©Márcio Buriti
“Povoado do Corumbá, (sumiço de) Goiás, abril de 1986.
Amigo,
Respondendo à sua missiva...”
AOS 86 ANOS, o corpo feliz e leve como uma folha seca. Os olhos são de um verde que mal se vê, e, por toda a vida, o cabelo — agora todo prateado — está ajeitado e preso.
Nunca se casou. Um dia, o coração lhe pôs palavras na boca: “Não sinto o moço. Quiçá esteja ele além dos mares, e, os mares... Ah, os mares são azuis por distantes!”.
“Seu rumo foi outro” — diz qualquer do povoado — Foi ajudar gentes. Tem os pés nesse trilho desde pequena. Puxou à mãe, embora o pai — que morrera antes de sua vinda ao mundo — o fosse assim também”.
“Sempre com uma marca no rosto: o riso. O riso do jeito que o riso é: sem toque nem retoque. Os mais antigos falavam dela a Santa que sorri. Chamam-na foras de hora, não importa vento ou chuva. Remédio de se tomar ou passar, ela não usa. Usa o sorriso, algumas palavras e o silêncio. Como se diz aqui: ela sorri à dor; fala à dor; cala a dor”.
“Um dia, um porém. Mas, é assim: chega hora em que entre a gente e a vida cai-se um porém feito fruto maduro. Deu-se que, numa madrugadinha em que se ouviam aproximarem os trovões, uma mãe viúva foi à sua janela. Chamou-a pela fresta, em tom súplice e silencioso:
— Dona Dora Dorinha, a minha menina, a Luísa, está fraca na cama. Não diz nada desde ontem quando chegou da cidade, pouco antes das estrelas. Está esquisita, tem os olhos só para o telhado. Lágrimas lhe correm sem parar. A senhora precisa ver que dó”.
Luísa! Luísa era um facho de luar. Tanto o era que os olhos sonhadores, reparando-a, levavam ao coração o brilho do luar. Tanto o era que um dia, um poeta quis cair nos seus braços feito um pingente; quis ser pássaro para merecê-la. Agora, Luísa, aos dezesseis anos e uns dias, está quieta na cama. Os olhos, negros como a primeira noite da vida, estão inertes, escapando água pelos cantinhos.
Dona Dora Dorinha foi vê-la. Sentou-se na beira da cama, pegou-lhe a mão e a beijou. Luísa virou-se para ela, mas não a olhou nos olhos. Já a benfeitora demorou nela o olhar, como se lhe houvesse entrado na alma. Por mais lhe fugia a moça, mais ela via a sua alma às escuras, sem prenúncio de luz.
A mãe de Luísa entrou no quarto, envolvendo com a mão o toco de vela. Quis saber sobre a filha:
— Dona Dora Dorinha...
Quis, diz-se e pronto, porque, ao ver a benfeitora se erguer da beira da cama com lágrima escorrendo sobre a pele frágil, mas cuidada, a mãe viúva sentiu o mundo afastar-se. Ver lágrima no rosto da Santa que sorri, dizia-se, é isso, é se apartar do mundo.
A pobre mãe ainda insistiu, mas dona Dora Dorinha virou-se e se foi. Quando o dia amanheceu sem chuva e trovões, os gritos dementes da mocinha Luísa ecoaram-se pela colina. ”Quero o meu filho de volta!”, ela gritou até o fim da sua vida, o que se deu dois dias depois.
Antes de terminar a carta, o informante passou a caneta duas vezes sobre a mesma frase: “que triste ouvir a menina gritar pelo filho que lhe tiraram”. Depois, finalizou: “Dona Dora Dorinha morreu um ano depois. Morreu dormindo. Antes de ir para a cama, porém, perguntou por você. Abraço amigo”.
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