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Uma Estrela no Céu
Martinho do Rio

Resumo:
Era eu ainda miúdo quando a minha avó me contou esta história. De tal maneira fiquei impressionado que ainda hoje guardo uma boa recordação dela.

M A R T I N H O D O   R I O


Uma Estrela no Céu


Era eu ainda miúdo quando a minha avó me contou esta história. De tal maneira fiquei impressionado que ainda hoje guardo uma boa recordação dela. Nunca soube se continha algum fundo de verdade, e se não era antes uma daquelas histórias maravilhosas e cheias de fantasia que a minha avó tanto gostava de contar nas noites frias de inverno, bem junto à lareira. Nunca soube a verdade, porque a minha avó morreu pouco tempo depois e levou o seu segredo para o túmulo com ela. O meu avô é que costumava dizer que ela escondia um segredo maravilhoso desde criança; e que estava convencido que esta história tinha tudo a haver com esse segredo. Não sei se era verdade, mas duma coisa eu sei : reparei sempre como o seu olhar e a sua expressão se transfiguravam à medida que contava esta história, e como um soluço embargava a sua voz quando tinha que terminar e dizer a palavra: “fim”.
De qualquer maneira e como homenagem à sua querida memória e ao seu talento inultrapassável de grande contadora de histórias, resolvi escrevê-la. Para que outros, sejam eles graúdos ou miúdos, possam, como eu sonhar e divertir-se; como eu sonhei e me diverti ao ouvir contar esta história nas noites frias de inverno bem quentinho junto à lareira.

Era uma vez…- geralmente começa-se sempre assim as histórias -, uma miúda que vive numa aldeia que tem como vizinha uma serra muito grande e muito alta. A sua casa fica no único caminho que leva á serra. Esse caminho sobe sempre, curvando como uma cobra até alcançar o alto da serra. A casa é de cor branca, um branco igual ao da neve mais pura, e que contrasta com o branco das outras casas da aldeia, que parecem, vistas á distância, bem mais escuras. No telhado de telha vermelha há uma chaminé comprida e também branca, que deita, quando esta história começa, um grande rolo de fumo cinzento. A miúda que é morena e que tem olhos grandes e negros, está estendida sobre a cama no seu quarto muito aborrecida a olhar para o teto. De repente, do rés-do-chão, ouve a voz da mãe a gritar:
- Mariana vem para a mesa!
A miúda como se tivesse acordado de repente, sobressalta-se, olha na direcção da porta do quarto e responde também a gritar:
- Vou já mãe!
Espreguiça-se e olha para a ponta dos pés onde os sandálias se balanceiam como se fossem dois pêndulos de um relógio. Boceja e salta da cama. Devagar desce as escadas e entra na cozinha onde a mãe acaba de preparar o jantar.
- O pai já chegou ?- Pergunta ela mal entra na cozinha.
- Ainda não - responde a mãe, enquanto agarra numa travessa cheia de comida e a leva com todo o cuidado até à mesa que já estava preparada para o jantar.
- E não deve vir jantar porque a mãe só pôs dois lugares na mesa.
- O seu pai vem jantar.- Acrescenta a mãe com duas rugas de preocupação na testa.- Só que vem jantar um pouco mais tarde.
- É o costume, nunca o vejo…
- O seu pai trabalha até tarde filha, não tem culpa de não poder vir jantar connosco.
- Mãe…eu quase nunca o vejo…só aos fins de semana.
A mãe olha para ela e o seu olhar comove-se.
- Eu sei filha, mas o que é que se há-de fazer... o trabalho do seu pai é assim…
- Podia ter arranjado um trabalho em que eu o pudesse ver mais -. Lamenta-se a filha sentando-se no seu lugar.
A mãe ainda comovida afaga-lhe a cabeça:
- Eu sei filha, mas não há outro trabalho. Estamos muito longe das grandes cidades e o trabalho que o seu pai arranjou foi o que pôde arranjar.
Senta-se e começam a comer em silêncio. De repente, como se quisesse afastar aquela sombra de preocupação que ainda pairava entre elas, Mariana pergunta:
- Mãe, existem mais anões na aldeia sem ser o Rodolfo ?
- O quê ?- Pergunta a mãe espantada.
- Se existem mais anões na aldeia sem ser o Rodolfo ?
- Que eu saiba só existe um anão e é o Rodolfo. Porque é que perguntas Isso ?
- Ora... por nada, foi só por curiosidade.
A mãe franze a testa e pergunta desconfiada:
- É só curiosidade ou estás de novo a imaginar coisas…
- Não estou a imaginar nada mãe... é só por pura curiosidade.
- Vê lá... não quero ter mais chatices devido à tua imaginação, lembra-te do que o médico te recomendou.
- Eu não me esqueci das recomendações do médico -, responde a Mariana corada como um tomate -. Lá porque o médico julga que eu estou maluquinha não quer dizer que não possam existir mais anões na aldeia.
A mãe sorri e empurra o prato vazio para o lado.
- Tu não estás maluquinha Mariana, o médico nunca te acusou disso. Ele apenas diz que tens uma imaginação desenfreada e que ás vezes não consegues controlá-la.
Levanta-se e vai colocar os pratos sujos no lava-loiça.
- Se não estivéssemos aqui tão sozinhas…ás vezes pergunto-me porque é que não fomos antes viver para a cidade. Era lá que devíamos estar a viver. Eu acho que é a solidão que te põe nesse estado. Aqui não tens crianças da tua idade para brincares. Aliás aqui não há nada, e eu temo muito a sério pelo teu futuro e até pela tua saúde. Se o emprego do teu pai não fosse aqui, mudaríamos de certeza para a cidade.
A Mariana levanta-se e envolve a cintura da mãe com os dois braços apertando-a carinhosamente contra si.
- Não se preocupe mãe, eu estou bem, vai ver que não me acontece nada.
A mãe envolve-a também nos seus braços e beija-lhe carinhosamente o cabelo.
- Eu sei que és forte filha, mas temo muito pelo teu futuro. Ás vezes penso se não seria melhor mandar-te para casa da minha irmã. Estavas lá muito melhor e tinhas outro futuro.
