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Resenha crítica: O Estado e Seus Inimigos
Isadora Welzel

As singularidades e a complexa manifestação jurídico-penal no Ocidente atribuem ao direito moderno e ao contemporâneo um importante contexto para o entendimento de sua expressão. Diante dessas considerações e com base na leitura, buscarei desenvolver uma resenha crítica sobre o livro “O Estado e seus inimigos – a repressão política na história do direito penal”, de Arno Dal Ri Júnior e publicado em 2006. Nessa enriquecedora obra do autor, se estabelece um foco na noção de delito, que é revisitado em suas significações conforme cada tempo histórico, em uma intrincada rede que o relaciona ao cotidiano social e político de cada povo em âmbitos culturais diversos.
          
Para introduzir sua obra, o autor descreve os acontecimentos de 1793 à luz da vitória do líder jacobino Robespierre ao constatar a aprovação de seu projeto de lei, que propunha maior severidade para com os adversários políticos por meio da instituição de um tribunal revolucionário, com competência para condenar os inimigos delituosos à morte, em uma nítida conjuntura que faz jus ao nome: período do Terror. Partindo desse episódio histórico de fortes reverberações, pude estabelecer uma analogia com o filme Danton – O Processo da Revolução, assistido em sala na aula de teoria política. No filme, torna-se evidente o confronto político entre Robespierre e o líder dos girondinos, de cunho mais conservador. Além disso, também se verifica as drásticas consequências que a radicalidade da ditadura jacobina em nome do povo ocasionou. Em relação às repercussões da total ruptura com os valores iluministas adquiridos poucos anos antes, em 1789, se identifica o desabrochar de crimes de lesa-majestade e o caráter arbitrário da imposição à força que muito posteriormente refletiram também na legislação do Brasil durante o governo de Getúlio Vargas.
       
Em seu primeiro capítulo, Arno Dal Ri Júnior pontua a historicidade como elemento para a determinação de um delito, criticando o positivismo de Hans Kelsen. Sob uma concepção pessoal sobre esse trecho inicial da leitura, compreendo a posição do autor mais próxima da Escola Histórica do Direito, tendo Savigny como um de seus principais precursores, em detrimento de uma posição normativista kelseniana. Ou seja, os ordenamentos penais são construções no tempo, contendo mudanças e permanências não somente no sentido dogmático da atualização dos códigos, mas também no que se refere ao próprio significado de delito. Para isso, e valendo-se de seu arsenal de conhecimentos históricos, o autor menciona a sanção para o crime de homicídio na Babilônia, em Roma e no Brasil atual, na qual se identifica uma variação da percepção de homem entre uma e outra. Em relação às rupturas semânticas e à linguagem frente ao saber jurídico, Arno Dal Ri Junior transcreve em nota de rodapé um trecho da obra de António Manuel Hespanha, já estudado na disciplina de história do direito e que em diversos momentos dialoga com perspectivas jurídico-políticas, posto que a meu ver, o direito e a histórias são aliadas no tempo.
      
O cotidiano de tradições de um povo com sua especificidade de pensamento é determinante para as definições punitivas que serão adotadas, o que reitera a posição do autor quanto ao construtivismo de referências culturais que passam a sustentar seu aparato jurídico. Os embates entre diferentes correntes fazem-se necessários, uma vez que promovem um revisionismo do direito e indicam novos ângulos pelos quais o direito pode ser compreendido, bem como o papel das contradições. Ao citar a importância do detalhe antropológico, se reforça novamente a influência advinda de Savigny. A própria ideia de família mudou significativamente ao longo do tempo, o que exemplifica a necessidade de olhar minuciosamente para a história das sociedades humanas no entendimento de sua juridicidade.
       
O positivismo advindo da modernidade em uma visualização codificadora do direito reduziu a profundidade de um direito que outrora se delineava, rico sob um aspecto transdisciplinar e sobretudo, histórico. Essa passagem da obra me remeteu sobre a visão do jurista Paolo Grossi, que sumariamente discorreu sobre a perda da complexidade jurídica com o advento moderno, o que simboliza ao jurista atual, um cenário de desafios e desamarras de um direito pautado em legalismos. Adiante, o professor explicita utilizando-se das palavras de Grossi, a imprescindibilidade do ente histórico e por conseguinte, dos valores a ele relacionados. Nesse ínterim, pode-se pensar o direito penal como um reflexo de uma específica estrutura social em suas mais variadas faces.
       
Apesar de tantos rompimentos que desenharam a compreensão sobre os delitos, é inegável que apesar da proeminência das descontinuidades, as permanências sugeriram um importante ponto para entender o direito penal. O ideal de linearidade contudo, deve ser considerado de forma cautelosa. Por outro viés, as rupturas ampliaram a quantidade de práticas consideradas delituosas, consistindo em uma herança de um direito posto com base nos códigos.
       
