A brisa noturna adentrava o casarão, trazia consigo os mistérios do breu que soprava nas ruas desertas, ecoando o som mudo de um silêncio sibilante. Dr. Catafractes aparentemente constituía o gênero típico dos moradores mais antigos, perfumava seu palacete com essência de cânfora e amêndoas, deleitava-se com o xadrez nas horas de dolce far niente, suas vestes escuras denunciavam suas visitas frequentes à necrópole floral e serena nas noites frias, se aliava à tinta na luta incessante contra a solidão, escrevendo cartas e mais cartas em uma tarefa epistolar sem destinatário.
Sua infância despertou o interesse impulsivo pelo voluntariado, as ranhuras de anos eternos em cativeiro, e a dor do sofrimento mutilaram seu coração. Para esconder essas feridas e esquecê-las até a senescência, o velho buscou refúgio na filantropia. Suas mais suaves recordações se emaranham no brilho difuso que emana da ajuda humanitária em tempos férreos e da ciência de que criou um solo fecundo para transfigurar tragédias como a que viveu em futuros brilhantes que reconheceriam a benevolência de um semelhante que venceu o magnetismo do abatimento.
Em um alvorecer, enquanto corria os olhos pelas palavras cuja lentidão se espelhava na eternidade das horas, ouviu de relance as batidas firmes e insistentes que denotavam o desespero de uma índole rara moldada por um passado árido, no térreo da mansão. O som tornava-se cada vez mais estridente à medida que o velho se aproximava da porta, assim que a abriu, sentiu o calor de um vulto traquinado, enfureceu-se em um primeiro momento com a infantilidade do ato invasivo, seu estoque de paciência entrou em colapso quando o garotinho por pouco não estilhaçou o espelho que fazia parte de um relicário há gerações. Agora, observava-o melhor: tinha um ar enfezado, um corpo magricela, um aspecto doentio e olhos fundos, lembrava-lhe sua infância severa e identificava-se com os anos mágicos roubados. Uma senhora que escondia as rugas do tempo com modos juvenis, acompanhava o menino, havia algo de sublime em seu semblante, o que por um breve momento despertou a atenção do ancião. Sua súplica para que mantivesse a criança sob sua proteção somado à virtudes bondosas que caracterizavam a marca registrada do velho, convenceram-no de manter o pobre desamparado em sua guarda.
Após oferecer-lhe abrigo e dar-lhe comida e cama de bom grado, pensamentos distantes fomentavam seu espírito, a lembrança do cativeiro que até aquela noite estavam adormecidas, o induziram a matutar noite adentro, algo em suas profundezas se revolvia, ele só não conseguia escutar o primordial. Concluiu então que os ares noturnos lhe fariam bem, como de praxe, estava pronto para uma ida ao cemitério, antes de apassarinhar-se na noite, virou-se para o espelho antigo e subitamente, uma lágrima pura verteu de seus olhos, viu em sua imagem as feições da jovem aprisionada em um corpo escarrado pela velhice, que mais cedo, deixou suas marcas na porta da casa do velho, e há muito, em seu coração. Sentiu em seu âmago, uma vivacidade esquecida; memórias; cores e sensações de um único e antigo amor vivido no caos da desgraça em cativeiro penetravam sua mente. Deu-se conta que ela sempre o habitou, mas o destino habilmente encarregou-se de separá-los. A angústia o assolou quando percebeu que as tentativas de de reencontrá-la novamente seriam frustradas, pois perdeu a conta de quantas horas dedicou à reflexão,e à essa altura, ela já estaria longe. Resolveu então rumar ao jardim dos mortos, agora com um motivo maior: chorar a partida de sua única amada irreconhecível.
Os dias passavam e as recordações continuavam lhe apunhalando, consolava-se porém com o tesouro de criança que recebera de sua amada, o menino personificava o distinto amor que sempre existiu no interior do velho e criou laços fortes com o garoto. O menino cresceu, amadureceu e tornou-se um belo jovem, ao passo que a saúde de Dr. Catafractes se fragilizava cada dia mais. Ambos sabiam, mas nenhum nunca tocou no assunto relacionado à idosa que acompanhou o garoto até a residência do senhor, até que em um dia fatídico, em que o temor se alastrava pela casa e a morte anunciava sua chegada a cada minuto, o jovem encorajou-se e contou ao velho àquilo que a terceiros, ele prometera não contar, mas não suportaria o peso da culpa de esconder: o garoto era seu neto. Já no fim da vida e sem saber com exatidão a decisão a tomar, pôs se a agradecer o jovem os bons momentos, valiosos aprendizados e por tê-lo feito entender que muita gente entrou em sua vida, buscando o melhor para si próprias, enquanto outras tiveram essa intenção, mas trouxeram consigo esperança e lapidaram sua existência. Nunca esqueceu a infinitude do amor que viveu no cativeiro, este que como um espelho, refletiu o afinco dedicado ao garoto que o cativou e vasculhou suas memórias.
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