Na verdade nem se interessava pelos depoimentos do movimento feminista que fervilhavam em plenos anos setenta. A luta pelos direitos em relação às mulheres mudava rapidamente. Os objetivos e expectativas delas eram de trabalhar, terem sua própria renda financeira ou atividade que as gratificassem. Lira ao contrário de tudo isso, tão certa do que queria e sentia, não dava a menor atenção. Quando o marido tecia comentários sobre as conquistas de espaço para as mulheres através do trabalho remunerado, antevia para futuro muito próximo a importância que viria a ter na divisão das economias do casal. Essa idéia, na visão de Lira seria fundamental para o crescimento da economia da família ao longo do caminho que teriam a percorrer, mas seria difícil adivinhar o que se passaria no futuro, principalmente quando no presente sente-se satisfeita, jovem, apaixonada, consciente de suas obrigações, não há nada a temer quanto ao futuro. Não estaria na condição de molusco no seio da família, mesmo porque, sem ela em casa onde estaria a família? Em sua opinião, filhos nascem porque têm mãe, portanto, se a mãe existe é para criar os filhos.
Não precisou se ajustar ao papel de esposa e mãe, para isso não envolveu a renúncia às suas habilidades individuais, no entanto, sabe o que faz e o faz com prazer. E ama, porque existe uma força íntima que aflora com ternura e generosidade, facilmente ofertadas por sentir-se por inteira e digna de estima.
De fato, o presente nem sempre é promissor para todos, com seus familiares não foi diferente. Quando solteiros os irmãos, juntamente com o pai, dependiam dos rendimentos obtidos do pequeno armazém do Caminho do Rio, que seu pai recebeu do Antônio, oqual possuía outro armazém bem maior e que o abastecia e a quem o velho prestava contas das receitas diárias. Bem localizado, na beira da Estrada do Mato Alto, onde atendia uma grande freguesia, ao contrário do Caminho do Rio, onde a cada dia se esvaziava mais. Os antigos moradores, na maioria sitiante, estavam deixando suas terras, vítimas da ação de grileiros que os obrigavam a venderem seus direitos de posse por ninharias e não raro sob ameaças de morte.
SENHORVICENTE trabalhava há vários anos ali, mas agora o armazém, ou a venda como era chamado, será fechado por não suportar mais a falta de fregueses. Todos os dias mais famílias deixam o local, algumas até chegam a presenciar suas casas serem demolidas pelas máquinas comandadas pelos trabalhadores contratados por Salomão Manella, que se diz dono das terras que antes pertenceram à Fazenda Marambaia, e na qualidade de dono, achava-se no direito de expulsar dali famílias que ocupavam suas propriedades de fato e de direito durante várias gerações. A evasão do povo da localidade estava sendo um ato jamais visto por ali.
Na venda do Caminho do Rio, também trabalhavam: Norival, Zoca (Elias) e Ivan, um nissei filho de pai japonês e mãe brasileira .Tinha vindo do Paraná com doze anos de idade trazido pela madrinha, pois era órfão de mãe e só se lembrava da visita do pai até os quatro anos de idade. A madrinha de Ivan, irmã de Floriano, um dos poucos moradores do lugar que conseguiram através de uma grande batalha judicial, obter o título de usucapião; não cederam às pressões do grileiro e assim conseguiram permanecer no local, Ivan, conheceu Zoca e fez amizade. Quando completou dezesseis anos ajudava nos serviços do comércio, mas não tardou em ter que prestar o serviço militar. E por ocasião da baixa, encontra o único armazém do local com os dias contados.
Lira foi até lá, como fazia sempre que podia, para ajudar o irmão a preparar a carne, os miúdos e fazer a morcela dos porcos. Esse seria o último abatido ali nos fundos do armazém.
Enquanto preparava a morcela, conversava com Zoca que dizia não estar disposto a viver mais naquele lugar e que nos seus planos estavam incluídos os estudos até a faculdade de Ivan. Lira pediu:
_Mano, tenha calma que a solução vai surgir quando menos esperar.
Nesse meio tempo passa o pai com um prato de sarrabulho e farinha. Avisa:
_Zoca, o armazém está sozinho!
_Come sossegado que Ivan está lá na frente. Se preocupar pra quê? Os fregueses não passam de gato pingado.
E continuou conversando com a irmã.
O pai retrucou, dentro do quarto:
_ Você é que não viu a caminhonete, novinha que chegava reluzir! Levou todo o estoque de ração, quem ajudou foi “sobio amarelo”. Aquele diacho vai morrer assobiando nos ouvidos da gente.
_São os empregados de Manella que estão criando porcos nas terras que compraram com porteira fechada.
Responde do quintal, onde conversa com a irmã.
Mal acabou de falar ouviram o assovio do Ivan. Lira deu um toque no braço do irmão, dizendo:
_È melhor você ir. Também vou ver o Nicolau que, a essa altura, papai deve ter dado miúdo de porco a ele também.
