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Os Morcegos
Nato Matos

Os Morcegos
Naquele ano, 1984, Lucrécia sabia de um movimento estudantil que estava previsto para acontecer às 18h. A faculdade não ficava tão distante de onde ocorreria o encontro. Decidimos sair da aula de música mais cedo. Politizados, nem tanto ou quase nada. Sabíamos que a ditadura militar ainda mantinha seus tentáculos no comando da sociedade, mas, de acordo com o andar da carruagem, estava caminhando para o fim, e nós, dois sonhadores, rotulados de universitários, buscávamos explicações plausíveis sobre o golpe, sobre o ano de 1964.
Resquícios de um Regime? Ou de uma época? As respostas vinham lentamente sobre nossas indagações com a leitura de livros, revistas, jornais, professores e informações truncadas dadas no noticiário. Queríamos nos engajar, embora tardiamente. A palavra “alienado” não cabia em nossas mentes. Para nós, a população cobrava que interpretássemos nossos papéis com sabedoria, veracidade, e aquele encontro, na Praça Principal, localizada no centro da cidade, poderia ser o pontapé inicial para um envolvimento maior, contundente.
           Naquela época os sindicatos agiam de acordo com as necessidades emergenciais que o país necessitava, ocorriam manifestações em todo canto, tendo por objetivo o retorno das eleições diretas para presidente da república. Tínhamos grande convicção que na praça prevista para acontecer a manifestação, havia uma multidão composta por estudantes, jornalistas, sindicalistas, partidos políticos, onde todos os presentes almejavam um país melhor, acreditando que a solução para isso seria através da Saúde, e da Educação bem estruturadas, também, na espreita, poderiam estar os opositores remanescentes da ditadura militar, algo que atemorizava só em pensar na palavra “tortura e torturadores”, no entanto, enfrentamos o medo e seguimos para o nosso objetivo acreditando na paz, no amor e em Deus.
Esboçando ansiedade, seguimos para o local, o colorido das nossas vestes denunciavam uma extravagante rebeldia. Lucrécia usava um vestido estampado com motivos indianos, tiara amarela, bolsa tiracolo colorida, sandálias de couro. Eu calçava sandálias de borracha azuis, camiseta exibindo a imagem de uma flor colorida, jeans, longos cabelos encaracolados, bolsa tiracolo, herança do movimento hippie ou dos sonhos extraídos nos surrealismos expostos nas aulas de História da Arte. A noite estava inquieta. Transmitia um breu inconsciente, mesmo naquela praça tão iluminada com possantes refletores. Lucrécia, ou Lu, afoita, me ultrapassou na caminhada, parou ao lado de um banco onde jazia um senhor, usando óculos quadrados estilo anos 1960, lendo um jornal, acobertando o rosto sutilmente. Observei-o ao me aproximar da amiga. Sentia um friozinho na barriga, pois havia camburões da polícia cercando a praça, mas para completar o cenário, só tinha nós dois, além do senhor lendo o jornal e que, momentaneamente, nos observava. No instante em que Lu bradou a falta dos companheiros, ele colocou a gazeta no colo, fitou-nos, fremente olhamo-nos. Habilmente abandonamos o local, estacionando nossos inseguros corpos em uma barraca que vendia cachorro-quente na calçada em frente. Exauridos do medo, respiramos sossegados. Tomamos um suco de laranja. Mas o dia ainda não tinha acabado! Uma amiga de Lu, quando nos viu na barraca, deteve-se, expôs que também tinha ido para a passeata e que sendo de uma família de politizados, não perderia aquele momento. E eu gostaria que tudo acabasse no suco. Lu e a companheira enveredaram por um diálogo sobre as mazelas dos nossos governantes com altivez, resultando na aproximação de uma senhorita que passava no local, envolvendo-se no diálogo. Quando tudo parecia caminhar para um novo movimento, Lucrécia jocosamente insinuou que um de nós poderia ser um dos agentes do Governo disfarçado de estudante. Motivo para o instigante diálogo cessar imediatamente. Eu, Lu, e a companheira seguimos para o ponto de ônibus, a entusiasmada desconhecida pareceu voar sumindo no vento.
No caminho, comentamos sobre o comportamento da estranha visitante; se era agente do Governo, nunca soubemos. Mas a passeata não aconteceu. Para abrandar o nosso ego, Lu propôs uma praia no dia seguinte, concordamos. A ânsia de mostrar seu novo hábitat, embora para ocasiões de veraneio, estava transparente no seu semblante.
Praia, céu azul, pescadores, silêncio, roupas menores etc. O sábado prometia breve liberdade. Conforme a ocasião mandava, estávamos prontos para os nossos devaneios. Nós nos encontramos no Terminal Marítimo, transportando nossas sacolas e bolsas abastecidas de alimentos, desejos. Ao arribar no local, o céu antes azul, escureceu e caiu baita aguaceiro. Corremos para a habitação de janelas azuis, fachada salmão, rodeada de flores vermelhas, brancas e amarelas. Há tempos que Lu a tinha deixado na solidão das intempéries do dia a dia. Mas estávamos ali, felizes e sorrindo para adentrá-la. Lucrécia tirou uma penca de chaves da bolsa colorida para encontrar a que abria a porta do nosso paraíso. Abriu. Subitamente um bando de morcegos despontou dos lados do telhado, saudou-nos e foram embora. Lucrécia apenas disse que eram frugívoros, não faziam mal a ninguém, e eu, jocosamente, supus serem os agentes do Governo disfarçados de inocentes quirópteros.
           

       


Biografia:
Nato Matos, nasceu em Salvador– Bahia, no dia 10 de agosto de 1961. É Graduado em Educação Artística / UCSAL, Teatro / UFBA e tem especialização em Metodologia do Ensino da Arte / IBPEX. DRT de ator: 2891. É professor, ator, artista plástico, escritor.
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