A temática em questão exige um embasamento histórico que é apresentado com maestria pelo autor ao descrever a prática de crimes contra o Estado na Grécia Antiga. É curioso notar que os delitos contra o Estado possuíam um cunho religioso, visto que na época, predominava a ideia de que os monarcas eram os escolhidos pelos deuses, o que inaugurou uma ideia de vitimização do Estado, e passou-se a ver o delito enquanto afronta às entidades divinas de uma sociedade politeísta. Conforme o autor, uma das formas de punição que merece destaque é o ostracismo, aplicado em situações graves e análogo a um banimento somado à perda das liberdades políticas, com o intuito de evitar a tirania, tão menosprezada pelos gregos, defensores dos ideais democráticos, e acima de tudo, servir de exemplo aos demais possíveis subversores da lei.
            
Concordo com Arno Dal Ri Júnior sobre o âmbito jurídico do julgamento de Sócrates, visto que contava com um conteúdo político de desvio direto àquilo que a autoridade da pólis pregava. É importante ressaltar, que a desmedida atenção dada à democracia na Grécia Antiga encontrou a oposição de Sócrates, que sugeria em substituição, um poder aristocrático. O filósofo contra-argumentava que o preparo do povo para assumir uma posição de poder era insuficiente e falhava do ponto de vista intelectual. Platão, que é posteriormente comentado pelo autor, elabora uma ideia semelhante de estrutura política, na qual se expressa seu idealismo ao lançar as bases de uma sofocracia. O contexto platônico analisado por Arno Dal Ri Júnior, no entanto, diz respeito às ideias do filósofo no tocante ao direito penal. Lísias seguiu a linha de Platão e identifica no tirano um verdadeiro criminoso ativo, dotado de defeitos graves e destituído de virtudes cidadãs.
            
As narrativas míticas agregadoras e imbuídas de teor filosófico trazidas pelo autor no nível de suas explicações atraíram minha atenção, posto que se aproximam da forma de escrita de Viviana Gastaldi no livro sobre o qual a escritora analisa atentamente o direito penal na Grécia Antiga, assunto de discussão nesse trecho de Arno Dal Ri Júnior. A observação dessas referências possibilita compreender que muito da teorização jurídica sobre as infrações estão presentes no imaginário coletivo e se expressam concretamente a partir de um sistema de normas elaborado pelos homens, considerando suas convicções e seus costumes mais arraigados.
           
As religiões, assim como os mitos fundantes, não deixam de ser dispositivos de crença que muito denotam sobre a vida e a produção de um povo, sendo importantes fontes de estudo para o entendimento dos delitos. Os delitos contra a autoridade divina, na tradição bíblica, subdividem-se entre os que ameaçam diretamente a soberania de Deus e os que ferem a autoridade temporal advinda da autoridade divina, sendo a Bíblia uma expressão máxima das palavras de Deus. Verifica-se uma ideia de aliança dos homens com a divindade cristã, que em minha compreensão, é muito semelhante ao pacto social teorizado pelos pensadores iluministas. A frase de Spinoza, trazida por Arno Dal Ri Júnior fortalece minha concepção sobre o estabelecimento de um pacto, o que redimensionava o sistema de leis como mandamentos de Deus, indicando que Estado e religião se confundiam mutuamente. Como exemplo, pode-se pensar no reflexo dos dogmas católicos na vida normativa do povo e na impiedade como sinônimo de injustiça.
           
O desprezo à religião, significa sobretudo, um ato cometido por um inimigo do Estado teocrático e o não merecimento do título de cidadão, inclusive por parte dos governantes, uma vez que as leis divinas expressas por Javé consistiam no único sistema de ordem ao qual a sociedade estava submetida. Ademais, a afronta ao deus venerado era vista como uma conduta ilegal de cunho herético, sendo que o primeiro mandamento revelado por ele, já indica que há somente uma única entidade divina a ser cultuada. A sanção para o desrespeito desse postulado poderia consistir inclusive em pena de morte. Esse trecho da obra me remeteu a uma reflexão que alude ao período medieval em relação aos crimes cometidos contra a autoridade divina, que eram punidos pelo Tribunal do Santo Ofício e contavam com penas duras que poderiam levar à morte daquele que delinquiu.
           
