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Sessão das dez
ANIBAL BENÉVOLO BONORINO

Resumo:
Numa sala de espera de um cinema, uma solitária senhora relembra sua vida

SESSÃO DAS DEZ

Aníbal Bonorino

Inesperadamente conseguiu lugar naquele canto do sofá. Perto do cinzeiro. A sala estava cheia. E mais gente estava chegando. Há muito tempo deixara de ir ao cinema do bairro. Não só por falta de companhia, mas porque os filmes da época não lhe agradavam. Preferia rever os das décadas de 40, 50 e alguns de 60. Sessenta - bons tempos. Tinha um bom emprego, havia superado a perda do pai. O câncer fora rápido. As doenças da mãe eram esporádicas. Nada de grave. E Délcio era o namorado que sempre quisera ter.

Embora perturbada pelo descompasso das conversas da multidão, que se comprimia na sala, começou a organizar suas lembranças em ordem cronológica. Conheceu Délcio, conversou com ele, marcou encontros e inesperadamente apaixonou- se.

Não havia necessidade de as pessoas falarem tão alto. Mas falavam. Isso foi o fator desagregador do equilíbrio em que vinha colocando o retrospecto de sua vida. Parecia que alguns momentos se fragmentavam e desconhecia o que os provocara . Por que estaria ali ou não, quando e como conhecera aquela amiga, quem enviara a carta com a mensagem tão perturbadora?

Não conseguia colocar o desaparecimento de Délcio no tempo apropriado. Foi antes ou depois daquela noite em que tia Dora teve o colapso? E ela nem gostava da tia, mulher esnobe e sem dinheiro que justificasse tal afetação. Tudo bem, não tinha desejado a sua morte ( isso seria um prêmio para aquela megera), mas era inquietante desconfiar de algum envolvimento da tia com o adeus não recebido de seu amado. Pesquisava isso nos últimos vinte anos, em incessantes investigações mentais.

Tudo indicava que não havia nenhuma ligação entre o desaparecimento e a morte. E provavelmente não havia, assim pensavam.   Ao que se sabe, Delcio jamais conhecera Dora, muito embora esta tecesse comentários desairosos sobre o rapaz. Pura inveja de solteirona, diziam todos. Nunca conseguiu nada e agora queria sabotar o namoro da sobrinha.

E Délcio quem era ? Rapaz robusto que fazia sucesso, na praia, pelo corpo e nenhum pelo rosto e muito menos pelo cérebro. Mas era boa pessoa.   E isso é o que importa, conforme apregoava Nalva. “ Ele é puro, não tem maldade, não sabe quem foi Marilyn ou Castro Alves, e daí ? No entanto, está sempre preocupado com a saúde da mãe. Com as contas da luz, da água e do gás. É amável, perfumado e pontual”.    Lamentavelmente tudo era passado.

Na firma onde trabalhara , só informaram que depois de dias sem comparecer ao expediente, pediu demissão por telefone.   Não souberam dizer de onde.

Délcio pressionou o botão da campainha e, ao abrir-se a porta , surpreendeu-se com a aparência de Dora.. Entra - ordenou a senhora. Cabelos em desalinho, boca torta e voz pastosa. A despeito do inesperado da situação, começou a recitar as frases que tinha ensaiado por meses “ O que tem a senhora contra mim? Sou honesto, trabalho, e gosto muito da sua sobrinha. Que eu saiba, não há nada que me desabone, qual é o problema então?”

Dora parecia não ouvir, nem saber do que se tratava. Aproximou-se lentamente do rapaz, desabotoou os botões de sua camisa e acariciou-lhe o peito. Délcio petrificado interrompeu o discurso. Ao invés de prazer, o frio daquelas mãos pareciam advertências da morte.

Dora retrocedeu, e trôpega apoiou-se na guarda de uma poltrona. Pronunciou frases incompreensíveis enquanto Délcio, recobrando os movimentos, correu para a porta. Já na rua, olhou para os lados, buscando uma testemunha de sua fuga e certificou-se de que não havia ninguém. Ouviu o ruído de um carro, mas parecia longe. Angustiado pegou o primeiro ônibus que apareceu e foi parar no centro da cidade De lá partiu para o subúrbio onde morava.

No pequeno prédio, sem porteiro, os vizinhos com os quais não se relacionava, só souberam da sua ausência quando perceberam a placa de “aluga-se”, colocada na janela da frente do apartamento. “Até que ele era simpático, mas muito tímido, não falava com ninguém” disse a gordinha do andar de baixo.

Nalva tinha certeza de que seu orgulho a impedira de reencontrar o amado. Poderia ter perguntado mais, mostrado sua tristeza ou decepção, colocado mensagens nos jornais, buscado ao menos uma explicação, por pior que fosse, para a atitude do rapaz. Uma injustificável justificativa para tamanha estupidez seria suficiente. Aquietaria sua alma, preenchida pelo vazio do desamor.   Que crueldade Délcio !

Aquela senhora de cabelos grisalhos, de elegância planejada, a olhava com insistência, sempre que havia uma brecha entre a pequena multidão. Fazia movimentos com a cabeça para alcançar ângulos que a permitissem enviar seu olhar. E era de compaixão. Sua expressão parecia balbuciar frases de conforto – coitadinha está só, não parece nada feliz.   Meu Deus, era Lucy , a inquilina da tia Dora. . Foi ela quem chamou ambulância.

Lucy chegou até ela. Não parecia estar condicionada a pronunciar as frases de quem não se vê há muito tempo. Queria ir direta ao assunto. Teria que voltar logo ao casal que a acompanhava – seu filho e futura nora.   “Eu sei que você vai ficar atordoada, mas prometi contar o que aconteceu, na primeira vez que te encontrasse”.

Nalva, em pé, ouviu a história inacreditável da destruição de sua vida. Lucy vivera, por cerca de dezoito anos, com Délcio , após sua fuga e até sua morte . Enfarto. Por sua covardia e pouco discernimento o rapaz acreditava-se culpado pela morte de Dora. Lucy assegurava-lhe que sim. Era ela a única pessoa que sabia de sua visita à Dora. Era de seu carro o ruído que ele ouvira. Valeu-se disso para mantê-lo ao seu lado

Só o passar do tempo revelou a Lucy o desastre que causara aos três envolvidos. Não tinha como reparar o mal causado, a não ser declarar seu remorso e esperar a magnitude de um perdão

Nalva só, então, reparou que havia muito poucos jovens na sala de espera; A morte de Délcio não foi surpresa, tinha morrido muito tempo atrás. Aquela mulher, que lhe falara, não estava bem vestida, trajava uma fantasia de felicidade e uma vontade enorme de voltar atrás.

Abriram-se as portas da sala de projeção. As pessoas andaram apressadas para conseguir seus lugares. Apagaram-se as luzes. Seria uma reprise de gala.
.Entre lágrimas pode ver, na tela , a ironia do título do filme que apresentavam:
“De amor também se morre”

Rio, 15/05/2005




Biografia:
Nasci em Itaqui, no Rio Grande do Sul e resido no Rio de Janeiro desde o final de 1958. Nunca publiquei nada do que escrevo, por que sempre o fiz para consumo próprio e, principalmente, por falta de talento. Agora, acho que perdi a vergonha. Gostaria imensamente de receber as críticas dos meus eventuais leitores peoo e.mail anibalbonorino@superig.com.br.
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