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  Texto selecionado
Iulana
Capítulo - tourada.
Pablo de Carvalho

Resumo:
Romance surreal.
À venda em: www.edufal.com.br

VIII
O CORAÇÃO DE MARFIM

Falemos agora, como prometido, da Praça do Touro Albino. Ela foi construída sobre os cacos de uma enorme arena, constante da planta inicial de Gricolá, dentro da qual aconteciam bailes de gala, competições esportivas e, principalmente, touradas agitadíssimas.
Os Caçadores Oficiais capturavam touros albinos em longas excursões pelas planícies em torno, trazendo-os apertados em charretes, cuja chegada era amplamente festejada, abaixo de jornal picado, serpentinas de papel higiênico e pétalas de maria-sem-vergonha. Os touros albinos tinham cornos de marfim arqueados e pontiagudos, também alvos, e seus corpos eram rígidos e harmônicos em músculos protuberantes. Essas características certamente influenciaram na sua escolha como espécie exclusiva das touradas, para sorte das demais; mas não eram o principal motivo: sua brancura sim, pois fazia mais dramático o sangue vertido no corpo do animal - o sangue do touro ou o do toureiro.
Antes das touradas eram distribuídas fichas entre os toureiros, contendo cada uma o número do touro respectivo. Os heróis então se dirigiam às baias e açoitavam demoradamente os indefesos ruminantes, visando a lhes despertar o ódio selvagem. Esfolavam e queimavam seus lombos com chicotadas, e sopravam pimenta forte em seus olhos. Depois de um tempo o touro vibraria contra as estacas, bufando, olhando detidamente nos olhos de seu carrasco e lhe dedicando uma lágrima ou duas - se duas, melhor. Estaria pronto para a ação. Três ou quatro touros combatiam por espetáculo, e fatalmente, salvo exceções, o toureiro lhes sobrevivia.     
O dia da famosa Última Tourada, atualmente feriado municipal, foi um agradável sábado de abril à tarde. A arena estava até a borda de espectadores. Todos muito excitados; murmuravam, sorriam e ovacionavam freneticamente. Nos bastidores, três toureiros aguardavam receber o número de seu desafeto. Estavam visivelmente tensos. Um homem austero aproximou-se, distribuiu os envelopes e desejou boas-sortes a todos. Agradeceram, abriram os lacres, leram os números longamente, benzeram-se e partiram para as baias. Na terceira baia estava o touro de Balbino. Era um exemplar fantástico, de envergadura colossal e escuros olhos tristes. Balbino encostou-se nas grades (tinha por hábito conversar com suas vítimas antes dos primeiros açoites) e cochichou: “Rapaz, olhe para mim. Meu nome é Balbino; eu vou lhe matar, ouviu? Não adianta seu tamanho e nem me venha com artimanhas! Eu vou lhe matar, lentamente, secando seu corpo de sangue, mas não sem antes lhe fazer de besta. Sou superior a você; eu sou um homem!” A chibata apontou ao céu e desceu miando até o couro nu, queimando-o, fazendo suas carnes estremecerem, agitarem as barras num susto doloroso. Balbino voltou a levantar a chibata, ensaiou o segundo golpe e!... súbito se deteve: quis fixar os olhos do ruminante uma vez mais, tentar ler a impressão causada à fera pela primeira chibatada. O touro estava com o focinho próximo ao chão - escondera a cabeça numa típica atitude de medo. Balbino inclinou-se lentamente, achando os olhos negros e agudos a uns três palmos apenas de altura, iluminados de pavor. Encararam-se homem e bicho; Balbino sorriu. Mas logo percebeu algo estranho: o olhar do animal mudava, parecia ter afastado o medo; estava agora sereno, plácido, refletindo ao toureiro uma expressão mista de dó e desdém.
Balbino ergueu-se bruscamente, fervendo e espumando. Tremeu-se um segundo e se lançou contra o colosso a chibatadas sonoras, atirando mãos e mais mãos de pimenta naquelas grandes órbitas negras. Pelejava, ofegava, persistia mas não conseguia colher uma lágrima sequer, o que injetou ainda mais raiva em suas veias. “Ah, então não vai chorar não é?! Receba!” A chibata vazava os ares em leque; mergulhava nos músculos, assobiava, louca. Balbino gania, socava pimenta na cara do bicho, batia, batia, transpirava, perdia o ar, votava a bater, a golpes cadenciados, ora lentos e fortes, ora seguidos rápidos e menos fortes, até que a chibata arrebentasse ao meio, trazendo-o de volta a si ) ) ) ) ) Deu três passos para trás, fatigado, assustado, o olhar agudo, respirando profundamente. Apontou ao touro e, olhos duros saboreando uma vingança de antemão, disse: “Até breve...” E foi se preparar para o espetáculo. O touro permaneceu imóvel, embora seus pêlos fumegassem. Quando Balbino saiu ele ainda sentiu uma vertigem, estremeceu sobre os cascos e ensaiou desmaiar, mas chacoalhou a cabeçorra e reergueu-se.
