CORPO: ENIGMÁTICO SIGNO DE LINGUAGEM
Introdução
Este texto foi construído com intuito de discutir as significações presentes no corpo, sobretudo, no corpo feminino com os estudantes do curso de Letras da UNEB, câmpus XVI, Irecê–BA, na disciplina Consciência corporal e linguagem, ofertada pelo Colegiado de Letras, semestre 2007.2. Esta disciplina foi ministrada em parceria com a professora de Artes e Educação, Edineiram Maciel a qual trabalho as questões práticas idealizadas em nossas discussões e que culminaram na escrita de mini-peças protagonizadas ao final do curso pelos próprios estudantes da disciplina.
Decidimos que, embora a disciplina tivesse apenas 30h/a deveríamos dividi-la em duas partes, a saber: i) estudo da fundamentação teórica cuja fonte era a semiótica, tendo como referência as discussões sobre signo, advinda de Charles Sanders Peirce, referendadas pelos estudos de Lúcia Santaella, principalmente em sua obra Matrizes de linguagem e pensamento: sonora, visual e verbal (2000); ii) aplicação de tais conceitos usando-se como base as linguagens corporais do próprios alunos no ambiente sala de aula. Diante disso, metodologicamente as ações foram direcionadas para atividades práticas de autoconhecimento do signo corporal de cada um no universo da classe, observamos com isso como, às vezes, princípios religiosos e culturais acentuam limitações quando se vai usar do corpo como signo de linguagem para realizar comunicação.
É importante destacar que a turma era composta por 25 (vinte e cinco) estudantes, sendo 23 mulheres e 2 homens, mesmo assim evidenciaram muitas limitações quanto a falar do corpo como portador de significações, sobretudo quando se pedia que se fizesse comentários sobre alguns signos que compõem o inconsciente coletivo sobre o corpo, ficando inclusive, bastante evidente a concepção masculino sobre a linguagem do corpo feminino; sensibilidade, fetiche, segredo, pecado, etc.
Diálogando com autoridades
Hodiernamente falar sobre o corpo e sua linguagem é um risco, uma vez que a nossa sociedade tem valorizado o corpo físico e seus artifícios de beleza e sedução em detrimento de questões mais psicológicas, nas quais e, por seu turno, estão localizados expedientes de linguagem em que se situam as identidades corporais.
Isto talvez siga a lógica do sistema; a eternização da prisão do corpo em paradigmas beneficia a vários mecanismos sociais e, sobremodo, àqueles de caráter controladores, como por exemplo, a religião. Por isso Chauí (1991) adverte que mesmo isso sendo uma realidade cultural não pôde desde que o mundo é mundo reconhecer que:
“seres humanos e animais são dotados de corpos sexuados e as práticas sexuais obedecem a regras, exigências naturais e cerimônias humanas.” [...] as proibições e permissões são interiorizadas pela consciência individual, graças a inúmeros procedimentos sociais (como a educação, por exemplo) e também expulsas para longe da consciência, quando transgredidos porque, caso, trazem sentimentos de dor, sofrimento e culpa que desejamos esquecer ou ocultar.” (Chauí, 1991, pp.9-10)
Tem-se, pois, na afirmação da filósofa brasileira, a partida para se questionar: Qual o significado do corpo? Como os entes sociais percebem os sinais nos corpos? De que lugares emergem essas necessidades discursivas? A posteriori espera-se respostas a cada uma dessas perguntas. Por enquanto é possível ponderar dizendo que os corpos só significam quando emergidos em universos de linguagem inter-humana e, portanto, cada corpo produz e significa para si e os demais, a partir da vivencia de signos individuais e coletivos institucionalizados pela comunidade onde se realiza a comunicação.
