“O que Deus uniu, o homem não separa!”... Se realmente fosse assim, todos os matrimônios realizados formalmente conforme a risca e tradições sociais não se desfariam depois de tempos, se realmente ouvissem as palavras de Deus bem antes do sim, e não na sua exata hora, seria diferente... No entanto parece que alguns casais involuntariamente ainda temem a divindade e por mais que não esteja dando certo o convívio, perduram na infelicidade para manter a palavra do criador.
Marco Antônio e Isabelle eram um desses casais. Três anos após o casamento já vivam em brigas e descasos por tudo, mas ainda sabiam sorrir, saiam para jantar em restaurantes exóticos, vez por outra um motel era bem vindo nas linhas de sua existência e libido, porém praticando todas estas coisas, fazendo todos estes programas, nestes lugares também discutiam e fechavam a cara, o comum acordo era de que precisavam se mudar de residência, porque queriam mudar de vida, amavam-se, e algo, fagulhas inexplicáveis estavam deixando o relacionamento conturbado. Venderam sua casa e compraram um apartamento em uma área mais nobre, não tinham filhos, não precisavam de outras opiniões se não as suas.
Habitariam daquela data em diante numa ampla residência mobiliada de bom gosto. Eles brigaram para fazer a mudança, brigaram para escolher o local da morada, a toda parte palavras bramiam de insucesso um contra o outro. Na casa nova talvez o novo reformasse as mentes.
A mobília era tão linda, e Isabelle, desde que acertaram a compra estava a sorrisos além do normal, Marco Antônio não percebia, mas ela se sentia muito mais feliz, o motivo? O homem que lhe vendera o apartamento era um coroa bonito, elegante, charmoso, irresistível, tinham trocado olhares loucos de lascívia, esperava o encontrar novamente e matar sua vontade.
Havia já um grande conjunto de armários na cozinha, Isabelle foi para abrir as gavetas, mas estavam todas trancadas, e não achou as chaves em lugar algum, apenas uma estava aberta, ali ela guardou os talheres, relatou ao marido o fato, este telefonou para o homem, e quase como num conto de fadas, numa história perfeita, ele saiu após o telefonema, relatando que chegaria tarde, minutos após a saída de Marco Antônio, Júlio César, o vendedor do imóvel chegou e sem muitas prévias o desejo os uniu, e ela esqueceu de pedir as chaves, e seu marido nem se importou pela “falta de memória” da esposa, e assim o homem voltou várias e várias noites... marco Antônio ficou desconfiado, pois ela estava mais carinhosa, super de bem com a vida, e o mau humor, as discussões e discórdias já eram longe passado:- O que está acontecendo Isabelle?
Você mudou muito depois que nos mudamos para cá.
- Bem, pensei que este fosse o objetivo da nossa mudança. Está tudo dando certo, e eu estou feliz.
- Não existe outro entre nós, existe?
- Não fale tolices, mas se você quiser podemos voltar para a outra casa, sermos infelizes, e ter todas as gavetas da cozinha de volta.
Júlio e Isa, viraram amantes assíduos, quase todas as noites Marco saia e voltava tarde, noites então feitas de amor por Isa e Júlio, onde a felicidade nascia de um carinho mútuo, de afagos sinceros e ardentes. Meses correram em suas relações e o que era diversão, afazeres anti-rotina, virou amor. Apaixonaram-se como adolescentes em sua primeira transa. Queriam amar-se sem medidas, a casa nova e as gavetas sem chaves realmente lhes trouxera felicidade... Ao menos para ela.
Não tinha coragem de falar para o marido, pois sabia que Marco a amava, e não queria ferir seus sentimentos, mesmo assim o aviso era inevitável para sua total liberdade, precisava avisar sem sair da sua boca, passou-lhe um raio de luz na mente, a idéia perfeita (louca mas perfeita) estava constituída: Escreveria um bilhete explicando tudo ao marido, não riria embora de casa, mas quem contaria a verdade seria o bilhete... E o deixaria na cozinha, no lugar que com certeza iria achar, a gaveta de talheres. O realizou então tendo plena certeza, pois além daquela gaveta nenhuma mais estava aberta, todas trancadas porque ele não havia trago a chave ainda (quanta mentira) e todos os utensílios estavam espalhados pelos balcões, só os talheres estavam guardados.
Semanas passaram-se e ela quase não mais via o marido, ele saia cedo, almoçava rápido, e voltava quando já estava dormindo, se comunicavam então por bilhetes, pois ela não tinha coragem de telefonar, ele nenhuma vontade. Os bilhetes eram deixados na gaveta de talheres, entre facas e colheres de todos os tamanhos, tudo já meio desarrumado, pois havia de ambos a eterna expectativa de encontrar algo em meio aos objetos culinários e mortais. E todos os dias supriam esta carícia, a brincadeira, o jogo de trapaça e mentiras. Os encontros com o amante continuavam, mas esperava o dia em que o marido pudesse ficar cara a cara com ela, e ele pedir a separação, mas não, nem nos fins de semana ele parava mais, e ela não sabia o motivo, nem queria, estava bom como estava.
Os recados foram ficando cada vez mais maléficos, estranhos, ele prometia se matar porque não aceitava aquela injustiça dela amar a outro, todo o dia consumia-se numa folha de papel grafada a caneta de luxo depositada numa única gaveta aberta entre tantas trancadas. Ela sentiu medo do recado realizar-se. Escrevia ele na madrugada, no trabalho, ela durante o dia, em casa solitária, ou em companhia do amante, vibravam a cada ponto final, regozijavam pelas dobras perfeitas, e o deslizar neutro da gaveta... Ela sabia de tantas coisas, sorte da gaveta de ser muda e não pensar, apenas parte de um móvel, matéria morta e não falar nada, porque tinha tantas histórias pra contar...
Os recados de promessa de suicídio se repetiam constantemente, porém os bilhetes continuavam e a noite vez por outra acordava na madrugada e sentia um corpo, que não era de Júlio, ao lado do seu, uma respiração sossegada e roncos, provas de sua plena vivacidade.
Isabelle em fim de tarde nublada fazia compras com o amante, já estavam explícitos, e queria mudar aquela situação dela e do marido, parou numa livraria, e escreveu um bilhete, ignorando Júlio disse que amava ainda Marco, e o queria como um irmão. Júlio aquiesceu, e apressados para criar novos sentimentos e situações colocaram-se no apartamento, a porta estava aberta, ele estava em casa... Estava em casa, estava morto!
No chão da cozinha padecia o corpo inerte ao chão, de pescoço lavado num coágulo e faca, de serra simples, para cortar alimentos, suja presa a mão. Todos os talheres espalhados, a gaveta ao lado do cadáver... Nenhum bilhete. Ela quedou num passo de ré, ele a segurou, sem gemidos, mas com a mão na boca, umedecendo a palma com a tensa respiração.
Tremendo, sem lágrimas e olhares fixos no acontecido juntou todos os talheres, colocou na gaveta, a pôs no seu lugar na estante, o bilhete adormecido sobre o peito defunto, ele catou de algum bolso o gordo molho de chaves, trancou a gaveta de talheres, encostaram a porta, estava tudo findado, e não havia mais nada, era nova vida a iniciar. Nova casa, novos cultivos, novas estantes de cozinha... Sem gavetas trancadas, bilhetes, ou muitos talheres.
Douglas Tedesco 10/2007
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