Nesse ínterim, se evidencia o amplo tesouro histórico que o Antigo Testamento legou aos homens e se reconfigurou a partir do Novo Testamento, com maior ênfase ao obedecimento de autoridades seculares, como foi claramente visto na carta de Paulo aos Romanos, ainda que persistisse o princípio de respeito a Deus antes de tudo. No Corão, livro sagrado do Islã, também se manifesta a severidade diante de atos ilícitos cometidos contra a autoridade divina ou detentora do poder temporal. Para essa tradição religiosa, o Estado enquanto impositor de leis é legitimado por Alá e guiado por um líder espiritual. As fontes jurídicas indicadas pelo autor na fase inicial do Islamismo são: o Corão, a tradição sacra, a opinião concorde e a interpretação analógica, tendo essa última um cunho polêmico. Identifico que uma semelhança entre o mundo jurídico cristão e o islâmico o aspecto da lei se fundir à religião em uma relação estreita entre delito e pecado. Para ilustrar essa alegação, reproduzo uma frase atribuída a Maomé: “Cremos no nosso Deus, cremos no vosso Deus porque Deus é um só, o conteúdo é um só. A forma de chegarmos a Ele, sim, é diferente.”
       
Sobre as penas existentes no sistema corânico, há duas fontes possíveis das quais os crimes derivam: a vingança privada, que passou por poucas mudanças, e a punição dos crimes contra a religião e a disciplina militar. Já os delitos podem pertencer a três categorias diferentes, cujas mais graves dizem respeito às infrações que atentam contra a autoridade divina. O temor e o caráter preventivo do Corão são fatores importantes para o entendimento da expressão das leis muçulmanas enquanto vontade de Alá, e nesse sentido, é perceptível para mim, que muitos fragmentos dessa tradição não foram completamente abalados pela modernidade. A subserviência do povo islâmico, bem como o rigor religioso e as repressões são passos fundamentais que moldam a juridicidade nesse contexto.
          
Seguindo sua trajetória histórica, a seguir o autor analisa o crime de lesa-majestade na Roma Antiga argumentando que um crime contra o Estado era também um crime contra a comunidade, de forma contrária a uma concepção individual. Arno Dal Ri Júnior aponta seis categorias de crimes contra o Estado romano e afirma que a norma evoluiu a partir da jurisprudência em um período clássico de furor monárquico e dos primórdios republicanos. A infração de lesa-majestade foi somente ponderada posteriormente por normas subsidiárias, sendo de fato consolidada com o imperador Augusto, com forte inspiração na legislação grega e tendo a noção de delito pelo uso indevido do poder pelos magistrados como um ponto importante instituído nessa lei. O crime lesa-majestade indicava, sobretudo, uma afronta à Constituição vigente.
       
Em minha compreensão, o crime de lesa-majestade adquiriu uma nova feição com o advento da modernidade, posto que o soberano passou a ser identificado como o representante vivo de Deus na Terra. Mas no contexto do império romano, já se verifica uma noção diferente do soberano detentor do poder, posto que ele passa a se confundir com o Estado em si. O autor utiliza o termo “corpo do Estado” como personificação da autoridade absoluta, o que me relembrou a ideia de soberano para o contratualista Thomas Hobbes, uma vez que o soberano é formado pelo conjunto de indivíduos que formam o povo, e ele não deve ser considerado como um ente distinto da classe humana. Dessa forma, o crime de lesa-majestade atentava contra a integridade e a segurança do povo na medida em que afrontava o Estado. Nessa passagem, em uma reflexão pessoal, se torna muito perceptível a verossimilhança entre o título da obra “O Estado e seus inimigos” e os fatos postos e analisados contra a ordem instituída pelo soberano, consolidando uma traição à pátria e em última instância, ao povo.
            
A sublimidade que o crime de lesa-majestade angariou se revela nas fontes antigas em que ele é descrito, como nas palavras de Ulpiano e de Papiniano, que subsequentemente foram reunidas no Digesto e construíram uma caracterização objetiva desse delito, como um crime que não era anulado após a morte do infrator e passível de participação feminina, além de servir como modelo para a análise de outros crimes políticos. Arno Dal Ri Júnior dedica-se a uma descrição completa das condutas que configuram esse crime, sendo que a sedição e o ataque à democracia constituíam uma das faces da lesa-majestade. Frequentemente esse crime político era tido como uma tentativa de redução do povo romano. Essa infração foi usada como justificativa para muitos massacres e perseguições violentas que se alastraram.
       
Diante de um poder descentralizado na Idade Média, a fragmentação da concepção jurídica se manifestava em um pluralismo que demonstrava as atribulações da Europa feudal e se refletia no plano do direito penal quanto aos crimes cometidos, o que explica as diversas formas de expressão do crime de lesa-majestade nesse período. Muito daquilo que se verifica juridicamente no medievo é uma herança da antiguidade romana que ganhou espaço na tradição do Direito ocidental, como o exemplo trazido pelo autor sobre os reinos germânicos, nos quais o costume delimitava o campo de atuação da autoridade do rei, e a infração cometida pelos inimigos da nação frequentemente era sinônima de traição, o que também se verifica no direito franco. Um ponto que a meu ver é instigante ressaltar é o aspecto contraditório do crime de lesa-majestade voltado ao Príncipe e considerado contra sua pessoa a partir de um forte apelo moral, ao invés de correlacioná-lo ao Estado, uma vez que ambos se correspondiam. Ademais, o delito de lesa-majestade não se referia somente ao rei, mas sim a todas as autoridades formais e reconhecidas, e contava com punições severas e exemplares, como já mencionado. Com o tempo, o conceito do delito sofreu alterações, sendo ressignificado, ainda que amplamente dotado de uma característica hierárquica que afixa relações de poder ao seu cumprimento.
      