Assim, a linguagem é fio condutor da condição humana, porque o homem necessidade de outros corpos (reais ou abstratos) para se comunicar, e com isso construir interfaces dialógicas. Então, na medida em que os corpos se relacionam com a cultura e realidade de uma comunidade eles [corpos] agregam, refletem e refratam significações, isto é, o corpo é um portador e refrator de linguagem e, portanto, significa! Entretanto, só se reconhecem esta questão a partir do momento em que se evidenciam os limites impostos pelos sistemas cultural, social e econômico sobre o que pode, ou não ser feito do corpo.
No plano cultural, é sabido que ao longo de séculos o corpo foi visto sob a ótica do misticismo, isto é, para muitas culturas o corpo era, ou ainda é território sagrado e, portanto, quaisquer tentativas de entendê-lo seria uma profanação. Talvez por esta razão, a significância a ele atribuída ainda está pautada no signo do sagrado. Entretanto, questões sócio-econômicas em algumas circunstâncias assumiram papel imperativo na construção de um novo sentido para o corpo (exemplo são as mulheres do Oriente Médio que passaram a consumir produtos da moda e beleza ocidentais), vindo a questionar antigos paradigmas.
Randazzo (1997) ao tratar da questão de identidades e mitologias que se vinculam ao corpo feminino coloca em destaque dois pontos significativos para a compreensão do binarismo corpo/alma que forma a pessoa, a saber:
O desenvolvimento psíquico dos indivíduos sai de um ser indefinido e inconsciente, para chegar a um ser consciente de si mesmo (do ego). O desenvolvimento pessoal e a emergente consciência do ego servem para criar um sentido de identidade que ajuda o homem e a mulher a entenderem quem são e qual é o lugar deles na sociedade. Esta identidade é importante à medida que se produz um discurso sobre o corpo. (Grifo meu) (RANDAZZO, 1997, p. 23)
Para o Estado, a classificação e manutenção dos gêneros em masculino e feminino facultam o controle dos corpos, uma vez que tudo está organizado sob o signo da dicotomia e, por isso, o profissional da linguagem precisa se situar nas entrelinhas dos discursos que separam cada um dos gêneros, sob pena de perder a sintonia com os valores, sensibilidade e estilo de vida reivindicado por cada ser social. Para que isso não ocorra é fundamental que busca em nível profundo a alma e a psique de cada sujeito, isto deve ir além dos modismos estabelecidos pelo sistema, visto que este, por sua vez já cristalizou o que é o corpo masculino e feminino posicionando-os em seus devidos lugares de discurso, ou conforme que Homi Bhabha em seus “entre lugares de cultura”.
A consciência do corpo, sobretudo a do corpo feminino, segundo Jung ocorre no plano da inconsciência, isto é, ao corpo físico são justapostas imagens e símbolos advindas das experiências socioculturais diretamente repassadas pelos organismos de cultura, como, por exemplo, a religião, a escola e a família. “A psique inconsciente não chega ao conhecimento recorrendo à lógica e à razão, mas sim olhando para o cânone de simbolismo e imagética apropriados à pesquisa”. (Randazzo, 1997, p. 98).
Segundo Jung, “todo o material simbólico emana das camadas mais profundas do inconsciente coletivo que nos falam através de imagens arquétipicas. Elas não são o resultado da nossa consciência, esse aspecto da psique lógico ordenado. Ao contrário, os símbolos do mito são o resultado do trabalho intuitivo e inconsciente da psique humana.” (Randazzo, 1997, p.100). Assim sendo, os corpos masculino e feminino possuem ambos instinto agressivo, um instinto de guerra que é representado pelo arquétipo do Guerreiro. Então, “homens e mulheres também têm em comum o instinto materno representado pelo arquétipo da Grande Mãe. Nas culturas ocidentais, entretanto, alguns arquétipos estão associados a macho e fêmea, e acabaram determinando o que as pessoas consideram masculino e feminino, afirma Randazzo.
