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TRAJETÓRIA DE LEITURA E DE VIDA
Formação de leitor ao longo da vida
Isabel C.S. Vargas

Minhas recordações de infância trazem à tona imagens da primeira série realizada em escola pública que funcionava em instalações de uma instituição particular com uma relativa estrutura física, passando a referida escola no ano seguinte para outro local. Em função da precariedade do local troquei de escola na terceira série. Durante os quatro primeiros anos a aprendizagem corria fácil com preferência pelas letras. Isto foi reforçado na quinta série, já então em uma grande escola municipal que contava com o primário, o ginásio e as opções de curso científico e clássico naquele adiantamento que posteriormente foi denominado segundo grau e hoje, Ensino Médio.
Recordo-me que utilizávamos um livro denominado Seleta em Prosa e Verso que continha textos de Castro Alves, Ruy Barbosa, Gonçalves Dias, Eça de Queirós.
Tinha mais habilidade em me comunicar, em ler e escrever do que lidar com números, com a subtração, com a divisão e as expressões matemáticas, talvez por me remeter, por associação, às dificuldades financeiras naturais de uma família com algumas carências.
A leitura e a fantasia serviram para fugir das dificuldades e sonhar, leitura esta muito incentivada por minha mãe, amante incondicional da leitura (lia almanaques, revistas em quadrinhos, fotonovelas, romances, jornais, livros de literatura) mesmo tendo sido alfabetizada em casa, sem a freqüência escolar habitual, pois recebia aulas particulares de sua mãe, que durante um tempo teve isto como ofício, já que não tinham condições de manter sete filhos na escola.
Eu era estimulada a ler nomes de lojas, anúncios, propagandas, manchete de jornal pelos familiares à volta, pois ainda se vivia em grande família, com avós, tios, primos, padrinho, madrinha que procuravam estimular os pequenos.
Ler vem antes de escrever (MANGUEL, 1999, p.20). É necessário decifrar o sistema social de signos antes coloca-los no papel. Era esta a minha situação.
Entrei no curso ginasial e o gosto pela leitura foi intensificado.
Os romances eram o gênero mais comum. A leitura era indicada e /ou supervisionada por minha tia e minha mãe que indicavam romances que podiam ser lidos, de acordo com a minha idade e o amadurecimento psicológico, por volta dos 13 anos de idade. Lembro-me que eram uns romances verdes com histórias de amor, intrigas. Creio que devo ter lido uma coleção inteira.
Também era comum livro em tamanho de bolso, em edições bem populares dirigidos especificamente para o público feminino e com uma leitura sem maiores questionamentos de ordem social, econômica ou política, assuntos estes que não eram do gosto feminino.
Um fato curioso é que nesta época de ginásio tive uma amiga muito querida que freqüentava minha casa com assiduidade e eu a dela e que adorava tal tipo de leitura fazendo constantes trocas de livro deste tipo com minha mãe. Achava engraçada esta afinidade. Eu, ao contrário não lia tais livrinhos e sim os livros que a mãe dela, então Juíza do Trabalho, a quem eu admirava, me emprestava e incentivava a ler. Isto, sem dúvida, me impulsionou, enriqueceu e me auxiliou na compreensão de mundo, no desempenho na escola e a ser aprovada, posteriormente no exame de ingressso para o curso Normal, denominado hoje de Magistério e praticamente em extinção. Nesta época eu já sabia que queria fazer a Faculdade de Direito, não sei se inspirada por ela, ou se pelo fato de externar isto ela me incentivava tanto já que os dois filhos não demonstravam vontade de seguir a profissão dela.
Na época lia livros de Lyn Yutang que mostrava as agruras da sociedade e cultura oriental, Érico Veríssimo, começando por Clarissa - nome de minha amiga - e enveredando por um sem número de personagens que marcaram minha época de adolescência como Ana Terra, Bibiana, o intrépido Capitão Rodrigo que muitos anos mais tarde passaram a ser identificados pelos rostos de famosos da Rede Globo e desfigurando aqueles que povoaram nossas mente. Recordo-me que de Érico li, além de Clarissa, Caminhos Cruzados, Música ao Longe, Um lugar ao Sol, Olhai os Lírios do Campo, Saga, O Tempo e o Vento, Senhor Embaixador, O prisioneiro, Incidente em Antares, As aventuras de Tibicuera, não nesta ordem e nem na mesma época, mas lembro que queria ler tudo dele e de Jorge Amado.
