Nunca me casei e honestamente, a esta altura da vida, não me vejo neste "personagem". Contudo, vejo na desconstrução da relação um importante tema a ser debatido por dramaturgos, cineastas, ficcionistas, mesmo artistas plásticos. Há algo no casamento que o torna - palavras minhas, sintam-se livres para discordar! - uma grande faca de dois gumes. "Há de se ter paciência, meu filho", dizia minha mãe sempre, "muita paciência!". E é dessa, por vezes, falta de paciência na hora de administrar dissabores entre o casal, que nascem grandes embates e reviravoltas.
Esta semana deparei-me com a enriquecedora surpresa de ver a peça Moléstia, primeiro texto do jovem e promissor dramaturgo Herton Gustavo Gratto, em cartaz aqui perto de casa. E o melhor: entrada franca. Corri para a bilheteria com a certeza de que já havia chegado tarde demais, mas acabei privilegiado com um assento. "Os deuses do teatro sorriram para mim", pensei comigo feliz. Sorriram mesmo.
Moléstia é a primeira grande encenação teatral com a qual me deparo neste ano e é fácil entender o porquê: ela não se esconde atrás de subterfúgios babacas e estereótipos manjados (coisa que o nosso teatro tem feito muito nos últimos anos!). Pelo contrário... Ela vai direto num ponto que está mais do que visível na atual e polarizada sociedade: nunca tivemos tanta dificuldade para conviver entre nós mesmos, digo, a espécie humana.
O texto de Herton conta a história do casal Mabel (Camila Moreira) e Breno (Felipe Dutra) que vive aquele momento do relacionamento em que a palavra casal não passa de um conceito abstrato, vagando em meio a sucessivas e desgastantes discussões que não levam nem um nem outro a lugar algum. Ele é um bon vivant notório, enquanto ela é filha de um influente político e só pensa de fato no nome da família tradicional e no quanto ela pode sair manchada ao sinal de qualquer mínima tragédia; Para complicar ainda mais o cenário, ambos têm um filho, Thiago, autista, que requer cuidados especiais a todo momento.
A chegada do amigo Cadu (Ciro Sales), ex-namorada de Mabel e colega de infância de Breno, aumenta ainda mais a tensão sexual entre ambos. Há uma série de vazios existenciais óbvios correndo entre as conversas corriqueiras, mesmo as mais banais. E este quase triângulo amoroso ainda por cima esconde uma outra obscura realidade: Cadu muda de cidade por conta de um crime ao qual foi supostamente condenado e deseja recomeçar a sua vida. Vê na ajuda do casal de amigos uma chance de deixar o passado para trás. Contudo...
Com a notícia de que o filho foi abusado sexualmente na escola onde estuda e ainda por cima pelo amigo de infância (para quem arranjaram o emprego) uma avalanche de sentimentos, ódios e desavenças reprimidas nos últimos anos vêm à tona. Breno acredita que tudo não passou de uma vingança de Cadu por não ter ficado ele com Mabel. Já a madre superiora do colégio (Deborah Figueiredo), quando fica sabendo do histórico passado do professor exerce o papel do estado totalitário, opressor, que deve condenar o culpado antes mesmo de julgá-lo. E o principal: lacunas que sempre foram mantidas ocultas na vida do casal e dos três amigos como um todo são desmascaradas.
Há um elemento interessante que compõe cena com o elenco. Refiro-me a utilização de câmeras, que são manuseadas por todos os atores do elenco, e suas imagens mostradas num telão no palco. É essa câmera, que passeia de mão em mão, que escrutina os olhares e comportamentos dos personagens, invade privacidades, intima os medrosos a assumirem a culpa, exige verdades de parte a parte de forma contínua e incômoda. Em alguns momentos da montagem minha mente se pegou pensando no cinema de Ingmar Bergman, sempre intrusivo. Ele certamente teria adorado a peça.
E as luzes, que dão o tom de mudança do tempo presente para o tempo passado, também proporcionam ao espectador um sentimento legítimo de claustrofobia necessário para entender as intenções maquiavélicas de cada personagem. Sim, maquiavélicas. Há muito o que se esconder naquele clima insalubre, evasivo.
O diretor, Marcéu Pierrotti, vê no espetáculo - e eu concordo com ele - um grande "jogo de acusações", onde todos podem ser culpados, mesmo que por omissão. Lembrei-me da época em que, ainda adolescente, devorava os romances de Agatha Christie um depois do outro, tentando descobrir quem assassinara a, b ou c. O clima presente aqui era o mesmo.
Ao final da encenação, o elenco chama o público para uma conversa franca e convida para o debate a psicóloga Sandra Levy, e alguns espectadores vão às lágrimas, abrem o jogo sobre o seu próprio passado, refletem sobre as escolhas de vida que os trouxeram até aquele exato momento de suas vidas. Eis o grande barato que somente o teatro é capaz de proporcionar: a catarse. Só pelo bate-papo já valeu a minha quinta-feira.
Chego em casa pleno, em êxtase, mas ao mesmo tempo preocupado com os dias que virão neste país mais do que confuso e cheio de ódio dos dias de hoje. Nunca se xingou tanto em nome da família ou de Deus. E perdemos a noção do que é realmente ético em nome de aparências e efemeridades. Moléstia, mais do que simples teatro ou ficção, é a sociedade rugindo, em frenética ebulição. Aquilo que chamávamos outrora de humanidade agora não passam de animais de combate lutando por migalhas de afeto. E isso tudo é não só muito triste, mas também covarde, extremo.
E não acredito que construiremos nada à base de extremismos. Mesmo que disfarçado de moral e de bons costumes.
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