Neste ínterim, os corpos são visto pelos entes sociais como portadores de significados diferentes e, com isso, lhes atribuem sentimentos diferentes. Portanto, ainda impera a intolerância quanto à expressão de sentimentos; os homens são como os personagens que John Wayne representava nos seus filmes: sujeitos fortes e calados que agüentam firme sem chorar nem mostrar seus sentimentos. Já das mulheres espera-se que seja como Donna Reed, mães dedicadas que vivem para os filhos e os maridos; Grande Mãe, pois suas virtudes nascem basicamente da doação do próprio corpo: nutrição, proteção e amor incondicional.
Conforme Hill (1992) os corpos masculino e feminino são formatados sob signo de estático e dinâmico. Já Neumann ao tratar do arquétipo do corpo feminino estático centraliza o corpo da mulher a partir da imagem metaforizado barco. “mulher=corpo=barco correspondendo àquilo que talvez seja a mais fundamental experiência do feminino da humanidade – do homem assim como da mulher. “O aspecto estático do princípio feminino tira a sua imagem básica do útero – escuro, úmido, aconchegante e apegado ao que está se desenvolvendo dentro dele” (Hill, 1992, p.4).
Diante disso, a sociedade e seus entes individuais e coletivos vêem o corpo feminino sob o signo da proteção ofertada pela Grande Mãe. Esta por sua vez é construída pela “imagem feminina universal que mostra a mulher como eterno ventre e eterna provedora. É uma imagem que existe desde o começo dos tempos e me todas as culturas (.” Randazzo, 1997, p.103).
Segundo Bachofen (1992, p. 79), a mulher sob o signo do corpo protetor mantém desde os tempos pré-helênicos o “amor maternal” superior ao paternal, visto que este veio a ser reconhecido posteriormente por causa da ordem moral estabelecida pela sociedade.
Os homens primitivos ficavam certament impressionados com o amor todo especial entre a mae e seu filho. Talvez por isso é que apesar da sua maior força física os homens primitivos temiam e adoravam a mulher. Praticamente todas as culturas pré-helênicas adoravam deusas e eram matriarcais, com maior parte da riqueza e do poder passando de mãe para filha. (BACHOFEN, 1992, p.79).
Dessa maneira, evidencia-se, portanto a importância do arquétipo da Grande Mãe relacionada ao corpo feminino, visto que metaforicamente a mulher representa nesta perspectiva a Deusa Terra, conforme assegura a seguir Bachofen:
A superioridade da mulher em relação ao homem despertou mais particularmente a nossa surpresa devido à sua contradição em relação à força física. As leis da natureza outorgam o cetro do poder ao mais forte. Se mãos mais fracas o tirarem dele, quer dizer que outros aspectos da natureza humana foram acionados, forças mais profundas fizeram sua influência ser sentida (BACHOFEN, 1992, p. 85)
Já Jung o arquétipo da Grande Mãe representado no corpo feminino “tem a ver com um lugar de origem, com a natureza... Também significa o inconsciente, a nossa vida natural e instintiva, o reino fisiológico, o corpo em que moramos ou estamos contidos; pois a ‘mãe’ também é a matriz, o molde oco, o barco que transporta e alimenta, e, do ponto de vista psicológico, representa, portanto os alicerces da consciência.” (Jung, 1985, p.158).
Assim sendo, todo signo de grandeza e proteção que acolha, defenda e alimente outra coisa menor ou desprotegida, segundo Jung pertence ao primordial reino do matriacardo. Por isso o estudioso relaciona o corpo feminino ao da Deusa Terra. Nesta perspectiva, Randozzo (1997) chama atenção para o fato de que “nas culturas pré-tecnológicas adorava de alguma forma deusas da terra. A terra é sentida como uma Grande Mãe que, com sua generosidade, sustenta e alimenta todas as criaturas.” (idem) A exemplo, tem-se na mitologia grega a deusa Gaia era vista como a própria terra.
O corpo feminino na nas culturas pré-tecnológicas era visto pelo o homem como ser maligno, porque sangra em ciclos periódicos coincidentes com as fases da lua. Isto conforme informa a discípula de Jung. Esther Harding era e ainda é fruto da dicotomia força-sensibilidade a qual é formatada no plano dos mistérios femininos que acabam “enfeitiçando” os homens.
