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A ambivalência do Diabo: um frenesi barroco
Carolina Assis

A pouco mais de um ano encontrei um amigo. Estava abatido, cansado. Perguntei de imediato como estavam as aulas de literatura na universidade, recordava das nossas antigas discussões acerca da forma poética, das questões estéticas que tanto lhe empolgavam. Estava realmente apático.

- Então Edgar, o que houve com aquele furor todo?

- Ah! O furor, o furor. Que me dera ter furor literário, depois de ter passado por um frenesi barroco.

- Frenesi Barroco, Edgar. O que é isso? É algum conceito literário, alguma dobra deleuzeana?

- Rapaz, vai ver que é isso: ta todo mundo frenético. Vou lhe contar, querido Valério...

Como todo professor, estava com uma dupla jornada: pela manhã no ensino público e à noite na universidade, às vezes um dialogava com o outro, incrível! Numa dessas aulas, pela manhã, decidi começar com uma das obras vicentinas: O Auto da Barca do Inferno. Logo que cheguei à escola percebi um certo barulhinho na sala dos professores, não quis perguntar, pois estava atrasado... Entrei na sala sem olhar os alunos nos olhos, disse bom dia virado para lousa, comecei a escrever o que iríamos discutir e o que alunos deveriam pesquisar. Quando virei parte da sala estava de costas. Assustei-me, pensei, fui mal educado não os olhei. Pedi desculpas e os interpelei, não respondiam. Caminhei para o lado que estava virado e disseram: Não faremos esse trabalho!

- Mas por que não? O que houve?

- Ah, professor. O diabo tem caminhos jamais pensados para nos aquilatar.

- Que diabo, menino?

- Do Auto da Barca do Inferno, oras!

- O quê?! Mas a leitura do livro não fará nada com vocês, qual o problema?

- Esta escrito na bíblia. O mau professor, o mal se manifesta por veios jamais pensados.

Foi instalada a discussão, disse que daria o Auto da Barca do Inferno e se eles não quisessem fazê-lo era direito, mas se responsabilizariam pela nota. Pra quê disse aquilo, todos iniciaram argumentos dos mais variados. Levantou um mais gordinho e disse:

- Pra mim não tem problema professor, sou budista, pra mim a figura do diabo não existe, tudo é o homem quem cria.

Três ou quatro meninas levantaram, arrumando suas saias, eram evangélicas. “Vocês esta negando a Deus? Deus sempre esteve às voltas com o Diabo, como negar a figura do Diabo? Outro dia soube que minha vizinha, no meio da noite, expulsou o tinhoso, foi uma façanha feita por alguém que é temente. Só por Deus meu caro, só por Deus!”

Na primeira fileira levantou um casal com outra argumentação em relação à escolha do Auto da Barca do Inferno: “Nós não vemos nenhum problema: somos bruxos, praticamos wicca, curtimos satanismo, não há problema, deixa pra lá professor, veja como o diabo sabe muito bem escolher quem entra em sua Barca”.

Levantou o da direita e disse: “Pode crê, Fernando, na realidade trata-se de uma figuração da relação de poder, todos os personagens representam a aristocracia que fede e deve morrer, enfim, ir para o inferno, poxa!”

- Bom, disse a senhora que frequentava o curso com os jovens, é preciso pensar que no mundo dos espíritos, um espírito que ainda não descobriu que morreu pode parecer o Diabo, não é isso!

- Pessoal, disse o professor, por favor, não é nada disso, esperem vocês ainda não leram, eu quero explicar que se trata de literatura, não se trata de religião.

- Como não professor? Replicou o primeiro rapaz. Todo aquele que proclama seu nome o chama.

- Eu, por mim não ligo, disse o aluno da cadeira à esquerda, pois na magia existem os dois lados. Pode dar sua aula professor, qualquer coisa é só fazer um descarrego ou um patuá, enfim...

- Ele tem razão, no hinduísmo temos algo mais ou menos próximo, não é pessoal. E todos riram, pois sabiam que ela assistia à novela.

