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Perdas e Danos
ANIBAL BENÉVOLO BONORINO

PERDAS E DANOS

Aníbal Bonorino
Rio, jan/2006



Depois de vinte anos, Marcos voltou ao Rio. Continuava na mesma empresa, que reabrira sua sucursal carioca. Estava com quarenta e um anos e ainda solteiro, já que seu mais recente romance resultou em um fracasso a esquecer.

O último inquilino do apartamento, herança dos pais, cuidara muito bem do imóvel . Só precisou arrancar aquelas abomináveis cortinas e os azulejos floridos dos banheiros. E pronto, estava residindo em um lugar a seu gosto, no bairro que mais conhecia: Copacabana, posto cinco, próximo à praia. Deixou para uma ocasião oportuna a abertura do baú de lembranças paternas, que o inquilino concordara em guardar embaixo da cama, que serviria para uma empregada, que nunca teve. Estava ele ali, intacto, esperando pela curiosidade de Marcos.

O bairro, infelizmente, já não era o mesmo. A população crescera assustadoramente . Não mais havia “footing” na Av. Copacabana, como na época de seus pais, nos anos sessenta. Os cinemas viraram lojas, igrejas ou academias de ginástica. Os bares mais conhecidos fecharam as portas. Embora essas mudanças tivessem começado a ocorrer quando ainda era jovem, guardava,   na memória, o bairro de sua infância. Era uma lembrança mais agradável.

Não importava. De nada adiantaria invocar o passado. Bom mesmo, era olhar pela janela e ver as folhas douradas das amendoeiras, sentindo a maresia entrar no quarto, molhando de mar os seus pulmões. Nem mesmo os diálogos dos porteiros, sempre num tom acima, o irritariam naquela nova fase da existência.

Um mês após se estabelecer já estava envolvido com Élida, com quem mantinha ótimas conversas, ria demais, discutia os esportes de sua predileção e dormia nos fins de semana. Mulher pouco bonita, mas inteligente e sobretudo generosa. Não materialmente, mas nas atitudes, nas posições em que se colocava diante dos acontecimentos.

Formavam um casal sereno. Notava-se a admiração que um sentia pelo outro, nas reuniões com os amigos mais jovens, quando discutiam qualquer assunto. Embora fossem mediocremente cultos, pareciam gênios para os padrões da época. A turma toda entendia muito de computadores, mas o resto era velhice, coisas sem importância.   A situação não aborrecia os dois, aliás os divertia quando eram procurados para esclarecer aos outros o que era isto ou aquilo.

Naquele primeiro ano, de relacionamento, passaram a morar juntos e muitas coisas aconteceram .Não que os envolvessem diretamente, mas que os aproximavam dos demais. O vizinho do andar de cima morrera de infarto aos trinta e oito anos. O síndico, afastado por improbidade administrativa. O elevador de serviço despencou do sétimo andar ferindo gravemente a doméstica de um general.   Este virou bicho quando soube que o hospital de pronto socorro estava em greve.

Como a ditadura havia acabado, e a greve não, restou ao general pagar a conta em um hospital particular, ficando a doméstica com a boca um pouco torta e a conta bancária do militar abaixo do desejado. Entrou com uma ação contra a prefeitura. Até agora sem solução, é claro.

Marcos e Elida não tinham problemas familiares. Sem filhos, sem irmãos e sem pais. Estes eram lembranças agradáveis. Falavam deles com orgulho, sem lágrimas e com saudade sadia. Sobre filhos, pensariam depois e em casamento, quem sabe ?

“Estava linda Inês posta em sossego...” Nada disso, quem descansava era Élida, ao som de Frank Sinatra. E quando Marcos ouviu a frase “ I´m so afraid that you may vanish in the air” correu para assegurar-se de que a amada ainda permanecia ali. E ali estava ela, em êxtase. Beijou-lhe os braços, a face, os cabelos e agradeceu à vida por sua presença. Élida não era um sonho, mas o real desejado.