- Não mãe, eu quero ficar aqui ao pé de ti e do pai.
A mãe sorri e os olhos brilham-lhe por momentos com um fulgor pouco habitual.
- Obrigado filha, eu também quero que fiques ao pé de nós. Só que, um dia destes, teremos que pensar a sério em mandar-te para lá. E vais ter que estudar muito se quiseres ter direito a um bom futuro.
Mariana sabia que um dia isso teria que acontecer, instintivamente sabia-o. Era ainda muito nova para se preocupar a sério com isso. Por enquanto a vida na aldeia e na serra chegava-lhe e sobrava-lhe. Embora não houvesse crianças da sua idade para brincar e ela fosse a última que ainda resistia na aldeia.
- Mãe, acha que o pai também quer que eu vá estudar para a cidade ?
A mãe desenha um sorriso triste e responde-lhe num tom pesaroso:
- Não sei. Ás vezes pergunto-me se o teu pai teve alguma vez consciência que precisas de um bom futuro. Eu não o vejo preocupado…diz que tem um bom emprego na fábrica de papel e que esse emprego chega muito bem para nos sustentar. Não sei o que pensar. Mas um dia destes teremos que encarar esse problema mais a sério.
Mariana pressentia que um dia teria que também encarar esse problema. E se não fosse o facto de ter nascido e sempre ter vivido naquela aldeia, talvez os seus pais não pensassem em mandá-la para a cidade. Ela não gostaria de sair dali. Não concebia ficar a viver sozinha sem os seus pais, embora a mandassem para casa duma tia. Uma tia que raramente via e que não conhecia lá muito bem.
- Mãe, hoje não me apetece ver televisão. Não se importa que eu vá para o meu quarto ler ?
Apetecia-lhe mais isolar-se no seu quarto e ler do que ver televisão. Embora lhe pesasse um pouco na consciência deixar a mãe sozinha na sala.
A mãe não responde logo, olhava interessada uma noticia qualquer no telejornal. Depois o seu olhar cansado vira-se para ela.
- Eu não sei se deva consentir porque não fazes outra coisa senão ler. Muitas vezes pergunto-me a quem é que tu sais…o teu pai não lê, eu também não leio, não consigo compreender por que é que lês tantos livros.
A Mariana sorri, também não conseguia compreender porque é que os pais não liam. Os livros para ela eram o seu mundo encantado, onde ela sonhava e soltava como queria a sua imaginação, onde ela vivia todas as aventuras e entrava na pele de todos os heróis.
- Mãe, os livros são para mim a melhor coisa do mundo. Sem eles não haveria alegria nem fantasia na vida.
- Mas também podem ser fonte de doença, olha o que eles fizeram a ti.
- Não foram os livros que me puseram doente.
- Ai não foram ? Então o que é que te pôs doente ?
Mariana sentiu de repente uma grande lassidão e suspirou resignada pela incompreensão e ignorância que a mãe demonstrava. A culpa não era só dela, o seu pai também sofria do mesmo mal. Tinham sido educados desde crianças num ambiente em que só a luta pela vida interessava; em que a fascinação do sucesso era a coisa mais importante. E só na cidade é que se podia obter a riqueza e o sucesso. Era também verdade que eles seriam os últimos a sair dali, mas isso só acontecia porque o seu pai ainda não conseguira arranjar um emprego na cidade. No meio disto tudo os livros eram pouco importantes. Para que é que serviam se com eles não se podia obter nem riqueza nem sucesso...? Ela gostara dos livros desde a primeira vez em que a tia da cidade lhe oferecera um pelos anos. A partir daí pedira-lhe mais. E a tia da cidade não se fizera rogada, sempre que ia lá a casa trazia-lhe um livro. Não que ela fosse uma grande leitora, longe disso, era apenas mais fácil e mais barato comprar-lhe um livro do que uma peça de roupa. Tinha sempre a certeza que a sobrinha ia gostar. Os pais é que não gostavam nada, e já tinham pedido á tia para não trazer mais livros. Desde que ela apanhara “aquela doença” a tia deixara de lhe comprar livros
- Não sei o que é que me pôs doente, mas os livros não foram de certeza.
- Eu tenho a certeza minha filha, acho que são os livros que te põem doente e te fazem ter essas visões, esses disparates que tu imaginas que vês.
- Não são disparates mãe. É verdade que ás vezes imagino coisas, mas isso acontece porque sou uma pessoa sensível e imaginativa.
A mãe suspirou. Era verdade que a sua filha era sensível e temia acima de tudo que todos aqueles livros que ela guardava lá em cima pudessem pô-la ainda mais doente. Porque, para ela e para o marido, a imaginação da filha não passava duma doença. Não compreendiam que uma criança tão solitária e imaginativa pudesse sonhar. Demasiado habituados a uma vida estreita e sem horizontes, parecia-lhes impossível que alguém com o seu sangue fosse tão sensível, tão sonhador e tão diferente; e demonstrasse ainda por cima tanta imaginação.
- Está bem filha -, respondeu ela sentindo-se lassa por dentro e farta daquela luta toda -, podes ir para o teu quarto ler se quiseres.
