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C
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r
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s
s
t
t
i
i
n
n
e
e
Stephen King
Título original: Christine
Tradução
de
Louisa
Ibañez
E
ditora Objetiva
, 1998
Digitalizado por SusanaCap
WWW
.
PORTALDETONANDO
.
COM
.
BR
/
FORUMNOVO
/
C
ONTRA
C
APA
Arnie C
unnigham era um perdedor. Rosto coberto de espinhas,
desajeitado com as garotas, magro demais para esportes, passava os dias
como sombra pelos corredores da escola, tentando fugir das goza
ções
implacáveis dos jovens de sua idade.
Isso at
é Christine entrar
em sua vida. Amor à primeira vista
--
não
há melhor forma de explicar o que aconteceu a Arnie ao vê
-
la. A partir
desse dia, o mundo ganha novo sentido. Tudo o que ele quer é estar junto
de Christine e nada, ninguém conseguirá detê
-
lo. Uma velha história de
amor, mais um Romeu e Julieta do século XX? Não, quando a trama nasce
da mente insuperável de Stephen King. Christine é um carro. Um
Plymouth Fury 1958. Um feitiço sobre rodas que se apodera do jovem
Arnie e faz dele alguém diferente. Muito diferente. Chr
istine é uma
obsessão.
A vida de Arnie Cunnigham nunca mais ser
á igual. Também não
será igual o pacato subúrbio de classe média em que mora. Nao quando
Christine está nas ruas. Não quando a velha e irascível Christine resolve
tirar de seu caminho quem quer
que tente afastá
-
la de seu novo dono.
O
RELHAS
Cen
ário: subúrbio de classe média, em Pittsburg. Ano: 1978.
Personagens: Arnie Cunnigham, jovem estudioso e rejeitado pelos
colegas; Dennis Guilder, seu
único amigo e protetor ocasional; Leigh
Cabot a aluna r
ecém
-
chegada ao colégio que Arnie conquista e... Dennis
também deseja.
O mesmo e velho tri
ângulo amoroso? Os ingredientes certos para
mais uma açucarada historinha de amor e ciúme? Não. Porque aqui,
velando nas sombras, está Christine. Um quarto personagem
, uma dama
perversa que levará a trama por uma trilha de sangue e vingança. Por
caminhos onde um ódio implacável zela pela posse de Arnie. Não,
Christine não é uma rival comum. Lataria vermelha e branca, Christine é
um carro, um velho Plymouth 1958 que sed
uz Arnie com um poder
assombroso.
Quando Arnie se dedica febril
mente a restaurar Christine, Dennis e
Leigh come
çam a suspeitar que o preço dessa crescente obsessão pode ser
terrivel
mente alto. Em pouco tempo, Arnie não é mais o mesmo. Em
pouco tempo, Chr
istine também se transforma. E logo as calmas ruas de
subúrbio vão sendo banhadas de sangue. Há algo poderosamente maligno
solto pelas estradas de Libertyville. Uma
for
ça sobrenatural que vai
deixando seu rastro de vingança por onde passa. E Dennis é o pri
meiro a
descobrir a verdade aterradora
—
Christine está viva.
Nesta hist
ória de terror sobre
natural, Stephen King leva o leitor
numa viagem assustadora por um roteiro macabro. Se tiver coragem,
embarque em Christine e boa sorte... pode ser que, para você,
esse passeio
tenha volta.
N
OTA DO
A
UTOR
As letras das canções citadas neste livro foram atribuídas ao cantor
(ou cantora, ou grupos) mais comumente associados às mesmas. Isto
poderá ofender o purista, que considera a letra de uma canção como
pertencendo
mais ao compositor do que ao cantor. O que você fez,
poderia argumentar o purista, foi algo semelhante a atribuir
-
se as obras de
Mark Twain a Hall Holbrook.
Discordo. No mundo da canção popular, é como dizem os Rolling
Stones: o cantor, não a canção.
Os no
mes dos autores das letras estão aqui para os que quiserem
conhecê
-
los. Agradeço a todos eles
—
e mais particularmente a Chuck
Berry, Bruce Springsteen, Brian Wilson... e Jan Berry, de Jan and Dean. Ele
voltou da Curva do Homem morto.
É deveras trabalhoso
conseguir
-
se as necessárias permissões legais
para o uso de letras
de canções, de modo que eu gostaria de agradecer a
algumas das pessoas que me auxiliaram a
recordar as canções e, depois, a
garantir a possibilidade de seu uso. Elas incluem: Dave Marsh,
cr
ítico e
historiador de rock; James Feury, conhecido como "Mighty John Marshall",
que transmite rocks em minha cidadezinha, pela WACZ; seu irmão, Pat
Feury, que divulga canções antigas em Portland; Debbie Geller; Patrícia
Dunning e Peter Batchelder. Obrigad
o a todos vocês, chapas, e que seus
discos antigos nunca empenem muito, a ponto de não poderem tocá
-
los.
S.K.
P
RÓLOGO
Esta é a história de um triângulo amoroso
—
suponho que este seria
o nome
—
formado por Arnie Cunningham, Leigh Cabot e, naturalmente,
Ch
ristine. Quero que compreendam, no entanto, que Christine chegou
primeiro. Ela foi o primeiro amor de Arnie e, embora eu não tenha a
presunção de garantir (de qualquer modo, não após os altos níveis de
sabedoria que alcancei, em meus 22 anos), creio que el
a foi seu único e
verdadeiro amor. Portanto, chamo de tragédia ao que aconteceu.
Eu e Arnie crescemos no mesmo quarteirão, freqüentamos juntos a
Escola Primária Owen Andrews e o Ginásio Darby. Também juntos,
fomos para o Ginásio de Libertyville. Penso que
fui o principal motivo de
Arnie não haver sido devorado no ginásio. Eu era um cara importante
—
sei que isso não quer dizer grande coisa; cinco anos após o diploma, não
se consegue nem mesmo uma cerveja grátis, por termos sido o capitão dos
times de futebo
l e beisebol, e um nadador da Associação de Escolas
—
,
mas, como fui tudo isso, pelo menos Arnie nunca foi liquidado. Abusaram
dele um bocado, mas nunca o destruíram.
Ele era um perdedor, compreendam. Todo ginásio tem dois, pelo
menos; é como uma lei nacion
al.
Um homem, uma mulher. Sacos
-
de
-
pancada de todos. Seu dia foi
ruim? Falhou em uma prova importante?
Discutiu com seus velhos e ficou o fim de semana a pé? Não há
problema. Encontre um daqueles pobres coitados que se esgueiram pelos
corredores como crimi
nosos, antes do sinal para as aulas, e vá direto ao
infeliz. Sabiam que, algumas vezes, eles são abatidos em todos os sentidos,
exceto no físico; em outras, acham alguém a quem agarrar
-
se e
sobrevivem. Arnie tinha a mim. Depois teve Cristine. Leigh aparece
u mais
tarde.
Eu só queria que vocês compreendessem isso.
Arnie era um deslocado natural. Estava fora do atletismo por ser
magricela
—
um e setenta e cinco, com cerca de setenta quilos, tragado por
todas as suas roupas, mais um par de botas Desert Drive. E
stava por fora
também para os intelectuais do ginásio (eles próprios, um grupo
inteiramente "desajustado" em uma cidadezinha como Libertyville),
porque não tinha nenhuma especialização. Arnie era esperto, mas seus
miolos não se fixavam naturalmente em cois
a alguma, a menos que fosse
mecânica automotora.
Era grande nisso. Em se tratando de carros, o garoto era uma espécie
de alucinado nato. Seus pais. no entanto (os dois lecionavam na
Universidade, em Horlicks), não podiam ver seu filho
—
que tinha
marcado o
máximo de cinco por cento no teste de inteligência Stanford
-
Binet
—
matricular
-
se nos cursos profissionalizantes. Andy teve muita
sorte, quando lhe permitiram cursar Mecânica de Motores I. II e III.
Precisou batalhar muito para conseguir a permissão. Esta
va ainda
deslocado com os que se drogavam, porque não era disso. E também não
se ligava com o grupo machão calças
-
jeans
-
e
-
Lucky
-
Strikes, porque não
era de beber e chorava, se atingido com força.
Oh, sim, era um desajustado também com as garotas. Seu
mecani
smo glandular
degringolara inteiramente. Quero dizer, Arnie era
um tapete de espinhas. Acho que lavava o
rosto umas cinco vezes por dia,
tomava umas duas dúzias de duchas por semana e
experimentava cada
creme ou panacéia conhecidos pela ciência moderna. Na
da funcionava. O
rosto de Arnie parecia uma pizza e ele ia ficar com uma daquelas caras
furadas e marcadas para sempre.
Eu gostava dele assim mesmo. Arnie tinha um sutil senso de humor
e uma mente que não se cansava de fazer perguntas, inventar jogos e
peq
uenas, divertidas brincadeiras. Foi Arnie
quem me mostrou como
construir uma fazenda de formigas quando eu tinha sete anos, e
passamos
todo um verão espiando aqueles animaizinhos, fascinados por sua
diligência e total
seriedade. Quando tínhamos dez anos, f
oi por sugestão
de Arnie que nos esgueiramos de casa
certa noite e colocamos um monte
de bostaseca de cavalo, tirada dos Estábulos da Rota 17,
debaixo do
enorme cavalo de plástico sobre o gramado do Libertyville Motel, do
outro lado da
linha do trem, em Mo
nroeville. Arnie aprendeu xadrez
primeiro.
Aprendeu pôquer primeiro. Ensinou
-
me a aumentar meu escore em
Scrabble. Nos dias
chuvosos, bem até a época em que me apaixonei (ora,
foi mais ou menos isso
—
ela era chefe de torcida, com um corpo
espetacular; ac
hei que me apaixonara pelo corpo, embora, quando Amie
avisou que a mente da garota tinha toda a profundidade e ressonância de
um Chaun Cassidy 45,
eu não pudesse responder que ele estava mentindo,
porque não estava mesmo), era nele que eu
pensava primeiro,
porque
Arnie sabia como engrandecer os dias de chuva, da mesma forma
como
sabia aumentar os escores no Scrabble. Talvez seja esta uma das maneiras
de
identificarmos as pessoas realmente solitárias... elas sempre podem
imaginar algo legal para se
fazer em
um dia de chuva. A gente sempre
pode contar com ela. Estão sempre em casa. Sempre na pior.
De minha parte, ensinei Arnie a nadar. Chateei
-
o até convencê
-
lo a
comer verduras, para
que pudesse melhorar um pouco a sua magreza.
Consegui trabalho para ele em um
a estrada,
um ano antes de nosso último
ano no Ginásio de Libertyville
—
e para isso nos empenhamos a
fundo
com os pais dele, que se viam como grandes amigos dos trabalhadores nas
fazendas da Califórnia e dos metalúrgicos daquela cidadezinha cretina,
mas q
ue ficavam horrorizados à
idéia de seu talentoso filho (com um
máximo de cinco por cento em seu teste Stanford
-
Binet,
lembrem
-
se)
ficando com os pulsos sujos de terra e o pescoço vermelho.
Então, perto do fim daquelas férias de verão, Arnie viu Christine
p
ela primeira vez e se apaixonou por ela. Eu estava com ele nesse dia
—
íamos para casa, voltando do trabalho
—
e
testemunharia a respeito
diante do Trono de Deus Todo
-
Poderoso, se para isso me convocassem
.
Irmão, ele gamou e gamou
de fato. Até que podia te
r sido gozado, se
não fosse tão triste,
se aquilo não ficasse assustador tão depressa
como
ficou. Podia ter sido divertido, se não houvesse sido tão ruim.
Ruim
—
a que ponto?
Foi ruim desde o começo. E se tornou rapidamente pior.
Dennis
-
Canções adolesce
ntes sobre
carros
P
RIMEIROS
P
ROJETOS
Ei, olhe l
á!
Do outro lado da rua!
Um carro feito na medida para mim,
Seria um luxo ter aquele carro...
Aquele carro é um barato, cara,
É algo fora de série.
—
Eddie Cochran
—
Deus do céu!
—
gritou de repente meu amig
o Arnie Cunningham.
—
O que foi?
—
perguntei.
Seus olhos saltavam por tr
ás dos óculos de aros de aço, ele
espalmara a mão sobre o rosto, de maneira que a palma cobria a boca
parcialmente e o pescoço parecia girar sobre rolamentos, no modo como
Arnie se vir
ava para trás, por sobre o ombro.
