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O EX-DEFUNTO!
José Rony de Andrade Alves


Nas férias de verão, resolvi sair do inferno que era a trivialidade de uma vida pacata ao extremo. Nunca fui afim de viajar, de curtir com os amigos, de se embriagar ou coisas do tipo. Sempre fui fiel aos preceitos morais que minha mãe me deu. Eu segui piamente, durante décadas, os ideais familiares, os conselhos. Entretanto, nesse verão, resolvi sair da prisão cultural. Uma loucura extrema, talvez sobrenatural, abraçou-me de repente, e me forçou a quebrar as restrições coercitivas que me impedia sair da constância dos meus dias. Da forma como essa mudança inusitada me possuiu, fez-me sentir profundamente invadido. Talvez um demônio me possuiu, pensava. Eu me sentia leve, feliz e ao mesmo tempo, receoso. Durante a fase de preparação do cronograma de viagens, uma bipolaridade me tangia frequentemente, e assim fazia com que eu me sentisse: ora um caçador, ora uma caça. Contudo, meu lado obscuro venceu nas minhas decisões.

Passei em torno de dois meses, planejando, replanejando, desfazendo e refazendo meus planos para estas inexplicáveis férias que viriam. A fastidiosa carga horária de nove horas de trabalho me deixava exausto para planejar algo. Entretanto, como já mencionei, algo muito surreal me pungiu nesse momento. Toda noite, nesses últimos meses para as tão esperadas férias, empenhei-me distendendo meu descanso noturno à procura de promoções na internet e, metodicamente, planejando a viagem. Às vezes, pensava que estava ficando louco, mas acabei cedendo com a perspectiva de uma mudança, por mais radical que fosse, iria, assim achava, desopilar minhas tensões e seria, decerto, algo inédito.

No dia da viagem, peguei a minha cachorrinha, Dolly, e a levei até a casa do meu tio. Sem nenhuma preocupação pendente, eu encaminhei, extaticamente, até o aeroporto principal. Era uma euforia incontrolável e, lá no fundo, sentia que a minha normalidade estava acorrentada.

Desembarquei às oito horas da manhã (horário local) no Aeroporto Internacional de Dodoma, na Tanzânia. Esse foi o destino que o meu lado misterioso me guiou. Quando fui ao centro da cidade Dodoma, tive a sensação de que já estive naquele lugar antes — senti na prática o que na teoria eu recusava: a ideia do déjà-vu. Desdenhei essa abstração e volvi-me a apreciar as belezas da cidade. Tive um choque de percepção. Pensava que na África tudo era miséria, pobreza e selva. Achei extremamente fascinante a cultura e a peculiaridade daquela cidade. Monumentos, arranha-céus, construções opulentas desmistificam os meus equivocados preconceitos. No entanto, o meu objetivo estava longe de ser a vida urbana. Queria inflexivelmente desbravar a temível Savana africana. Na verdade, a minha parte oculta que queria.

Após dois dias desfrutando das belezas urbanas, o grupo de turistas no qual eu me incluía, decidiu ir visitar a Savanna Serengeti, ao norte da Tanzânia. Eu estava bastante empolgado com o passeio silvestre. Os prados estéreis, os arbustos espargidos, e, acima de tudo, os temíveis animais africanos.

Durante a viagem dentro de uma gaiola ambulante, avistamos cenas indescritíveis; sentimos algo que só o ambiente pode nos proporcionar —O ar da liberdade. Paramos um pouco para apreciar uma manada de elefantes que cruzavam a estrada. Perpendicularmente à estrada, no lado esquerdo da nossa direção, avistamos uma cena inusitada, um grupo de leões estava espreguiçando-se no chão sem demonstrar nenhuma agressividade. Os turistas não paravam de registrar cada passo dos felinos.