Mariana embora sentisse algum peso na consciência, deu um beijo rápido de boas noites na mãe e subiu para o seu quarto onde estava verdadeiramente no seu mundo. Dentro do quarto olhou para os seus livros que estavam dispostos numa prateleira comprida que corria ao longo da parede e começou a percorrer com os dedos as lombadas. Tinha a colecção completa do Sandokan do Emílio Salgari e também quase todos os livros do Pirata Negro do mesmo autor. Amava especialmente o fiel amigo português do Sandokan o João, e também a generosidade de outro grande amigo o Tremal-Naik. Mas a sua preferência ia para o Tarzan de Edgar Rice Burroughs e para as suas aventuras em Pal-Ul-Don a terra primitiva onde existiam dinossauros, homens com cauda e cidades misteriosas. Também gostava dos livros de Jack London e das aventuras que ele contava passadas nas grandes florestas do Canadá e nos bosques da América do Norte. E de banda desenhada. Especialmente a do Tim-Tim e do seu cão inseparável o Milou. Mas a sua grande ambição era que o pai um dia lhe oferecesse um DVD para que ela pudesse alugar os filmes da Guerra das Estrelas que ela tinha visto várias vezes na televisão. Amava a coragem do Luke Skywalker cavaleiro Jedi na sua luta interminável na defesa da princesa e dos planetas livres contra a opressão do malvado imperador e do seu diabólico ajudante o Darth Vader. Só que o pai, até agora, por falta de dinheiro ou de vontade, ainda não tinha satisfeito o seu desejo. Ela estava esperançada que no dia dos seus anos - ainda faltavam alguns meses -, ele se lembrasse finalmente de o comprar. Escolheu um livro e começou a folheá-lo disposta a recomeçar a leitura. Só que alguma coisa atraiu a sua atenção e ela virou-se para a janela. Lá fora a floresta estendia-se comprida e sombria e de repente qualquer coisa mexeu-se. Uma sombra deslizava por entre as árvores. Uma sombra minúscula que deixava atrás de si um rasto de cor verde. Por momentos um raio do sol poente iluminou-a e ela pôde entrever um homenzinho vestido de verde a caminhar. Um “Ah” de espanto soltou-se-lhe da boca e ela recuou admirada. Quando voltou a espreitar o homenzinho tinha desaparecido. “Era o anão…” pensou ela, o tal anão que ela dias atrás tinha entrevisto a passear na floresta. “Então ele existe mesmo…não foi imaginação minha. Isso queria dizer que havia outro anão sem ser o Rodolfo na aldeia, só que mais pequenino.” Excitada sentou-se na cama. Aquele anão parecia diferente do Rodolfo que era mais alto e mais forte. Aquele anão, pelo que tinha visto, era esguio e tinha boa figura. “Quem era ele…? De onde teria vindo…?”
Mariana adormeceu nessa noite com aquela interrogação dentro da cabeça. Por qualquer razão que não compreendia sentia que o anão devia ser uma boa pessoa. Sonhou com ele durante toda a noite vendo-o pequenino e vestido de verde a passear pela floresta sorrindo a tudo o que via. No dia seguinte resolveu investigar e logo pela manhã foi dar um passeio pela floresta. O verão estava prestes a começar, as aulas tinham terminado e Mariana estava livre para poder iniciar a sua investigação á vontade e ela estava mesmo decidida a encontrar o anão. A mãe não levantou grande objecções e deixou-a ir pedindo-lhe apenas que tivesse cuidado e não fosse para muito longe. Sabia que a filha conhecia bem a floresta, porque desde muito nova fora obrigada a aprender a conhecê-la.
Mariana internou-se na floresta sentindo a caruma espalhada por entre as árvores a estalar debaixo dos pés. Ao mesmo tempo que caminhava enchia os pulmões com aquele cheiro intenso a flores silvestres e a folhas humedecidas pelo orvalho. Ela caminhava num passo rápido e elástico internando-se cada vez mais na floresta. O dia estava claro e quente e os raios de sol penetravam a custo por entre a densa mata de pinheiros, desenhando na caruma espalhada por entre as árvores pequenos charcos de luz amarela, que faziam brilhar de cores vivas e coloridas as flores silvestres que abundavam às centenas pelo chão. À medida que caminhava observava tudo que a rodeava e não se cansava de admirar o belo trabalho que a natureza fizera na floresta. Não eram só as árvores de porte alto e majestoso e de copa frondosa que ela admirava, mas também as pequenas flores coloridas e rasteiras que abundavam por todo o lado. De vez enquanto parava, baixava-se e colhia uma. Levava-a ao nariz e aspirava o seu perfume. Sorria de satisfação e logo de seguida prendia-a numa madeixa do seu cabelo tão negro como a asa de um corvo. Assim foi andando até chegar a uma pequena clareira coberta de erva. Parou e resolveu descansar no meio das flores sentindo o seu perfume e a leve brisa da manhã a agitar-lhe o cabelo. De vez enquanto o trinar de um pássaro quebrava o silêncio que era apenas cortado pelo rumor da brisa matutina. Ficou ali algum tempo, até que um ruído que não tinha nada a haver com a brisa a correr por entre a erva a fez sobressaltar. Eram passos. Passos de alguém muito leve, de alguém que quase dançava e saltitava a caminhar. Olhou para trás e o seu coração deu um pulo no peito quando viu quem era. A alguns metros de distância, saindo da orla do bosque, o anão vestido de verde avançava num passo saltitante na sua direcção. Não reagiu logo, esperou que ele chegasse perto de si e só então se levantou. Ficou de pé sentindo uma profunda emoção à medida que ele se aproximava. Verificou que era de facto pequenino e que vestia uma roupa de uma só peça de cor verde alface. As botas também eram verdes de um verde mais carregado e na cabeça não tinha um único pêlo, era completamente careca. As orelhas eram compridas e pontiagudas e não tinha sobrancelhas na cara. Os olhos pareciam rasgados e estreitos como o dos chineses, o nariz era pequenino e também arrebitado. Fez-lhe lembrar irresistivelmente os desenhos dos duendes dos livros de histórias infantis.
- Olá - disse o homenzinho num português claro e sem sotaque mal chegou junto dela.
- Olá - respondeu a Mariana tentando que a voz não tremesse de emoção.
- Posso sentar-me ao pé de si ?- Perguntou o homenzinho sem deixar de sorrir.
E sem esperar pela resposta dela sentou-se no meio da erva. A Mariana ainda sob o efeito da emoção sentou-se também.
- É um belo sitio para se estar...não é ?- Disse ele aspirando o ar com evidente prazer.
- Sim, está-se muito bem aqui.
- Gosto muito deste lugar, sempre que venho para estes sítios passo aqui muito tempo. É dos poucos lugares na Terra que parecem intocados pelo tempo, e espero que nunca o estraguem.
Deitou-se no meio da erva com as mãos sobre a nuca e ficou a olhar para o céu em silêncio. Os seus olhos piscavam devido à luz do sol que lhe batia em cheio na cara, fazendo com que a pele já de si muito branca, quase da cor do marfim, brilhasse ao sol como um diamante.
- O senhor é um duende ?- Perguntou a Mariana num tom inseguro.