—
Pare o carro, Dennis! Volte!
—
O que você está...
—
Volte, quero olhar para ela outra vez! Entendi na mesma hora.
—
Oh, cara, esqueça
—
falei.
—
Se está se referindo àquela... coisa
que acabamos de deixar para trás...
—
Volte!
—
ele quase berrou.
Voltei, imaginando que talvez fosse uma daquelas sutis piadinhas
de Arnie. S
ó que não era. Ele gamara mesmo. Arnie se apaixonara.
Ela era uma piada imbecil e jamais saberei o que Arnie viu nela,
nesse dia. Na m
áquina, quero dizer
, no carro. O lado direito do pára
-
brisa
era uma confusa teia de aranha em rachaduras. A traseira direita do teto
estava afundada e um ninho horrendo de ferrugem se espraiara pelo vale
de pintura descascada. O pára
-
choque traseiro descambava para um lado
e
o tampo do porta
-
mala estava entreaberto. O estofamento sangrava para
fora, através de compridos rasgões na cobertura dos assentos, da frente e
traseiro. Era como se alguém tivesse brincado ali com uma faca. Um pneu
estava arriado. Os outros, tão carecas,
que dava para se ver o
encordoamento interno. O pior de tudo era a mancha escura de óleo,
debaixo do motor.
Arnie se apaixonara por um Plymouth Fury 1958, um daqueles
comprid
ões, com enormes aletas no radiador. Havia um velho anúncio de
À VENDA, já desbot
ado pelo sol, escorado contra o lado direito do pára
-
brisa
—
o lado que não estava rachado.
—
Veja que linhas ele tem, Dennis!
—
sussurrou Arnie.
Corria em torno do carro, como um possesso. Seu cabelo suado
subia e descia na cabe
ça. Experimentou a porta tr
aseira, no lado do
passageiro, e ela se abriu com um rangido.
—
Você está me gozando, Arnie, não está?
—
perguntei.
—
É
insolação, certo? Me diz que é insolação. Vou levar você para casa, ligar o
ar
-
condicionado e esquecemos tudo isto, está bem?
De qualque
r modo, falei isso sem muita esperan
ça. Ele sabia fazer
uma piada, mas então não havia nada que lembrasse uma piada em sua
cara. Pelo contrário, era uma espécie de loucura imbecil, que não me
agradou nem um pouco.
Ele nem mesmo se deu ao trabalho de respon
der. Um bafo quente e
espesso de ar, cheirando a velhice, óleo e adiantada decomposição brotou
da porta aberta do carro. Arnie também pareceu nem perceber. Entrou e
sentou
-
se no desbotado banco traseiro dilacerado. Um dia, vinte anos
antes, aquilo tinha si
do vermelho. Agora, era um rosa lavado e desbotado.
Estiquei o braço e arranquei um pouco do recheio, olhei para ele e o
soprei ao vento.
—
É como se o exército russo tivesse pisado sobre isso, ao avançar
para Berlim
—
comentei. Ele finalmente notou que eu
ainda estava ali.
—
Certo... certo, mas poderia ser consertado. Essa máquina... ela
ficaria um barato. Uma unidade móvel, Dennis. Uma beleza. Uma
verdadeira...
—
Ei, ei! O que estão fazendo aí, garotos?
Era um velhote que parecia estar curtindo
—
mais ou
menos
—
seu
septuagésimo verão. Talvez menos. Aquele sujeito me deu a impressão de
ser dos que não curtem muito as coisas. O pouco que restava do cabelo era
comprido e ralo. Tinha um bom caso de psoríase em andamento, na parte
careca do crânio.
Usava calça
s verdes de velho e tênis de basquete de cano baixo.
Estava sem camisa; em vez disso, tinha algo apertado em torno da cintura,
parecendo uma cinta de mulher. Quando chegou mais perto, vi que era
um colete ortopédico para as costas. De saída, só em olhar pa
ra aquilo, eu
podia dizer que o homem o tinha trocado, pela última vez, mais ou menos
na época em que Lyndon Johnson morrera.
—
O que estão querendo, garotos?
—
gritou, em voz aguda e
estridente.
—
Este carro é seu, senhor?
—
perguntou Arnie.
Uma pergunta
quase desnecessária. O Plymouth estava estacionado
no terreno da casa pós
-
guerra, de onde o velho brotara. O gramado era
horrível, mas ficava um barato com aquele Plymouth nos fundos.
—
E daí, se for?
—
perguntou o velho.
—
Eu...
—
Arnie engoliu em seco.
—
Eu quero comprá
-
lo.
Os olhos do velhote cintilaram. A expressão irritada do rosto foi
substituída por um brilho furtivo no olho e um certo sarcasmo faminto em
torno dos lábios. Então surgiu um falso, resplendente e largo sorriso. Foi
naquele momento, crei
o
—
bem, justo naquele momento
—
que senti algo
frio e depressivo dentro de mim. Houve um instante
—
só então
—
que
senti vontade de puxar Arnie e arrancá
-
lo dali. Alguma coisa transpareceu
dentro dos olhos do velho. Não foi só o brilho; era algo por trás
do brilho.
—
Bem, devia ter dito logo
—
falou o velhote. Estendeu a mão, que
Arnie apertou.
—
LeBay. Roland D. LeBay. Reformado do Exército.
—
Arnie Cunningham.
O velho pareceu puxar a mão e fez uma espécie de aceno para mim.
Eu estava fora da jogada; ele
já tinha seu otário. Arnie podia perfeitamente
entregar sua carteira a LeBay.
—
Quanto?
—
perguntou Arnie. Depois insistiu:
—
Seja o que for
que quer pela máquina, ainda é pouco.
Grunhi intimamente, em vez de suspirar. O talão de cheques de
Arnie estava de
ntro de sua carteira.
Por um momento, o sorriso de LeBay falhou um pouco e ele apertou
os olhos desconfiadamente. Devia estar avaliando a possibilidade que
tinha pela frente. Estudou o rosto franco e ansioso de Arnie, à procura de
algum sinal de malícia, p
ara então disparar a pergunta homicidamente
perfeita:
—
Já teve algum carro antes, filho?
—
Ele tem um Mustang Mach II
—
respondi rapidamente.
—
Seus
pais compraram para ele. Tem uma mudança Hurst, uma superbateria e
pode fazer a estrada ferver, quando em
primeira. O carro...
—
Não
—
respondeu Arnie, tranqüilo.
—
Só tirei minha carteira de
motorista esta primavera. LeBay dedicou
-
me um rápido, mas astuto olhar,
para em seguida voltar a concentrar inteiramente a atenção em seu alvo
principal. Colocou as mãos
no final das costas e estirou
-
se. Captei uma
azeda onda de suor rançoso.
—
O Exército me deixou com um problema nas costas
—
disse
ele.
—
Invalidez total. Os médicos nunca conseguiram endireitar
-
me. Se
perguntarem a vocês o que há de errado no mundo, rapaz
es, digam que
s
ão três coisas: médicos, comunista e radicais que gostam de negros. Dos
três, os comunistas são os piores, seguidos de perto pelos médicos. E se
perguntarem quem disse isto, respondam que foi Roland D. LeBay. Sim,
senhor!
Ele tocou o velho e
arranhado cap
ô do Plymouth, com uma espécie
de admirado amor.
—
Este aqui foi o melhor carro que já tive. Comprei em setembro de
1957. Naquele tempo, era em setembro que se conseguia o novo modelo
do ano. Durante todo o verão, exibiam fotos de carros deba
ixo de lonas e
encerados, até a gente ficar morrendo para saber como eles eram, por
baixo daquilo. Hoje é diferente.
—
Sua voz ressumava irritação, pelos
tempos degradantes que vivera.
—
Uma máquina novinha em folha.
Cheirava como carro saído da fábrica e,
para mim, este é o melhor cheiro
do mundo.
—
Fez uma pausa para considerar.
—
Exceto, talvez, pelo de
uma cona.
Olhei para Arnie, mordendo furiosamente o interior das bochechas,
para n
ão estourar de rir de tudo aquilo. Arnie olhou para mim, surpreso.
O ve
lho nem pareceu notar
-
nos; estava isolado em seu próprio planeta.
—
Vesti cáqui trinta e quatro anos
—
contou LeBay, ainda tocando o
capô do carro.
—
Entrei aos dezessete, em 1923. Comi poeira no Texas e vi
piolhos do tamanho de lagostas, em algumas casas
das putas de Nogales.
Vi homens com as tripas saindo pelos ouvidos, no tempo da guerra. Foi na
França que vi isso. As tripas deles saíam pelos ouvidos. Acredita nisso,
filho?
—
Sim, senhor
—
respondeu Arnie.
Duvido que tivesse ouvido uma s
ó palavra do que
LeBay dizia.
Equilibrava
-
se ora em um pé, ora no outro, como se estivesse apertado
para ir ao banheiro.
—
Bem, e quanto ao carro...
—
insistiu Arnie.
—
Você está na Universidade?
—
clamou LeBay, subitamente.
—
Lá
em Horlicks?
—
Não, senhor. Estou no Ginási
o de Libertyville.
—
Muito bom
—
disse LeBay, taciturno.
—
Fique longe de
universidades. Estão cheias de gente que gosta de negros, gente que quer
entregar o Canal do Panamá. "Cérebros", é o nome que dão a eles. Pois eu
digo que são "cacholas de merda".
Ol
hou amorosamente para o carro em cima do pneu arriado, a
pintura dissolvendo
-
se em ferrugem, banhado pelo
último sol da tarde.
—
Machuquei as costas na primavera de 57
—
disse ele.
—
O
Exército já estava falindo naquele tempo. Saí na hora exata. Voltei par
a
Libertyville. Torrei grana. Aproveitei meu tempo. Então, entrei na
Norman Cobb, concessionária Plymouth, onde hoje fica o boliche, lá perto
da Main Street, e encomendei este carro aqui. Disse para eles: quero
vermelho e branco, modelo do próximo ano. Ver
melho como um carro de
bombeiros por dentro. Eles conseguiram. Quando recebi a máquina, tinha
um total de seis milhas no odômetro. Sim, senhor.
Ele cuspiu.
Olhei para o od
ômetro, por cima do ombro de Arnie. O vidro estava
turvo, mas pude ler o estrago assi
m mesmo: 97.432. E seis décimos.
Caramba!
—
Se gosta tanto do carro, por que quer vendê
-
lo?
—
perguntei. Ele
me dirigiu um olhar leitoso, bastante aterrador.
—
Está querendo bancar o sabido pra cima de mim, filho? Não
respondi, mas tampouco fugi com o olha
r.
Ap
ós alguns momentos daquele duelo olho
-
a
-
olho (o que Arnie
ignorou por completo; deslizava lentamente uma amorosa mão por uma
das aletas dorsais), ele disse:
—
Não posso mais dirigir. Minhas costas pioraram muito. E os olhos
estão indo pelo mesmo camin
ho.
Entendi de repente
—
ou acho que entendi. Se ele nos fornecera as
datas exatas, teria setenta e um anos. E, aos setenta, neste Estado é
obrigatório o exame de vista a cada ano, para que renovem a licença de
motorista. LeBay devia ter falhado no exame d
e vista ou tinha medo de
falhar, o que vinha a dar no mesmo. Antes de submeter
-
se a tal
indignidade, resolveu colocar o Plymouth à venda. E, depois disso, o carro
envelhecera rapidamente.
—
Quanto quer por ele?
—
Arnie tornou a perguntar.
Ele mal podia esp
erar para ser degolado. LeBay virou o rosto para o
céu, como se o estudasse para saber se choveria. Depois baixou os olhos
para Arnie, oferecendo
-
lhe um largo e gentil sorriso, para mim demasiado
semelhante ao anterior sorriso astuto que me dirigira.
—
Est
ou pedindo trezentos
—
disse
—
, mas você me parece um bom
rapaz. Deixo por duzentos e cinqüenta para você.
—
Deus do céu!
—
exclamei.
Não obstante, ele sabia quem era o seu pato, como sabia exatamente
aumentar a barreira entre nós. Nas palavras de meu avô,
LeBay não tinha
caído ontem de um caminhão de feno.
—
Está bem
—
disse ele, bruscamente.
—
Se quiser, é assim. Tenho
meu programa das quatro e meia para ver. Beira da Noite. Nunca perco,
se depender de mim. Tive um bom papo com vocês, rapazes. Adeus.
Arni
e dirigiu
-
me um olhar tão dorido e raivoso que recuei um passo.