Naquele momento, após essa constatação, Marcos sentiu um aperto no peito. Élida velha, desbotada e louca, dançando nua na praia, os seios murchos, cabelos opacos. O baton além dos lábios e a pele crespa nas mãos. Élida muda, torta e morta na cama. Élida iniciara um pesadelo alimentando a morbidez de Marcos.

A coragem e o otimismo , que caracterizavam aquele homem, começaram a declinar.   Os momentos de autoflagelação mental se apresentavam , cada vez mais, com maior freqüência, para desespero da mulher, que passara a conhecer a insegurança. O que estaria acontecendo com ele?
– Por favor, fala Marcos, o que é que está te afligindo? - Nada querida, talvez sejam os problemas da empresa, mas deixa pra lá...

Élida teve que amputar uma perna, depois daquele acidente com o carro, que derrapou nas tonturas habitantes do cérebro de Marcos. E ele chorou de alegria quando a viu inteira, pouco bonita, mas belíssima a andar pela varanda , cuidando das plantas. Falando carinhosa com os crisântemos e as margaridas.

Houve uma trégua durante os campeonatos esportivos. Marcos afastava as imagens de Élida torta e nua na cama e na praia, sem perna e morta, no gol da vitória. E ela o acompanhava nos delírios do sucesso e nos inconformismos das derrotas.

A gravidez foi inesperada. Festejaram durante vários dias e Marcos resgatou a amada das sombras em que a colocara. Élida não morta, nem nua, mas plantando rastros. Ela e ele não mais os últimos, mas o começo. Seus filhos seriam reis, presidentes, ministros, ou melhor que isso, benfeitores, revolucionários do bem.

O aborto espontâneo, logicamente, também foi inesperado. Choraram por vários dias. Para Marcos, parecia o fim da estrada sem rastro que a seguisse. Por que estaria sendo castigado, qual a culpa ? Não lembrava nada de mal que houvesse praticado. Pelo menos, voluntariamente. Aquele passarinho?   Era criança e lembrava de ter ficado muito triste, quando o bichinho morreu apertado em sua mão. Fora um gesto mecânico, uma epilepsia momentânea.

Para Élida, as causas eram físicas, nada que a fizesse desistir de continuar a viver e esperar por novos momentos felizes. Voltaria ao trabalho e ao amor de seu companheiro, A ferida , com o tempo, iria cicatrizar. O difícil estava sendo trazer de volta o entusiasmo ao seu amante.

Começaram os desentendimentos. Marcos não revelava que estava, na maior parte do tempo, vivendo em um futuro tenebroso. Não queria chocar a mulher que amava. E , por isso, os diálogos pareciam chamadas de longa distância. Respostas insatisfatórias a perguntas contundentes pareciam o melhor remédio. E assim se passaram alguns meses.

Élida não suportou, e sufocando a dor que sentia e ignorando a que, talvez causasse, partiu. Pediu a Marcos que não a procurasse. Marcos compreendeu, chorou e, pela janela, acompanhou a despedida de um sonho e o despertar de um pesadelo.   Foram lágrimas de dor e de alívio.


Uma estranha compulsão levou Marcos ao baú. Sentiu pena por não tê-lo aberto na presença de Élida. Seria agradável comentar, com ela, aquelas lembranças ou as descobertas Tinha certeza de que nenhum segredo ou culpa estariam, ali, guardados. E, realmente, nele nada havia que não pudesse ser declarado.

Da mãe, diversos manuscritos com receitas culinárias, alguns romances com folhas apertando pétalas mumificadas de rosas e livros didáticos : Ludus Tertius, 200 Verbos Franceses , Geografia, História e um álbum dos seus quinze anos. Nele estavam registrados votos de felicidade, pequenas poesias, acrósticos, palavras inteligentes e outras nem tanto. O engraçado foi encontrar aquele livro de expressões idiomáticas com a inscrição : “this book beloved to Jussara”. Riu do tropeço no Inglês daquela desconhecida. Não teria sido, certamente, uma boa aluna, mas a “beloved” de um bom sujeito.