- Um duende ?
- Sim, um duende, um daqueles homenzinhos pequeninos que aparecem nos livros de histórias infantis e que tanto podem ser muito maus como muito bonzinhos.
- Ah! Bom. Se me queres chamar assim…posso muito bem ser um duende.
- Então os duendes existem ! - Exclamou a Mariana com os olhos a brilharem de excitação.
- Pois claro que existem -, respondeu o homenzinho erguendo-se sobre um cotovelo -, até existem há muito tempo, há muito mais tempo que o homem existe na Terra.
Levantou-se e a Mariana pôde verificar que, mesmo sentada, ele não a ultrapassava em altura.
- Nós habitámos este planeta há muitos milhares de anos atrás. Nós, os elfos, e as fadas; e também os gigantes, só que vieram depois.
- Os gigantes ?
- Sim, os gigantes, vieram depois e foram eles que nos obrigaram a fugir do planeta.
- Porquê ? Porque é que os obrigaram a fugir do planeta ?
- Porque, quando se instalaram aqui, criaram uma civilização muito parecida com a vossa, e não respeitaram nada nem ninguém.
- Não respeitaram nada nem ninguém ? !
- Não respeitaram nada nem ninguém, esqueceram-se que havia outros povos, e estragaram o planeta transformando-o num deserto.
- Como é que eles conseguiram fazer isso ?
- Ora, poluindo e envenenando tudo. O planeta levou milhares de anos a recuperar.
- Poluíram todo o planeta ? Foi isso que aconteceu ?
- Foi isso o que aconteceu, estragaram o planeta numa escala até ali nunca vista. Vocês ainda não chegaram a esse ponto mas, se não mudarem o rumo ás coisas, o mais certo é acontecer-vos o mesmo que aos gigantes.
- Então foi por isso que fugiram…
- Foi precisamente por causa disso que fugimos. Era impossível viver num planeta todo estragado. Fomos embora porque não aguentávamos mais e viajámos para o espaço, para outro sistema solar, agora estamos de regresso e queremos de volta aquilo que já foi nosso.
- Querem voltar ?
- Queremos voltar é verdade. Mas depois de ter dado uma volta completa ao planeta verifiquei que as coisas não estavam assim tão diferentes. A vossa civilização é quase igual à dos gigantes.
- Está a querer dizer-me que nos pode acontecer o mesmo que aos gigantes ?
O duende não respondeu, olhou para o lado e colheu uma flor. Cheirou-a com evidente prazer e entregou-a à Mariana.
- Ponha-a também no seu cabelo como fez ás outras.
A Mariana agarrou na pequena flor e colocou-a junto ás outras no cabelo. O Duende olhou-a atento durante alguns segundos, como se quisesse estudar o efeito que o conjunto das pequenas flores faziam no seu cabelo. Depois apontou com um dedo minúsculo para uma delas.
- Já reparou como elas são delicadas ? Já viu como a vida delas está por um fio ? Já percebeu que qualquer coisa as pode matar ? Basta que alguém as pise ou arranque do chão para elas morrerem. A maior parte da vida na Terra é assim, frágil, delicada, em constante equilíbrio para poder sobreviver. O maior milagre da vida é conseguir sobreviver em circunstancias adversas. Basta um pouco de calor a mais, um pouco mais de chuva para que tudo se desequilibre e a vida desapareça; para voltar a renascer uns metros mais adiante se encontrar condições propicias para isso. É esse o verdadeiro milagre da vida. Agora ponha a hipótese que aparece alguém ou alguma coisa que comece a matar a terra e não deixe que a vida se recomponha. O que é que acha que vai acontecer ?
- A vida pode morrer para sempre - respondeu ela num tom aflito.
- É verdade- respondeu o duende -, e é também verdade que pode acontecer o mesmo á vossa civilização se não mudar de rumo.
Calou-se e voltou a sentar-se. A Mariana não sabia o que pensar, tinha ficado chocada com tudo o que ouvira. Sabia que o que ele contara era verdade, pois via acontecer isso quase todos os dias relatado pelos jornais e pela televisão. Não era novidade para ela. Só que, até agora, nunca pensara muito a sério no assunto. E era só agora que começava a ter consciência do grave problema que aquilo tudo era.
- O que é que podemos fazer ?
- Pergunte antes o que é que eu posso fazer ?
- Está bem-disse a Mariana -, o que é que eu posso fazer ?
O duende levantou-se olhou para o céu.
- Vou ter que regressar, logo á noite retomaremos a conversa.
Deu meia volta e começou a caminhar, Mariana vendo que ele se afastava gritou-lhe :
- Espere ! Ainda não me disse em que lugar é que falamos logo á noite ?
O duende voltou-se e respondeu :
- Em sua casa, falamos em sua casa.
A Mariana ficou espantada. “Em minha casa…?! Mas ele sabe onde fica a minha casa…?! ”
- Sabe onde fica a minha casa ?
- Sei- respondeu-lhe o duende enquanto se afastava no seu passo rápido e saltitante. Mariana ficou sozinha, ainda lhe custava acreditar que tivesse falado com o homenzinho. Tudo o que lhe acontecera parecia-lhe irreal, como se acabasse de ter um sonho. Agora, que o duende desaparecera e o mundo voltara ser o que sempre fora, temia que tudo aquilo não passasse de mais uma partida da sua imaginação demasiado fértil. Levantou-se e resolveu regressar a casa. Pelo caminho não viu qualquer rasto do duende e cada vez mais se convencia que tudo não passava de uma partida da sua imaginação. Ao almoço não contou nada á mãe, não estava para ouvir mais reprimendas a propósito da sua imaginação descontrolada. Além de a não querer inquietar mais com aquele problema. A tarde passou-a no quarto a ler, e a melhor altura para ler era agora, durante as férias grandes, quando não havia matéria escolar para estudar. À noite durante o jantar a mãe pouco falou e o pai como sempre não apareceu. A Mariana que já se acostumara àquela ausência comentou com uma ponta de ironia :
- Acho que tenho um pai fim de semana.
- Não digas isso Mariana ! - ralhou-lhe a mãe -, estás a ser injusta.
