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1
Uma luz no quarto escuro
Um quarto pequeno e escuro. Uma cama. Um pequeno guarda-roupa velho. Sem brinquedos. Sem cor. Sem nada.
Uma janela fechada. É noite. Escuridão total exceto por um pequeno brilho cintilante mexendo-se pelo vazio do quarto. O brilho movimenta-se como uma lâmpada presa a um fio em meio a um dia ventoso.
Aproximemos a câmera da cena. (Suponhamos que haja uma câmera.) Veremos então que não se trata de uma lâmpada, mas de uma pequena moça bonita, loira, com asas de inseto nas costas. Apesar de bonita (quase angelical) e delicada, sua expressão facial é severa.
A pequena criatura gesticula, bate o pezinho no ar. E grita. Sua vozinha fina e feita para ser suave e melodiosa é áspera e rascante.
_ Como você pôde fazer isso, Diego? Como pôde? _ repete a fada. Como você pôde me decepcionar tanto? Você é um menino muito mau e merece ser punido!
Como interlocutor, há, sentado na cama, coberto com o lençol até o nariz, deixando apenas os olhos arregalados descobertos, um menino, do qual neste momento vemos muito pouco.
O menino mantém os olhos abertos fixos na figura à sua frente, nem pisca. Imagino que seja por medo de fechá-los. Ou porque já tenha tentado fechar e abrir várias vezes para ver se aquele ser desaparecia, sem nenhum sucesso. Sabe-se lá há quanto tempo aquele ser atormenta a vida desse menino? Não é possível saber.
Tudo o que sei é que ver uma fada deveria ser o sonho de toda criança. No caso de Diego, aparentemente, o sonho tornou-se pesadelo.
_ Vamos, responda! Como você pôde?! – grita a fada. Faz um pequeno silêncio e continua. Você não tem resposta, não é mesmo? Não há uma explicação para ter me desobedecido!
_ É que... – sussurra o garotinho trêmulo.
_ Não me venha com essas desculpinhas esfarrapadas, senhor Diego! _ grita mais alto a fada.
Por que pergunta insistentemente se não quer respostas? O que Diego fez de tão errado, você pode se perguntar. Ainda não sei, mas vamos tentar descobrir.
O bom de personagens tagarelas é que elas contam para a gente o que não conseguimos narrar. Ouçamos.
_ Vejamos: entrar no Reino Encantado por uma passagem que existe bem no seu quarto? Fácil! Atravessar o Pântano Lamacento? Simples! Cruzar a vila dos trolls? Barbadinha! Reino Alado? Mamão com açúcar! Atravessar o Portal das Decisões? Tranqüilo! Enfrentar o dragão e me trazer a chave? Não estou te pedindo nada impossível! Mas você vai lá e fracassa logo no primeiro obstáculo?! Você é deplorável! João e Maria, Joãozinho, Chapeuzinho Vermelho, Pequeno Polegar... Até o Pinóquio!... estão rindo de você agora!
Não sabemos para que a fada queria tal chave, mas, como você vê, já temos uma história.
_ É muito di-difícil! _ gaguejou o menino num sussurro.
_ Difícil porque você é um vermezinho incompetente! Aprenda de uma vez a regra máxima do Mundo Encantado: se você acreditar que existe, existirá! Você não tem coragem suficiente para enfrentar os perigos. Com coragem, você conseguirá tudo. Mas você é um serzinho medroso que fica aí escondido debaixo desse lençol com essa cara de camundongo assustado! Nunca vai vencer perigo algum!
A fada voou no ar de um lado para outro por alguns instantes como se pensasse depois disparou:
_ Bem, eu não posso entrar lá, como você sabe, ou eu já teria resolvido tudo sozinha! Mas posso te dar uma ajuda.
A moça diminuta sacudiu sua varinha e apareceram no ar cinco pontos brilhantes, que foram crescendo até se transformarem sem cinco esferas luminosas. As esferas ficaram pairando no ar por alguns instantes até que voaram em conjunto para dentro da mochila do menino, que estava no chão do quarto.