Ainda na época ginasial destaco a importância de duas professoras de português, uma reconhecida até hoje nos meios acadêmicos e a outra que se tornou minha amiga mais tarde e minha incentivadora em curso de línguas que fiz, oportunizando-me trabalho na área.
Após o ginásio ingressei na Escola Normal para ser professora, quase por imposição paterna, porque ele achava que devia seguir a carreira de minhas tias, pois o Magistério era carreira para mulheres, além de conferir muita dignidade e respeito a quem a exercia. Minha intenção não era afastar-me das letras, mas buscar nelas um outro sentido, percorrendo um caminho diverso.
Este período foi muito profícuo em termos de leitura. Tinha uma professora que sempre levava textos de autores atuais para interpretação, nas quais devíamos dizer a intenção e o pensamento do autor (sabe-se lá se o autor queria dizer aquilo mesmo) bem ao contrário de hoje, quando se deseja saber o que foi entendido do texto, como o aluno se coloca diante dele e qual a semelhança ou distância de sua realidade [pelo menos se espera que seja assim, procurando contextualizar a leitura].
Mergulhei num mar de letras, livros, símbolos, significados como que para fugir da realidade que me inquietava e aborrecia. Mudei de casa e de escola para fazer o curso, minha amiga transferiu-se para Porto Alegre e nossa comunicação passou a ser por longas cartas. Sentia falta da família dela, pois seu pai foi um pouco meu pai, assim como meu padrinho porque o meu esteve trabalhando fora por quase cinco anos e raramente o via. A sua volta coincidiu com todas estas mudanças.
Lia muito, influenciada pela professora de Português, pelo professor de Sociologia e de Filosofia e pela professora de Psicologia, (pessoa muito arrojada para a época e que nos mostrava muitos mitos cultivados na época e que na realidade não tinham nenhum sentido), pois isto iria me auxiliar para entrar na Faculdade.
Meu horizonte ampliou-se através das leituras de Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Carlos Heitor Cony, Manuel Bandeira, Vinícius, Cecília Meireles, Raquel de Queirós, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Kafka, Heminguay cujo Velho e o Mar li no original em Inglês, livro que guardo até hoje, pois me foi enviado por uma pessoa de origem alemã com quem mantinha correspondência em inglês, estimulada por minha mãe. Hoje pelo abandono da prática, já não seria mais capaz de fazer nenhuma das duas coisas com eficiência, a leitura e a escrita em inglês.
Não poderia encerrar este período e deixar de fora, Saint-Exupéry, Clarice Lispector, o nosso Quintana e Morris West. Passava os finais de semana em casa, absorvida nos livros que retirava da biblioteca da escola, cujo numero era maior em finais de semana já que não podia adquiri-los em livraria, às vezes em casas de livros usados (sebos), adquiridos, naturalmente, por minha mãe, coisa que ela fez até quando sua saúde lhe permitiu.
Foi este ler e escrever trabalhos para filosofia que me despertaram para a dura realidade da época de ditadura em que vivíamos.
Assistia a peças de teatro, ouvia muito Chico Buarque preparando-me para o passo seguinte que foi dado sem maiores obstáculos. Entrei na Faculdade de Direito.
Neste momento gostaria de me reportar a BAMBERGER, (BAMBERGER 2006, 32,) ao apontar resultados de pesquisa que dizem que a leitura impulsiona o uso e o treino de aptidões intelectuais e espirituais, como a fantasia, o pensamento, a vontade, a simpatia, a capacidade de identificar etc. Resultado: desenvolvimento de aptidões e expansão do “eu”.
A eficiência da escola pública da época associada a minha imersão nos livros, onde encontrava fantasia, sonhava, idealizava uma vida melhor me possibilitaram o que julgo ter sido uma grande conquista, o ingresso na universidade sem os cursinhos que começavam a surgir e também sem atropelos ou traumas. Associo minha trajetória ao texto de BAMBERGER, “Como incentivar o hábito de leitura”, (BAMBERGER, 2006, 92) transcrevendo os itens abaixo que identificam claramente as etapas pelas quais passei e que foram fundamentais para minha formação acadêmica, meu caráter e meus propósitos de vida.