- Estou a ser injusta mãe…então o pai que eu só vejo aos fins de semana não é um pai fim de semana ?
- O seu pai chega tarde porque não pode chegar mais cedo e porque trabalha muito.
- Eu sei que ele trabalha muito, mas ás vezes esquece-se de ir ao meu quarto para dar-me as boas noites.
A mãe não respondeu, levantou-se e foi colocar os pratos sujos no lava-loiças. A Mariana não se sentia muito feliz com a critica que acabara de fazer ao pai, embora fosse verdade o que acabara de dizer. O pai esquecia-se muitas vezes de ir ao seu quarto dar-lhe o beijo de boas noites e isso era muito importante para ela.
- Eu digo-lhe para não se esquecer- disse-lhe a mãe num tom onde se lia alguma tristeza -. Não vou esquecer de lhe dizer, juro-te!
Voltou-se e começou a lavar a loiça do jantar. A Mariana comovida correu para a mãe e abraçou-a. Ela sorriu inclinou-se e beijou-lhe o cabelo.
- Ás vezes esqueço-me como um beijo é importante para ti. Até eu às vezes esqueço-me de te dar o beijo de boas noites.
- Não é verdade, a mãe dá-me sempre o beijo de boas noites.
- Não sei filha…não sei… com esta vida que levamos…
- Se a mãe quiser eu hoje fico consigo a ver televisão.
- Não é preciso filha, eu hoje vou para a cama cedo, estou muito cansada.
A Mariana esperou até que a mãe acabasse as tarefas domésticas e recolhesse ao seu quarto. Só então recolheu ao seu conjecturando se o duende iria ou não aparecer. Se fosse apenas um produto da sua imaginação era muito bem capaz de não aparecer; mas se existisse na realidade…?
Não teve que esperar muito. Já a noite ia alta e ela preparava-se para se deitar quando sentiu um ruído na janela. Olhou e viu a cara do duende a espreitar. Ficou espantada. Como é que ele tinha subido até ao seu quarto sem ela ter dado por nada…? Abriu a janela e o homenzinho entrou dando um salto para dentro do quarto.
- Não faça muito barulho, a minha mãe está a dormir e o meu pai não tarda nada está aí.- Pediu ela num murmúrio.
- Não se preocupe, a sua mãe não vai acordar e o seu pai está reunido com os amigos numa tasca da aldeia e não vai regressar a casa tão cedo.
- Como é que sabe tudo isso ?
O duende fez um sorriso enigmático e respondeu :
- Sei. É tudo o que precisa de saber.
A Mariana reparou que ele estava vestido da mesma maneira, com o mesmo fato verde que vestira nessa manhã. Tinha os mesmos olhos estreitos e rasgados e as mesmas orelhas compridas e pontiagudas. Se era um produto da sua imaginação não tinha mudado absolutamente nada.
- Como é que se chama ? Ainda não me disse o seu nome ?
O duende empertigou-se e fazendo um ar marcial respondeu :
- Chamo-me D O R e sou o chefe da nave espacial número 5 em exploração permanente neste sector da galáxia. Viemos em missão de exploração.
A Mariana ficou espantada com o discurso do homenzinho, se ele era um produto da sua imaginação nunca ela fora tão fértil como naquele momento.
- Como é que disse que se chamava ?- Perguntou ela novamente.
- D O R. D de destemido O de organizado R de resoluto. D O R.
- Isso soa-me como porta em inglês.
- O que é que disse ?
- Não ligue. Com que então chama-se D O R e esse nome quer dizer tudo isso que acabou agora de me dizer ?
- Quer dizer isso tudo e é a minha divisa. É por ela que eu governo a vida. O D quer dizer que tenho que ser valente e destemido. O O que tenho que ser organizado e metódico em tudo que faço. E o R que tenho que ser resoluto e determinado.
- Isso parece-me muito bonito. E consegue ser de facto tudo isso ?
Ele respondeu com o mesmo ar marcial de à segundos atrás:
- Claro que consigo. Nenhum dos meus chefes alguma vez reclamou por causa do meu comportamento.
- Bravo !- congratulou-se a Mariana.
O duende sorriu e curvou-se num agradecimento, quando se endireitou fez um ar mais sério e acrescentou :
- Agora vamos ao que interessa. Quer vir dar um passeio comigo ?
- Agora ! Assim no meio da noite…? !
- Tem que ser, quero-lhe mostrar uma coisa.
- Mas a minha mãe não me vai deixar sair…
- Não se preocupe, a sua mãe nem vai notar que saiu.
- E o meu pai ?
- Não se preocupe também com ele, vai ficar ainda muito tempo naquela tasca. Esteja descansada que eu trago-a de volta a casa a tempo de descansar.
Mariana sentiu que uma força misteriosa a impelia a ir com ele. Não resistiu. Se era a sua imaginação que criava tudo aquilo, já agora interessava-lhe saber até onde ela queria e podia ir. Seguiu o duende pela escadas e quando passou pela porta do quarto da mãe ouviu com nitidez o seu ressonar tranquilo. Sorriu, se ela soubesse ou sequer imaginasse o que lhe estava a acontecer… nem queria imaginar qual seria a reacção dela. Cá fora a noite estava quente e o céu era um mar de pequenas luzes amarelas. Sempre atrás do duende caminharam com rapidez até á orla da floresta. A Mariana durante alguns segundos ainda ponderou se devia ou não devia continuar. Não estava habituada a andar na floresta durante a noite e ainda por cima com alguém que não conhecia. Foi preciso o duende puxar-lhe por um braço para ela resolver prosseguir. Ele, que caminhava à sua frente no seu passo saltitante, parecia saber muito bem para onde ia; porque, mesmo naquela escuridão em que as copas das árvores tornavam a floresta ainda mais densa e escura e até um pouco sinistra, ele, aparentemente, sabia muito bem para onde caminhava.
- Para onde vamos ?- Perguntou ela ansiosa.
- Já vai ver para onde vamos, é só mais um bocadinho - respondeu o duende num tom calmo, tentando dar alguma segurança à miúda que o seguia.