Enquanto os leões distraíam a atenção dos turistas, eu observava ao longe, no lado direito, uma cena curiosa. Vi um homem, um rinoceronte, e depois, um tiro. Fiquei profundamente abatido. Não fui eu quem fora abatido, mas sentia-se partido. O monstro retraiu a atenção dos outros. E ficamos atônitos diante tamanha brutalidade. Ele retirou rapidamente o chifre do morto, e ameaçou com a arma a todos nós. Então, o guia acelerou, sem delongas, à vante. Ao passo que o carro ia, eu olhava, amargurado e consternado, o verdugo se retirando às pressas. E a nossa expedição foi arruinada naquele momento. Perdi a essência de aventureiro.

Logo considerei que estava precisando de algo para tirar aquela cena horrenda da minha consciência. É difícil descrever minhas sensações naquele momento. Quando eu tentava me distrair, os pensamentos me assaltavam inesperadamente. Via que não poderia viver a essência de férias tranquila, caso não fizesse o mínimo possível. Daí em diante, já não era minha consciência que me controlava. Estava com um ódio aliado a uma psicose incessante de querer destruir aqueles miseráveis que roubam o que não lhes pertence.

Voltei a inibir meus temores quando conheci, inesperavelmente, uma jovem nativa de vinte e três anos, em um restaurante na cidade Dodoma. Ela estava almoçando sozinha, em uma mesa de frente a que eu estava. Eu dardejei um olhar curioso a ela, e como se houvesse uma conexão intuitiva, ela equiparou seu olhar ao meu. Discretamente, disfarcei o meu vislumbre e, voltei a saborear a minha refeição. Ela lançava-me um olhar distinto e tentador, que me fazia sentir arrepios. Um momento depois estávamos face a face, eu e aquela elegante garota. Um inevitável sorriso de simpatia nos tangenciou. Acresce que, quando sorria, resolvi atirar um aceno cortês, e desastradamente, acabei derrubando o copo de suco da minha mesa, e fiquei profundamente envergonhado. O garçom cuidou do desastre e eu resolvi ir até a mesa daquela mocinha.
—Olá, tudo bem?
O sorriso foi a sua resposta.
Logo me dei conta de que não ela falava português, e me vi como um idiota. Minha situação estava pior que antes. Estava pressionado a dizer alguma coisa e a luz dos meus problemas veio com a respostava dela:
—Eu falo inglês!
Senti um alívio tremendo ao entender o que ela dissera. Pensei nas conclusões imediatas a que chegara com a sua voz e não pude evitar um riso de entendimento e de vergonha.
—Perdoe-me pela minha apresentação nada cortes
—Sem problemas. Ela sorria pendulando a cabeça de baixo para cima.
—Me chamo Marcos.
—Meu nome é Telissa
—Encantado em conhecê-la
—O prazer é recíproco!

Após essa cômica introdução, ela me convidou para sentar. Passamos horas conversando, por ora meio enrolado na fala, contudo, o entendimento foi concedido a ambos. Foi realmente deleitoso conversar com aquela simpática garota; passaram-se em torno de duas horas nessa conversação. Despedi-me dela, e ela disse que vinha com frequência almoçar naquele restaurante.

Por ora, minhas angústias estavam soterradas nas excitações, nas memórias reconfortantes daquela inexplicável conversa. Assim, conforme o dia ia se desfazendo, a minha empolgação para o almoço seguinte só aumentava.

No dia seguinte, passeei pela cidade, fui ao museu local, e olhava constantemente o relógio, fitando para não perder o horário do almoço. Seria umas dez e meia da manhã e eu ainda estava no museu. O grupo de turistas ficavam fascinados com as esculturas e relíquias, entretanto, eu estava achando aquilo tudo entediante, antiquado e fastidioso. Quando o ponteiro tangenciou o marco doze, saí discretamente do museu e encaminhei até um táxi que me levou até o restaurante.
Lá dentro, olhei perscrutando as mesas e as pessoas à procura de Telissa, e não a encontrei. Era umas doze e meia quando resolvi reservar uma mesa. Pensei que ela já tinha ido embora, e assim, fiquei chateado em não encontrá-la. Cada mordiscada que dava na coxa de rã não sentia sabor algum, almoçava simplesmente para suprir minhas necessidades fisiológicas. Terminei de almoçar, e quando ia me levantando para sair, uma mão afaga meu pescoço. Senti-me leve e profundamente confortado com aquela mão; imaginava aquela simpática garota me acariciando. E, impensavelmente, tornei o meu pescoço para deslumbrar-lá, e, infelizmente, tive uma quebra de expectativa: não era Telissa; era uma velho que estava se apoiando em mim para passar. Saí de lá aborrecido, olhando para o chão e pensando nela.

