Eu estava tendo estranhos e horripilantes sonhos já havia alguns dias, algumas semanas, na verdade. Não eram simples pesadelos. Neles eu era um verdadeiro demônio, sedento por poder e morte, destruindo a todos os que se opunham a mim, obstruindo meus objetivos. Fiquei assustado, nunca fui um homem violento ou dado a acessos de explosão. Talvez por isso, os pesadelos fossem uma forma de meu subconsciente extravasar o dia a dia atribulado de minha vida. Atribulações essas que, eu acreditava na época, serem mais assustadoras do que os sonhos, e fizeram-me esquecê-los, jogando-os num canto afastado em minha memória. Afinal eram apenas sonhos, assunto devidamente explicado pela ciência, com algumas implicações psicológicas, mas só. Nada alem disso.
O estranho e assustador era que, apesar de minha casca externa de calma e tranqüilidade, eu passei a gostar daqueles sonhos aonde eu era meu próprio senhor, sem regras ou leis, aonde eu celebrava o poder. Tornaram-se mais freqüentes. Realmente me serviam como uma válvula de escape do cotidiano sem graça e dificultoso. Entenda, ali não existia moralidade ou imoralidade, era tudo uma coisa só. Conseguia o que queria sem me importar com nada ou ninguém.
Em um dos sonhos, livrei-me de minha mulher, cortando-lhe os pulsos e amarrando-a de cabeça pra baixo, pendurada pelos pés no centro de uma ampla sala iluminada por velas negras. No centro, minha mulher vertia sangue em pequenos riachos que corriam para um tacho de metal, por onde continuava seu curso através de quatro canaletas que corriam para base de quatro grandes ídolos de pedra negro-esverdeada, todos diferentes entre si, mas todos horríveis e indescritíveis, só podendo ser fruto de pesadelos de uma mente aprisionada pelo cotidiano.Fiquei observando sua morte lenta e dolorosa até o final, até a última centelha de vida.Assim que ela cerrou os olhos, acordei suado e assustado. Olhei ao lado, ela estava lá, respirando. Com uma mistura de alivio e desapontamento, voltei a dormir.
Nos dias seguintes, fiquei pensando no sonho com minha mulher. Era fato que há muito tempo já não a amava. Pelo contrário, do amor inicial e dos tempos de namoro, passei à raiva contida e ao desprezo como forma de demonstrar isso. Suas maneiras servis e submissas contrariavam-me, além de sua pouca imaginação e frágil vontade, mostravam-me o quanto pode o animal humano ser medíocre.
Em outro pesadelo, ou melhor, sonho, pois estavam se tornando ate agradáveis, eu estava no bar de costume de minhas noites, conversando e bebendo com amigos na parte externa do bar, quando um carro da polícia civil parou bruscamente à nossa frente. Os policiais saíram do carro e, com as armas em punho, nos mandou encostar na parede . O líder dos policiais tinha um sorriso e olhar sádico, sarcástico e até diabólico, talvez. Humilharam-nos por quase meia hora fazendo-nos tirar as calças, ali no meio da rua. Pegaram nosso dinheiro e nos bateram bastante, até que um de nossos amigos caiu desmaiado. No auge de minha raiva e vergonha, uma dolorosa transformação começou em mim. Meus músculos triplicaram de tamanho, quase que estourando minha carne. Pêlos surgiram, deixando meu corpo com uma densa e negra pelagem. Senti meus olhos incharem, a ponto de quererem saltar de suas órbitas. Ao meu lado, Jaime, o que havia caído, sofria uma transformação também. Como em um espelho, pude ver no que havia me tornado, um monstro com mais de dois metros de altura, densamente peludo, apesar de algumas áreas do corpo não possuírem pêlo algum, com aparência pestilenta, com uma cara que não lembrava nenhum mamífero conhecido, com um focinho deformado e três arcos de dentes como os de tubarões, uma perfeita más- cara de ódio primitivo. Então acordei, suado e exaltado, mas de certa forma, satisfeito, bem comigo mesmo.