Caminharam desviando-se das árvores e tentando escapar aos arbustos mais espinhosos nem sempre com muito sucesso. Mariana começou a senti-los, pois o ardor dos arranhões começaram a apoquentá-la e ela começou a queixar-se:
- É muito longe ? Olhe que já tenho as pernas todas arranhadas.
- Não é muito longe, é já ali à frente -. Respondia o duende sem olhar para trás e a caminhar sempre no mesmo ritmo.
Finalmente, após mais alguns arranhões e alguns queixumes dela, chegaram a uma clareira e o que ela viu deixou-a maravilhada e também de boca aberta. Mesmo à sua frente e ocupando o centro da clareira estava um objecto que só nos livros de banda desenhada, nos filmes de ficção cientifica, e nos sonhos mais imaginosos alguma vez concebera que pudesse existir; e que tanto ansiara um dia conhecer. À sua frente, pousada bem no centro da clareira, estava uma nave espacial.
- Um disco voador !- Gritou ela ainda de boca aberta.
O duende olhou para ela e sorriu, depois fez-lhe sinal para que o seguisse. Enquanto caminhavam na direcção do disco ela pôde examiná-lo melhor e reparou que era igual ou muito parecido com os desenhos de discos voadores que vira desenhados nos livros de banda desenhada. A nave não passava de dois enormes pratos de sopa côncavos colados um ao outro e com uma fileira comprida de luzes coloridas na comprida ranhura que os separava. No topo da nave havia uma cúpula transparente. Lá dentro uma cara espreitava. Quando se aproximou do disco percebeu que era outro duende igual ao D O R.
- Vou-te apresentar o meu irmão- disse o duende agarrando-lhe a mão.
- Tens um irmão ?
- Tenho. E anda sempre comigo.
Uma abertura surgiu na base do disco e uma escada foi largada. Mariana subiu atrás do duende e quando entrou no disco a primeira sensação que teve foi a de entrar num quarto cheio de luz. Depois os olhos começaram a habituar-se e ela pôde reparar melhor no que estava à sua volta. A primeira coisa que viu foi outro duende ao lado do D O R. Era igual a ele, só que estava vestido com um fato de cor diferente. Em vez da cor verde alface estava vestido de amarelo. Um amarelo vivo quase berrante.
- Mariana,. este é o meu irmão D A R.- Disse o D O R com os olhos a brilharem de satisfação e de orgulho.
- Muito prazer D A R- disse a Mariana apertando-lhe a mão.
- Chamo-me D A R porque sou determinado, arguto e resistente. D De determinado, A de arguto, e R de resistente.
- Resistente a quê ?- Perguntou ela com curiosidade.
- A tudo que for preciso -, respondeu com determinação o duende.- Posso estar horas a trabalhar sem sentir qualquer cansaço, o que é uma condição essencial para conduzir uma nave tão sofisticada quanto esta.
- E agora vamos dar uma volta -, disse o D O R correndo para o painel de comando -. D A R coloca as coordenadas no computador e toca a caminho da lua.
- Vamos até á lua ?- Perguntou a Mariana com os olhos a brilharem de excitação.
- Vamos. E de lá vais poder ver como a Terra é bonita vista do espaço.
D A R aproximou-se duma grande consola cheia de botões e de luzes a brilhar e começou a trabalhar. Mariana sentou-se numa cadeira que se colou imediatamente ao seu corpo deixando-lhe uma sensação de segurança e bem estar. De repente, quase sem dar por isso, sentiu o disco no ar. O disco subiu com rapidez, quase como se tivesse dado um pulo. Depois, mais lentamente, começou a subir na direcção do céu estrelado. Mariana sentia-se quase eufórica, nunca nos seus sonhos mais imaginativos teria imaginado uma viagem como aquela, dentro de um disco voador e na companhia de dois duendes. Parecia-lhe impossível de acontecer e de quando em quando beliscava-se para ver se tudo aquilo não passava de mais um dos seus sonhos loucos. Tinha quase a certeza que estava na cama e que em breve iria acordar para tomar o pequeno almoço. Mas, por mais que se beliscasse, não acordava. Teve que se render à evidência, ou estava completamente louca, ou então tudo aquilo porque estava a passar era a mais pura das realidades.
- Mariana, vem ver a Terra vista do espaço- Pediu o D O R chamando-a da cúpula.
Ela subiu as escadas em caracol que levavam á cúpula e quando encostou a cara aquilo que lhe pareceu ser matéria plástica transparente soltou um AH! de admiração. Á sua frente, pendurada no espaço negro via-se a Terra, que brilhava sob a luz do sol com enorme esplendor e magnificência.
- É linda ! É magnifica!- Gritou ela de admiração.
- É um planeta fora de comum, não há muitos como ele no universo -, disse num tom em que se sentia alguma saudade o duende.
- Agora percebo porque é que querem voltar.
- É verdade que queremos voltar, só que não queremos regressar a um planeta morto.
Ela sentiu um sobressalto no peito e gritou a olhar para a Terra :
- Não há-de morrer ! Se depender de mim não há-de morrer!
- Oxalá os outros habitantes da Terra fossem iguais à Mariana
Ela soltou um soluço e fungou de repente contra a parede transparente deixando colada uma mancha viscosa de cor esverdeada. Corou imediatamente e olhou envergonhada para o duende que fingiu que não acontecera nada. Discretamente limpou o nariz com o dedo.
- Eu sei que nem toda a gente pensa assim.
O duende concordou.
- É verdade que nem toda a gente pensa assim. Para nós já é uma grande recompensa encontrar alguém que pense como a Mariana.
- Eu sei que sou diferente, que me preocupo com coisas que a maioria das pessoas não liga.
O duende sorriu e concordou :
- Eu sei, e essa foi uma das razões porque viemos ter consigo.
- Por eu pensar de maneira diferente ?
- Por a Mariana ser uma pessoa diferente.
Fez uma pausa e continuou :
- O problema é que á medida que for crescendo, a maneira de pensar, de encarar as coisas da vida pode começar a mudar. Os adultos pensam quase sempre de maneira diferente de quando eram crianças.
Ela matutou no que ele acabara de lhe dizer e percebeu que tinha razão.
- Eu nunca vou mudar a minha maneira de pensar.