I. O desenvolvimento de interesses e hábitos permanentes de leitura é um processo constante, que começa no lar, aperfeiçoa-se sistematicamente na escola e continua pela vida afora, através das influências da atmosfera cultural geral e dos esforços conscientes da educação e das bibliotecas públicas.
II Os fatores decisivos nesse processo são o prazer proporcionado pelos livros, que começa a ser experimentado em idade pré-escolar, (...) o ensino da leitura acompanhado pela satisfação no progresso e no êxito levando em conta, ao mesmo tempo, as múltiplas possibilidades e necessidades, e o encorajamento de toda e qualquer motivação possível para ler.
III A identificação com ideais e pessoas para os quais o indivíduo é orientado, como pais, amigos, professores, bibliotecários etc., contribui imensamente para uma atitude positiva em relação à leitura.
IV As condições necessárias ao desenvolvimento de hábitos positivos de leitura incluem oportunidades para ler de todas as formas possíveis: o livro de bolso, a formação da própria biblioteca, a biblioteca da sala de aula e da escola, a biblioteca pública (da comunidade, da igreja da firma etc.).
Além das influências citadas anteriormente, outras ocorreram, depois, no tempo da Faculdade de Direito, em cuja biblioteca passava meus intervalos de aula e onde tinha uma das bibliotecárias que lia em francês e cada poema que ela lia e gostava me chamava para ler ou escutar, sem contar as inúmeras prorrogações além do habitual para poder permanecer com livros. Neste período já eram os livros específicos da área e não os de literatura ou leitura de evasão.
Existe uma conjugação de fatores entremeados que formam uma importante rede de suporte no incentivo à leitura, que poderão, se bem aproveitados, promover o desenvolvimento do indivíduo.
Foi minha trajetória de leitura na universidade que me possibilitou ser aprovada em um concurso público federal, na área, 60 dias após ter colado grau e mais uma vez, sem cursos extras, como costuma ocorrer na época atual, em que os alunos fazem quase que por igual período de faculdade, os estudos complementares para ingressarem em uma carreira no serviço público.
Durante o período universitário e posteriormente o período profissional as leituras passaram a se restringir àquelas indispensáveis para o bom desempenho da profissão, sendo assim mais de ordem técnica, no meu caso, na área jurídica relacionada a Direito do Trabalho, Direito Previdenciário, um pouco de Administrativo e Constitucional. Como o trabalho requeria uma constante atualização o Diário Oficial, Instruções Normativas, Portarias, Revistas Especializadas e Boletins passaram a ser o gênero de leitura corriqueiro além de livros ligados ao tema. Deparei-me em uma determinada época com o que classifico de preconceito, pois em um concurso para o Magistério Superior, na entrevista, uma das perguntas realizadas foi sobre o tamanho de minha biblioteca particular, associado a certo ar de desprezo com minha resposta ao dizer que em função das minhas necessidades não havia um número significativo de livros de doutrina embora minha constante leitura em função da atualização que a função requeria.
Identifico em tal postura visão elitista de cultura (no caso cultura jurídica) que não permite a visão de outras práticas, discriminando aquele que não lê o livro indicado pelos professores da universidade embora não sejam claros os critérios de escolha.
Durante muitos anos, fiquei restrita a este tipo de leitura no âmbito profissional, sem abandonar a leitura diária de jornais locais e jornais da capital, sendo um deles com caderno específico de legislação.
