No âmbito de um Estado Federal que se organiza em diferentes níveis de poderes sobrepostos e em diversas instâncias, a distinção básica entre competências comuns e concorrentes reside no fato de que as primeiras são de natureza administrativa, sendo atribuídas aos entes federados, sendo que a cooperação será regida por lei complementar, consoante o art. 23 da Constituição Federal que trata das competências comuns, enquanto que as competências concorrentes dizem respeito à legitimidade para legislar.
Entre as hipóteses que o referido artigo menciona, é válido ressaltar que os entes (União, estados, municípios e DF), dispõem de competências em comum quanto ao cuidado da saúde e da assistência pública, de acordo com a redação do inciso II. Ademais, outras competências comuns se referem à preservação do meio ambiente, ao combate às causas da pobreza, à facilitação do acesso à cultura e à educação, entre outros, de modo a manter o equilíbrio em grau nacional, exigindo-se a cooperação mútua entre os entes.
As competências concorrentes, por sua vez, possuem caráter legislativo, e inversamente às competências comuns, as concorrentes não foram distribuídas aos entes federais em sua integralidade, de modo que competem somente à União, aos estados e ao Distrito Federal, excluindo-se formalmente os municípios. De tal forma, a União estabelecerá normas gerais e os estados e o DF restringem-se à confeccionar legislação suplementar. No entanto, estes últimos assumem a prerrogativa de legislar de forma plena na ausência de lei federal que discipline sobre determinado assunto, e a possível superveniência de lei federal incompatível com a legislação estadual acarretará nesta última a suspensão das previsões que estejam em dissonância.
Já aos municípios, portanto, não há previsão expressa de legislar sequer de forma subsidiária no que tange às normas gerais. Contudo, essa tese vem sendo maleável pelos tribunais em razão do episódio pandêmico. Uma breve análise do art. 24 da Constituição permite verificar as matérias de competência concorrente, como no caso de questões relativas a tributos e orçamento, funções essenciais da justiça, proteção ao patrimônio histórico e artístico, entre outros, inclusive podendo-se observar que algumas competências comuns se assemelham em grande medida com as competências concorrentes, a título de exemplo pode-se citar a saúde e a sustentabilidade.
Pode-se constatar que na esfera de competência concorrente, a proteção e a defesa da saúde tem previsão no inciso XII do art. 24, ao lado da previdência social, assim como a saúde se configura competência comum no bojo administrativo no art. 23. Neste ínterim, adaptando-se essas distinções e classificações ao caso da ADPF 672, proposta pelo conselho da OAB ante o Executivo Federal, denota-se do julgado da relatoria do Min. Alexandre de Moraes a tentativa de sanar um conflito de competências quanto às medidas sanitárias e de saúde pública em um período de emergência que caracterizou a pandemia, restando divergências entre os entes federativos e as suas respectivas atribuições.
Uma situação bastante similar foi julgada pelo STJ e guarda semelhanças pelo fato de envolver mais de um ente federativo e por se relacionar à temática da saúde, versando sobre o fornecimento de um medicamento específico:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO NÃO INCORPORADO AO SUS E REGISTRADO NA ANVISA. INEXISTÊNCIA DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA ENTRE OS ENTES DA FEDERAÇÃO. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. (AgInt no RMS n. 70.219/GO, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 18/9/2023, DJe de 21/9/2023).
Ressalta-se que a singularidade do contexto agravou o conflito e culminou em um retorno aos preceitos constitucionais em matéria de competência. Sendo assim e considerando a autonomia dos entes, entendeu-se pela parcial procedência da ADPF, de forma a reiterar o exercício da competência concorrente sobre a saúde pública e sobre as medidas restritivas necessárias para a contenção do COVID-19, sem prejuízo à competência geral da União.