Depois foi atrás do velho e o segurou pelo cotovelo. Conversaram. Não
ouvi tudo, porém vi mais do que suficiente. O orgulho do velho ficara
ferido. Arnie estava ansioso e se desculpando. O vel
ho apenas queria fazer
Arnie entender que não suportava ver insultado o carro que o conduzira
através de seus anos dourados. Arnie concordou. Pouco a pouco, o velho
permitiu que ele o reconduzisse de volta. E, de novo, senti algo
conscientemente amedrontad
or em relação a ele... era como se um frio
vento de novembro pudesse pensar. Não consigo palavras melhores para
expressá
-
lo.
—
Se ele disser mais uma só palavra, lavo as mãos disto tudo
—
disse LeBay, apontando um polegar calejado e chifrudo para mim.
—
El
e não dirá, ele não dirá
—
assegurou Arnie, apressadamente.
—
Trezentos, foi o que disse?
—
Sim, acho que foi...
—
O preço combinado foi de duzentos e cinqüenta!
—
falei bem alto.
Arnie pareceu aflito, temendo que o velho se fosse de novo, mas
LeBay não qu
eria arriscar
-
se. O peixe agora estava quase fora d'água.
—
Sim, acho que duzentos e cinqüenta está bem
—
concedeu LeBay.
Tornou a olhar para mim e vi que estávamos de acordo
—
ele não ia
comigo e nem eu com ele. Para meu crescente horror, Arnie puxou a
ca
rteira e começou a manusear seu interior. Houve silêncio entre nós três.
LeBay era um mero espectador. Espiei para um garotinho que tentava
matar
-
se em um skate verde
-
vômito. Um cão latiu em algum lugar. Duas
garotas com ar de estarem na oitava série passa
ram rindo muito e
apertando uma pilha de livros contra os bustos em formação. Restava
-
me
apenas uma esperança de que Arnie se visse fora daquilo: faltava um dia
para o pagamento. Com tempo, até mesmo vinte e quatro horas, aquela
febre selvagem passaria. Ar
nie começava a recordar
-
me Toad, Toad Hall.
Quando tornei a olhar para eles, Arnie e LeBay fitavam duas notas
de cinco e seis de um dólar
—
aparentemente, tudo que ele tinha na
carteira.
—
Que tal um cheque?
—
sugeriu Arnie. LeBay sorriu friamente e
nada d
isse.
—
É um cheque bom
—
protestou Arnie.
Claro que era. Havíamos passado todo o verão trabalhando para
Carson Brothers, na extensão da I
-
376, aquela que, na opinião dos nativos
da área de Pittsburgh, jamais seria finalmente terminada. Às vezes, Arnie
diz
ia que a Penn
-
DOT tinha começado a apostar no trabalho da I
-
376
pouco depois que a Guerra Civil terminara. Não que qualquer um de nós
tivesse alguma queixa; muitos jovens trabalharam naquele verão em troca
de salários de escravos, ou não trabalharam em abs
oluto. Estávamos
fazendo um bom dinheiro, inclusive em hora extra. Brad Jeffries, o capataz,
se mostrara francamente duvidoso em aceitar um garoto como Arnie, mas
por fim concordara que ele podia ser usado como sinaleiro; a jovem que
planejara contratar fi
cara grávida e fugira para casar
-
se. Assim, Arnie se
iniciara como sinaleiro em junho, mas aos poucos fora passando para o
trabalho mais pesado, no que mostrava muita coragem e determinação.
Era o primeiro emprego de verdade que já tivera e não queria estr
agar
tudo. Brad ficara um tanto impressionado e, inclusive, o sol de verão
contribuíra para amenizar um pouco as erupções cutâneas de Arnie.
Talvez fosse o ultravioleta.
—
Tenho certeza de que seu cheque é bom, filho
—
disse LeBay
—
mas meu negócio é feito
a dinheiro. Procure entender.
Eu não sabia se Arnie entendera, mas eu entendia. Seria fácil demais
sustar o pagamento de um cheque local, se aquele Plymouth comido de
ferrugem soltasse uma biela ou explodisse um pistão, a caminho de casa.
—
Pode telefonar
para o banco
—
disse Arnie, começando a
desesperar
-
se.
—
Negativo
—
disse LeBay, coçando o sovaco acima do escabroso
colete.
—
Vão dar cinco e meia. Os bancos já fecharam há muito tempo.
—
Fica como um sinal, então
—
disse Arnie, estendendo os
dezesseis d
ólares. Positivamente, agia como maluco. Talvez seja difícil
acreditar
-
se que um cara, com idade quase suficiente para votar, em
quinze minutos ficasse tão enredado com um velhote anônimo. Eu mesmo
achava difícil acreditar. Somente Roland D. LeBay parecia
não ter
problemas a respeito e suponho que fosse devido à idade, quando já tinha
visto tudo. Só mais tarde cheguei a crer que aquela sua estranha segurança
podia originar
-
se de outras fontes. De qualquer modo, se já havia corrido
em suas veias algum leite
de gentileza humana, há muito se transformara
em coalhada azeda.
—
Preciso ter um sinal de dez por cento, pelo menos
—
declarou
LeBay. O peixe estava fora d'água; em mais um momento, iria para a
cesta.
—
Se me der os dez por cento, reservarei o carro por v
inte e quatro
horas.
—
Dennis
—
pediu Arnie
—
, pode me emprestar nove pratas até
amanhã?
Eu tinha doze na carteira e nenhum lugar particular aonde ir. Dia
após dia espalhando areia e cavando trincheiras para bueiros, haviam
feito maravilhas para quando che
gasse a hora de treinar futebol, mas eu
não tinha mais nenhuma vida social. Ultimamente, nem mesmo vinha
assaltando as defesas do corpo de minha namorada chefe de torcida, no
estilo a que ela se acostumara. Estava rico, mas solitário.
—
Venha até aqui e ve
remos
—
falei.
LeBay franziu o cenho, mas sabia
-
se preso à minha intervenção,
quisesse ou não. Seu anelado cabelo branco agitou
-
se de um lado para
outro, à brisa ligeira. Manteve uma das mãos possessivamente sobre o
capô do Plymouth.
Caminhei com Arnie até
meu carro, um Duster 75, estacionado na
esquina. Passei o braço pelos ombros dele. Por algum motivo, lembrei
-
me
do dia chuvoso que havíamos passado em seu quarto, quando não
tínhamos mais de seis anos
—
os desenhos animados saltitavam na tela
em preto
-
e
-
b
ranco de um antigo aparelho de TV, enquanto coloríamos
com lápis de cor velhos, guardados em uma lata de café serrilhada. A
imagem me deixou triste e um tanto amedrontado. Compreendam, há
dias em que seis anos me parece uma idade excelente, isto porque a
l
embrança dura, de fato, apenas 7,2 segundos.
—
Você tem o dinheiro, Dennis? Eu devolvo amanhã de tarde.
—
Sim, tenho
—
respondi
—
, mas, pelo amor de Deus, o que está
fazendo, Arnie? Aquele pilantra é totalmente inválido, não vê? Ele não
precisa de dinheiro
e você não é uma instituição de caridade.
—
Não compreendo. De que está falando?
—
Ele está se aproveitando de você. Faz isso pelo simples prazer da
coisa. Se levar o carro à Darnell's, não conseguirá nem cinqüenta dólares
por peças. Aquilo é um monte de
bosta!
—
Não. Não é não.
Sem a pele ruim, meu amigo Arnie pareceria absolutamente normal.
Contudo, Deus dá a todos pelo menos um traço bom, acho eu, e em Arnie
eram os olhos. Por trás das lentes, que em geral os obscureciam, seus
olhos mostravam um belo e
inteligente cinza, a cor das nuvens em um
nublado céu de outono. Podiam ser quase incomodamente agudos e
perscrutadores quando surgisse algo que lhe interessasse, mas agora
estavam distantes e sonhadores.
—
Não é nenhum monte de bosta
—
insistiu ele.
Foi q
uando comecei realmente a compreender que ali havia mais do
que a súbita decisão de Arnie em ter um carro. Ele nunca demonstrara o
menor interesse por um, antes; contentava
-
se em rodar no meu,
contribuindo para a gasolina ou apertando o pedal de suas três
marchas. E
agora não era como se precisasse de um carro, a fim de sair sozinho; que
eu soubesse, Arnie jamais tivera um encontro com garotas na vida.
Tratava
-
se de algo diferente. Era amor ou coisa assim.
—
Pelo menos
—
argumentei
—
deixe que ele ligue o m
otor para
você, Arnie. E que levante o capô. Tem uma poça de óleo debaixo do
motor. O bloco bem que pode estar partido. Se quer saber, acho que...
—
Pode emprestar os nove?
Os olhos dele estavam fixos nos meus. Desisti. Tirei minha carteira e
entreguei
-
lhe
os nove d
ólares.
—
Obrigado, Dennis
—
disse ele.
—
O funeral é seu, cara.
Ele nem ouviu. Juntou meus nove aos seus dezesseis e voltou para
junto de LeBay, ao lado do carro. Estendeu
-
lhe o dinheiro e o velho o
contou cuidadosamente, molhando o polegar.
—
S
ó vou segurá
-
lo por vinte e quatro horas, compreenda
—
disse
LeBay.
—
Sim, senhor. Assim está ótimo
—
respondeu Arnie.
—
Vou até em casa, passar um recibo
—
disse o velho.
—
Como é
mesmo o seu nome, soldado? Arnie sorriu ligeiramente.
—
Cunningham. Arnold
Cunningham.
LeBay grunhiu um assentimento e cruzou seu gramado maltratado
at
é a porta dos fundos. A porta externa era uma daquelas engraçadas
estruturas de alumínio, com uma floreada letra no centro
—
um L
maiúsculo, no caso.
A porta bateu atr
ás dele.
—
O
sujeito é esquisito, Arnie. O sujeito é um fodido esqui...
Arnie n
ão estava mais ali. Sentara
-
se atrás do volante do carro. Em
seu rosto havia a mesma expressão enérgica.
Dei a volta at
é a frente e descobri o fecho do capô. Puxei
-
o e o capô
subiu, com um g
rito enferrujado que me fez pensar nos efeitos sonoros
ouvidos naqueles discos de casas mal
-
assombradas. Fragmentos metálicos
voaram para baixo. A bateria era uma velha Allstate e os terminais
estavam tão cobertos de corrosão esverdeada que não se poderia
dizer
qual o positivo e o negativo. Puxei o filtro de ar e olhei sombriamente para
um carburador de quatro difusores, tão negro como uma galeria de mina.
Baixei o cap
ô e fui para o lugar onde Arnie continuava, agora
deslizando a mão ao longo da borda do pa
inel de instrumentos, por sobre
o velocímetro, calibrado para uma marcação totalmente absurda de 120
milhas por hora. Os carros teriam realmente atingido tal velocidade?
—
Acho que o bloco do motor está trincado, Arnie. Acho mesmo.
Este carro é uma droga,
meu amigo. Uma droga total. Se está querendo
rodas, por duzentos e cinqüenta podemos encontrar coisa muito melhor
do que isto. Falo sério. Muito melhor.
—
Ele tem vinte anos de idade
—
replicou Arnie.
—
Sabe que um
carro é oficialmente uma antigüidade, qua
ndo tem vinte anos de idade?
—
Claro
—
falei.
—
O pátio de ferro
-
velho atrás da Darnell's está
repleto de antigüidades oficiais, está entendendo?
—
Dennis...
A porta bateu. LeBay estava de volta. N
ão adiantava; qualquer
discussão posterior não teria sentid
o. Posso não ser o humano mais
sensível, mas quando os sinais são fortes o bastante, consigo captá
-
los.
Aquilo era algo que Arnie decidira ser preciso fazer e eu não iria dissuadi
-
lo. Aliás, creio que ninguém conseguiria dissuadi
-
lo.
Com um floreio, LeBay
estendeu
-
lhe o recibo. Escrito em uma folha
comum de bloco, em uma aracn
óide, e ligeiramente trêmula, caligrafia de
velho, havia o seguinte: Recebido de Arnold Cunningham, $25,00, como
sinal e reserva por vinte e quatro horas de Christine, um Plymouth 1958
.
Abaixo, ele assinara seu nome.
—
O que significa isto de Christine?
—
perguntei, pensando ter lido
errado ou não entendido bem.
Os l
ábios de LeBay estreitaram
-
se e seus ombros se ergueram um
pouco, como se esperasse que rissem dele... ou como se me desaf
iasse a
isso.