O dia se encerrou sem aplausos. Não foi um dia abençoado, foi um dia tão ruim quanto os outros que já tive. À noite, senti-me como um filhote deserdado, sem arrimo, com a dura sorte do destino. Eu dormi cedo naquela noite; estava totalmente desmotivado para qualquer atividade de lazer.

A essa altura eu já começava a pensar que ela talvez não gostasse de mim nenhum pouco. Deixei isso de lado e tentei aproveitar as férias. No almoço seguinte, caminhei até o restaurante, desdenhoso a qualquer distração, sentei-me cabisbaixo, ordenei um frango grelhado com batatas, e um suco de uva. Estava apreciando a comida, evitando que os pensamentos me usurpassem o momento.
—Marcos?
Uma voz me chama, e eu tento guiar a minha audição até o local exato. Diante de duas mesas atrás de onde estava, se encontrava a garota misteriosa. Meu coração acelerou, e senti uma tensão momentânea me pungindo. Era ela! Ela estava me chamando para compartilhar a companhia no almoço. Senti-me muito bem com sua presença e além mais, ela conversava com uma leveza que parecia que eu estava delirando. Nós conversamos várias horas, eu decidi convidá-la para passear —até porque meus dias ali estavam se acabando— e suavemente ela confirmou a minha proposta com um sorriso divino. Não sei se diria que me apaixonei por ela, mas, certamente, senti algo que há muito tempo não sentia. Ela demonstrava tanta simpatia que não cogitei o seu verdadeiro caráter.

Fomos até um parque a dois quilômetros do centro; ficamos ali apreciando os pássaros que desatavam a cantar; conversávamos como se já nos conhecêssemos há anos. Durante os dias precedentes, a frequência de encontros só aumentava. Eu e Telissa fomos a parques, cinemas, shopping center e outros lugares urbanos. Toda essa reviravolta mudou intensamente o rumo bucólico que antes prognosticava.

Em uma manhã tão ensolarada quanto as outras, Telissa me encontra no Café-Renoir (ao lado do restaurante mencionado), e ao avistá-la, senti uma alegria imensurável.
—Bom dia, Marcos. Assim ela me chamava com um sotaque tão peculiar que até pensei que era um apelido carinhoso..
— Bom dia, Telissa. Como foi a noite?
—Foi mais ou menos. Respondeu ela, como se estivesse incomodada com algo.
—Por que? interroguei-a com ar de espanto. Nunca a via desmotivada, triste como nessa ocasião. Ela optou pelo silêncio, e assim, eu a respeitei. Convidei-a para tomar café e, após insistir um pouco, ela cedeu. Conversamos algumas trivialidades, e aos poucos via o seu semblante voltando ao que era de costume. Fomos passear pelo parque, e depois de algumas voltas em torno, sentamos em um banco defronte a um pequeno lago, bem pequeno mesmo, talvez diria uma poça d’água se não fosse a presença de plantas aquáticas. Eu olhei nos seus olhos e ela retribuiu o ato. Seus olhos brilhavam bastante, e seus cabelos moreno esvoaçavam com a sintonia do vento. Ela carinhosamente apalpou o meu rosto e desferiu-me um impiedoso e inexplicável ósculo. Seus lábios tangenciaram os meus, e o silêncio nos pensamentos caracterizou aquele momento irracional, em que os hormônios transladaram loucamente por nossos corpos. Não ingeri álcool mas me senti embriagado após aqueles beijos e carícias. Convidei-a até meus aposentos e ela não mediu esforços. Tive a melhor noite de todas, no entanto, iria se arrepender amargamente por ter conhecido aquela mulher.

