©Marcio Buriti
1
NÃO APARECEU para o café. A dona da pensão se preocupou. Todos se preocuparam. O vizinho de quarto disse ter visto luz embaixo da porta; o pensionista do térreo, ouvido passos.
Bateram na porta e nada.
— Vai ver não dormiu nadica e agora está em sono de chumbo. Esperemos pouco mais, disse o vizinho de quarto.
2
AMAVA ele o jeans à boca-de-sino e camiseta básica. Ela não. Exibia o guarda-roupa, embora quisesse antes os vestidos que mostrassem a anágua. Conheceram-se numa tarde de sábado de verão de 1974 e à noite dançavam ao som de The Carpenters. Contrariando a preferência aos vestidos, Lene era um delírio em índigo blues e camiseta de alça.
Logo, logo, os efeitos da paixão: na vez seguinte em que se viram a distância suas mãos suaram e se gelaram ao mesmo tempo. Antes, nele se instalou o desejo incontrolado de estar com ela, como se o mundo fosse acabar. Lene agora lhe era tudo na vida. Estava acima de tudo que o rádio pudesse tratar do Vietnã ou que Manchete e Cruzeiro mostrassem do mundo. Lene era o que se podia imaginar de bom. Era a sua pátria, num país em que se vivia sob o signo da censura, perseguição e tortura.
Assim, vieram os passeios, o escurinho do cinema, os barzinhos. Nas tardes de sábado e domingo, o giro de Vespa, o sorvete Rico da esquina e o Crush que coloria a boca. No cinema, drama algum lhes tirava o delight dos beijos. Encerrando a noite, rum com rodelas de limão, coca-cola e gelo: salvem o Cuba-Libre!
No Dia dos Namorados, ele escreveu “Eu te amo” no cartão que seguiu com o ramalhete. No entanto, desejou se declarar em serenata. Assim, alguns amigos músicos apareceram à sua casa para o ensaio de Close to You. Ajustaram-se os acordes e ele escreveu o bilhete que deixaria na veneziana do quarto de Lene. Mas, ao se prepararem para sair, eis o susto, o medo, o terror: golpes violentíssimos na porta a puseram abaixo.
Capacetes, fuzis, coturnos. Algemas e buscas pela casa. Lá fora, o comandante da Operação e os jipes. A cada um o seu destino. Ele, de olhos vendados ouviu do comandante ao rádio: “Denúncia comprovada, operação cumprida, aeroporto, câmbio”.
O voo rápido e a troca de aeronave. Horas depois, o pouso do helicóptero em terreno arenoso. Ainda trêmulo, ele se perguntou: “Será aqui uma ilha?” Sim. Naquela ilha, a casa tosca de madeira, o lampião a óleo, o colchão no piso. Os grilos estrilavam sem parar, e os insetos zoavam, parecendo acompanhar a sua respiração. De manhã, a verificação ao lugar, a busca por alimentos vegetais. Cada dia o plano de fuga indo embora, devido os disparos de fuzis que se ouviam próximo. Mas, havia o pior: o Calvário de viver longe de Lene.
Meses e anos o consumindo. Rasgões e picadas pelo corpo esquelético, barba e cabelos mal aparados. Numa manhã, o pouso de helicóptero, o regresso à civilização. Se a soltura se deu por reconhecimento de Operação enganosa ou não, ele não soube e jamais saberia. Horas depois, o cimento do aeroporto, a mochila às costas, as ruas. Liberdade?
3
VOLTARAM a bater na porta.
— Não devemos esperar mais, disse a dona da pensão.
— Convém à Polícia abrir a porta, observou o vizinho de quarto.
A Polícia veio e abriu a porta. A dona da pensão entrou, e o homem que caminhava à noite estava sentado, caído na mesa. Olharam-no e sentiram-lhe o pulso: nada. Havia papéis escritos sob seu braço. Alguém leu os papéis: era a história acima. Com detalhe: Noturno, como era conhecido ali na pensão, fechou a história com parágrafo curto, mas que definiu a sua grande dor: “Lene, onde está você?”
A dona da pensão chorou. Todos choraram. Não obstante o semblante tristonho, algo naquele homem despertava-lhes o carinho por ele. No café do dia seguinte, um dos pensionistas, o que estalava dedos à mesa, disse quase a si mesmo: “Pois é ainda se morre por amor”.
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