—
Christine
—
explicou
—
é como sempre chamei o carro.
—
Christine
—
repetiu Arnie.
—
Gostei. E você, Dennis?
Agora ele falava em batizar a maldita coisa. Aquilo estava passando
dos limites.
—
O que acha, Dennis, você gostou?
—
Não
—
respondi
.
—
Se tem que dar um nome a isso, Arnie, por
que não o chama de Problema? Ele pareceu magoar
-
se com isso, mas eu
pouco me importava. Voltei para meu carro, a fim de
esper
á
-
lo, desejando
que antes houvesse tomado um caminho diferente, na volta para casa.
A
P
RIMEIRA
D
ISCUSSÃO
Diga apenas aos seus amigos marginais l
á fora,
Que voc
ê não tem tempo para dar um passeio!
(Conversa mole!)
N
ão responda!
—
The Coasters
Levei Arnie de carro at
é sua casa e entrei com ele para um pedaço
de bolo e um copo de leite, ant
es de seguir para a minha. Foi uma decisão
da qual me arrependi prontamente.
Arnie morava na Laurel Street, situada em uma tranq
üila zona
residencial, no lado oeste de Libertyville. Em geral, Libertyville é quase
que integralmente tranqüila e residencial.
Nada de grande estilo, como o
subúrbio vizinho de Fox Chapei (onde a maioria das residências se
compõe de propriedades como aquelas que costumamos ver todas as
semanas em Columbo), mas também não é como Monroeville, com seus
quilômetros de ruas comerciais,
depósitos de pneus vendidos com
desconto e sujos empórios de livros. Por aqui não temos nenhuma
indústria pesada; trata
-
se, principalmente, de uma comunidade
-
dormitório para a vizinha Universidade. Sem suntuosidade, mas pelo
menos uma espécie de concentra
ção de cérebros.
Arnie estivera calado e pensativo, durante toda a caminhada para
casa; tentei distra
í
-
lo, mas ele não se deixou distrair. Perguntei
-
lhe o que
pretendia fazer com o carro.
—
Ajeitá
-
lo
—
respondeu, em voz ausente, tornando a ficar em
silênci
o.
Bem, ele tinha jeito para isso; eu n
ão questionava o assunto. Era bom
com ferramentas, podia ouvir e concentrar
-
se. Suas mãos eram sensíveis e
ágeis com mecanismos; somente quando estava perto de outras pessoas,
em especial garotas, é que elas ficavam d
esajeitadas e inquietas,
procurando estalar os nós dos dedos ou enfiar
-
se nos bolsos, quando não
(pior do que tudo) se encaminhavam para o rosto e deslizavam pela
acidentada paisagem das bochechas, queixo e testa, chamando a atenção
para esses pontos.
Ele
podia ajeitar o carro, mas o dinheiro que ganhara nesse ver
ão era
reservado para a Universidade. Nunca tivera um carro antes e pensei que
talvez não imaginasse a maneira sinistra como carros velhos podem sugar
dinheiro. Eles o sugam, como se imagina que um
vampiro suga o sangue.
Arnie evitaria os custos da mão
-
de
-
obra na maioria dos casos, fazendo o
trabalho ele mesmo, porém só o conserto das peças isoladas quase o
mataria, antes de chegar ao fim.
Disse
-
lhe algumas dessas coisas, mas ele preferiu ignorar
-
me
. Tinha
o olhar ainda distante e sonhador. Eu n
ão saberia dizer em que pensava.
Michael e Regina Cunningham estavam em casa
—
ela decifrava
uma daquelas séries intermináveis de quebra
-
cabeças idiotas (este era a
respeito de seis mil rodas denteadas e engre
nagens diferentes, sobre um
fundo absolutamente branco
—
e me deixaria arrancando os cabelos em
quinze minutos) e ele ouvia música na sala.
N
ão demorou muito, comecei a desejar que tivesse desistido do bolo
e do leite. Arnie contou a eles o que fizera, mos
trou o recibo e os dois
imediatamente subiram pelas paredes.
Compreendam, Michael e Regina eram criaturas da Universidade
at
é o âmago. Procuravam ser bem
-
sucedidos e, para eles, isto significava
protestar. Haviam protestado em favor da integração, no iníci
o dos anos
60, passaram para o Vietnã e, quando desistiram, havia Nixon, questões
de equilíbrio racial nas escolas (podiam citar capítulo e versículos do caso
Alan Bakke, até pegarmos no sono), violência policial e brutalidade
paternal. Depois, foram os di
scursos
—
toda aquela discurseira. Estavam
quase tão envolvidos nisso, como nos protestos. Pareciam sempre
dispostos a tomar parte em sessões pela noite inteira, tratando das mais
variadas questões, desde o programa espacial a conferências estudantis
em de
safio às autoridades acadêmicas, ou mesmo de um seminário sobre
possíveis alternativas
de combust
íveis fósseis. Só Deus sabe como
conseguiam tempo para tantas "linhas quentes"
—
números de telefone
para estuprados, drogados, para crianças fujonas que queri
am conversar
com um amigo, bem como o bom, o velho DISQUE
-
AJUDA, para onde os
suicidas podiam ligar e ouvir uma voz compreensiva dizendo não faça
isso, chapa, você tem um compromisso social com a Espaçonave Terra.
Com vinte ou trinta anos lecionando em uma
Universidade, o sujeito está
pronto para a discussão, da mesma forma que os cães de Pavlov estavam
prontos para sair quando ele tocava a campainha. Acredito que até se
chegue a gostar disso.
Regina (eles insistiam em que eu os chamasse por seus primeiros
nomes) tinha quarenta e cinco anos e era simp
ática, atraente de uma
forma um tanto fria e semi
-
aristocrática
—
isto é, conseguia parecer
aristocrática, mesmo usando jeans, o que fazia a maior parte do tempo.
Sua área era Inglês mas, naturalmente, quando se
atinge um nível
universitário, isso nunca é bastante: é como dizer "América" se alguém lhe
pergunta de onde você é. Ela se refinara nisso e estava calibrada, como o
"blip" de uma tela de radar. Especializara
-
se em poetas primitivos ingleses,
tendo apresen
tado tese sobre Robert Herrick.
O neg
ócio de Michael era História. Tinha uma aparência tão lutuosa
e melancólica, como a música que saía de sua flauta, embora luto e
melancolia não fossem uma parte normal de sua estrutura. Por vezes, ele
me fazia pensar no
que Ringo Star supostamente havia dito, quando os
Beatles vieram à América pela primeira vez, e certo repórter, em uma
entrevista à imprensa, perguntou
-
lhe se ele era realmente tão triste quanto
parecia. "Não", replicou Ringo, "é só o meu rosto." Michael
era assim.
Além do mais, seu rosto fino e os óculos grossos que usava combinavam
para emprestar
-
lhe uma leve aparência de caricatura de professor, em
uma inamistosa charge editorial. Seu cabelo começava a diminuir e ele
usava um pequeno cavanhaque anelado.
—
Oi, Arnie
—
disse Regina, quando entramos.
—
Olá, Dennis.,
Naquela tarde, foi essa a
última coisa cordial que ela disse para nós
dois. Respondemos "Oi" e passamos ao nosso bolo com leite. Sentamos no
canto reservado ao café da manhã. O jantar estava em
andamento no
forno e, lamento dizer, o cheiro era francamente repelente. Regina e
Michael tinham andado flertando com o vegetarianismo durante algum
tempo e, naquela noite, o aroma dava a impressão de que ela preparava
uma boa e velha torta de algas ou coi
sa assim. Esperei que não me
convidassem para ficar.
A m
úsica da flauta cessou e Michael veio para a cozinha. Usava
bermudas, recortadas de uma calça jeans e tinha um ar de quem acaba de
receber a notícia da morte de seu melhor amigo.
—
Estão atrasados, ra
pazes
—
disse.
—
Algo errado?
Abriu a geladeira e come
çou a vistoriar seu interior. Talvez a torta
de algas também não lhe fosse tão agradável ao olfato.
—
Comprei um carro
—
disse Arnie, cortando outro pedaço de bolo.
—
Você fez o quê?
—
exclamou sua mãe
no outro aposento,
imediatamente.
Ela se levantou depressa demais e houve uma batida seca, quando
suas coxas colidiram solidamente contra a beira da mesa de jogo, onde
resolvia seus quebra
-
cabe
ças. O baque foi seguido pelo ruído cascateado
de peças caindo
ao chão. Foi quando comecei a pensar que seria melhor
ter ido direto para casa.
Michael Cunningham se voltara da geladeira para fitar o filho,
segurando uma ma
çã em uma das mãos e uma embalagem de papelão
com iogurte natural na outra.
—
Você está brincando
—
disse, e por alguma absurda razão, pela
primeira vez notei que seu cavanhaque, usado desde mais ou menos 1970,
estava ficando um bocado grisalho.
—
Arnie, você está brincando, não?
Diga que é uma brincadeira.
Regina entrou, alta e semi
-
aristocr
ática, al
ém de infernalmente
furiosa. Esquadrinhou de perto o rosto de Arnie e soube que ele não
estava brincando.
—
Você não pode comprar um carro
—
falou.
—
De que está falando,
afinal? Só tem dezessete anos!
Arnie olhou lentamente, do pai junto
à geladeira, para
a mãe parada
à porta que levava à sala de estar. Havia uma expressão teimosa e
decidida em seu rosto, algo que eu nunca vira antes, que me lembrasse.
Pensei que, se usasse aquela expressão com mais freqüência na escola, os
colegas da cantina não se mostra
riam tão ávidos em massacrá
-
lo.
—
A verdade é que se enganam
—
respondeu ele.
—
Posso comprar
um carro sem qualquer problema. Claro, à prestação seria impossível, mas
uma compra em dinheiro não oferece problema algum. Naturalmente,
registrar um carro aos d
ezessete anos é uma questão totalmente diferente.
Para isso, eu precisaria de sua permissão.
Os dois o fitavam com surpresa, inquietação e crescente raiva.
Quando percebi a última, experimentei uma profunda sensação de dor no
estômago. Apesar de todas as s
uas idéias liberais e comprometimentos
com os trabalhadores das fazendas, as esposas maltratadas, mães solteiras
e o resto, eles manipulavam Arnie completamente. E Arnie se deixava
dirigir.
—
Não me parece legal, falar com sua mãe dessa maneira
—
disse
Mic
hael. Recolocou o iogurte no lugar, conservou a maçã e fechou
lentamente a porta da geladeira.
—
Você é muito novo para ter um carro.
—
Dennis tem um
—
disse Arnie prontamente.
—
Bem, puxa! Como está ficando tarde!
—
falei.
—
Eu já devia estar
chegando em.
casa! Devia estar chegando neste momento! Eu...
-
—
O que os pais de Dennis fazem e o que nós fazemos são coisas
muito diferentes
—
disse Regina Cunningham. Eu jamais ouvira sua voz
soar tão fria. Nunca.
—
E você não tem o direito de fazer semelhante coisa
sem consultar seu pai e a mim sobre...
—
Consultar vocês?
—
rugiu Arnie, de repente.
Derramou o leite. Havia enormes veias em seu pescoço, estiradas
como cordas. Regina recuou um passo, boquiaberta. Eu podia apostar que
o filho
-
patinho
-
feio nunca lhe rugir
a daquela forma, em toda a sua vida.
Michael ficara estupidificado. Estavam tendo um gostinho do que eu já
provara
—
por motivos que só ele saberia explicar, Arnie finalmente
conseguira ter algo que realmente desejava. E que Deus se apiedasse de
quem ficas
se em seu caminho.
—
Consultar vocês? Eu sempre consultei vocês em cada maldita
coisa que já fiz! Em tudo havia uma reunião para discutir e quando era
algo que não me interessava fazer, vocês venciam por dois contra um! Só
que agora não estamos em nenhuma
reunião para discutir o assunto.
Comprei um carro... e está acabado!
—
Pois eu não acho que esteja acabado
—
disse Regina.
Seus lábios se tinham afilado e, curiosamente (ou talvez não), ela
deixara de parecer tão semi
-
aristocrática; era agora como a Rainha
da
Inglaterra ou de algum lugar, com jeans e tudo. Michael estava fora da
situação, dali por diante. Parecia tão surpreso e desgostoso como eu e, por
um instante, senti uma bruta pena do homem. Ele nem ao menos podia ir
para casa jantar e se ver livre daq
uilo: já estava em casa. Ali se
desenrolava uma crua luta pelo poder, entre a velha guarda e a jovem
guarda. Tudo acabaria sendo decidido da mesma forma de antes, com
uma monstruosa exibição de amargura e aspereza. Aparentemente,
Regina estava disposta àqu
ilo, mesmo que não fosse este o caso de
Michael. Eu, no entanto, não queria tomar parte em nada. Levantei
-
me e
caminhei para a porta.