Ao se aproximar, ficou encantada ao ver o bebê sorrindo para o avô com a boca suja do caldo. O velho vermelho, tanto quanto a boquinha do neto, a sorrir com os dengos do avô, transbordante de alegria. Porém a idéia de fechar o armazém trazia mágoas e muitos transtornos, não só a ele, mas aos poucos moradores, fregueses fiéis, que mesmo quando iam ao centro de Campo Grande não faziam compras na Casa da Banha. Razões pelas quais tinha motivos de sobra para querer continuar a sua tarefa que vinha fazendo há vários anos, a de tomar conta desse armazém com seus filhos. Era com a ajuda da família que se empenhavam para que progredissem e assim pudessem suprir eventuais faltas, que acaso algum dia viesse a ter. Como diziam, negócios em família.
Lira pega o pequeno no colo, vai até a frente dar uma olhada nos dois meninos. A farra estava boa. Quando Lira chamou para o banho o desapontamento foi lastimável, em compensação, os ver tão empoeirados foi motivo de risos para todos. Ivan aproveitou a descontração e estendendo os braços ordenou, cantarolando: “Vamos lá... Tomar banho... Com água da caçamba... Tirada da cacimba”. E foi saindo com um em cada braço pendurados. Estava um autêntico japonês carregando seus balaios.
Lira sabia que por causa das brincadeiras o banho seria demorado. Ficou olhando o largo de areia fina, na frente do armazém. Mirou com olhar baixo a reta que dava no Cruzeiro do Largo da Madame, erguido pelos moradores em homenagem a Mário Vaz, que foi morto por ser contrário aos interesses de Manella e defender as terras dos moradores desvalidos. Mais acima viu a casa da madame que deu nome ao largo. Lembrou-se da quantidade de livros que vira naquela casa, no dia que, ainda bem menina, foi levar café para o tio Sebastião, que havia pegado a capina do sítio e limpeza da casa em empreitada. Quando seu tio abriu a casa por curiosidade dela, levou um susto com a quantidade de livros que havia lá, repleta, sem ter lugar para pisar, lotada até o teto. Sentou-se na porta, pegou um livro que estava mais próximo, bateu um pouco da poeira. Era pesado, de capa preta; folheou, tentou ler alguma coisa, mas não gostou quando viu as palavras diferentes das que conhecia: Phósforo, pharmácia, physico e etc. Fechou e colocou no mesmo lugar, pegando outro livro, dessa vez bem menor que o anterior, tinha a capa cinza, não era pesado. Limpou e abriu, folheando até que encontrou uma figura de um menino vestido de casaco e gorro na cor vermelha, de calça curta até a altura dos joelhos e botas pretas, trazia um envelope na mão. Ficou encantada com a pequena figura. Num gesto rápido tampou a ilustração com seu polegar. Foi nessa hora que viu que nos pés do menino havia um conto, então leu com clareza: “Era uma vez...”.
Abraçou o livro. Gritou: “Tio, to indo! Vou levar só esse, depois pego mais...”.
O menino acordou, Lira o beijou longamente dizendo:
_Vamos “bam-banhar” as “nós nógras” que papai já vai chegar.
Essa era uma das formas carinhosas que sempre falava com os filhos.
Sílvio, nessa época havia alugado uma loja e montado uma alfaiataria no Bairro Jabour. A par da situação aceitou o pedido de Lira, permitindo que Zoca e Ivan fossem morar nas dependências da loja, pois havia lá uma cozinha, um banheiro e uma espécie de mezanino que se prestava muito bem como dormitório e ademais, sem trabalho, temporariamente poderiam ser úteis no atendimento da loja. Sílvio não fez objeções e quase que imediatamente Zoca entregou a Antônio o armazém e transferiu-se com Ivan para as novas acomodações, deixando para trás o Caminho do Rio.
No Jabour, logo conseguiram com a influência de Jorge Henrique um amigo do Sílvio, uma vaga para trabalharem no Makro, o que logo depois permitiu que se mudasse para o Jardim Santana, perto da casa de Thereza, numa casa simples, porém só deles.
Ivan fez o segundo grau no curso supletivo e logo em seguida ingressou na faculdade de matemática. Mas, era com Sílvio e Lira que eles passavam a maior parte do tempo. Quando não assistiam televisão viam os filmes da família, feitos por Sílvio com uma câmera super-8 ou os filmes comprados, como O Pica-Pau, O Gordo e o Magro. Os filmes eram projetados numa tela pendurada na parede, o difícil era organizar a bagunça da turminha para assistir os filmes, quase sempre emendados com Durex quando arrebentavam, e não raro soltavam do rolo, formando um monte de fitas embaraçadas no chão. A gritaria era geral quando esses imprevistos aconteciam. Lira aplicava seus recursos adiantando o lanche, sorvetes, pipocas, gelatinas...
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