Ao tratar da exposição teórica de Bártolo de Saxoferrato, identifico que houve um rompimento em relação à visão convencional de crime contra o Estado, posto que em seus tratados sobre o tirano, caso o rei governe sem legitimidade, ele pode ser condenado por violar o crime de lesa-majestade, o que em minha compreensão, indica que o monarca não incorpora o pleno poder de majestade e soberania, podendo ser um manipulador em prol de interesses próprios ao faltar com fidelidade ao seu povo. Como solução a esse problema, o autor busca em Aristóteles uma fonte que descreva a possibilidade de retirar o tirano do poder, uma vez que sua responsabilidade fundamental coletiva não se efetiva em razão de seus interesses egoístas. Na Inglaterra, um verdadeiro aparato penal com o intuito de condenar tais crimes descreveu precisamente os elementos que constituíam o delito de lesa-majestade.
     
Como participante do grupo de estudos em história do direito (Ius Commune) e responsável pela última relatoria de 2022 sobre a revolta de Carrancas e a aprovação da lei nefanda, de 1835, pude refletir durante a leitura do texto direcionado à história do Brasil sobre como a rebeldia de escravos em Minas Gerais foi considerada um crime análogo à lesa-majestade amplamente discutido na obra “O Estado e seus inimigos”, uma vez que tais insurretos foram perseguidos enquanto inimigos das autoridades do período. Além disso, o episódio contou com rígidas punições exemplares, como a pena de morte legalizada na época, o que é semelhante ao castigo por lesa-majestade que se evidenciou na Roma Antiga e na Idade Média.
       
Com a modernidade, que se centralizou na noção de maiestas, muitos crimes públicos contrários à ordem eram considerados como lesa-majestade, indicando ainda os resquícios absolutistas, sendo que o soberano poderia ser diretamente atacado ou indiretamente através de seus representantes. O pensador alemão Carpzow teoriza sobre uma maiestas legitimadora a partir da qual outras se derivariam e estariam sustentadas, de forma a sistematizar um equilíbrio político. No contexto absolutista, Arno Dal Ri Júnior realça Jacques Bossuet como um ponto de partida ao entendimento do Estado ainda baseado em princípios teológicos, identificando a personificação de Deus no monarca, fator que explica o peso de sua atenção voltada ao crime sacrílego de lesa-majestade.
       
Questiona-se após o que foi acima exposto, se os indivíduos não detinham uma mínima capacidade de resistência diante dessas arbitrariedades no Antigo Regime, e de forma a sanar a dúvida, Bossuet em uma posição que compactua com a filosofia de Maquiavel, afirma que é preciso obedecer ao Príncipe soberanamente instituído. Já o jurista Jean Domat, apesar de elaborar considerações de ordem religiosa, elaborou uma tese orgânica referente à relação entre o indivíduo e a sociedade, defendendo a concepção de homem social, o que me relembra a famosa frase atribuída a Aristóteles, de que o homem é um animal político inclinado à vida em comunidade. Uma contribuição importante de seu pensamento jurídico foi a desconsideração do critério de crime dos supostos delitos de lesa-majestade, que passou a se vincular mais limitadamente ao Príncipe e ao Estado, antevendo interferências iluministas sobre o assunto e embates em torno dessa novidade em razão de uma arraigada compreensão sobre a intransigência dos monarcas.
       
Quando Arno Dal Ri Júnior traz a referência de Michel Foucault para fundamentar os ideais punitivistas de Vouglans, para além da verificação de uma brutalidade de sanções impostas com a detalhada descrição de sua severidade, se demonstra uma trajetória das respostas dadas aos delitos no decorrer do tempo, uma vez que Foucault utiliza da fonte histórica deixada por juristas para embasar sua produção escrita, que posteriormente se tornará célebre ao discorrer sobre o panóptico como uma representação do poder. Segue-se então uma análise do crime de lesa-majestade na tradição ibérica portuguesa, cujo fundamento jurídico foi um legado deixado pela antiguidade romana. O direito português medieval baseou-se nos costumes em um primeiro momento e depois evoluiu para uma tradição jurídica de nuances mais positivistas, como exemplo, pode-se citar o advento das ordenações filipinas, que também foram aplicadas no Brasil durante a Inconfidência mineira. Tiradentes, por exemplo, foi um dos líderes de movimento brasileiro ao qual se aplicou a pena de lesa-majestade, e por conta disso, sua execução exemplar e seu posterior esquartejamento.
       