—
Você deixou que ele fizesse isto?
—
perguntou Regina. Olhou
para mim com arrogância, como se nunca tivéssemos rido junto
s, feito
bolos juntos ou participado juntos de acampamentos familiares.
—
Dennis,
estou surpresa com você.
Aquilo me atingiu. Eu sempre gostara da mãe de Arnie, porém
nunca chegara a confiar inteiramente nela, pelo menos desde que
acontecera algo, quando e
u tinha uns oito anos.
Eu e Arnie tínhamos ido de bicicleta até o centro da cidade, para
uma matinê no sábado. Quando voltávamos, ele caíra da bicicleta, em
uma manobra para evitar um cachorro, e machucara bastante a perna.
Levei
-
o para casa de carona em m
inha bicicleta, e Regina foi com ele ao
pronto
-
socorro, onde o médico deu meia dúzia de pontos. Então, por
algum motivo, depois que tudo terminou e se soube que Arnie ia ficar
perfeitamente bom, Regina se voltou contra mim e desandou com sua
língua afiada.
Pregou
-
me um sermão como se fosse sargento
-
chefe. Ao
terminar, eu tremia dos pés à cabeça e estava a ponto de chorar
—
que
diabo, tinha apenas oito anos e havia um bocado de sangue. Não posso
recordar capítulo e versículos de todo o falatório, mas a sensa
ção
generalizada que ficou comigo era perturbadora. Que me lembre, ela
começou por acusar
-
me de não ter tomado conta dele direito
—
como se
Arnie fosse muito mais novo e não quase da minha idade
—
e terminou
dizendo (ou parecendo dizer) que aquilo devia te
r acontecido era comigo.
Agora, a situação parecia repetir
-
se
—
Dennis, você não tomou
conta dele direito
—
e aquilo me irritou. Minha desconfiança quanto a
Regina talvez fosse apenas parte da coisa e, para ser inteiramente sincero,
talvez apenas a menor p
arte. Quando somos crianças (e, afinal de contas,
dezessete anos não são apenas o limite extremo da infância?), tendemos a
ficar ao lado de outras crianças. Um forte e infalível instinto nos diz que,
se não derrubarmos alguns muros e arrombarmos alguns por
tões, nossos
pais
—
com a melhor das intenções
—
ficariam satisfeitos nos mantendo
para sempre no cercado para bebês.
Fiquei zangado, mas disfarcei o melhor que pude.
—
Eu não o deixei coisa nenhuma
—
respondi.
—
Ele quis comprar e
comprou.
—
Antes, eu pod
ia ter contado que Arnie apenas dera um sinal,
mas não faria mais isso. Agora, eu empinava as costas.
—
A verdade é que
tentei convencê
-
lo a não comprar.
—
Duvido que tenha tentado com insistência
—
atacou Regina.
Ela bem poderia ter encerrado a frase, diz
endo: Você não me engana,
Dennis. Sei que os dois estavam de combinação nisto. Havia manchas
vermelhas nas maçãs de seu rosto e os olhos dela atiravam faíscas. Estava
procurando fazer com que me sentisse novamente um garoto de oito anos
e não se saía mal n
a história. No entanto, mantive minha posição.
—
Ora, pensando bem, afinal não foi uma coisa tão terrível assim.
Ele comprou o carro por duzentos e cinqüenta dólares e...
—
Duzentos e cinqüenta dólares?
—
explodiu Michael.
—
Que
espécie de carro se consegu
e por duzentos e cinqüenta dólares?
Seu anterior e incômodo desligamento
—
se é que existira, e não o
simples choque, ao som da tranqüila voz de seu filho, erguida em
protesto
—
desaparecera. O preço do carro é que o despertara. E ele olhou
para Arnie com
tão aberto desdém que me senti mal. Eu gostaria de ter
filhos um dia e, se os tiver, espero poder deixar fora de meu repertório
aquela particular expressão.
Fiquei dizendo para mim mesmo que não me alterasse, que aquilo
não era da minha conta, que não havi
a motivos para me irritar... porém o
bolo que comera se grudara no meio de meu estômago, em uma grande
bola pegajosa, e sentia a pele fervendo. Os Cunningham tinham sido
minha segunda família, desde que eu era garotinho, e podia sentir dentro
de mim todos
os aborrecidos sintomas físicos de uma disputa familiar.
—
Podemos aprender muito sobre carros, quando consertamos um
já velho
—
argumentei. De repente, soava para mim mesmo como uma
imitação maluca de LeBay.
—
E é preciso um bocado de trabalho, antes
mesm
o que fique bom para rodar na rua. (Se chegar a ficar, pensei.) Pode
-
se encarar isso como... como um hobby.
—
Eu encaro como loucura
—
disse Regina.
De súbito, eu só queria ir embora. Creio que, se as vibrações
emocionais ali dentro não estivessem tão pesa
das, até acharia graça
naquilo. De certa forma, passara a defender o carro de Arnie, quando
decidi que era um despropósito seguir em frente.
—
Pensem o que quiserem
—
murmurei
—
, mas me deixem fora
disto. Vou para casa.
—
Ótimo!
—
exclamou Regina, com aspe
reza.
—
Muito bem
—
disse Arnie, em voz inexpressiva. Levantou
-
se.
—
Vou dar o fora desta merda. Regina engoliu em seco e Michael piscou,
como se tivesse sido esbofeteado.
—
O que foi que disse?
—
bufou Regina.
—
O que foi que... ?
—
Não sei por que estão t
ão irritados
—
respondeu Arnie, em uma
voz distante, controlada
—
, mas não vou ficar aqui sentado ouvindo um
monte de besteiras de cada um. Você quis que eu fizesse os cursos do
colégio. Estou fazendo.
—
Ele olhou para a mãe.
—
Quis que eu entrasse
para o
clube de xadrez, em vez de ficar na banda da escola: muito bem,
estou lá também. Consegui atravessar dezessete anos sem envergonhá
-
la
no clube de bridge ou ir parar na cadeia.
Os dois estavam olhando para ele, de olhos esbugalhados, como se
uma das paredes
da cozinha tivesse ganho lábios subitamente e começasse
a falar.
Arnie os encarou, seus olhos eram estranhos, brancos e perigosos.
—
Estou dizendo a vocês que vou ter esse carro. É só isso.
—
Arnie, o seguro...
—
começou Michael.
—
Pare com isso!
—
gritou
Regina.
Ela não queria começar a falar sobre os problemas específicos,
porque esse seria o primeiro passo no caminho para uma possível
aceitação. Sua única idéia era esmagar a rebelião sob o calcanhar, rápida e
completamente. Há momentos em que os adultos
nos aborrecem de tal
forma, que eles jamais compreenderão; creio que vocês sabem disso. Eu
vivia um desses momentos e isso só fez com que me sentisse pior. Quando
Regina gritou com o marido, pude vê
-
la vulgar e assustada, ao mesmo
tempo. E, como gostava d
ela, desejaria nunca tê
-
la visto de um jeito ou de
outro.
Ainda assim, permaneci parado à porta, querendo ir embora, mas
doentiamente fascinado pelo que acontecia
—
a primeira discussão em
grande escala que já presenciara na família Cunningham, talvez a ún
ica.
Sem dúvida, aquilo era uma caretice, marcando no mínimo dez, na escala
Richter.
—
É melhor você ir, Dennis, enquanto resolvemos isto
—
disse
Regina, carrancuda.
—
Certo
—
falei
—
, mas acho que estão fazendo tempestade num
copo d'água. Esse carro... Re
gina... Michael... se vocês o vissem... talvez vá
de zero a trinta em vinte minutos, se chegar a se mover...
—
Dennis! Vá embora! Eu fui.
Quando entrava em meu Duster, Arnie saía pela porta dos fundos,
aparentemente afirmando sua intenção de ir embora. Os
pais o seguiram,
agora parecendo preocupados e também infelizes. Eu podia entender um
pouco o que eles sentiam. Fora tudo tão repentino como um ciclone,
descendo de um claro céu azul.
Liguei o motor e dei marcha à ré, até a rua sossegada.
Evidentemente, mu
ita coisa acontecera, desde que nós dois havíamos
saído do trabalho às quatro, duas horas atrás. Então, eu estava faminto a
ponto de comer quase qualquer coisa (exceto torta de algas). Agora, meu
estômago estava tão embrulhado que por pouco não devolvia tu
do quanto
fora engolido.
Quando parti, eles três estavam parados na entrada para carros, em
frente de sua garagem para dois automóveis (o Porsche de Michael e a
camionete Volvo de Regina estavam enfiados lá dentro
—
eles têm seus
carros, pensei, com certa
maldade; estão pouco ligando), ainda discutindo.
É isso aí, pensei, um tanto triste e aborrecido. Eles o derrotarão,
LeBay embolsará os vinte e cinco dólares de Arnie e aquele Plymouth 58
ficará em seu gramado por outros mil anos. Os pais de Arnie já tinha
m
feito coisas semelhantes com ele. Porque Arnie era um perdedor. Até
Regina e Michael sabiam disso. Ele era inteligente, e quando se conseguia
varar seu exterior tímido e desconfiado, ficava divertido, amável e... dócil,
acho eu. Dócil, exatamente o termo
que faltava. Dócil, mas um perdedor.
Seus pais sabiam disso, tão bem como os soquetes
-
brancas da
cantina, que implicavam com ele aos gritos pelos corredores e esfregavam
polegares em seus óculos. Eles sabiam que Arnie era um perdedor e o
derrotariam. Foi
o que pensei. Só que, desta vez, estava enganado.
A
M
ANHÃ
S
EGUINTE
Meu velho disse "Filho,
Me dê uma carona para eu ir beber,
Se você ainda dirige aquele
Lincoln envenenado. "
—
Charlie Ryan
Na manhã seguinte, passei pela casa de Arnie às 6:30 e apenas p
arei
junto ao meio
-
fio, não querendo entrar, mesmo imaginando que seus pais
ainda estariam na cama
—
na noite anterior houvera demasiadas
vibrações negativas flutuando naquela cozinha, para que me sentisse
tentado pelo costumeiro café com biscoitos, antes
de ir trabalhar.
Arnie demorou quase cinco minutos para sair e comecei a pensar se
ele não cumprira a ameaça de ir realmente embora. Então a porta dos
fundos se abriu e ele veio descendo pela entrada de carros, a marmita do
almoço balançando contra sua per
na.
Ele entrou no carro, bateu a porta e disse:
—
Vamos rodando, Jeeves.
Este era um dos chistes padronizados de Arnie, quando estava de
bom humor.
Comecei a rodar e olhei para ele cautelosamente, quase decidido a
falar alguma coisa, mas em seguida decidin
do ser melhor esperar que ele
começasse... se é que tinha alguma coisa para dizer.
Durante bastante tempo, pareceu que ele não tinha. Fizemos a maior
parte do caminho para o trabalho sem qualquer conversa entre nós, a não
ser o som da WMDY, a estação local
de rock e soul. Arnie marcava o
compasso distraidamente, batendo na perna.
Por fim, ele disse:
—
Lamento que você tenha se envolvido naquilo a noite passada,
cara.
—
Está tudo certo, Arnie.
—
Nunca lhe ocorreu
—
disse ele, abruptamente
—
que os pais não
p
assam de crianças desenvolvidas, até que os filhos os empurrem para
que se tornem adultos? Geralmente esperneando e chorando?
Sacudi a cabeça.
—
Vou lhe dizer o que penso
—
continuou ele. Estávamos agora
chegando ao local da construção; o trailer da Garson
Brothers ficava a
apenas duas rampas além. Naquela manhã, o trânsito era leve e sonolento.
O céu tinha uma suave cor de pêssego.
—
Acho que uma das funções de
ser pai é destruir os filhos.
—
Parece bastante racional
—
respondi.
—
Os meus estão sempre
quer
endo destruir
-
me. Esta noite, mamãe esgueirou
-
se com um
travesseiro e o segurou contra meu rosto. Na véspera, foi papai, correndo
atrás de mim e de minha irmã com uma chave de fenda.
Eu estava brincando, mas me perguntei o que Michael e Regina
diriam, se p
udessem ouvir nossa conversa.