No dia seguinte, acordei ao seu lado, eu estava revigorado. Nunca me senti tão bem como naquele momento. Ela acordou com um carisma fascinante. Até cheguei a pensar que, se ela estivesse fingindo, deveria ser uma grande atriz, entretanto, o que importava para mim é que eu estava vivendo um momento deleitoso e, tudo aquilo, era, sem dúvidas, as melhores férias. Conversamos nos aposentos naquela manhã, almoçamos juntos —Ficamos o dia inteiro juntos. Foram momentos inescurecíveis e inexplicáveis. Aquela meiga e cálida garota me sucumbia a qualquer tormenta. Era um anjo!

Faltavam quatro dias apenas para o fim das férias. Eu evitava imaginar minhas férias acabando e ter que retornar para a monótona e exaustiva rotina. Nesse dia, pela manhã, Telissa me encontrou no Café-Renoir, após tomar lanchar, ela me convidou a ir visitar a sua casa. Eu fiquei surpreso por sua proposta e aceitei sem cogitar. Não foi tão longe, cheguei lá em torno de duas horas de táxi em uma área interiorana. Eu estava empolgado, com pensamentos ludibriosos me eivando de toda imaginação fértil. No momento, não me perguntei como ela vinha para a cidade ou o que ela fazia lá. De fato, o desejo por prazer me fez agir sem pensar, ou há quem ressalte o lado obscuro que me fez ir até onde fui. Andamos em torno de dez minutos após descer do táxi, por uma trilha estreita, até chegar ao destino. Achei surpreso o lugar em que ela vivia. Mato ao redor, uma casa velha e, sobretudo, mistério. Como uma mocinha tão elegante poderia viver naquele lugar. Por um momento pensei que iria morrer, que talvez ela estivesse me levando para alguém me assassinar. Quando eu cheguei lá, foi uma grande surpresa. Carcaças de animais penduradas em estacas, provavelmente para secar. Eu me perguntava o porquê dela me levar para ali. Ainda com a ilusão de prazer, caminhei junto dela até a casa. Pensei, que nem todo mundo tem a sorte de viver com dignidade.

Ao entrar na casa, eu tive uma grande surpresa: uma arma, um alvo, e eu era alvo. Aí meus pensamentos explodiram; meu desejo latente foi convertido em terror iminente. Estava perplexo, e, cruamente, com a ideia de que iria morrer logo. O mesmo homem que outrora ceifou a vida daquele pobre animal na savana, estava prestes a ceifar a minha também. Fiquei mudo, sem palavras, nem expressões visíveis. Eu já estava imaginando a dor pura e efêmera de uma bala que logo transmutaria a minha vida ao esquecimento eterno. Cada milésimo de segundo pensado, era eternamente avassalador; eu estava me sentindo um defunto, uma presa coagida sem chances de fuga. Depois da minha pálida expressão, o homem despojou um sorriso maléfico. Era a hora da morte! exclamei mentalmente.

Depois de tantos pensamentos cruéis, Telissa toca em minha mão, e ao inflexivelmente afasto-a com um empurrão. Estava com profundo ódio dela. Como pude cair na tentação dela, pensava. O homem falou umas coisas que não entendi. Talvez tenha dito um adeus ou coisa do tipo, e eu já estava lacrimejando quando eu ouço um tiro. Morri!