E não iria mudar pensou ela com determinação, por mais que crescesse e se tornasse mais velha não iria mudar.
- D A R rumo á lua !
O disco teve um leve estremecimento e como se tivesse ocorrido um passo de magia a Terra começou a diminuir de tamanho. Minutos depois o duende aponta para a Lua :
- Veja a Lua !
Mariana correu para o outro lado da cúpula. Defronte dos seus olhos a lua crescia e em breve ocupava todo o horizonte, branca, brilhante e carregada de crateras.
- É assim que a Terra vai acabar um dia se vocês não fizerem nada para modificarem a situação. Acabará como um pedaço de rocha vazio e morto, um pedaço de rocha esburacado errando para sempre no espaço.
A Lua era bela só que estava morta e a Mariana percebeu isso.
- Ela pode mesmo ficar assim...igual à Lua ?
- Pode. Mas provavelmente isso só sucederá daqui a muito tempo.
De repente sentiu medo, medo que a Terra se tornasse uma segunda lua toda esburacada.
- Eu não quero que isso aconteça !
Virou-se para o duende e acrescentou :
- Eu não vou mudar de ideias quando chegar a adulta.
Suspirou e uma lágrima que não percebeu se era de raiva ou de tristeza escorregou-lhe até à boca.
O duende que continuava ao seu lado moveu-se de repente. E perante o seu olhar atónito deu um salto para trás. Fez um flic flac perfeito de técnica apuradissima.
- Desculpe- disse ele, depois de ter terminado o exercício -. Muitas vezes demonstramos assim a nossa satisfação.
Ela não conseguiu responder-lhe porque continuava de boca aberta.
- E agora…rumo à Terra.
O disco desceu deixando a Lua e poucos minutos depois já pairava dentro dos limites da atmosfera da Terra. Á Mariana ainda lhe custava crer que tivesse feito aquela viagem de poucos minutos dentro de um disco voador. Sentia-se como aqueles passageiros, que viajando de avião e depois de terem ultrapassado vários fusos horários, se sentem confusos à chegada. Ela por mais que olhasse para as nuvens que agora rodeavam o disco custava-lhe acreditar que minutos antes estivera a pairar á volta da Lua. O disco desceu mais e ela começou a observar as luzes das cidades da Terra que passavam a grande velocidade por baixo dela. Para ela, que nunca tinha viajado de avião, aquilo foi uma descoberta. Via-as correr lá embaixo e comparava-as a pequenos pirilampos pousados. A certa altura uma das muitas estrelas que pintavam de amarelo o céu moveu-se á distância e rapidamente começou a crescer. Era uma pequena luz amarela de brilho intenso e que se movia devagar; muito mais devagar que o disco. Curiosa apontou-a e perguntou ao duende que ainda permanecia ao seu lado:
- O que é aquilo ?
O duende olhou e respondeu a sorrir :
- Uma das máquinas mais importantes que os homens alguma vez inventaram, é um avião.
- Um avião ? Mas não parece a esta distância…
- Não parece devido à distância a que se encontra e ás luzes de bordo que parecem ter-se convertido numa só. Mas vou mostrar-lhe. D A R ! Rumo ao avião.
O disco deu de repente uma volta de 45º que a deixou tonta e rumou na direcção do avião. Quando chegou a pouca distância abrandou e começou a acompanhá-lo numa rota paralela e a velocidade quase igual. Ela via o avião iluminado pela longa fila de inúmeras janelinhas e perguntava-se o que é que os passageiros e os pilotos estariam naquele momento a pensar ao ver o disco a voar tranquilamente ao seu lado. Como se adivinhasse no que ela estava a pensar o duende esclareceu :
- Devem estar a pensar que estão a ter uma alucinação, os que estiverem acordados é claro.
- Acha que eles não acreditam no que estão a ver ?
- Os homens são muito estranhos nas sua reacções àquilo que não compreendem. Na maior parte das vezes preferem ignorar a compreender. Como se ignorando o que não se compreende, ele deixasse automaticamente de existir.
Voaram ainda durante alguns minutos ao lado do avião. Depois o disco acelerou, deu uma volta por cima do avião e desapareceu na noite. Minutos mais tarde aterrava na mesma clareira de onde tinha partido algum tempo atrás.
- Chegámos Mariana e muito a tempo de poderes descansar- disse o D O R com um sorriso de despedida.
Ela que estava sentada na mesma cadeira que a amparara quando tinham descolado para aquela viagem inesquecível, levantou-se e caminhou para a porta. Os dois duendes esperaram por ela e saíram juntos. Cá fora sentiram o ar quente da noite de verão e ela percebeu que nunca mais iria esquecer aquela noite inolvidável para o resto da sua vida. No momento da despedida D O R apertou-lhe a mão.
- Espero que tenhas aprendido alguma coisa com esta viagem.
Ela sorriu, inclinou-se e suavemente depositou um beijo na cara dele.
- Foi a viagem mais bonita que alguma vez fiz na vida.
O duende sorriu e não corou, porque os duendes não coram. Apalpou com dois dedos o local onde a Mariana lhe depositara o beijo.
- Nunca ninguém me tinha feito isto antes, é agradável.
Estendeu a outra mão e entregou-lhe um objecto comprido e preto.
- Isto vai-te ajudar a encontrar o caminho para casa. Aliás não estás muito longe dela, é só seguir sempre em frente.
A Mariana agarrou no objecto e reparou que não passava de uma vulgar lanterna eléctrica.
- Mas isto é uma lanterna eléctrica ? !
O duende sorriu e os olhos brilharam-lhe com malícia.
- Claro que é, e é até muito útil para não tropeçares pelo caminho.
Ela fez um ar desiludido :
- Eu pensava que…
- Querias levar um objecto que provasse a nossa existência não era ?
Ela respondeu que sim.
- É impossível Mariana. Por agora preferimos manter a nossa existência secreta, quando chegar o momento apropriado serás tu própria a revelar ao mundo que existimos.