As dimensões desse e de demais acontecimentos análogos, ganhou um espaço subjetivo na sociedade ao instaurar um mito fundador no imaginário coletivo que persistiria enquanto tradição nacional. Arno Dal Ri Júnior alega a crueldade das penas, que continham uma forte característica exemplar e pormenoriza os crimes diretos e indiretos ao rei pelos termos “primeira e segunda cabeça” respectivamente, sendo que para o primeiro caso, estava prevista a pena de morte. Outro episódio histórico referente à presença das ordenações filipinas foi a Conjuração Baiana, que contou com diferentes protagonistas em comparação com a Conjuração Mineira, em razão da luta por ideais propagados pelos novos ares revolucionários e iluministas, com fortes reivindicações populares. O reflexo da rigorosidade da lei se revela na descrição feita acerca da punição a ser realizada.
       
Para encerrar a primeira parte de seu livro, apoio com veemência o apanhado histórico sobre a legislação penal e suas implicações, visto que essa perspectiva de análise permite um entendimento mais completo e próximo da realidade dos povos humanos no que diz respeito aos seus regulamentos e sobretudo, seus costumes que o moldam. Identifico novamente, diálogos sutis entre Arno Dal Ri Júnior e Viviana Gastaldi no que tange à reverência histórica de ambos, com a diferença de que a autora de “Direito penal na Grécia Antiga” se aprofunda ainda mais nos mitos e na formação político-jurídica nos casos específicos da Hélade.
       
A percepção cultural do entendimento de lesa-majestade enquanto uma noção de crime ocorreu de forma gradual e adquiriu as características de diferentes compreensões sociais que elaboraram suas divergências contrárias à linearidade. Percebe-se que o autor se utiliza do iluminismo enquanto um divisor de águas e um fato que forneceria as bases para a segunda parte de sua obra, uma vez que esse acontecimento inaugurou um novo período para o crime em questão, contrário à ordem política. Mas convenço-me que não se pode atribuir ao iluminismo uma responsabilidade isolada por mudar a concepção de crime-lesa majestade. É necessário, sobretudo, compreender o contexto, posto que evidenciava um declínio das monarquias absolutistas diante de novas organizações políticas baseadas em ideais burgueses e idealistas advindos da França revolucionária.
       
Montesquieu, ainda que não seja um contratualista, é um ilustre pensador iluminista, já estudado anteriormente na aula de teoria política. Para o autor, o crime de lesa-majestade possui feições políticas que justificavam o abuso de poder. No entanto, verifico uma contradição em suas ideias, uma vez que o pensador possui um viés monarquista, e é proveniente de uma família nobre de cunho conservador. Cito a seguir algumas de suas contribuições: defesa do caráter preventivo, recuo da pena de morte e reavaliação das penas, visto que uma punição adequada não é aquela excessiva e aleatória, mas sim uma pena moderada e pontual em seus objetivos. Em contrapartida, o pensador iluminista é contrário à desigualdade das penas conforme a classe social na qual o indivíduo se encontra, e nesse ponto, pode-se fazer um adendo ao ideal de igualdade prezado pela Revolução Francesa, bem como ao entendimento de igualdade jurídica exposto por alguns autores contratualistas, como John Locke, que afirma que a liberdade consiste em estar sob uma lei comum que valha igualmente para todos.
       
Para além de uma crítica ao uso do crime de lesa-majestade como uma manifestação de poder exacerbado, o autor critica o próprio direito penal em vigência, que claramente encontra-se como um instrumento favorável a distorção de autoridade e de limitação de direitos do cidadão, como a liberdade de expressão. Sendo o iluminismo uma fonte de desdobramentos sociológicos, históricos e filosóficos, o fato jurídico em meio a tanta efervescência foi detido por Cesare Beccaria no ramo do direito penal, diferenciando conceitos que até então eram tidos como sinônimos: delito, pecado e lesa-majestade. Em meu entendimento, a Revolução Francesa lançou projeções de avanço ao desenvolvimento dos direitos individuais, mas de margem coletiva, o que transferiu a concepção de delito como um ataque à ordem pública para uma consciência pautada em valores que asseguram a plenitude do indivíduo humano. Como exemplo, o crime de lesa-majestade passou a ser visto como um dano causado à comunidade.
       
