Interessante pensar na cantora de cabaré transexual brasileira Gisberta como contraponto a uma sociedade mesquinha que se vê atingida por tudo o que é diferente a ela...
Quando o espetáculo sobre sua vida, dirigido por Renato Carrera e interpretado pelo ator Luís Lobianco, entrou em cartaz no CCBB pouco tempo atrás não tive tempo disponível para assistí-lo e dentro de mim ficou um sentimento de impotência, de "puxa! sinto que deixei algo valioso passar". E havia mesmo. Gisberta passou por outras cidades, fez carreira, e eu aguardei seu regresso pacientemente. Regresso esse que se deu mês passado no Teatro Rival. E qual não foi minha surpresa ao me deparar com o texto de Rafael Souza-Ribeiro, um dos mais fortes e interessantes que eu pude assistir nos últimos tempos.
Gisberta é transexual e artista. Apavorada por viver num país onde a diferença de gênero (e os crimes que acontecem por conta dela) serem gritantes, decide ir embora para Paris. De Paris para Portugal, um pulo. E ali, na terra de Camões e Fernando Pessoa, se encontra consigo mesmo artisticamente. Porém, sua vida não foram só os amigos e parceiros de palco. A tragédia, infelizmente, também a acompanhou. E o atropelamento de seus cães, as únicas criaturas que realmente foram capazes de lhe entender e aceitar como era, mudou completamente sua vida. Depois da morte de ambos, a depressão, a AIDS, a queda dos cabelos, a perda do visto de imigrante. Virou moradora de rua, mendigou. Logo ela, uma artista, uma lutadora.
Mas o pior ainda estava por vir na forma de 14 meninos, alunos de uma instituição religiosa no Porto. Foi torturada, espancada, violentada em seus direitos mais básicos e jogada dentro de um poço. A justiça, amoral e tendenciosa como na maior parte do tempo, alegou que sua morte fora por afogamento. Sentença estúpida e covarde. Tão covarde (ou mais) do que seus agressores.
Contudo, sua morte não foi em vão. Gisberta virou símbolo da luta contra a transfobia. Tornou-se sinônimo de enfrentamento a onda conservadora que se abateu no mundo nos últimos, castigando a todo e qualquer um que não obedeça à ordem imposta a héteros desalmados e ignorantes.
É esse espetáculo, travestido de muito humor, poesia, ficção, política e denúncia, que me encheu os olhos de lágrimas ao final da apresentação. Muitos dirão que Luís Lobianco, ator e comediante, com passagem pelo grupo Porta dos fundos, não é o ator indicado para viver a transexual. Discordo totalmente. Foi com enorme honra que vi um rapaz que, até então, sempre lhe fora legado o direito a fazer rir, reencontrar-se, renovar-se como artista, redescobrir-se, na pele de uma artista que, a meu ver, deve ter sido extraordinária. Pena que a maior parte do que se sabe a respeito de Gisberta tem a ver com a violência que ela sofreu. Brasil, precisamos saber mais sobre nossos filhos. Antes que o caos tome conta de tudo.
No release da peça, que encontrei no site do Teatro Rival, Luís Lobianco e a diretora do espetáculo dizem que ele não interpretou Giberta, mas que "chegou o mais perto possível dela". Ou seja: há um quê de anonimato naquelas palavras, naquele texto, naqueles gestos, que pode se tornar qualquer coisa que os espectadores desejem. Cabe a nós, que assistimos a apresentação, tentar descobrir quem é essa mulher. Essa mulher que escolheu não ser homem (para mim, por motivos óbvios!).
Saio do teatro com um pensamento (na forma de perguntas torpes, malditas, severas): que mundo é esse em que estamos vivendo onde sequer podemos escolher quem queremos ser? Por que decidimos seguir por esse caminho? Será que a paz de espírito e o respeito ao próximo é algo tão mórbido, tão insensato assim? Quero crer que não. Preciso acreditar que não.
Vivemos num país que se mostra difícil há quase quatro anos. Nada anda no Brasil e muitos vendem uma falsa esperança. Esperança essa que os seus próprios rostos e sorrisos maliciosos desmentem na mesma hora. E Gisberta aparece na minha vida como um golpe, exigindo: "acorda e levanta, a jornada ainda não acabou". Mesmo sem conhecê-la, deixo aqui o meu muito obrigado.
Os haters que não viram (e nem querem ver a peça) gritarão a plenos pulmões: "ela era uma aberração!!!". Não. Não era. E não satisfeito eu responderia ao fim a esses enérgumenos, esses alienados:
"Estão faltando mais seres humanos como essa mulher no mundo". Valeu, Gisberta. Valeu por existir.
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