Os dois primeiros touros foram massacrados a golpes inclementes, depois de várias chifradas vazias nas mantas zombeteiras dos hábeis doutrinadores. Tambores anunciaram a vez de Balbino, que entrou solenemente, parou no meio da arena e prestou extensa reverência à platéia, principalmente aos camarotes nobres, sendo amplamente aplaudido, enquanto girassóis caídos se debruçavam ao seu redor. Um novo rufar de tambores fez abrir a porteira, de onde saiu o touro. Vendo a enormidade do animal, a platéia tremeu num murmúrio abafado. Balbino aproximou-se perigosamente, alteou-se, estendeu sua manta, acendeu seus reflexos e aguardou. O touro lançou o olhar ao redor, estranhando aquilo tudo, sapateando, tentando andar, encontrar um norte, mas amarrado à indecisão, à euforia, à plena incompreensão, girando tão-só sobre o próprio eixo. Balbino chegou mais perto e agitou a manta vermelha nas ventas do brutamontes, que não se eriçou; ao contrário, esquivou-se a passos tímidos. A platéia, atônita, se exclamou. Balbino corou, inchou as jugulares, fervendo de raiva. Mais uma vez atiçou com a manta os olhos do touro, e nada. Da platéia escapou uma gargalhada, respondida por outra, algumas e logo várias. Em poucos segundos toda a arena caçoava de Balbino e sua intenção patética. Furioso, o guerreiro mal-sucedido requereu antecipadamente a espada. Vendo o metal frio a brilhar nos punhos de Balbino, a platéia calou num sentimento que a fazia temer pela própria pele, afora um e outro grito de protesto que estouraram lá e acolá, em defesa do bicho pacato. Indiferente a tudo, Balbino adiantou-se e lhe riscou o flanco, armando-se depois em posição defensiva. O touro espantou-se, recuou ainda mais e, trêmulo, ajoelhou-se sobre as patas dianteiras, erguendo ao toureiro um olhar infantil. Filetes de sangue lhe escorreram serenamente sobre os pelos brancos e caíram no chão, transformados em pétalas vermelhas. A platéia alardeou. Balbino não cria no que se passava. Voltou a sangrar a fera e a armar-se, agora num corte mais fundo. O touro contraiu os músculos, engoliu a dor e permaneceu humildemente genuflexo. No talho beiçudo entre as carnes se formou uma poça de sangue que, coisa estranha, coagulou-se instantaneamente em pequeninos buquês de rosas. A platéia, comovida, começou a clamar em favor do touro. Balbino rangeu dentes, lançou a manta fora e atirou-se às carnes do animal. Decepou-lhe a orelha, vazou-lhe o pescoço, perfurou-lhe as vísceras, cindiu-lhe os músculos. O sangue jorrava em cascatas de rosas, salpicando pétalas, vomitando buquês caudalosos às alturas, como grandes nuvens vermelhas. Uma neblina perfumada se expandiu por toda a arena. Os espectadores se prostravam em joelhos e rogavam por misericórdia, misericórdia, misericórdia! Mas Balbino entrara em transe. Golpeou o touro doidamente até que só restasse uma carcaça de flores em tono de si. Não tendo mais o que contundir, cravou a espada nas carnes do chão, abriu os braços em cruz e gritou sua alma, sua alma nua, sua alma exasperada. Levou as mãos ao rosto e colheu lágrimas grossas. Soluçou, tossiu, golfou saliva, calou-se... Seu coração se dilatava, batia como se quisesse arrebentar da gaiola. Derramou os olhos pelas flores em torno, regando-as de uma expressão misteriosa. Como tomado por uma visão transcendente, sacou a espada da terra, correu aos muros da arena e desembestou a golpeá-los. A platéia se exaltou, agitando as mãos para o alto. Balbino arrancou o primeiro tijolo e o levantou como um troféu. Aproximou-se das arquibancadas e o atirou contra elas, espaçando a multidão. Estava inaugurado o quebra-quebra. O povo começou então a arrancar tijolos e a atirá-los longe. Munidas de paus, pedras, mãos, barras de ferro e o que mais servisse, as pessoas atacavam a arena como a um gigante, triunfado sobre os escombros purificados. Em três horas ou menos a construção ruía quase que por completo, e havia dança e alta bebedeira, e focos de orgia...
Em lugar do estádio fez-se uma praça, no centro da qual ergueu-se, em bronze, sobre um enorme pedestal, uma estátua de cinco metros do touro albino ajoelhado, as carnes abertas em rosas.


Este texto é administrado por: Pablo de Carvalho (pablo.de.carvalho@hotmail.com)
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Romance Iulana Pablo de Carvalho


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