—
A princípio, sei que parece um tanto louco
—
disse Arnie,
imperturbável
—
, mas muita coisa é esquisita, antes de começarmos a
considerá
-
las. Complexo de pênis. Conflitos edipianos. O sudário de
Turim.
—
Para mim, é tudo best
eira
—
respondi.
—
Você teve uma
discussão com seus pais, só isso.
—
Acredito nisso, realmente
—
disse Arnie, com ar pensativo.
—
Não que eles soubessem o que faziam; não acredito nisso. E sabe por quê?
—
Diga.
—
Porque assim que se tem um filho, a gente t
em certeza de que irá
morrer. Quando temos um filho, vemos nossa própria sepultura.
—
Sabe de uma coisa, Arnie?
—
O quê?
—
Acho que isso é uma merda de macabro. Nós dois explodimos em
gargalhadas.
—
Não falei nesse sentido
—
replicou ele.
Paramos no local
de estacionamento e desliguei o motor. Ficamos ali,
ainda por um momento.
—
Eu disse a eles que não seguiria mais os cursos do colégio
—
declarou Arnie.
—
Disse que me matricularia em T.V. Do começo ao fim.
T.V. era treinamento vocacional. A mesma espécie
de coisa feita
pelos garotos dos reformatórios para menores, exceto, naturalmente, que
eles não voltam para casa à noite. Seguem o que se poderia chamar de
programa compulsório de internato.
—
Arnie...
—
comecei, sem saber bem como continuar. A forma
como
aquilo brotara do nada me dava a impressão de um capricho.
—
Você ainda é menor, Arnie. Eles têm que assinar o seu programa...
—
Claro, eu sei disso
—
respondeu Arnie. Sorriu para mim sem
humor e, àquela claridade fria da manhã, pareceu ao mesmo tempo mais
velho e muito, muito mais jovem... algo assim como uma criança cínica.
—
Eles têm o poder de cancelar todo o meu programa para o outro ano, se
quiserem, trocando
-
o por um de sua preferência. Querendo, podem
matricular
-
me em Economia Doméstica e Mundo da M
oda. A lei diz que
podem. Entretanto, não há nenhuma lei dizendo que podem me obrigar a
fazer o que quiserem.
Aquilo me abriu os olhos
—
quero dizer, mostrou a que distância ele
fora. Como era possível que um calhambeque caindo aos pedaços chegara
a signif
icar tanto para ele e tão depressa? Nos dias seguintes, essa
pergunta ficou insistindo comigo de maneiras diferentes, como eu sempre
imaginara que seria um desgosto recente. Quando Arnie disse a Michael e
Regina que ia ficar com o carro, falava sério. Ele
seguira diretamente para
aquele lugar onde eram mais fortes as suas expectativas e avançara com
uma impiedosa diligência que me surpreendia. Não creio que táticas
menores funcionassem com Regina, mas a verdade é que Arnie conseguira
surpreender
-
me. De fato
, ele me surpreendera um bocado. O que fervia
por baixo daquilo era que, se Arnie passasse seu último ano em T.V., a
universidade seria jogada pela janela. E, para Michael e Regina, isso era
uma impossibilidade.
—
Quer dizer que... então eles desistiram?
E
ra quase como extorquir
-
lhe as respostas, porém eu não podia
deixar as coisas assim, enquanto não soubesse tudo.
—
Não dessa maneira. Eu disse que encontraria um lugar para
guardar o carro e que não tentaria submetê
-
lo a uma vistoria ou registro
sem a apro
vação deles.
—
Acha mesmo que vai levar a melhor nisto?
Ele esboçou um breve e soturno sorriso, ao mesmo tempo confiante
e amedrontado. Era o sorriso de um operador de escavadeira, baixando a
lâmina de um Cat D
-
9, diante de um barranco especialmente difíci
l.
—
Levarei
—
respondeu Arnie.
—
Quando quero, eu levo a melhor.
E sabem de uma coisa? Acreditei que ele levaria mesmo.
A
RNIE
S
E
C
ASA
Recordo o dia
Quando o escolhi entre todo aquele ferro
-
velho,
Eu podia dizer que ele era ouro,
Debaixo daquela camada de
ferrugem,
E sem batidas...
—
The Beach Boys
Podíamos ter duas horas de trabalho extra naquela noite de sexta
-
feira, mas não quisemos. Recolhemos nossos cheques no escritório,
descemos até a filial de Libertyville do Banco de Empréstimos e Poupança
de Pit
tsburgh e os descontamos. Depositei a maior parte do meu em uma
conta de poupança, deixei cinqüenta na conta corrente (ter uma conta
corrente fazia com que me sentisse inquietantemente adulto
—
imagino
que a sensação se apague com o tempo) e fiquei com vin
te em dinheiro.
Arnie retirou todo o seu cheque em dinheiro vivo.
—
Tome
—
disse ele, estendendo
-
me uma nota de dez.
—
Não
—
respondi.
—
Fique com ela, cara. Vai precisar de cada
centavo, antes de terminar aquela lanternagem.
—
Aceite
—
insistiu ele.
—
Eu
pago minhas dívidas, Dennis.
—
Guarde o dinheiro. Sinceramente.
—
Aceite.
Ele estendia a nota, inexoravelmente. Apanhei
-
a, mas o obriguei a
ficar com o dólar que sobrava. Arnie não queria aceitar.
Ao cruzarmos a cidade em direção ao terreno da casa de LeBa
y,
Arnie ficou mais agitado, tocando o rádio alto demais, marcando um
improvisado compasso primeiro batendo nas coxas, depois no painel de
instrumentos. Foreigner começou a cantar
"Dirty White Boy
".
—
É a história da minha vida, Arnie meu chapa
—
falei.
El
e riu, muito alto e por muito tempo. Agia como homem esperando
que a mulher tenha um bebê. Por fim, percebi que estava assustado,
temendo que LeBay houvesse vendido o carro, fora do combinado.
—
Fique calmo, Arnie
—
falei.
—
Ele está lá.
—
Estou calmo, est
ou calmo
—
disse, oferecendo
-
me um largo,
brilhante e falso sorriso. Naquele dia, sua pele estava pior do que nunca, e
me perguntei (não pela primeira, nem pela
última vez) como se sentiria
sendo Arnie Cunningham, encurralado atrás daquele rosto gotejante,
de
segundo a segundo, minuto a minuto e...
—
Ora, pare de suar! Está agitado como se tivesse borrado as calças,
antes mesmo de chegarmos lá!
—
Não estou suando
—
disse ele.
Batucou outro nervoso compasso no painel de instrumentos,
justamente para me prova
r que não estava nervoso.
"Dirty White Boy"
, de
Foreigner, foi substituído por
"Jukebox Heroes"
, também cantado por ele.
Era um anoitecer de sexta
-
feira e o
Block Party Weekend
já começara, em
FM
-
104. Quando recordo aquele ano, meu último ano escolar, tenh
o a
sensação de que poderia medi
-
lo em quarteirões de rock... e uma
ascendente, uma fantástica sensação de terror.
—
O que significa isso exatamente?
—
perguntei.
—
O que há de
mais nesse carro?
Ele ficou olhando para Libertyville Avenue sem dizer nada, du
rante
um tempão. Depois desligou o rádio com um gesto rápido, cortando o vôo
de Foreigner pelo meio.
—
Não sei ao certo
—
respondeu.
—
Talvez seja porque, pela
primeira vez, desde que fiz onze anos e comecei a ficar com espinhas,
tenha visto uma coisa aind
a mais feia do que eu. Não é o que queria que
eu dissesse? Isto não o deixa em uma categoriazinha elegante?
—
Ei, Arnie, o que há?
—
falei.
—
Este aqui é o Dennis, lembra
-
se de
mim?
—
Claro que me lembro
—
replicou ele.
—
E ainda somos amigos,
certo?
—
Cer
to, pela última vez que chequei. Mas o que tem isso a ver
com...
—
Significa que não precisamos mentir um para o outro. Pelo menos,
é o que penso. Portanto, quero lhe dizer, talvez nem tudo seja legal. Sei o
que sou. Sou feio. Não faço amigos com facilidad
e. De certa forma...
afugento as pessoas. Não é minha intenção, mas acontece. Você entende?
Assenti com certa relutância, Como ele dissera, éramos amigos e isso
significava que as mentiras e tolices deviam ser reduzidas ao mínimo.
Ele assentiu de volta, co
m naturalidade.
—
Outras pessoas
—
disse, para então acrescentar,
cautelosamente
—
, você por exemplo Dennis, nem sempre entendem o
que isto significa. Quando a gente é feio e os outros riem de nós, a maneira
como vemos o mundo se modifica. E muito difícil
manter o senso de
humor. É uma coisa que se gruda por dentro. Às vezes, até é difícil
permanecer lúcido.
—
Bem, eu posso entender isso, mas...
—
Não
—
disse ele, calmo.
—
Você não pode entender. Pensa que
pode, mas não pode. Não mesmo! Mas você gosta de mi
m, Dennis...
—
Eu adoro você, cara
—
falei.
—
Sabe muito bem disso.
—
Talvez
—
respondeu ele
—
, e fico satisfeito. Se gosta de mim, é
porque sabe que existe algo mais... qualquer coisa por baixo das espinhas
e de meu rosto imbecil...
—
Seu rosto não é imbe
cil, Arnie
—
discordei.
—
Pode ser esquisito,
mas não imbecil.
—
Foda
-
se
—
disse ele, sorrindo.
—
Foda
-
se também o pangaré que vai montar, Cavaleiro da
Montanha.
—
De qualquer modo, aquele carro é assim. Há qualquer coisa por
baixo dele. Algo mais. Algo me
lhor. Eu sinto, é só isso.
—
Sente?
—
Exato, Dennis
—
disse ele, tranqüilo.
—
Eu sinto.
Dobrei para Main Street. Estávamos chegando à casa de LeBay. De
repente, tive uma idéia absolutamente idiota. E se o pai de Arnie tivesse
convocado alguns de seus amigo
s ou alunos para irem à casa de LeBay e
comprar aquele carro, tirando
-
o de seu filho? Poder
-
se
-
ia dizer que seria
um toque maquiavélico, só que a mente de Michael Cunningham era mais
do que ligeiramente tortuosa. Sua especialidade era História Militar.
—
E
u vi aquele carro e senti tal
atração
por ele... Nem mesmo para
mim sei explicar bem como foi, mas...
A voz se extinguiu, aqueles olhos cinzentos e sonhadores pareciam
ver o futuro.
—
Eu vi que poderia melhorá
-
lo
—
concluiu.
—
Consertá
-
lo, quer dizer, não
é?
—
Sim... bem, não. Assim, seria muito impessoal. A gente conserta
mesas, cadeiras, essas coisas. O cortador de grama, quando não quer
funcionar. E carros comuns.
Talvez ele tivesse visto minhas sobrancelhas erguidas. De qualquer
modo, deu uma risada
—
u
ma risadinha defensiva.
—
Certo, percebo como a coisa soa
—
disse.
—
Nem mesmo gostaria
de colocar em palavras, porque sei como soa, mas você é um amigo,
Dennis. E isto significa um mínimo de conversa fiada. Não acredito que
aquele seja um carro comum. Não
sei por que penso assim, mas... é o que
penso.
Abri a boca para dizer algo que mais tarde poderia lamentar, algo
sobre tentar olhar as coisas de outra forma ou mesmo evitar um
comportamento obsessivo. Entretanto, naquele exato momento, dobramos
a esquina
e entramos na rua de LeBay.
Arnie encheu os pulmões de ar, em uma inspiração rude e dolorida.
No gramado de LeBay, havia um retângulo ainda mais amarelado,
mais pelado e feio do que o resto do terreno. Perto de uma extremidade
do retângulo, havia uma manch
a de óleo com aparência doentia, que
mergulhara no solo, matando tudo que ali crescera antes. Aquele pedaço
retangular de terreno era tão infernalmente extenso que, acho, quem
olhasse para ele por muito tempo ficaria cego.
Era ali que estivera o Plymouth 5
8, no dia anterior.
O chão continuava lá, mas o Plymouth se fora.
—
Arnie
—
falei, quando encostei o carro no meio fio
—
, vá com
calma. Não se descontrole, pelo amor de Deus!
Ele não me deu a menor atenção e até duvido que me tivesse ouvido.