Uma bala passa de raspão no meu ombro esquerdo, e eu fico sem entender. Não foi ele quem atirou em mim, foi outra pessoa (ou monstro) que me atirou. Não sabia o que fazer. Abaixei-me, e engatinhei até atrás de uma poltrona rasgada, ao lado da porta. O homem começou disparar contra um outro que não conseguia ver. O sangue estava brotando sem parar do meu ombro, era excruciante. Quando fui pegar um pano para conter o sangramento, eu me deparo com Telissa caída no chão. Não acreditei no que via, ela foi atingida no peito e estava agonizando. Puxei ela para perto de mim. E fiquei sem entender nada. Interroguei-a, ainda com remorso:
—Por que? Por que?
—Eu te ... E ela apagou.
Não consegui entender as últimas palavras dela. Fiquei na dúvida se ela queria dizer que me ama ou que me odeia. Vislumbrei rapidamente o local, avistei algumas presas, chifres, no quarto e não me atentei mais aos detalhes. Corri escrupulosamente pelo cômodo até uma janela fechada, que logo foi quebrada com uma bala. O barulho ensurdecedor de fuzis, estava me deixando desorientado, entretanto, consegui me erguer e pulei da janela que dava de cara a um matagal. Corri desembestado, sem olhar para trás; me cortei todo, contudo, a dor não foi mais forte que a minha ânsia por viver. Quanto mais eu odiava a vida, mais temia a morte. Sob tal ótica, estava eu correndo sem parar, até que consegui chegar à estrada. De tão desorientado que estava, não sabia para que lado ir. Só sabia que teria de correr o máximo que puder. Resolvi intuitivamente, escolhendo a esquerda, e assim, eu marchei a passos longuíssimos ao desconhecido.

Enquanto eu avançava, fazia uma parada de vez em quando para conter o fôlego. O céu já estava prenunciando o crepúsculo e ainda não tinha chegado a lugar algum. Procurei à minha volta algum indício de residência ou de qualquer tipo de ajuda. E não obtive sucesso. A lua já estava imperando no céu, e eu estava ao relento, imundo, dilacerado, temeroso, sozinho e sobretudo, perdido. Eu resolvi repousar em uma árvore frondosa, temendo os animais ou algum monstro humano.
No dia seguinte, saí da árvore cansado e se coçando, meu estado de vigília não me concedeu uma noite de sono. E a coceira infame foi devido aos mosquitos noturnos. Achei uma árvore encantadora, próximo onde repousei, com supostos melões suspensos. Não resisti a tentação de comê-los; estava faminto. Eu comi dois melões e foi o suficiente para evacuar dezoito vezes durante a viagem. A diarreia estava me matando aos poucos. Desidratado e faminto, e ainda, correndo um grande risco de virar uma presa, lá estava eu, passando as minhas férias.

Segui a estrada a passos lentíssimos, quase se arrastando. Estava sentindo minha consciência se apagando. Achei uma poça d’água e não cogitei beber. Tentei me hidratar, limpar minhas feridas e repousar um pouco. Ao lado de onde eu repousava encontrei amoras silvestres, e por um tempo, cogitei não comer. Não queria me desidratar mais, entretanto, a tentação da fome acabou me fazendo comer. Comi o máximo que pude, e por sorte, elas não me fizeram mal. Até que me ajudaram a conter o tenesmo. Passei esse dia repousando em uma árvore, queria reter energias extras caso precisasse de uma fuga imediata. Comi toda a amora que encontrei. Não matava a fome, mas aliviava o incômodo da barriga vazia. À noite, consegui ter um sono ainda ruim, mas que me fez acordar um pouco melhor.

No dia seguinte, uma outra surpresa se verticalizou, agindo como um empecilho: uma manada de elefante descansava embaixo de onde eu estava. Receoso em descer em virtude dos casos de brutalidade desses animais, fiquei cautelosamente aguardando e com uma grande virgília, pois, eles poderiam derrubar a árvore se se sentirem ameaçados, e ainda, um pensamento atentador me fazia a todo tempo querer fugir: e se os caçadores de marfim viessem aqui matá-los, provavelmente iriam me matar também. Em meio a tantos pensamentos usurpadores, meu lado obscuro me concedeu a destreza de ficar escondido nas folhagens e aguardar.