Cada vez mais freqüentes eram os sonhos. De uma ou duas vezes por semana, em média, passaram a ocorrer quase todas as noites. A cada sonho, as atrocidades que eu cometia cresciam em número e crueldade, sendo que aquele sonho com os policiais tinha sido o único no qual me transformei na fera infernal. Na maioria das vezes era eu mesmo, com toda a frieza que não sou capaz quando estou desperto.
Por essa época, passei a sentir atrozes dores de cabeça logo ao acordar. A principio não fiz nenhuma ligação com os sonhos, mas eu estava errado, como pude verificar da pior forma possível depois. Acordava e tomava três ou cinco comprimidos, mas não adiantava. Procurei um médico, que me encaminhou para uma tomografia e outros exames. Concluídos os exames, o médico me disse que eu tinha uma espécie de tumor benigno no cérebro, mas de um tipo que ele nunca havia visto. Pediu-me novos exames, que prontamente fiz. Enquanto não saiam os novos resultados, as noites passavam e os sonhos continuavam. Alguns remédios que o neurologista receitou ajudaram um pouco, mas não amenizaram totalmente as dores de cabeça . Ainda não fazia ligação entre os sonhos e o tumor.
Certa noite, todos os sonhos que tive desde que tudo começou fundiram-se em um só, tecendo um cenário de horror e morte amaldiçoada, uma orgia de sangue, carne e vísceras. Havia um detalhe especial: nele, a morte de minha mulher ocorreu como antes, mas com detalhes de sadismo adicionais, dos quais prefiro poupar a mente presumivelmente sã do estimado leitor. Após o assassinato ritual, fui tranquilamente ao bar conversar e beber com meus amigos, como em outro dos sonhos. Tudo se repetia. Eu e Jaime matamos os policiais, que agiram como da outra vez, mas dessa vez não ocorreu a metamorfose. Colocamos seus corpos no carro, enquanto nossos amigos fugiam, levamos até um lago e o afundamos.
Acordei. Mas não estava em minha cama. Estava num matagal, com os cabelos desgrenhados e a roupa empapada de sangue. Sem saber o que pensar, vi Jaime a poucos metros de mim, também acordando no mesmo estado. Estupefatos, nos olhamos e começamos a nos indagar o que havia acontecido. Relatei-lhe o sonho, percebendo mesmo sem Jaime falar nada, só por sua expressão facial, que o mesmo sonho havia ocorrido para os dois. Desesperados, começamos a correr.
Paramos só quando chegamos na cidade mais próxima. Um carro de polícia nos parou. Ao verem nosso estado e todo aquele sangue, nos algemaram e nos levaram para a delegacia. Sem saber o que dizer, fiquei todo o interrogatório calado, assim como meu companheiro de desespero. Com alguns telefonemas, descobriram que uma viatura e quatro policiais haviam desaparecido. Ao fim do dia, após uma busca na região, descobriram os corpos dos policiais na viatura semi-afundada. Ligaram as mortes a nós, mas como estávamos visivelmente perturbados, beirando a insanidade, nos mandaram para um Hospital Psiquiátrico na Capital. Após descobrirem nossas identidades e endereços, encontraram o corpo de minha esposa em meu apartamento, com os pulsos cortados, amarrada pelos pés, sem sangue no corpo e uma bacia com o sangue enegrecido e duro. O corpo já estava em adiantado estado de decomposição, com moscas e vermes fazendo seu banquete funerário. Sobre as costas de Jaime pesavam “apenas” as acusações do assassinato dos policiais.
Após o julgamento, fomos considerados criminalmente insanos e confinados nesse inferno branco desse Hospital. Desde então estou aqui nessa casa de loucos, esperando, sabendo que um dia as mesmas forças sinistras que me guiaram naqueles estranhos dias me libertarão. Agora sei de seus planos para mim, pois agora Eles falam comigo.
E o melhor de tudo é que as dores de cabeça nunca mais voltaram.
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