Mudei-me para Florianópolis em agosto de 2022 por conta da faculdade, e desde lá, viajo com frequência nos finais de semana até Blumenau ou até Balneário Camboriú para rever minha família. Entre essas várias idas e vindas, de um trajeto litorâneo percorrido por muitos jovens que também seguem essa rotina de um isolamento acadêmico em relação aos familiares, tive a oportunidade de conhecer algumas pessoas que compraram aleatoriamente uma passagem na poltrona ao lado da minha.
Tenho preferência em ficar próxima à janela, não apenas pela vista maravilhosa da saída da capital, mas também porque é um assento um pouco mais reservado. Nos domingos, o fluxo nas rodoviárias aumenta, e por vezes, sento na poltrona do corredor, o que também não é um problema, já que essas viagens costumam durar de 2 a 4 horas… pouco para alguém com minha paciência exemplar em ficar sossegada o máximo possível.
Coleciono algumas experiências interessantes com companheiros de viagens que proporcionaram algumas conversas rápidas, porém marcantes enquanto o tempo corria pela estrada, deixando comigo um pouco de quem são e uma impressão pessoal. Brinco que tenho alguns “seduzidos de rodovia”: moços que senti se apaixonarem momentaneamente por mim e dos quais nunca mais tive contato, algo passageiro que tenha ficado no ar e que não passou de uma admiração enquanto rumavam para o seu destino final, embalados pela minha voz tranquila em uma conversa cordial ou pelo chacoalhar contínuo do ônibus em movimento. Essas histórias merecem um capítulo à parte e ficam para uma próxima…
K., estudante de Economia na UFSC, foi um de meus companheiros de viagem. Lembro-me que era um final ensolarado de manhã de sábado, e ele estava com um livro em mãos quando embarcou e se sentou ao meu lado. Já estava na primeira época de provas do ano passado na faculdade, e eu também havia trazido um material de estudos que pretendia usar enquanto seguia viagem até Balneário Camboriú. Quando tirei um pequeno caderno com questões de Direito Constitucional, o ônibus sequer havia saído da rodoviária, e neste momento, K. percebeu meu livro em mãos e me perguntou para onde eu estaria indo, eu respondi e devolvi a pergunta, e ele me disse algo que me soou estranho na hora, havia dito que ia para Itapema, uma cidade antes daquela onde eu iria desembarcar, mas que a vendedora havia lhe cobrado o preço da viagem até Balneário Camboriú. Depois, ao conversar melhor, fiquei sabendo que a mãe dele mora em Itapema, em um apartamento próximo à praia.
O Centro de Ciências Jurídicas sempre recebeu muita influência do Centro Socioeconômico, inclusive são departamentos que se situam um de frente para o outro, mas foi apenas na rodoviária bem no centro da cidade que coincidentemente nos encontramos. Logo começamos a conversar sobre a faculdade, e notei no jeito dele uma arrogância declarada, típica de alguns estudantes de economia, e ao mesmo tempo, uma tentativa de se mostrar superior, talvez acentuada pelo amargor da confissão de que chegou a pensar em cursar Direito.
Conversamos sobre um professor bastante peculiar do departamento de Economia que se aventurou a dar aulas de Economia Política em meu curso. O estrago foi grande e nem preciso dizer, há um quê de guerrilha e intelecto nesse professor que fez um experimento social, conosco, alunos, que servimos de cobaia para que ele entendesse como funciona a mente dos futuros “Sérgio Moro”. O trauma foi grande após tantas reprovações, mas ele foi um dos maiores que tivemos, sem dúvida. E de pronto, logo na primeira fase ele nos fez diluir nossas ilusões sobre a justiça, impossível plenamente na ordem liberal à qual o Direito tão entusiasticamente serve.
