifico analisando alguns trechos de Cassiano e fazendo alguns breves comentários sobre a obra do grande poeta brasileiro.
Nascido em São José dos Campos em 1895, Cassiano muito cedo iniciou sua trajetória literária e , sem dúvida , foi o poeta brasileiro que viveu com mais intensidade as várias tendências da arte literária do século XX , mostrando através de sua obra, impressionante capacidade de renovação estético-artesanal que somente cessaria com sua morte , já em 1974 . A obra de Cassiano revela em suas várias fases uma posição de completo engajamento, de verdadeiro comprometimento com o seu tempo. Seu verso nunca envelheceu, acompanhou o poeta pela vida inteira e refletiu suas tendências políticas, suas preocupações humanísticas, seu patriotismo , por vezes sua descrença , seu temor com a possibilidade de uma catástrofe nuclear , seu protesto .
Já em 1915 o jovem Cassiano iniciava sua trajetória poética dando a lume sua obra vestibular, “Dentro da Noite” , um requintado exercício de parnasianismo, tendência poética então predominante . Sua segunda obra, “A Flauta de Pã” ainda inserida nos cânones parnasianos , demonstraria uma vez mais um jovem primoroso na lapidação poética , característica primordial do referido estilo . Com o advento do modernismo e da polêmica que caracterizaria seus primeiros passos , Cassiano engajou-se entre os que propugnavam por uma estética autenticamente brasileira, formando com Menotti Del Picchia, Plínio Salgado, Cândido Mota Filho e Raul Bopp o chamado “Grupo da Anta”, que exaltava a terra e a nacionalidade. Pertencem a essa tendência nacionalista suas obras da segunda década do século, “Borrões de Verde e Amarelo”, “Vamos Caçar Papagaios” e “Martim Cererê” .
No entanto, suas obras da maturidade , tais como “Arranha-céu de Vidro”, “Jeremias Sem Chorar” e “João Torto e a Fábula” correspondem à fase em que o poeta justifica sua arte através de um constante aprimoramento estético-artesanal que o insere como o poeta brasileiro que mais renovou a forma de sua expressão artística. A preocupação com a sobrevivência da espécie humana ante a perspectiva de uma catástrofe nuclear, uma postura crítica em face de um mundo cada vez mais mecanizado, mais subordinado às máquinas em detrimento da inocência, da pureza, do lírico, do poético , são as temáticas predominantes dessa fase , sem dúvida, a principal da obra de Cassiano. E toda essa ebulição criativa desenvolvida num espírito altamente inquisitivo fez com que o poeta paulista possa ser apontado como aquele que mais encarnou o modernismo em sua longa trajetória literária. O fator, sem dúvida, que mais caracteriza suas produções reside, a meu ver, em sua contemporaneidade. Entre os grandes poetas brasileiros do século século XX , não conheço nenhum outro que tenha produzido uma obra tão contemporânea, tão inserida na temática de seu tempo como Cassiano Ricardo .
Sua preocupação com a modernidade não se revela apenas nos temas ou na forma de seus poemas, sempre inovadores, como também no próprio vocabulário utilizado. Palavras ou expressões que , a princípio, possam ser consideradas apoéticas , tais como “chuva radioativa”, “bomba de hidrogênio” “nylon” ‘lágrimas elétricas” , “laboratório de física anti-celeste” , “rádio-ouvinte” , mostravam-se corriqueiras na poética de Cassiano Ricardo, cumprido observar ainda que adquirem incrível conotação lírica .
Na elaboração de seus recursos estético-artesanais Cassiano mostra uma criatividade ilimitada. Em seu poema “Viagem em Círculo”, por exemplo, inserido em seu livro “Geremias Sem Chorar” , o tema é a esperança de se encontrar a saída, a salvação para a humanidade que gira desnorteada e Cassiano procura atingir seu objetivo criando um texto em que predomina a idéia giratória , como bem se demonstra no trecho transcrito abaixo:
a esperança me o-
briga a caminhar
em círculo em tor-
no do globo em tor-
no de mim mesmo em
torno de uma mesa
de jogO
até que o zodíaco
pára e a noite cos-
tura-me a boca a
retrós preto/mas
eu fico impresso
no olhar do dia obsoletO
Neste pequeno trecho de seu poema , podemos identificar vários recursos em que o poeta procura atingir seu objetivo de mostrar a idéia de círculo , seja na utilização de expressões semanticamente circulares , ou mesmo no enriquecimento gráfico visual de certas palavras , tais como, “jogO”, “obsoletO” . Vale acentuar que no livro “Geremias Sem Chorar”, o poeta procura situar o homem, ser infinitamente sensível e seu confinamento num mundo cada vez mais insensível e cada vez mais mecanizado. E o poeta acena com uma saída, uma válvula de escape para o lírico, para o poético, para o humano, partindo de um recurso simples: a humanização da máquina, como se revela num trecho do poema “O Urso e as Crianças”:
“Recurso - entrarei num urso
oco por dentro azul por fora.