Meu gosto pela leitura me fez ir mais além passando a escrever artigos para publicação em jornal local sobre Direito do Trabalho como forma de orientar a população sobre questões básicas que poderiam esclarecer dúvidas geradas no ambiente de trabalho. Nesta época foram publicados: A importância da CIPA na prevenção de Acidentes do Trabalho, Riscos Ambientais, Reembolso-Creche, Seguro Desemprego, Registro de Empregados, Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional, Normas de Proteção ao Trabalho do Menor, Gratificação de Natal, Exames de Gravidez-Proibição na admissão ao Emprego, Estagiários, Empregado Doméstico, Descontos Salariais, Como prevenir Acidentes do Trabalho, Acidente do Trabalho-Aspecto Social, Trabalho Temporário, Registro de Empregados Informatizado, Jornada de Trabalho, Equipamento de Proteção Individual, Convenção 158-OIT, Alteração da NR7- Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional, Trabalho a Tempo Parcial- Redução das Férias, Rescisão de Contrato de Trabalho, Profissão: Publicitário, Jornalistas Profissionais, e por último, Férias.
Estes textos não se constituíram em tratados sobre a matéria, mas textos embasados na legislação vigente à época, associados a uma visão prática de quem tinha como uma das funções orientar funcionários, empresários, profissionais da área como contadores, administradores, prepostos das empresas, líderes sindicais etc.
Com a aposentadoria, o tempo disponível foi dedicado à família até que percebi que tinha que voltar para os meus interesses (havia trabalhado desde os 17 anos e me aposentado com tempo de trabalho proporcional), pois me aposentara muito cedo, antes que as mudanças na Constituição me atingissem. Os filhos tinham crescido e poderia usufruir mais de meu tempo livre em prol de mim mesma.
Passei a me dedicar à leitura com mais intensidade, distanciada de qualquer compromisso com algum tipo específico de obra. Lia de tudo, inclusive aquelas obras rotuladas de auto-ajuda passando por autores de variadas formações. Confesso que aquelas escritas por psicanalistas me agradam muito, talvez pelo meu interesse na área. E, como o “corpo que lê se acha mais livre em seus movimentos” (DE CERTEAU, 2007, 272), passei a escrever crônicas sobre o cotidiano. De 2004 até agora já são mais de 180, número este triplicado com as publicações dos mesmos em vários sites.
Ousadia? Não sei, mas para mim é uma necessidade, um prazer, uma forma de expressão. Talvez explique minha opção com Barthes (in DE CERTEAU, 2007, 272), que classificou três tipos de leitura, entre elas a que cultiva o desejo de escrever.
Meu desejo de freqüentar o curso de Pós-Graduação é oriundo da vontade de crescimento, aperfeiçoamento, de abrir novos caminhos reconhecendo, no percurso realizado, a influência de todos que me estimularam em cada etapa de vida.
O gosto pela leitura foi transmitido e incentivado por minha mãe, por amigos, pela escola, através de professores e auxiliares envolvidos, impulsionando meu desenvolvimento como aluno, o crescimento como pessoa, a aquisição de valores morais que facilitaram minha inserção no mercado de trabalho e o crescimento profissional.
Reproduzi com meus filhos e com minha neta a conduta materna, despertando-lhes (junto com ela, enquanto viva) o gosto pela leitura, com a certeza de que a leitura é condição imprescindível para o crescimento, discernimento e liberdade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAMBERGER, Richard. Como incentivar o hábito de leitura. 7. ed. São Paulo: Ática/ Unesco, 2006.

Página: 8
CERTEAU, Michel de. Ler: uma operação de caça. In: A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. P. 259-73.

MANGUEL, Alberto. Uma História de Leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.15-38.

ABREU, Márcia. Diferença e Desigualdade: Preconceitos em Leitura. In: MARINHO, Marildes (Org.). Ler e Navegar: espaços e percursos da leitura. Campinas, SP: Mercado das Letras; Associação de Leitura do Brasil-AL, 2001, p.139-157 (Coleção Leituras do Brasil).






Biografia:
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Outros títulos do mesmo autor

Crônicas IGUALDADE NAS DIFERENÇAS Isabel C.S. Vargas

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Publicações de número 61 até 61 de um total de 61.


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