- Eu acho que o professor deve prosseguir, nós góticos nos sentimos em casa com esse tipo de literatura, aliás, eu queria muito que o senhor desse Álvares de Azevedo, O Macário ou Edgar Allan Poe, é bacana.

- Claro Mário. Mas esse conteúdo virá no decorrer do curso. Fico feliz em saber seu interesse, achei que estava desinteressado, pois andou faltando tanto, não!

- Ah, é que meu grupo curte ficar no cemitério à noite pra ouvir música e ler poesia, varamos a madrugada e não consigo acordar no outro dia, entende.

- É, retrucou ansiosa Angelina, outro dia fiz a brincadeira do copo. Aí se fosse brincadeira... Fizemos a brincadeira do copo e ele mexeu, foi um desespero, essas coisas existem mesmo.

- Ok pessoal vamos meditar sobre essa questão, mas antes gostaria de falar sobre A Arte Poética, de Aristóteles, disse o professor.

- Meditação é só na próxima aula professor, o senhor não sabia?

- Desculpe, como assim, Rogério?

- Na aula de ensino religioso, professor.

No intervalo entrei na sala dos professores tentando entender o barulhinho e descobri que agora tínhamos uma nova cadeira no ensino.
Quando voltava do intervalo ouvi nos corredores: “Esse professor vai sair dessa escola, deve ser bruxo, pactuado com o Coisa Ruim, ao invés de dar textos de Deus, só trás essas coisas...”

Terminei a aula com outro conteúdo, não quis criar conflito. À noite, na universidade, quando explicava as relações dos signos no marketing, pedi aos alunos que transformassem uma imagem negativa em positiva. Escolhi uma, na qual um homem engolia um sapo. Gritaram do fundo da sala: “Isso é uma heresia, isso é bruxaria! O senhor quer que eu transforme essa imagem vinda do demo em algo bom?” E a discussão iniciou novamente.
Cheguei em casa e morri na cama. Sonhava com sapos e demônios.

Na outra semana quando iniciei as aulas observei que aquele aluno mais resistente não estava. Perguntei aos colegas e me disseram que ele desapareceu depois daquela aula. Relataram que ele tinha sido convidado a ir a uma festa no dia anterior àquela aula.

“O Marcelinho, disseram os alunos, era amigo dele, disse que ele contou o que aconteceu, professor:“

“Ele disse que na festa todos sorriam. Havia mulheres bonitas, homens que não se mostravam, sempre viravam às costas pra ele. Depois como por mágica, os homens sorriam e as mulheres davam-lhe as costas. Achou tudo estranho e resolveu entrar em uma sala, nela havia uma mulher sentada em frente ao espelho. Quando a chamou, observou no espelho que o reflexo dela havia ganhado vida mostrando seu lado ruim, maligno. Pedi para que a moça se afastasse do espelho, pois o reflexo os perseguia. Ele disse que voltou pra casa logo após de deixá-la num táxi, mas depois do ocorrido aonde ele ia encontrava o reflexo, até mesmo perto de mim professor, disse que ela estava lá”.

- Ah! Por isso ele não queria estudar Gil Vicente?

Carolina Assis

PS: Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.


Biografia:
Carolina Assis é pseudônimo de: Adriana Carolina Hipólito de Assis. É formada em Língua e Literatura Portuguesa pela PUC/SP e professora universitária da Universidade Uniban. Durante o curso universitário atuou em pesquisa literária com bolsa CEPE (Conselho de Ensino e Pesquisa) da PUC/SP, no projeto “O desenvolvimento da personagem em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago”, no qual elaborou o artigo Seres e Papel e Tinta em co-autoria com Cláudio R. Sousa publicado em Escritores e Escreventes, org. por Beatriz Berrini, editado pela EDUC/SP em 1995. Especialista em Língua, Literatura e Semiótica, Pós-Graduação Lato Sensu pela Universidade São Judas Tadeu. É Mestre em Literatura e Crítica Literária, pela PUC/SP, autora do O Palimpsesto amoroso em Desmundo: contos de fadas, pela editora FATEIA, 2007.

Este texto é administrado por: Marcos Edgar Bassi
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