E caminharei no seu bojo
pela rua -urso automático.”
De prodigiosa estatura;
com seus 20 metros de altura.
E sem que ninguém o saiba,
quero me aplaudam supondo
que estão aplaudindo o urso.
Suas múltiplas originalidades formais patenteiam-se em quase toda sua obra, principalmente nos livros “Arranha-céu de Vidro”, “João Torto e a Fábula e “Jeremias Sem Chorar . Como exemplo , podemos mencionar o efeito conseguido pelo poeta ao criar a palavra “ätlasmundipluricolor” que, dentro do contexto poético adquire admirável expressividade conotativa, como bem prova o trecho transcrito:
“E estendendo sobre a mesa
o atlasmundipluricolor,
todo azul e coral,
onde as ilhas se reúnem
salpicadas em várias línguas,
como num vitral”
Em grande parte de sua vida Cassiano Ricardo vivenciou um mundo ideologicamente beligerante, em que a tônica da então chamada guerra fria era a ameaça de um catástrofe nuclear e esse conflito ideológico ressoou em sua sensibilidade , fazendo eco em parte considerável de sua obra . Cassiano mostrou-se profundamente preocupado com divisão ideológica do mundo de seu tempo e sua poesia procurou demonstrar a estupidez das ameaças de guerra , principalmente com a utilização de armas nucleares, como se constata no exemplo abaixo:
“Ó loucos dos dois hemisférios,
por que a bomba atômica
se ninguém tem culpa , se há crianças no mundo?”
No entanto, ao fechar seu excelente livro “João Torto e Fábula” com o poema “Jornal Falado”, o poeta faz o mais explícito dos vaticínios da paz e concórdia universal , ao dizer :
“De uma simples flauta
sairá mais que a bomba
de hidrogênio
Muito mais que o cavalo alvo
do Apocalipese
Muito mais que um eclipse
do sol e da lua.
Muito mais que uma estrela voadora,
sem alvo. Saírá
o mínimo de ternura de que
o mundo precisa
para ser salvo.
Cassiano Ricardo não viveu o suficiente para ver a queda do Muro de Berlim, marco do abrandamento da batalha ideológica que caracterizou o tempo em que viveu e que tanto impregnou sua poesia . Embora reconhecido como um dos principais poetas de nosso século , não foram muitos os estudiosos e críticos da arte literária que se aventuraram a um estudo mais aprofundado de sua obra poética , valendo observar ainda que seu nome também não se situa entre os mais conhecidos de nossa literatura .
A primeira vista, ou numa primeira leitura , sua poesia pode parecer um tanto hermética ou intelectualizada , porém essa impressão se desfaz à medida que o leitor vai se familiarizando e se emocionando com o sentido profundamente humanístico de sua obra.
Como afirmei no início desse modestíssimo trabalho , não posso apontar quem seja o melhor poeta brasileiro do século XX , posso, isto sim, apontar entre aqueles que mais tocaram minha sensibilidade o nome de Cassiano Ricardo , sem dúvida, um dos grandes que está a merecer um lugar de maior destaque entre os cultores da arte das palavras que enfeitam a vida.
Bibliografia:
Cassiano Ricardo - “João Torto e a Fácula”, Liv. José Olimpio Editora, Rio, 1956.
Cassiano Ricardo- “Poesias Completas, Liv. José olimpio Editora, Rio, 1957.
Cassiano Ricardo - “Jeremias sem Chorar”, Livraria José Olimpio Editora, 2ª Ed. 1968;
Marques, Oswaldino - “Laboratório Poético de Cassiano Ricardo”, Civilização Brasileira, 1962, Rio de Janeiro.
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