Ela percebeu que ele tinha razão, seria muito difícil ao mundo aceitar a existência dos duendes, eles pertenciam ás lendas, aos mitos e ás histórias infantis. E nunca até agora na história do homem, um mito, ou uma lenda, se tornara realidade. Era melhor deixar as coisas como estavam, talvez um dia mais tarde…
Abraçou D O R e D A R e viu-os entrar para a nave. Depois o disco levantou voo com um assobio agudo e pairou durante alguns momentos sobre a floresta. De seguida acelerou e subiu como um foguete para as alturas; perdendo-se no meio das milhares de pequenas estrelas que iluminavam aquela noite quente de verão. Ela ainda tentou segui-lo com o olhar, mas era difícil distinguir mais uma pequena estrela no meio de tantos milhares de outras. Desistiu e abriu a luz da lanterna, o seu foco de luz intensa deu-lhe a segurança que sentia que começava a faltar-lhe. Com um suspiro de resignação começou a caminhar na direcção da sua casa.
A floresta não lhe pareceu tão temível no caminho de regresso. Talvez por que sentisse que a presença dos duendes a tivesse tornado mais alegre, e também porque o foco de luz da sua lanterna ao iluminar o caminho de regresso, lhe trouxesse novamente a sensação de realidade que lhe faltara até agora. Já perto de sua casa viu luz no quarto dos pais e pensou que a mãe tinha acordado, fora até ao seu quarto e não a encontrara a dormir na cama. Inquieta com a sua possível reacção abriu a porta da rua com cuidado, subiu as escadas silenciosamente e meteu-se apressadamente dentro da cama. Durante alguns minutos esperou pela reacção da mãe. Ouviu o barulho da porta do quarto dos pais a abrir-se e a fechar-se e os passos tranquilos da mãe a percorrer o corredor na direcção do seu quarto. Sentiu a porta a abrir-se e a sensação que alguém espreitava para dentro do quarto. Fechou os olhos e fingiu que estava a dormir. O barulho do chão a ranger disse-lhe que a mãe entrara e que se dirigia agora para a sua cama. Continuou de olhos fechados e sentiu que ela se debruçava sobre ela. Por breves segundos não aconteceu nada, mas logo de seguida sentiu um beijo quente e húmido a ser depositado com carinho na sua cara. Abriu os olhos e com um sorriso já preparado na boca virou a cara para a mãe.
- Pai !
Mal iluminada pelo pouco luar que conseguia entrar pela greta da janela a cara do seu pai sorria para ela.
- É verdade filha, vim dar-te o beijo de boas noites.
- Pai…Pai…eu que ansiava tanto por esse beijo…
- Eu sei meu amor, é imperdoável da minha parte. E foi a tua mãe à bocado que me lembrou que eu nunca te dava o beijo de boas noites.
- Pai, então era o senhor…
- O quê…
Ela desenhou um sorriso divertido antes de responder:
- Ouvi barulho no corredor e julguei que era a mãe que vinha aí.
- Ouve Mariana, a partir de hoje juro que nunca mais me vou esquecer de te dar o beijo de boas noites.
Ela ficou logo comovida e uma lágrima surgiu-lhe nos olhos.
- Pai…Pai… gosto tanto de si.
E num súbito arrebatamento apertou-o com força contra ela. O pai retribuiu o abraço também com ardor e por breves momentos esqueceram-se do mundo que os rodeava.
- Ouve - começou o pai ao mesmo tempo que ajeitava cuidadosamente a roupa da cama da filha.- De agora em diante vou tentar dar-te mais atenção e também ao que se passa nesta casa. É verdade que o trabalho tem ocupado o meu tempo todo, mas vou fazer um esforço, e tentar tirar o tempo necessário para poder cuidar de ti e da tua mãe.
Ela não queria ouvir outra coisa, à muito tempo que sentia que não tinha um pai. Um pai que estivesse ali ao pé dela, a amasse e a ouvisse quando precisasse. Sentiu uma grande felicidade e numa reacção em que demonstrava toda a sua alegria agarrou-se ao pescoço do pai cobrindo-lhe a cara de beijos. O pai comovido apertou-a fortemente contra si e uma lágrima de emoção deslizou-lhe pela cara abaixo.
- Tenho sido assim tão mau pai ?- Perguntou ele num murmúrio.
- Não, não tem sido um mau pai, tem sido apenas um pai ausente.
- Pois a partir de hoje vou estar menos ausente.
Afagou com carinho o cabelo da filha, beijou-a mais uma vez com ternura e acenando um adeus saiu do quarto.
Mariana ficou sozinha, mas desta vez não sentia qualquer tristeza. Pelo contrário, a sua alegria era mais do que muita, pois tinha reencontrado de novo o seu pai. O pai que amava acima de tudo e que, por qualquer razão, tinha estado ausente durante tanto tempo. Sentou-se na cama sentindo que não podia dormir e resolveu abrir a janela. A noite estava a dar lugar à madrugada e o céu negro estava a pouco e pouco a clarear. Olhou para a floresta que renascia sob a claridade emergente e para o céu negro que desaparecia a pouco e pouco consumido por uma luz cada vez mais branca e avermelhada. As estrelas estavam a apagar-se tragadas pela luz que renascia. Procurou uma estrela mais luminosa e resistente que fosse diferente das outras que morriam devagar com o nascer do dia. Talvez acreditasse que a nave dos duendes andasse por ali, porque queria a todo custo que eles partilhassem da sua nova alegria reencontrada. Não teve essa sorte, se eles andavam por ali não deram pela sua presença. Sentiu-se um pouco triste, mas a sua tristeza em breve desaparecia tragada pela nova alegria que sentia dentro do coração. Aspirou com força o ar da manhã e encheu os pulmões com o perfume a flores silvestres e a resina de pinheiro bravo. Amava aquele perfume, porque sentia que era ali, naquela encosta junto á serra, que reencontrara de novo a vida e uma nova alegria de viver. Fechou a janela e deitou-se. Agora podia dormir descansada porque, finalmente, ao fim de tanto tempo, encontrara de novo o seu pai.


F I M







Biografia:
Escritor com o primeiro livro já publicado
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Outros títulos do mesmo autor

Poesias Aquele Sabor Suave e Macio Martinho do Rio
Contos O Observador de Trovoadas Martinho do Rio
Cartas A tua Imagem Martinho do Rio
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