A repercussão do caso de Beccaria foi ampla em solo europeu em relação ao crime de lesa-majestade, como visto na Toscana pela eliminação da pena de morte. O pensador não somente confronta tal noção de crime, mas também os regimes no quais ele prevaleceu. Outra de suas contradições se verifica em um determinado comentário de 1792 em que defende a pena de morte. O pensador francês Marat é uma das figuras influenciadas por Beccaria, tratando sobre o despotismo e a tirania, no qual também alude à liberdade de expressão já defendida por Montesquieu, ao afirmar o poder de questionamento do povo diante dos atos do soberano, uma vez que é partidário de uma concepção hobbesiana de que o povo conferiu a soberania advinda das massas humanas ao representante político. Marat era um defensor da aplicação de penas baseadas em um direito comum, que fossem mais vantajosas quando comparadas com a pena de morte.
      
Com o Código Penal Francês de 1791 e com os ideais propagados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, frutos da Revolução Francesa, revelou-se durante o período do Terror, no qual os jacobinos liderados pelo revolucionário Robespierre, a ressignificação do crime de lesa-majestade, visto que ao passo em que desaprovavam a pena de morte, utilizaram-se dela como artifício de punição aos inimigos de seu governo, tendo na guilhotina o seu símbolo máximo. Nesse âmbito, um novo crime político passa a surgir: àquele que atenta contra a segurança do Estado.
       
Diante dessas considerações, pode-se traçar mais uma vez a correspondência com o filme Danton, que retrata as reviravoltas do período e a violência pelo qual ficou marcado, considerando os embates políticos em uma organização de poder frente à República que se inaugura, em um complexo encadeamento de defesa suprema da liberdade ao lado das restrições impostas aos casos de discordância do poder revolucionário. Novamente nesse trecho da obra, em que Arno Dal Ri Júnior descreve os relevantes acontecimentos da época à luz de normas adaptadas ao benefício jacobino, pode-se notar uma clara alusão ao seu título “O Estado e seus inimigos”, pois nesse momento, o Estado francês sob o comando dos revolucionários via toda a oposição como verdadeira inimiga das convicções que bravamente lutam para alcançar sua dominância.
       
Ao adentrar no assunto da codificação francesa napoleônica, o autor pontua que as duas situações básicas em que pode ocorrer um crime contra a segurança do Estado ocorrem quando o direito não consegue punir ou quando não confere uma adequação às punições. O contexto em questão foi juridicamente reformado por um Código Penal que reuniria todas as normas referentes aos crimes, sendo considerado uma produção jurídica liberal e técnico-formal, que viria a influenciar outros códigos pelo mundo. Persistia, entretanto, como marca registrada, a exemplaridade e a severidade das penas previstas, o que não se diferenciou, sob essa ótica, das punições advindas da Antiguidade, como o resgate da pena de morte, o que em minha compreensão, até mesmo compactuava com os dogmas revolucionários do “Terror”, além da prisão perpétua, da morte civil e do confisco de bens.
       
A escola clássica, que tem em Cesare Beccaria o seu maior expoente, e a escola positiva se destacam por sua inclinação liberal devido às influências do Código de Napoleão. Com o desenvolvimento da escola clássica, notou-se mais adiante, uma rejeição à crueldade das penas aliada a uma concepção política de delito. Já a escola positiva, cujo maior nome é Cesare Lombroso, encontrava-se adepta de um entendimento científico do direito, inspirada pelas descobertas de Darwin e pelos estudos de Spencer. Tal escola posicionou-se do modo a criticar a escola clássica sobre a qual anteriormente eu discorri, centralizando sua análise no sujeito que delinquiu, e destituindo o crime de um romantismo ainda aludido pela escola clássica, pautando-se na concretude.
       
Avançando no tempo, têm-se as legislações penais autoritárias que regeram o fascismo italiano e o nazismo alemão, dotadas de severidade e de medidas de prevenção aos delitos. O Estado passou a ser visto como um verdadeiro organismo munido de diferentes ramificações: filosófica, ideológica, étnica, que compreende a universalidade dos indivíduos para além de um princípio quantitativo e dissociado do povo, o que incidia no entendimento da ciência penal da época. Com o endurecimento do regime, todavia, buscou-se a elaboração de uma nova ordem jurídica que reprimisse incontestavelmente tudo aquilo que atentasse contra a segurança do Estado e da ordem política instituída, o que se confirmou em regulamentações distorcidas que entendiam o Estado enquanto uma vítima passiva e refém dos movimentos que se deslumbravam diante dele, que inclusive reintroduziu a pena capital.
     
Para mim, foi muito válida a abordagem do autor sobre o direito penal nos âmbitos fascista e nazista, uma vez que indicam as medidas que foram tomadas em um período de instabilidades e evidenciam um exemplo dos acontecimentos que podem acometer um povo em uma situação que frequentemente se assemelha a um período de conflitos, incertezas e inseguranças nos dias de hoje, guardadas as devidas proporções.
       