O “animal” feminino, longe de rejeitar as solicitações do macho no período do cio, deseja e procura a sua companhia. Nenhum tabu refreia a fêmea no exercício dos seus encantos. Todos os machos da espécie chegam de longe para ficar perto dela e são capazes de pensar em qualquer outra coisa enquanto ela continuar naquelas condições. Qualquer um que tenha tido uma cadela conhece bem a força do “espírito maligno” pelo qual ela fica possuída, Os machos que procuram por ela esquecem o sono a comida e negligenciam os seus “deves” na suas próprias casas. Ficam, de fato, enfeitiçados. (HARTING, 1990, p.60).
O reconhecimento desse poder atribuído ao corpo feminino veio ocorre na modernidade, momento que se aceitou tal aspecto da feminilidade da mulher. Todavia, ainda se usa este fenômeno feminino contra as próprias mulheres, numa tentativa de prova que elas [mulheres] são portadores de irracionalidades e incapacidades de controlar os seus próprios comportamentos. Em 1486, um frade dominicano concluiu que: “toda bruxaria vem da luxuria carnal, que nas mulheres é insaciável”. (Kors e Peters, 1976, p.127).
Infere-se, portanto que, o corpo feminino sob o olhar masculino é o signo do mistério e, por isso merece atenção à suas ações, embora fique explícito que ao mesmo tempo em que os homens adoravam, receavam o poder sedutor da sexualidade da mulher, uma vez que tal sexualidade era vista operando tanto no plano cósmico – humanidade surgindo do útero original da mãe natureza – quanto ao nível mais pessoal – o individuo nascendo do ventre da sua mãe biológica – deve ter sido um choque e tanto. A “mãe” terna e carinhosa que gerou ambos também tinha um lado escuro insensível e frio. (A exemplo disso, se tem a tragédia de Sófocles, Édipo Rei, na qual a mãe atendendo aos pedidos do marido desfaz-se do filho, mais tarde vindo a ter com ele três filhos).
Considerações
Efemeramente, conclui-se que o corpo, sobretudo, o feminino na cultura e sociedade atuais, embora tenha havido grandes lutas feministas na década de 1970, até hoje, ainda é visto como um signo ambivalente, pois carrega consigo significado de pecado, pois sua beleza e capacidade de proteção ameaçam a integridade moral e religiosa do homem, colocando o corpo dele em estado de pulsão, em que o desejo o torna irracional e irresponsável quando abatido pelo poder de mulher fatal. A exemplo disso, se tem no inconsciente coletivo a imagem de Marlene Dietrich, personificada por “Lola-Lola, a sedutora dançarina de cabaré de cartola e meias de seda que ela retratou em Anjo azul, a de uma mulher liberada que escolhe os seus homens, ganha a sua própria vida e considera o sexo um desafio. O público ficou encantado com esta criatura saída da experiência de ninguém mas da imaginação de todo o mundo”. (New York Times, 1992, p. A1 apud Randazzo, 1997, p. 120).
Assim sendo, o homem deseja, porém receia o corpo feminino em sua essência por medo de ser tragado pelo limo primordial, de ser devorado pela libertina, insensível força procriadora da Grande Mãe. Embora inconscientemente saiba que a mulher fatal é uma ficção, mas uma extrapolação de realidades biológicas das mulheres que permanecem constantes. (Paglia, 1990, p. 14).
Referências
CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual essa nossa desconhecida. 12. São Paulo: Brasiliense, 1991.
FOUCAULT, Michel. Historia da sexualidade: vontade de saber São Paulo, Graal 1985.
_________ Historia da sexualidade: o cuidado de si. São Paulo, Graal 1985.
GIDDENS, Anthony, A transformação da intimidade, São Paulo: Editora da Unesp, 1993.
RANDAZZO, Sal. A criação de mi
|