Ele tentou me ler desde o primeiro contato. “Você é esquentadinha, questionadora de tudo e se defende demais”. Eu até quis reivindicar, mas ele estava certo. Minha cara amarrada, meu costume de ter resposta pra tudo e as formas que eu criava pra não cair em armadilhas passionais intimidavam, e ainda assim ele tinha mania de me taxar. “Você finge se apaixonar, que cinismo!; Você é cheia de caprichos e não sossega até realizar!; Você chora por birra quando não consegue o que quer, chora por ego ferido!; Você é fria, não vive o luto dos fins nem por dois dias!”. Tenho que admitir que ele até tem razão na maior parte das acusações. Qualquer relação que exigisse de mim entrega e profundidade, na atual conjuntura, não vingaria. Ser profundo custa caro e acarreta em uma sobrecarga que eu não estava disposta a levar nas costas. Ao longo dos anos e experiências vividas eu havia elaborado uma série de exigências e sintonias que se não fossem totalmente atendidas eu jamais seria profunda. Superficialmente, eu usava e me permitia ser usada quando era conveniente e tudo girava mesmo em torno das minhas vontades. Levava algum tempo pra me relacionar, pois minha impaciência não tolerava ninguém pegando no meu pé, ou indisponível quando eu solicitasse, optava pelo ‘antes só que com gostos mal saciados’. Ele me passava sermão: “O mundo não gira em torno de você e as pessoas não vivem em sua função”. Outra vez ele tinha razão. Mas eu havia levado muito tempo construindo os filtros sentimentais, não poderia desprezá-los assim por qualquer caso. No dia daquela festa, entre um som bastante alto, uma taça de vinho e eu contando o quanto me identificava com os filmes do solitário, incompreendido e auto-questionador, Woody Allen, ele me interrompeu, quase em tom de desabafo: “Você se diz incompreendida pra justificar sua covardia de não se entregar…”. Nem as palavras mais pesadas me intimidariam naquela noite, no auge da minha segurança. A escolha de olhar pra mim apenas, nunca seria entendida por todos, por enquanto eu só estava preparada pra ser ímpar, penosa era a saga de quem tentasse ser meu par. Eu me fiz desafio sem mistério, ele atacava querendo vencer. No fim das contas, ele também vivia em minha função, querendo me modificar. Ele acertou em alguns trechos a leitura, mas esqueceu que por mais que ele me leia - superficial, covarde, egoísta e cheia de vontades - quem me escreve sou eu.
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