A passagem em que o autor alude ao sistema penal brasileiro dialogou muito com uma atividade realizada em grupos na aula de história do direito, referente a uma simulação da Corte do STF que buscou rejulgar o caso relativo ao indeferimento do mandado de segurança impetrado pela Aliança Nacional Libertadora por meio do comandante Cascardo, como resposta ao decreto expedido pelo poder executivo no governo Vargas. Para a realização dessa dinâmica, nos dirigimos até as fontes históricas e elaboramos nossos votos mantendo a fidelidade às atribulações de 1935. Nesse ano, de acordo com Arno Dal Ri Júnior, os crimes contra a segurança do Estado pertenciam ao mesmo ordenamento que continha crimes comuns. Em razão dos vínculos ideológicos, pode-se comparar a intransigência do Estado Novo, assim como o movimento integralista, com as bases político-jurídicas em vigor na Itália e na Alemanha durante o período entreguerras.
   
Verifica-se nessa conjuntura, a figura de Nelson Hungria enquanto crítico da implementação de ideais autoritários na Constituição brasileira, embora a Constituição de 1937 tenha se inspirado nos movimentos em alta na Europa. Assim, grupos considerados subversivos e compactuantes com o perseguido PCB, foram amplamente atormentados pelas forças do governo, sendo criado até mesmo um Tribunal de Segurança Nacional (TSN), de farto caráter militar. Uma das semelhanças entre a lei brasileira inspirada no fascismo e no nazismo, é a aparição da pena de morte aos inimigos políticos, além do ultranacionalismo e o rechaço aos estrangeiros ou aos costumes trazidos pelos imigrantes europeus, o que abrangia não somente uma justificativa política, mas uma verdadeira tentativa de aniquilação dos costumes. Embora seja de um patriotismo exacerbado, tal repúdio é a meu ver, contraditório, por exemplo, a proibição de se falar os idiomas alemão e italiano sendo que a Constituição é abertamente motivada por convicções vindas de movimentos absolutistas advindos do exterior.
       
Posteriormente, o autor discute o tema da legislação ditatorial e pós-ditadura, em que é curioso notar a permanência dos princípios da ordem, que passou somente por flexibilizações. As emendas durante os anos rígidos do Brasil enfatizaram de forma prioritária a segurança nacional de caráter desenvolvimentista. Analisando a contribuição do autor sobre esse assunto, aprecio que tais medidas eram colocadas em nome da defesa do país como justificativa para o abuso do poder na manutenção de sua autoridade, o que se repetiu em diversas ocasiões históricas. A ideia de segurança atrelada a um desenvolvimento pressupõe então que um avanço nacional dependeria de um país com governo fortalecido, cuja imprecisão de poder abria lacunas referentes ao desconhecimento de seus limites, criando um ambiente fértil à ditadura. Arno Dal Ri Júnior aponta que durante esse período, os juristas deixaram de especificar as características e o conteúdo de suas especulações, o que em minha compreensão, já se evidencia uma posição influenciada pelo formalismo positivista, uma vez que o conteúdo normativo é mutável e de acordo com a visão positiva, é pela análise da forma e da imperatividade que se pode conceber as leis.
      
O uso acima do poder mencionado, relativo à conservação da ordem e da segurança, atingiu seu ponto máximo ao embasar os atos institucionais notadamente marcantes nesse período da história brasileira, o que representa na prática as consequências do desmedido autoritarismo. Essa conjuntura certamente foi questionada, uma vez que não somente a segurança do Estado emanador das leis deveria ser assegurada, bem como a segurança social referente aos cidadãos. Por vezes, a lei era utilizada como instrumento de perseguição de opositores e munida de uma arbitrariedade para casos que não competiam a ela, o que é simbólico em um regime antidemocrático e despreocupado com seu povo, o que somente seria retomado mais adiante, em uma distinção entre criminalidade comum e política.
       
Encaminhando-se para questões mais contemporâneas, o autor dedica uma parte de sua obra à identificação do terrorismo enquanto o principal inimigo do Estado no século XXI. Diante dessa alegação, pude imediatamente recordar de um evento que também foi citado pelo autor e que ocorreu em 2001, no ano de inauguração do novo século, marcando profundamente a humanidade e seus novos desafios: os atentados de 11 de setembro que culminaram no ataque às torres gêmeas. Nesse evento, se verificou o papel exercido pela mídia e pelas informações que já corriam o mundo globalizado, como verdadeiros aparatos de poder e ideologia. Por conta disso, e sendo comum em momentos de instabilidades políticas, o poder executivo se fortaleceu, adotando uma postura conservadora que reverberou no meio social em relação à discriminação de imigrantes provenientes do Oriente Médio, bem como a profissão de fé islâmica nos Estados Unidos, adotando uma clara posição ultrapatriótica.
       