Passaram-se horas, até que, ao meio dia, por aí, os brutamontes foram embora. Quando desci, estiquei minhas pernas, que estavam levemente dormentes, e o estalo foi a resposta para o alívio. Achei um escorpião enquanto estava comendo amoras, e, tendo em vista os programas de aventura na TV, achei coerente comê-lo, tirando primeiramente, o rabo. Ao colocá-lo na boca, suas pinças prenderam na minha língua que logo começou a arder, e tentei mastigá-lo, no entanto, um gosto essencialmente amargo me fez cuspir-lo. Nunca experimentei tamanho dissabor. Fui voltar à caminhada, e dessa vez não corria apenas para salvar minha vida, mas também para salvar a minha passagem de volta, pois só me restava um dia até o embarque.

Durante esse dia, eu andava em uma marcha rápida fitando poupar energia. Sempre que eu encontrava uma poça d’água, eu não receava mais a sujeira, bebia como um animal. Durante o final da tarde, quando a penumbra já era visível, eu encontrei uma aldeia com poucas casas, mas que transpirava um pouco de esperança. Não quis chegar durante a noite pedindo ajuda para não correr um risco de ser levado como inimigo ou quem sabe como caça. Preferi esperar em uma árvore com uns duzentos metros de distância. Na árvore eu avistava o fogo, que cintilava com a sintonia do vento. E dava para escutar as vozes dos aldeões.

O sol matinal envolveu-me quebrando o meu sono, que dessa vez foi o melhor desde que estava em fuga. Acordei animado para pedir ajuda. Afastando-me da árvore e olhando para frente, eu vi uma camionete chegando, e exclamei pensando: até que fim! ajuda! Pensava que iria obter comida, e ajuda para voltar, mas me enganei feio; eram traficantes de marfim que chegaram para descarregar e armazenar naquelas casas. Fiquei realmente abatido, pois, no dia seguinte teria de estar no aeroporto.

Retornei à caminhada e evitei entrar em contato com os anfitriões, até porque eu era estrangeiro ali, e não iria entender o idioma local. Caminhei bastante desconsolado; não estava mais com aquela ânsia por viver; sentia-me um defunto. Sem perspectivas a não ser perecer. Meus passos já não estavam com a empolgação de antes e eu já começava a sentir dores que por ora me impossibilitaram de caminhar incessantemente. Só um milagre para me tirar daquela aventura fadado à seleção natural.
Resolvi voltar a seguir a trilha da estrada de terra, e dessa vez, seguir até onde meu corpo me possibilitar. Enquanto via o caminho ficando exaustivo, doloroso, meus pensamentos estavam voltados para uma simples pergunta, mas com uma resposta temível: irei morrer?

Durante muito tempo devo ter ficado semi-desacordado. Não me recordo nada além de caminhar à diante, como um guerreiro que não teme mais a morte e busca o último triunfo: confrontar com a morte. Disseram-me que fui deixado na frente do hospital de Dodoma e que uma camionete me trouxe. Quem me trouxe não parou para questionamentos, simplesmente vazou como se nada tivesse acontecido.

No dia da viagem eu estava acamado, e ainda sob os cuidados médicos. Estava com uma infecção intestinal, desidratação, contusões, hematomas, e   inflamações em diversas escoriações que colecionei durante a fuga. Por fim consegui adiar a minha viagem alegando atestado médico.

Hoje completou exatos quatro anos desde que fui à Tanzânia. Recordo-me fascinado daquela inusitada vivência. Tenho várias dúvidas. Será que Telissa realmente me amava? Será que ela sobreviveu? Será que homem armado não queria me matar de verdade? Será que Telissa queria me mostrar algo? Será que foram os criminosos que me salvaram? E por que fizeram isso? Muitas dúvidas que guardo para mim, e sei que nunca irei saber ao certo. O mistério do meu lado obscuro ainda não foi desvendado; fui a vários médicos e não obtive outro veredito senão: Psicótico...



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