Eu sei que você ainda pensa, pediu de herança o privilégio ou desgosto de ser o que abandona ao invés do abandonado, não é nada fácil carregar esse fardo. Eu sei que você ainda pensa, caminhando por aquelas ruas que eu, tão fantasiosa, descrevia arrodeadas das minhas histórias que te interessavam. Eu sei que você ainda pensa, quando encontra em cada gole desavisado do seu destilado com gelo a lembrança de como eu falava empolgada das minhas bebidas preferidas, do quanto eu supunha que você adoraria conhecer e do quanto eu também me empolgava pelas suas. Eu sei que você ainda pensa, quando o meu cheiro te persegue pelas entranhas, te traindo quando você tem total convicção que nada de mim resta, sou página virada e não existe intenção. Eu sei que você ainda pensa, quando é surpreendido num momento de ócio por aquela música que tocava na gente e para a gente, inesperada, esfregando na tua cara o quanto cada situação era ridiculamente feliz. Eu sei que você ainda pensa, em cada olhar meu que você espera e não tem, a cada olhar meu que você não espera, recebe e suporta, desavisado. Eu sei que você ainda pensa, quando me mira de modo despretensiosamente proposital, pois quer chocar, e choca, mas desconhece o efeito, mesmo porque nem sempre tem algum. Eu sei que você ainda pensa, pela menina que te chama atenção de 20 minutos à 48 horas, no máximo, pois a partir disso já não consegue ultrapassar os limites do comum. Comum não combina, você retorna a estaca zero e ainda pensa. Eu sei que você ainda pensa, porque do poço escuro que você teima em se esconder, eu enxerguei a tua vulnerabilidade, te estendi a mão, te puxei de lá, limpei e te refiz. Você não suportou ser limpo e livre, se jogou novamente. Ao longo de todos estes tempos, depois de todas as tuas escolhas, da ressaca, do desespero e da incompreensão do mundo, eu era o teu beco com saída para a abstração. Fácil de se perceber, você ainda pensa.
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