Conflitos e crises migratórias levantaram o receio de movimentos terroristas para além dos EUA, alcançando a União Europeia, ainda mais próxima de focos islâmicos. Para isso, contou-se com a força conjunta das autoridades judiciárias dos estados membros, o que serviu como um estímulo para a maior integração do bloco, apesar das dificuldades de instauração da estratégia que visa à aniquilação do terrorismo, em razão da submissão das mesmas aos parlamentos nacionais, que contribui para uma eficácia mais isolada e interna de cada país. Ao debater sobre o assunto, não se pode deixar de lado a compreensão sobre as atribuições dos direitos humanos, posto que princípios universais, como a dignidade e os direitos básicos de cada indivíduo devem ser respeitados independentemente de sua origem étnica e de sua fé religiosa.
       
Juridicamente, foi declarada na constituição europeia a cláusula da solidariedade entre os Estados membros, o que denota uma maior integração entre os países no que tange à defesa contra o terrorismo. Contudo, tal medida não se compara com as medidas de segurança nacional adotadas por George Bush no âmbito dos Estados Unidos, resultante do traumático evento ocorrido em 11 de setembro de 2001. Além disso, comunidades islâmicas instaladas em território europeu exigem maior cautela por parte da Europa em relação às detenções, cassações e à atuação do tribunal, o que agravaria a imagem das nações como um bloco intolerante, penitenciário e policial, o que contradiz seu aspecto inclusivo e flexível, simpático à diversidade. Observa-se que a visão europeia sobre povos islâmicos se distancia da perspectiva norte-americana na medida em que são considerados frequentes na união europeia, bem como em razão de seu histórico colonialista, já nos Estados Unidos, o inimigo do Estado, o terrorista, é um indivíduo mais exótico em seus costumes e origens. Assim como o crime de lesa-majestade adquiriu diversas significações, o crime de terrorismo teve seu significado ampliado.
     
Verifica-se na obra, o consolidado conhecimento do autor sobre as questões político-jurídicas de validade internacional e as comparações traçadas a fim de propor o entendimento mais embasado sobre determinados assuntos, que se entrecruzam entre direito, história e filosofia. Ao final da obra, além de uma retrospectiva contextual acerca do crime de lesa-majestade, sobre o qual o autor afirma que o mesmo é moldado pelas condições de cada tempo, Arno Dal Ri Júnior propõe uma reflexão que dialoga com a obra “Mitologias jurídicas da modernidade”, de Paolo Grossi, demonstrando que do mesmo modo que ocorre com a transfiguração dos delitos, os mitos jurídicos se transformam com o passar dos séculos no imaginário ocidental. O exemplo do deslocamento da figura subversiva do comunista para o árabe terrorista, visto como ameaça externa, denota uma mudança de concepção de inimigo do Estado que se delineou historicamente conforme os temores de cada cenário e contou com diferentes elementos identificatórios que sustentaram a crítica, como a política no caso do período ditatorial, a religião como estereótipo precursor de discriminação contra o povo árabe, e a comparação entre indivíduos vulneráveis e reféns das desigualdades das ruas enquanto delinquentes marginais. Esse viés corresponde ao apelo estatal como ente solucionador totalizante das mazelas sociais aliado à segurança do país por meio de um pacto firmado com a população que garantiria sua tutela, o que relega a lei, vista como antiquada, a um segundo plano e de menor destaque.
     
Em última análise, considero que a obra “O Estado e seus inimigos” apresenta um horizonte geral sobre a cultura penal no decorrer da história ao passo em que trata de questões aprofundadas sobre a história do direito, contendo ideias e autores estudados na disciplina, o que possibilitou um maior aproveitamento da leitura, bem como a ampliação dos conhecimentos jurídicos à luz de uma sólida base teórica. A riqueza de comparações históricas imbuídas de conceitos trazidos pelo autor em uma visão contemporânea aproximou o leitor dos acontecimentos passados na compreensão da trajetória dos delitos e das sanções enquanto centrais e modeladores da conduta humana. Sustento minha admiração pela obra em razão das reflexões proporcionadas e da riqueza de detalhes, de informações e de conhecimentos que o autor transmitiu com muito afinco.

Disciplina: Teoria Política


Biografia:
Além de grande admiradora da escrita e da literatura, sou estudante de Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e meu propósito no Recanto das Letras é traduzir conteúdos do mundo jurídico para a comunidade leitora, de modo a propagar conhecimentos sobre o Direito e propor reflexões. 
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Outros títulos do mesmo autor

Artigos A concepção hobbesiana do estado de natureza Isadora Welzel
Artigos Introdução ao direito, o nomos da terra e o contrato social Isadora Welzel

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