Do pai, a coisa ficou mais complicada. Havia muitos rascunhos de poesias inacabadas. Folhas com transcrições de frases de autores conhecidos e outras anônimas, que deviam ser fruto de suas próprias sensações. Um livro de bolso com obras de Manuel Bandeira, autografado pelo mesmo.e uma rolha de garrafa de champanhe. Dela pendia, preso por um barbante, um cartão cheio de assinaturas, contendo no verso : “ primeiro brinde ao meu filho Marcos.” E, junto, a diversos programas de cinema ,que davam informações sobre os filmes em cartaz e os próximos , havia uma comovente carta de despedida. Um dos amigos do pai a escrevera quando o velho, jovem naquela época, partiu para outra cidade.

Ao ler as últimas frases da mensagem, e a que o pai acrescentara, percebeu que dele herdara os medos do amanhã , uma insegurança própria de quem não sabe a que veio ou desconhece para onde vai. Aquele não era o pai que conhecera. O seu, era um homem manso, sem amarguras ou tristezas sem causas. Era o amparo, a inteligência, o conselho carinhoso e a certeza. E assim permaneceria em sua lembrança, a despeito de qualquer outra nova constatação.

.Com o passar do tempo, nasceram novos sentimentos. Marcos estava curado, após a morte de Elida, vítima de uma bala perdida. Tinha relacionamentos amorosos curtos e sem comprometimento. Voltou a praticar esportes e desistiu de ter filhos. Teve até a sorte de ser promovido a um cargo mais elevado na empresa, o que   permitia   uma série de extravagâncias e a esperança de uma aposentadoria digna.

Élida, embora morta, casou-se com o dono de uma rede de restaurantes no nordeste.. Estava feliz com seu marido e três filhos. Marcos era apenas uma lembrança que, esporadicamente, visitava seu pensamento. Há muito desistira de entender o que havia acontecido. Nada indicava que ele estivesse apaixonado por outra mulher.   Mas, também, nada que a certificasse de seu amor. Por várias vezes chegou a pensar que Marcos estava à beira da loucura Uma loucura branda, na verdade, pois nunca se mostrava grosseiro. Não a agredia, ao contrário, parecia que a estava defendendo de doenças ou assassinos imaginários.

A tarde, que lembrava, era a daquela música tatuada em sua alma.. A beleza da voz de Frank. O lirismo da letra e o inesperado das lágrimas de Marcos. O enlevo daquele momento parecia ter sido o início de um drama. E Élida não era o tipo de mulher que soluçava por tragédias mexicanas. Por isso foi embora e escreveu, como epílogo em seu diário, com a serenidade que a caracterizava: “ Adeus meu amado, não carrego em minha bagagem o peso das mágoas, mas as marcas queridas que deixaste em todos os meus sentidos.” Piegas, mas era o que realmente sentia.

Lá vai Marcos, carregando um ramo de cravinas na mão direita. E na esquerda do cérebro, as pulsações das frases do pai , lamentando a perda do passado e prevendo abismos, em cada esquina do futuro.

Como faz todos os meses, deposita aquelas flores no túmulo vazio, que mandou erigir para sua amada. Espalha-as sobre o granito escuro, junto às letras douradas que, sem datas e sem nomes, declaram apenas:
- Aqui jaz um sonho.


Biografia:
Nasci em Itaqui, no Rio Grande do Sul e resido no Rio de Janeiro desde o final de 1958. Nunca publiquei nada do que escrevo, por que sempre o fiz para consumo próprio e, principalmente, por falta de talento. Agora, acho que perdi a vergonha. Gostaria imensamente de receber as críticas dos meus eventuais leitores peoo e.mail anibalbonorino@superig.com.br.
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