Mas retornando a essa minha companhia de viagem, conversamos sobre a situação em nossos departamentos, e ele não entendia a razão de o CCJ ser destituído de cartazes apeladores. Eu falei: “simplesmente não achamos graça, e o centro acadêmico tem mais o que pensar”. E assim seguimos caminho conversando sobre planos para o futuro e ideais de carreira, ele comentou que gostaria de trabalhar na Fazenda Pública, e caso nos encontrássemos hoje, talvez eu teria mais o que lhe agregar, com minha breve experiência de estágio em Direito Público. Seguimos assim, até o momento em que nos despedimos, agradecendo um ao outro pela conversa.
Outra companhia de viagem foi a A., uma moça extremamente agradável, de energia rara, que morava em Curitiba antes de se mudar com a família para o litoral catarinense. Conheci-a em uma viagem em que ambas embarcamos em Balneário Camboriú e seguimos juntas até Florianópolis, numa tarde amena de domingo. Filha de um engenheiro e de uma historiadora, Ana estuda engenharia sanitária e ambiental também na UFSC. Farei um adendo porque fico em êxtase com a objetividade enérgica dos estudantes de engenharia, as vezes sinto que os alunos das ciências unívocas têm um espírito altivo ao não criar conflitos por razões que não estão ao seu alcance, e que são comuns aos balburdiosos estudantes das reles ciências humanas, excetuando Direito, claro, já que dominamos a lógica dos conflitos e as razões de poder.
Silenciosa e concentrada em sua planilha de cálculos aberta em seu notebook, boa parte da viagem já havia se passado, e eu nem estaria escrevendo agora sobre ela se não fosse eu quem tivesse suscitado a conversa. Percebi que embora ocupada, ela às vezes parava para olhar o celular e contemplava brevemente a vista pela janela ao seu lado. Aproveitei uma dessas brechas e perguntei se ela era estudante na UFSC, e a partir daí começamos a conversar sobre os estudos, estágios e sobre a universidade. Em determinada altura, ofereci um pão de queijo a ela, eu havia passado em uma padaria antes de embarcar, ela aceitou e conversamos mais um pouco com longas pausas de silêncio. Descobri que ela e o irmão também têm um dom musical, do qual compartilho e admiro. Por isso comentei sobre algumas atividades culturais que a universidade proporciona e até mesmo divulguei um projeto de extensão em cinema mantido pelo curso de Letras/Francês.
Sinto que é muito mais fácil conversar com estudantes de Engenharia, é de uma praticidade tamanha, eles me entendem e eu os entendo com uma clareza amiga, não são tão combativos em causas perdidas, sua pulsão se volta ao mecanismo da realidade, não em ficções medíocres que se baseiam em xingar a corrupção aumentando o IBOPE dos políticos.
F. era uma moça gordinha e com uma insegurança camuflada na irreverência tão comum aos estudantes de licenciatura. Também a conheci em uma tarde de domingo, voltando de Balneário em direção à Florianópolis. De minhas companhias, com ela foi a que menos conversei, e não foi por falta de assunto, mas sim porque não gostamos do jeito uma da outra, isso ficou nítido e tácito. Quando ela chegou ao ônibus, eu já estava posicionada em minha poltrona ao lado do corredor, e tive de sair por um instante quando ela chegou para que pudesse se sentar à janela.
F. exclamou assim que chegou: “que calor”, não se dirigindo necessariamente direto a mim, respondi que aquele dia estava realmente muito quente. Perguntei se ela iria até Florianópolis e ela respondeu positivamente, disse que era estudante de Geografia na Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), e eu disse que era estudante de Direito na Federal. É comum lançarem um ar provocativo contra nós, tanto que nem uso mais a camiseta do meu curso no campus, e com ela não foi diferente. Penso que talvez ela seja aquele tipo de pessoa “palestrinha”, que infelizmente é o futuro de muitos que frequentam esses cursos mais alternativos. A bússola tatuada no braço comprovou o que eu imaginava.