Seu rosto fica
ra lívido. As equimoses que o cobriam tornaram
-
se
purpúreas, ganhando relevo. Antes mesmo que eu freasse, ele já
escancarava a porta de meu Duster, no lado do passageiro, e mergulhava
para fora.
—
Arnie...
—
Foi meu pai
—
disse ele, com raiva e desgosto.
—
Posso farejar
aquele filho da mãe em
tudo
isto!
Disparou em seguida, correndo pelo gramado até a porta de LeBay.
Saí do carro e corri atrás dele, refletindo que aquela merda nunca
mais teria fim. Mal podia acreditar que acabara de ouvir Arnie
Cunningham c
hamar Michael de filho da mãe.
Arnie erguia o punho para martelar a porta, quando ela se abriu.
Roland D. LeBay, em pessoa, surgiu à vista. Agora usava uma camisa
sobre o colete para as costas. Olhou para o rosto enfurecido de Arnie com
um sorriso benignam
ente cobiçoso.
—
Olá, filho
—
disse.
—
Onde está ele?
—
perguntou Arnie, fora de si.
—
Nós fizemos um
negócio! Droga, fizemos um negócio! Entregou
-
me um recibo!
—
Baixe a fervura
—
disse LeBay. Então me viu, parado junto ao
último degrau, com as mãos enfia
das nos bolsos.
—
O que há de errado
com seu amigo, filho?
—
O carro sumiu
—
falei.
—
É o que há de errado com ele.
—
Quem o comprou?
—
gritou Arnie.
Eu nunca o vira tão enfurecido. Se tivesse uma arma naquele
momento, creio que a teria encostado à têmpora
de LeBay. Fiquei
fascinado, mesmo sem querer. Aquilo era como se um coelho tivesse
ficado subitamente carnívoro. Que Deus me perdoe, mas cheguei a pensar,
em um relance, se Arnie não teria um tumor no cérebro.
—
Quem o comprou?
—
repetiu LeBay brandamente
.
—
Até agora,
ninguém, filho. Bem, você deu um sinal pelo carro. Eu o levei para a
garagem, eis tudo. Coloquei o pneu sobressalente e troquei o óleo.
O velho empertigou
-
se e então ofereceu
-
nos um sorriso
absurdamente magnânimo.
—
Você é um grande sujeito
—
falei.
Arnie o fitou com incerteza, depois girou bruscamente a cabeça para
a porta fechada da modesta garagem para um carro, anexada à casa por
um corredor coberto. Um corredor que, como tudo o mais na propriedade
de LeBay, já vira melhores dias.
—
Por o
utro lado, não quis deixá
-
lo aqui fora, já que você tinha
dado um sinal de compra
—
disse ele.
—
Um ou dois caras desta rua
podiam criar problemas. Certa noite, um garoto atirou uma pedra em meu
carro. Oh, claro, tenho alguns vizinhos saídos diretamente da
B.E.P.
—
O que é isso?
—
perguntei.
—
É a Brigada dos Espíritos de Porco, filho.
Ele varreu o lado oposto da rua com um maligno olhar de caçador à
espreita, abrangendo os carros simples e econômicos que agora tinham
retomado do trabalho para casa, as cria
nças brincando de pique e pulando
corda, as pessoas sentadas à porta de casa e bebericando, à primeira brisa
da noite fria.
—
Eu gostaria de saber quem jogou aquela pedra
—
disse ele, em
voz branda.
—
Sim, senhor, eu gostaria de saber quem foi.
Arnie pigar
reou.
—
Sinto muito ter
-
lhe falado daquela maneira.
—
Não tem importância
—
respondeu LeBay vivamente.
—
Gosto
de ver um sujeito exigir o que é seu... ou quase seu. Trouxe o dinheiro,
garoto?
—
Sim, trouxe.
—
Muito bem, entrem. Você e seu amigo também. Vou
passar um
recibo de compra em seu nome e tomaremos um copo de cerveja para
comemorar.
—
Não, obrigado
—
falei.
—
Eu fico aqui fora, se não se importa.
—
Isso é com você, filho
—
disse LeBay... e me piscou o olho.
Até hoje não sei bem o que significaria aq
uela piscadela. Os dois
entraram e a porta bateu, fechando
-
se atrás deles. O peixe caíra na rede e
agora ia ser escamado.
Sentindo
-
me deprimido, caminhei pelo corredor coberto até a
garagem e tentei abrir a porta. Ela deslizou para cima com facilidade e
as
pirei os mesmos odores já sentidos, quando abrira a porta do Plymouth,
na véspera: óleo, estofamento antigo, o calor acumulado de um longo
verão.
Ancinhos e alguns velhos apetrechos de jardim alinhavam
-
se ao
longo de uma parede. Na outra, uma mangueira vel
híssima, uma bomba
de bicicleta e um antigo saco de golfe, cheio de tacos enferrujados. No
meio da garagem, com a proa virada para a saída, estava Christine, o carro
de Arnie, parecendo ter um quilômetro de comprimento naquela época,
em que os próprios Cad
illacs davam uma idéia de comprimidos e
semelhantes a caixotes. A confusa teia de aranha de rachaduras a um lado
do pára
-
brisa captou a claridade, transformando
-
a em um prateado sujo.
Um garoto com uma pedra
—
tinha dito LeBay
—
, ou talvez um ligeiro
acide
nte, ao voltar para casa, vindo de uma reunião com os VFW (os
veteranos de guerras no estrangeiro), após uma noite bebendo uísque
misturado a cerveja e contando histórias sobre a Batalha do Bulge ou de
Pork Chop Hill. Os bons e velhos tempos, quando um hom
em podia ver a
Europa, o Pacífico e o misterioso Oriente de trás da mira de uma bazuca.
Quem podia saber... e o que importava? De qualquer modo, não ia ser
fácil encontrar um pára
-
brisa para reposição tão grande como aquele.
E nem ia ser barato.
Oh, Arnie!
pensei. Cara, você está indo muito fundo.
O pneu que LeBay trocara descansava contra a parede. Agachei
-
me
sobre as mãos e os joelhos, para uma espiada debaixo do carro. Uma
recente mancha de óleo começava a formar
-
se ali, negra contra o fantasma
acastanha
do de outra mais antiga e mais larga, que se infiltrara no
cimento, durante um período de anos. Aquilo não diminuiu minha
depressão. Sem dúvida, o bloco do motor devia estar rachado.
Dei a volta até o lado do motorista e, ao segurar o volante, avistei
uma
lata de lixo no canto mais distante da garagem. Por sobre a borda,
assomava uma enorme garrafa de plástico. As letras SAPPH eram visíveis
acima da borda.
Grunhi. Muito bem, ele trocou o óleo. Quanta gentileza. Retirara o
velho
—
o que quer que houvesse sob
rado dele
—
e despejara alguns
quartos de Sapphire Motor Oil. É o troço que se consegue a 3 dólares e
cinqüenta em Mammoth Mart, por lata de cinco galões reciclados. Roland
D. LeBay era um verdadeiro príncipe, sem dúvida. Roland D. LeBay era
um sujeito for
midável.
Abri a porta do carro e deslizei para trás do volante. Agora, o cheiro
na garagem não parecia tão pesado ou tão carregado com impressões de
desuso e fracasso. O volante era amplo e vermelho
—
um volante de
confiança. Tornei a olhar para aquele esp
antoso velocímetro, aquele
velocímetro calibrado, não para 70 ou 80, mas todo o caminho até 120
milhas por hora. Não havia a marcação por quilômetro, em pequenos
números vermelhos, abaixo das milhas; quando aquele bebê rodara para
fora da linha de montagem
, a idéia do sistema métrico ainda não ocorrera
a ninguém em Washington. Tão pouco vi qualquer grande 55 em
vermelho no velocímetro. Naquele tempo, a gasolina saía por 29,9 o galão,
talvez menos, se em sua cidade estivesse em prática o preço de guerra. Os
embargos ao petróleo árabe e as penalidades quanto ao limite de
velocidade, ainda estavam a quinze anos de distância.
Os bons e velhos tempos,
pensei, e tive que sorrir um pouco. Remexi
no lado esquerdo do assento, embaixo, e encontrei o pequeno console co
m
o botão que movia o banco para diante e para trás, para cima e para baixo
(se ainda funcionava, claro). Mais poder para você, como se diz por aí.
Havia um condicionador de ar (com
toda certeza,
aquilo não funcionava),
controle para velocidade de cruzeiro
e um enorme rádio com botões de
apertar e montanhas de cromados
—
AM apenas, é claro. Em 1958, a FM
era principalmente um deserto vazio.
Segurei o volante com as duas mãos e algo aconteceu.
Mesmo hoje, depois de muito refletir, não imagino exatamente o qu
e
fosse. Uma visão, talvez
—
mas se fosse, talvez não tivesse grande
importância. Acontece que, por um momento, aquele estofamento rasgado
parecia ter desaparecido. Agora estava inteiro, desprendendo um cheiro
agradável de vinil... ou talvez aquele cheiro
fosse de couro verdadeiro. As
partes gastas da direção haviam sumido; o cromado piscava alegremente
à claridade noturna do verão, entrando pela porta da garagem.
Vamos sair daqui e dar uma volta, garotão,
Christine pareceu sussurrar,
em meio ao quente silê
ncio estivai da garagem de LeBay.
Vamos rodar por
aí.
Então, só por um instante, pareceu que
tudo
mudara. Aquela
horrorosa confusão de rachaduras no pára
-
brisa sumira
—
ou era esta a
impressão. O pequeno trecho do gramado de LeBay, que eu podia ver dali,
n
ão estava amarelado, ralo e maltratado, mas ficara de um verde
exuberante e farto, recentemente aparado. A calçada mais além estava
cimentada de fresco, sem uma fenda no piso à vista. Eu vi (pensei ou
sonhei ter visto) um motor de Cadillac 57 à minha frent
e. Aquele cavalo
empinado GM era de um verde
-
hortelã, não havia o menor salpico de
ferrugem na lataria, os pneus eram enormes, de banda branca, com calotas
refletindo mais que espelhos. Um Cadilac do tamanho de um iate, por que
não? A gasolina era quase tã
o barata como a água da torneira.
Vamos sair daqui e dar uma volta, garotão... Vamos rodar por aí.
Claro, por que não? Eu podia ligar o motor e rumar para o centro da
cidade, em direção ao antigo ginásio que ainda estava de pé
—
ele só se
incendiaria seis
anos mais tarde, em 1964
—
e eu poderia ligar o rádio,
para ouvir Chuck Berry cantando
"Maybelline"
ou os Everlys em "
Wake up
little Susie".
Talvez Robin Luke, gemendo "
Susie Darling
'. E então, eu...
E então saí daquele carro, o mais depressa que pude. A
porta se
abriu com um infernal rangido enferrujado e arranhei fundo o cotovelo,
em uma das paredes da garagem. Empurrei a porta para que se fechasse
(falando francamente, eu nem queria tocar nela) e então fiquei lá parado,
contemplando o Plymouth que, salv
o algum milagre, logo pertenceria a
meu amigo Arnie. Esfreguei o osso arranhado do cotovelo. Meu coração
batia aceleradamente.
Nada. Não havia cromados novos nem novo estofamento. Ao
contrário, havia uma profusão de amassaduras e ferrugem, faltava um
farol
dianteiro (detalhe que, na véspera, me passara despercebido) e a
antena do rádio se inclinava em um ângulo esquisito. Mais aquela poeira,
o cheiro sujo de velhice.
Naquele momento, decidi que não gostava do carro de meu amigo
Arnie.
Saí da garagem, olhand
o constantemente para trás por sobre o
ombro
—
sei lá por quê, mas não gostava daquilo às minhas costas. Sei
que pode parecer absurdo, mas era como me sentia. E lá estava o carro,
com o radiador amassado e enferrujado, sem nada de sinistro e nem
mesmo estr
anho, apenas um velho automóvel Plymouth, com uma
etiqueta adesiva de inspeção, que caducara em 1º de junho de 1976 muito
tempo atrás.
Arnie e LeBay saíam da casa. Arnie tinha na mão um pedaço de
papel, que deduzi ser seu recibo de compra. As mãos de LeBay
estavam
vazias; ele já fizera o dinheiro desaparecer.
—
Espero que desfrute bastante da máquina
—
dizia LeBay,
fazendo
-
me pensar em um gigolô muito idoso, engambelando um rapaz
muito novo. Senti uma onda de pura aversão por ele... ele com sua
psoríase no
crânio e seu suado colete ortopédico.
—
Creio que a desfrutará.
Com o tempo.