Os municípios reúnem competências, a partir das quais foram justificadas algumas alternativas adotadas no combate à pandemia. Quanto à atuação municipal e as competências que lhes são atribuídas, o contexto de calamidade pública propiciou uma análise mais atenta do federalismo e uma discussão quanto à flexibilização em favor de suas demandas regionais.
Entre as medidas municipais adotadas, pode-se listar a inserção de barreiras sanitárias, a obrigatoriedade do uso de máscaras em ambientes públicos, a redução da capacidade de lotação de determinados locais, etc. Tais medidas encontram-se naquilo que se entende por competência comum, ao passo em que o STF já firmou o reconhecimento da competência concorrente aos municípios. Seria possível uma crítica no sentido de que tais medidas não ocorreram de forma homogênea, nem passaram por um crivo rigoroso do Governo Federal, de modo que seria possível aduzir que alguns municípios lograram maior êxito em detrimento de outros na contenção do Coronavírus, ante à margem para a descoordenação de suas funções quanto à implementação de políticas públicas na área da saúde. No entanto, é preciso vislumbrar a situação e a excepcionalidade de sua constitucionalidade no que se segue:
É conveniente analisar os fundamentos para a atuação municipal em relação às competências comuns e concorrentes no contexto da ADPF ajuizada, considerando os respectivos argumentos trazidos quanto à competência dos municípios em um estado emergencial como o que se verificou no período pandêmico. Assim, o requerente sustenta em suas razões que é ainda mais crucial a ação dos estados e municípios no diagnóstico das demandas do sistema de saúde com suas particularidades locais, opondo-se à atuação do Presidente da República.
A atividade dos municípios diante da saúde pública se presta à competência administrativa, ou seja, é de competência do município e comum aos demais entes federativos. Já no que tange à competência concorrente, torna-se mais estreito falar sobre a atuação municipal nas questões que envolvem saúde pública em uma situação agravada pela crise, mas admite-se aos municípios a suplementação das leis estadual e federal quando couber, tendo em vista a descentralização político-administrativa e o interesse local, conforme preveem o art. 7° da lei que rege o SUS e o conteúdo constitucional. Veja-se:
CF/88 - Art. 198:. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade.
Da análise da ADPF, colhe-se também que a jurisprudência quanto ao tema é bastante casuística quando trata do conflito de competências, e torna evidente que uma das formas mais comuns para a solução se encontra na via judicial, levando em conta dois pressupostos básicos, de modo que os municípios na verdade são munidos de uma certa competência concorrente:
• A ponderação entre o interesse nacional e o interesse local, sendo que se este último for mais plausível, prevalecerá em detrimento do primeiro.
• A verificação acerca da relevância do bem jurídico e a quem ele melhor serve.
De acordo com o Curso de Constitucional por Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, “se o critério da colaboração não vingar, há de se cogitar do critério da preponderância de interesses. Mesmo não havendo hierarquia entre os entes que compõem a Federação, pode-se falar em hierarquia de interesses, em que os mais amplos (da União) devem preferir aos mais restritos (dos Estados)”.
O ARE 1063621 AgR, também de relatoria do Min. Roberto Barroso é bastante assertivo quanto à possibilidade supletiva dos municípios em matéria de saúde, sendo que é parte de sua competência a imposição de medidas a entes privados que acarretem despesas. Disso conclui-se que o não cabe ao Executivo Federal simplesmente afastar de maneira unilateral as medidas sanitárias e epidemiológicas adotadas por municípios, tendo em vista a descentralização, a autonomia dos entes e o interesse local em seu contexto e funcionalidade.
Mas vale lembrar por fim que que embora os municípios, assim como os estados reúnam essas competências, a União não se desonera simplesmente de suas atribuições centrais, de forma que está resguardada a observância pelos municípios quanto àquilo que as normas federais delimitam, respeitando-se princípios básicos de repartição de competências.