Até que ela falou: “Quem se forma em geografia é geógrafo, quem se forma em matemática é matemático, e quem se forma em Direito é o quê, afinal?” Respondi à altura, certamente: “Quem se forma em Direito é doutor!”. Ela parece não ter gostado nada, mas depois expliquei com seriedade que quem se forma em Direito é bacharel, porque são várias as profissões que se pode seguir. O caminho de muitos é advocacia, e para tanto, é necessário fazer uma prova para ser inscrito nos quadros da OAB. F. é o tipo de pessoa que me passa a impressão de não ser capaz de conceber o fato de alguém ter o título de Dr. sem doutorado, o que me incomoda, porque ainda que um dia eu seja, não terei a pretensão de ser assim chamada, se não pelo necessário protocolo dos ambientes corporativos e solenes que exigem esse comportamento diplomático. Já ela, parece ser o tipo de pessoa que gostaria de ser chamada assim, tanto que comentou que gostaria de se embrenhar em um Mestrado ao término da Graduação. Lamentavelmente, penso que só lhe restará ser uma professora medíocre.
Mas as companhias de minha última viagem talvez foram as mais peculiares. Saí de Florianópolis no final da tarde de sexta feira rumo à Balneário, e pouco antes de embarcar, mas já com minha passagem em mãos, vi na rodoviária S., uma moça que aparentava ter uns 25 anos, arremessando um pacote de rosquinhas em direção à mãe, que estava na fila comprando as passagens, não muito longe de mim. Logo pensei se tratar de uma pessoa neurodivergente em razão daquele comportamento. Mal sabia eu que poucos minutos depois elas teriam embarcado no mesmo ônibus que eu, e ainda comprado dois assentos que ficavam quase ao meu lado, separados apenas por um pequeno corredor.
Logo após se organizarem e sentarem, ouço a mãe, pessoa mais velha e aparentemente cansada, exclamar em bom tom: “Tu vê se pára de me exigir as coisas, S.” Cruzei os pontos e pela conversa, entendi que S. estava teimando no momento em que havia jogado o pacote mais cedo, porque a mãe negou a ela uma garrafinha de refrigerante. Olhei para a mãe dela já no ônibus e senti pena por ter uma filha como S., que sempre dependeria dela. Por essa e outras razões, hesito em dizer que eu aceitaria ter um filho com qualquer condição e que eu seria capaz de amá-lo independentemente de tudo. A realidade é dura com os responsáveis por essas pessoas, e a sociedade não perdoa.
Percebi que a controvérsia entre mãe e filha era por conta de dinheiro, e que S. era obstinada por refrigerantes, inclusive, pediu à mãe mais dinheiro para comprar uma garrafa ainda maior. Em certo momento, S. falou: “acredita que lá na Colônia Santana nem dão café para eu tomar?”. No momento fiquei incrédula quando ela mencionou frequentar a Colônia Santana, que é um hospital psiquiátrico na cidade vizinha a Florianópolis, São José. Mas depois que ela simplesmente jogou um caderno para a frente do ônibus, correndo o risco de acertar algum passageiro na cabeça, entendi a razão. A mãe, com uma vergonha já acostumada, buscou o objeto arremessado quando alguém o pegou e perguntou a quem pertencia.
Elas desembarcaram em Tijucas, uma pequena cidade litorânea que faz parte desse percurso, reparei em uma rosa vermelha na sacola da mãe de S. Quem sabe seja uma metáfora que valeria a atenção desta mãe: não se pode apreciar a beleza sem antes saber lidar com os seus espinhos. É preciso preparar a terra, semear e cuidar dia após dia, em um trabalho invisível antes dos botões desabrocharem e revelarem suas magníficas camadas de pétalas. Na prática, ela já sabe disso melhor que eu, e a labuta diária só pode ser regada a muito amor e paciência.
Outras viagens ainda me aguardam, e espero que possam render boas histórias para contar. Se fosse possível, confesso que eu gostaria de sentar ao meu lado, para que eu também pudesse desvendar um pouco de minha viagem e de meu desembarque ao fim da vida. Os lugares são recantos do destino, mas as pessoas que seguem até eles e momentaneamente cruzam o meu caminho, têm a sorte de, sem saber, virarem poesia.
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