_ Pronto. Amanhã te passarei mais instruções. Vai amanhecer daqui a pouco. E a luz do dia deixa tudo muito claro. Péssimo para seres mágicos! Mas nem pense em fugir ou tentar me enganar de novo. Você aprendeu na própria pele o que acontece. E desapareceu num raio de luz.
O quarto voltou então a ser completamente escuro. E Diego começou a chorar. Primeiro lágrimas silenciosas foram caindo de seus olhos. Depois aquilo foi aumentando até se tornar desespero, então aquele pavor encarcerado encontrou liberdade e Diego começou a chorar com toda a sua vontade. Não chorar de gritar, pois isso acordaria seus pais, mas de deixar todos seus sentimentos ruins saírem por seus olhos de menino. Menino assustado que agora se permitia mostrar seu medo.
Dizem que uma luz em um lugar escuro é uma saída, uma esperança. No seu caso, o breu total era muito mais reconfortante. Diego não temia a escuridão. Temia a claridade. Ficar ali no escuro silencioso e acalentador era o melhor que poderia acontecer a ele.
E o menino chorou tanto até que adormeceu.
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2
Vida banal
Diego foi acordado pelo relógio tocando. Desligou-o, virou para o canto e dormiu novamente. Acordou pela segunda vez com sua mãe o chamando.
_ Vamos lá, menino! Agora deu de não acordar com o relógio!
Diego levanta da cama forçosamente, pega a toalha para tomar banho e o uniforme da escola.
_ Olha essa cara de sono, essas olheiras! Fica acordado fazendo sei lá o que a maior parte da noite. Pensa que eu não vejo a luz ligada de noite quando me levanto para ir ao banheiro? Depois fica assim.
Diego caminha pesarosamente em direção ao banheiro. A mãe vai atrás.
_ Na próxima noite, eu vou lá no seu quarto ver o que você fica fazendo. Boa coisa é que não deve ser.
Diego entra no banheiro, tira o pijama e liga o chuveiro. Ele bem que adoraria que sua mãe fosse no quarto à noite e espantasse aquele monstro luminoso que o atormenta. Mas sabe que ela não fará isso. Já perdeu as esperanças.
Saindo do banho, senta à mesa e toma o café rapidamente. Uma xícara de café sem pão.
_ E agora deu de não comer também. Daqui a pouco está anêmico. Está querendo o que não comendo desse jeito, menino? Assim vai atrapalhar seu crescimento! Vai ficar anãozinho!
Ele bebe o café e sai de casa cabisbaixo. Como ter fome? Como ter ânimo para alguma coisa com aquilo lhe atormentando as noites?
Diego sabe que fadas não existem.Com doze anos, já não está mais na idade de acreditar em fadas há muito tempo. Às vezes tem certeza de que ficou louco. Mas a questão é que ele continua vendo aquele monstro noite após noite há várias semanas. Durante o dia ela some completamente. À noite, não importa o que ele faça, pra onde vá, ela o encontra e o atormenta.
E Diego não tem o que fazer. Enfrentá-la? Falta-lhe coragem. Não sabe do que ela seria capaz se ele se insurgisse contra ela. Contar para alguém? Para todos lhe dizerem o que ele próprio já sabe? Que ele ficou louco? Não era a melhor solução. O jeito era tentar fazer novamente o que ela estava lhe mandando... ou morrer tentando. Da próxima vez em que entrasse naquele mundo tenebroso, ele não iria voltar. Não importava o que acontecesse... a não ser que – totalmente impossível – ele conseguisse realizar seu intento.
Diego caminha até a parada de ônibus e espera. Passa o escolar em poucos minutos. Ele sobe e senta-se num canto sozinho. Os poucos amigos que tinha... afastou-se deles... Tornou-se um solitário completo. Mudo pelos cantos.
O ônibus para. Os alunos descem em algazarra. Diego sai por último. Diminui o passo ao máximo. Não quer conversar com ninguém. Caminha pesadamente atrás de todo mundo.
Em sala de aula, a professora finge que ele não existe. Cansou-se de ficar chamando sua atenção. Ele mudo, aéreo, olhando para um ponto fixo na parede.