Sob meu ponto de vista, em uma situação de emergência como a que se experienciou com o COVID-19, o Poder Judiciário exerce função essencial quanto ao controle de constitucionalidade tanto das medidas sanitárias que podem afrontar algum dispositivo inviolável, quanto no âmbito das atitudes omissivas ou comissivas em excesso no que se refere à ingerência do Poder Executivo. Entretanto, faz-se mister ressalvar que momentos como este não devem ser encarados como exceções ao princípio da separação de poderes, sob pena de sua desarmonização diante das atribuições de cada um em suas dinâmicas de freios e contrapesos, respeitando-se as balizas de cada domínio de poder.
Além disso, percebe-se uma autocontenção do STF em litígios que envolvam municípios, visando à redução no número de ações. Ou seja, vê-se que o Judiciário interfere com mais veemência nas relações entre estados e União, residindo a maior fonte de conflitos federativos na disputa da União pela competência privativa e na contrapartida, os estados e municípios reivindicando competências concorrentes.
A Constituição Federal trata sobretudo, como se verifica nas questões anteriores, das competências dos entes federativos, de forma que nisto cabe a atribuição do Judiciário, evitando-se o abuso de poder de algum dos entes sobre os demais, prezando-se pelo equilíbrio. Não lhe compete, todavia, a meu ver, adentrar no mérito subjetivo quanto à eficácia das medidas tomadas, mas tão somente à verificação de sua constitucionalidade no caso concreto e atendendo aos critérios formais.
Assim, concordo com o entendimento da Corte veiculado pela ADPF como forma de embasar o posicionamento: “em momentos de acentuada crise, o fortalecimento e ampliação da cooperação entre os três Poderes, no âmbito de todos os entes federativos, são instrumentos essenciais e imprescindíveis a serem utilizados pelas diversas lideranças em defesa do interesse público, sempre com o absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional e manutenção da harmonia e independência entre os poderes”.
Compreendo que a intervenção judicial pode sim representar um fator de complicação do conflito federativo, vez que não obstante tenha indubitável importância igualmente nos níveis locais por meio dos Tribunais de Justiça, a sua atuação em excesso pode adentrar no campo de competências exclusivas dos poderes Executivo e Legislativo que estejam fora das competências típicas e atípicas do Judiciário, ocasionando seu sobrepujamento irregular, visto que há papeis muito bem demarcados, ainda que a interferência seja prevista e primordial.
No cerne da ADPF em discussão, não se pode negar, entretanto, a necessidade da participação judicial quanto aos juízos de discricionariedade do Executivo, de forma que me alinho à seguinte tese que admite tal controle: “cabe exercer o juízo de verificação da exatidão do exercício dessa discricionariedade executiva perante a constitucionalidade das medidas tomadas, verificando a realidade dos fatos e também a coerência lógica da decisão com as situações concretas”, consoante voto do relator, que salienta não se tratar meramente de atribuição judicial, mas, sobretudo, de um dever constitucional e assegurado.
O professor Raul Machado Horta explica um forçoso procedimento do federalismo: “a existência no Poder Judiciário Federal de um Supremo Tribunal ou Corte Suprema, para interpretar e proteger a Constituição Federal, e dirimir litígios ou conflitos entre a União, os Estados, outras pessoas jurídicas de direito interno, e as questões relativas à aplicação ou vigência da lei federal”. cf. Direito Constitucional, p. 305.
Pode-se acolher sua tese, ainda que não se possa conceber em sua integralidade que o Judiciário é o poder sobressalente na resolução dos conflitos federativos, visto que a solução se dá mediante atuação conjunta na união de esforços entre os poderes, com respeito mútuo às fronteiras de suas competências. Assim, o Poder Judiciário desempenha importante papel em conflitos graves com potencial para comprometer o pacto federativo constitucionalmente petrificado, sem, contudo, ter amplas atribuições para agir em conflitos de qualquer natureza.
Link de acesso a ADPF 672: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF672liminar.pdf
Disciplina: Direito Constitucional II
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