Exercícios pela metade. Pouca coisa realizada. Horário com a psicóloga da escola toda semana. Sem muito progresso. Sentado mudo frente à senhora de óculos com cara de quem tenta ser legal.
Na saída para o recreio, lembra-se das bolas dadas a ele pela fada. Será que ainda estão em sua pasta ou sumiram magicamente durante o dia? Abre a mochila e procura. Elas ainda estão lá, só que não brilham mais. Parecem bolas de vidro comum. Põe-nas discretamente no bolso enquanto pega o lanche e sai.
No recreio, sentado num canto, enquanto mordisca um pedaço de seu sanduíche, como se fosse um ruminante, mexe no bolso e as pega.
Os valentões da escola o veem sentado mexendo em algo e pensam em ir lá provocá-lo, mas desistem. Cansaram já de bater nele. Qual a graça de bater em alguém de apanha sem reclamar. Que não esboça nenhuma reação. Não se debate. Não dá um gemido, um grito. Não chora. Que apanha como se quisesse morrer. Como se a surra que levasse fosse até um alívio. Melhor deixar o louquinho de lado.
Examinando as bolas, ele percebe que todas são praticamente iguais. Do mesmo tamanho, mesma cor. A única coisa que as difere é uma inscrição em letras cheias de arabescos.
A FEITICEIRA... O SÁBIO... O DESBRAVADOR... A VALQUÍRIA... O BÁRBARO...
De que serviriam essas esferas? A fada teria que explicar-lhe. Em princípio imaginou-se jogando essas bolinhas de gude em escala maior com o Guardião do Pântano... Seria divertido. Será que era assim que venceria aquele monstro? Diego quase riu. O Guardião do Pântano não tinha cara de quem jogasse bolas de gude.
E ele não seria bobo de perguntar isso pessoalmente.
Finda a aula, Diego dirige-se para casa. Almoça um pouquinho só para contentar a mãe. Não tem fome. Menos que o usual. Sabe o que o espera à noite. Iria ter que voltar aquele mundo tenebroso e isso fazia com que passasse o dia inteiro com um nó na garganta. Parece que nada passa por ali.
Senta-se depois à mesa para pôr seus cadernos em ordem. Exigências da professora, que chamara a mãe na escola por causa de sua apatia. Passa a tarde fazendo aquilo. Volta e meia se distrai. Depois volta ao trabalho. Até que fazer isso acabou sendo bom. Tirou-lhe o foco do que estava por vir.
No final da tarde, vai para a cama e deita-se para dormir um pouco antes do jantar. A mãe acha até bom, que talvez a cara dele melhore. Se conseguir dormir é o jeito, já que à noite não dormiria absolutamente nada. Talvez nem voltasse ao mundo real nunca mais... Seu último sono em casa. Não há como não aproveitar.
Mal encosta a cabeça na cama e cai em sono profundo. Nunca imaginou que dormiria tão fácil. Devia estar realmente cansado. Dorme tão bem que até sonha. Sonhos agitados, sacode-se na cama. Mas ao exatamente sonhos ruins. Sonhos de que ele jamais se lembrará quando acordar.
Acorda com a mãe o chamando para o jantar.
_ Dava até pena de te acordar. Faz tempo que não te vejo dormir assim tão profundamente. Está até com uma cara melhor. Acho que a tal psicóloga da escola está fazendo efeito. Eu não levava fé. Você vai ver. As coisas vão melhorar.
Ou melhorar ou acabar de vez. Ficar do jeito que estão é impossível .Diego sabe disso e sente um certo conforto. “Tudo vai acabar hoje à noite.”, pensa. Acabará morto ou torturado à eternidade pelo Guardião do Pântano. Não. Ele não tem cara de quem perde tempo torturando crianças indefesas. Irá matá-lo mesmo como sentenciou da última vez.
E Diego suspira aliviado.
Come bastante no jantar. Seu estômago até dói pela falta de costume. A mãe fica contente e isso é importante. Mas o mais importante é que precisa ter forças para o que irá enfrentar. Não morrerá como um covarde. Pelo menos vai tentar não fazer isso.
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