Seus olhos ligeiramente remelosos encontraram os meus, fixaram
-
se
neles por um segundo e depois deslizaram de volta a Arnie.
—
Com o tempo
—
repetiu.
—
Sim, senhor, tenho certeza
disso
—
respondeu Arnie, alheiamente.
Moveu
-
se para a garagem como um sonâmbulo e ficou parado, olhando
seu carro.
—
As chaves estão nele
—
disse LeBay.
—
Terá que levá
-
lo daqui.
Compreende, não?
—
E o motor dará partida?
—
Deu partida ontem para mim, à no
ite
—
disse LeBay, mas seus
olhos se voltaram para o horizonte. Depois em um tom de quem lavou as
mãos em todo aquele negócio, acrescentou:
—
Seu amigo aqui deve ter
algum cabo no porta
-
mala.
Bem, para dizer a verdade, eu
tinha
o cabo no porta
-
mala, porém
não gostei muito de LeBay ter adivinhado isso. Não gostei que ele
adivinhasse, porque... Suspirei de leve. Porque não queria ser envolvido
no futuro relacionamento de Arnie com o calhambeque que havia
comprado. No entanto, estava me vendo ser arrastado par
a aquilo, passo a
passo.
Arnie cessara inteiramente a conversa. Caminhou para a garagem e
entrou no carro. O sol do fim da tarde agora batia em cheio sobre o carro e
vi a pequena nuvem de poeira que subiu quando Arnie se sentou, e sacudi
automaticamente os
meus fundilhos. Por um instante, ele ficou apenas
parado diante do volante, as mãos segurando
-
o frouxamente, e senti que
minha inquietação voltava. De certa forma, era como se o Plymouth o
tivesse engolido. Disse a mim mesmo para parar com aquilo, que não
havia nenhuma maldita razão para que continuasse agindo como uma
menininha imbecil da sétima série.
Então, Arnie inclinou
-
se ligeiramente. O motor começou a dar
partida, depois morreu. Virando
-
me, atirei um olhar irritado e acusador
para LeBay, porém ele
voltara a estudar o céu, como que em busca de
chuva.
Aquele motor não ia pegar, não ia pegar de maneira alguma. Meu
Duster estava em ótimo estado, mas os dois carros que eu tivera antes
eram calhambeques (calhambeques
recauchutados
e nenhum deles
pertencen
do à mesma categoria de Christine), portanto, ficara bem
familiarizado com aquele som nas manhãs frias de inverno, aquele lento e
cansado ruído desconjuntado, indicando que a bateria arranhava o fundo
do barril.
Rurr
-
rurr
-
rurr... rurr... ru
rr
... ru
rr
... ru
rr...
—
Não se preocupe, Arnie
—
falei.
—
Não vai pegar nunca.
Ele nem mesmo ergueu a cabeça. Desligou e tornou a girar a chave
na ignição. O motor resmungou, com dolorosa e difícil lentidão.
Encaminhei
-
me para LeBay.
—
Não podia tê
-
lo deixado trabalhar o
tempo suficiente para
carregar um pouco a bateria, pelo menos?
—
perguntei.
LeBay me fitou com seus olhos remelentos e amarelados, sem nada
dizer. Depois começou a perscrutar novamente o céu, pesquisando chuva.
—
O mais provável é que nem tenha chegado a t
rabalhar. Talvez
você tenha arranjado uns dois amigos que o ajudaram a empurrá
-
lo até a
garagem. Se é que um velho imbecil como você tem amigos.
Ele baixou os olhos para mim.
—
Você não sabe tudo, filho
—
disse.
—
Ainda nem aprendeu a
enxugar atrás das ore
lhas. Quando tiver passado por duas guerras, como
eu...
—
Suas duas guerras que se fodam!
—
repliquei deliberadamente.
Caminhei para a garagem, onde Arnie continuava tentando ligar o
motor de seu carro. Pensei que seria mais fácil secar o Atlântico com um
canudinho de palha ou ir até Marte em um balão de ar quente.
Rurr... rurr... rurr...
Logo o último ohm, o último erg, seriam sugados daquela velha
bateria da Sears, não restando senão o mais desanimador de todos os sons
automotrizes, ouvidos tão comumente
em estradas secundárias
encharcadas de chuva e auto
-
estradas desertas: o clique estéril e
monótono do solenóide, seguido por um terrível som semelhante a um
chocalho.
Abri a porta do lado do motorista.
—
Vou apanhar meus cabos
—
falei. Ele ergueu os olhos.
—
Acho que ele vai pegar para mim
—
respondeu.
Senti meus lábios se distenderem em um largo sorriso de dúvida.
—
De qualquer modo, vou buscar os cabos.
—
Está bem, já que você quer
—
Arnie respondeu com ar ausente.
Então, em uma voz quase inaudível, acres
centou:
—
Vamos, Christine! O
que me diz?
No mesmo instante, aquela voz despertou em minha cabeça e
tornou a falar:
Vamos sair daqui e dar uma volta, garotão... Vamos rodar por aí...
e estremeci.
Ele tornou a girar a chave. Esperei o clique seco do solenói
de e o
chocalhar que logo engasgaria. No entanto, o que ouvi foi o lento
estertorar do motor, de repente ganhando velocidade. O motor pegou,
ficou assim um instante, depois morreu. Arnie girou a chave novamente.
O motor trabalhou mais depressa. O arranque
soava tão alto como uma
bomba usada, mas em bom estado, naquele confinado espaço da garagem.
Sobressaltei
-
me. Arnie continuou quieto, perdido em seu próprio mundo.
A essa altura, eu já teria praguejado umas duas vezes, apenas para
dar força, para ajudar a
máquina:
Vamos, filha da puta,
sempre é uma boa
pedida;
Pegue, porra!
também tem seus méritos e, às vezes, apenas um
bom e saudável
merda
-
PEGUE!
realiza o milagre. A maioria dos caras que
conheço faria o mesmo; penso que isto é apenas uma das coisas que
ap
rendemos com nosso pai.
O que nos fica da mãe, em geral, são conselhos práticos e insistentes:
se cortar as unhas dos pés duas vezes por mês, não ficará com tantos
buracos nas meias; largue uma coisa no chão, e não vai saber onde ela está;
coma sua cenoura
, porque faz bem
—
mas é com o pai que aprendemos as
palavras mágicas, os talismãs do poder. Se o carro não pega, xingue
-
o... e
certifique
-
se de que o xingamento seja no feminino. Se recuássemos sete
gerações, provavelmente veríamos um de nossos tataravós
xingando a
maldita cadela daquele burro que parou na metade da ponte em que se
pagava pedágio, em algum lugar do Sussex ou de Praga.
Arnie, entretanto, não xingou em absoluto. Murmurou baixinho:
—
Vamos, boneca, o que me diz?
Girou a chave. A máquina estre
meceu duas vezes, o arranque
tornou a soar e então pegou. Era um som horrível, como se quatro dos oito
êmbolos houvessem tirado folga naquele dia, mas o motor continuou
funcionando. Eu mal podia acreditar, porém não pretendia ficar por ali e
discutir o cas
o com Arnie. A garagem se enchia rapidamente de fumaça
azul e vapores. Fui para fora.
—
Afinal, o motor pegou direitinho, não foi?
—
disse LeBay.
—
E
você não precisará arriscar sua preciosa bateria.
Ele deu uma cusparada. Não pude pensar em algo como resp
osta.
Para ser franco, fiquei um pouco constrangido.
O carro saiu lentamente da garagem, parecendo tão absurdamente
comprido que dava vontade de rir, chorar, fazer qualquer coisa. Era difícil
acreditar que pudesse ser tão grande. Parecia uma ilusão de ótic
a. E Arnie
ficara ainda menor, atrás do volante.
Ele arriou o vidro da janela e acenou para mim. Tínhamos que gritar,
para que nossas vozes fossem ouvidas
—
era outro detalhe sobre Christine,
a garota de Arnie: tinha uma voz extremamente alta e rouca, que
exigiria
um pronto controle. O que sobrara do sistema exaustor, ao qual se poderia
adaptar um silencioso, não passava de um monte de rendilhado
ferruginoso. Desde que Arnie tomara posição ao volante, a pequena caixa
registradora na seção de automóveis de m
eu cérebro já totalizara as
despesas em cerca de seiscentos dólares
—
nisto não incluído o pára
-
brisa
estilhaçado. Só Deus sabia quanto poderia custar aquela reposição.
—
Vou levá
-
lo para a Darnell's!
—
gritou Arnie.
—
Seu anúncio no
jornal diz que posso e
stacioná
-
lo nos boxes traseiros por vinte dólares a
semana!
—
Arnie, vinte dólares por semana em um daqueles boxes dos
fundos é demais!
—
gritei em resposta.
Aí vinha mais roubalheira contra os jovens e inocentes. A Garagem
de Darnell fica contígua a um te
rreno baldio de quatro acres, ocupado por
automóveis usados, sob o falsamente animador nome de
Darnell's Used
Auto Parts
—
Peças Usadas de Carro do Darnell. Eu estivera lá algumas
vezes, uma delas a fim de comprar um acionador de arranque para o meu
Duster
, outra em busca de um carburador recondicionado para o Mercury
que havia sido meu primeiro carro. Will Darnell era um sujeito grande e
gordo como um porco, que bebia um bocado e fumava compridos
charutos, um atrás do outro, embora se dissesse que sua cond
ição de
asmático não era das melhores. Ele declarava odiar quase todo
adolescente dono de carro em Libertyville... embora isso não o privasse de
fazer negócios com eles e enrolá
-
los.
—
Eu sei
—
berrou Arnie, acima do barulhento motor
—
, mas será
apenas por
uma semana ou duas, até eu encontrar um lugar mais barato.
Não posso levá
-
lo para casa do jeito como está, Dennis. Papai e mamãe
iam armar uma discussão dos diabos!
Sem a menor dúvida, ele tinha razão. Abri a boca para dizer
qualquer coisa mais
—
talvez p
edir
-
lhe para acabar com aquela loucura,
antes que fosse tarde. Então, tornei a fechá
-
la. O negócio estava feito. Por
outro lado, eu não queria mais competir com aquele barulhento cano de
descarga e muito menos ficar ali, enviando para os pulmões um bocado
da
empesteada fumaceira de carbono que o carro cuspia para fora.
—
Está bem
—
falei.
—
Irei atrás de você.
—
Boa idéia
—
disse ele, sorridente.
—
Vou por Walnut Street e
Basin Drive. Prefiro ficar fora das ruas principais.
—
Certo.
—
Obrigado, Dennis.
Ele
baixou novamente a transmissão hidramática e o Plymouth
saltou um metro para diante, quase se desconjuntando. Arnie desacelerou
um pouco e Christine soprou vento e terra para os lados. O Plymouth
desceu a entrada para carros de LeBay, até a rua. Quando Ar
nie puxou o
freio, somente uma lanterna traseira se acendeu. Minha calculadora
automotiva mental somou impiedosamente mais cinco dólares.
Ele girou o volante para a esquerda e manobrou para a rua. Os
remanescentes do silencioso arranharam ferruginosamente
o ponto mais
baixo da calçada. Arnie deu mais combustível e o carro rugiu como um
refugiado de uma convenção Democrata em Philly Plains. Do outro lado
da rua, as pessoas se debruçavam na entrada das casas ou chegavam à
porta, para verem o que estava aconte
cendo.
Resfolegando e grunhindo, Christine rodou pela rua, a uns quinze
quilômetros horários, expelindo espessas e fedorentas nuvens de azulado
óleo queimado, que ficavam suspensas no ar e então se diluíam
lentamente, ao suave anoitecer de agosto.
No sinal
, uns quarenta metros adiante, o motor afogou. Um garoto
passou pelo calhambeque em seu Raleigh e, até meus ouvidos, chegou seu
grito insolente, debochado:
—
Leve pro ferro
-
velho,
mister!
O punho fechado de Arnie assomou fora da janela. Seu dedo médio
ergu
eu
-
se no ar, quando fez o gesto obsceno para o guri. Mais uma
primeira vez. Eu nunca tinha visto Arnie fazer aquilo para ninguém, em
toda a minha vida.
O arranque uivou, o motor tossiu e pegou. Desta feita, houve toda
uma série de sons chocalhantes. Era co
mo se alguém começasse a disparar
uma metralhadora em Laurel Drive, Libertyville, EUA.
Alguém logo chamaria os tiras, denunciando desordem na via
pública e eles enquadrariam Arnie, por dirigir um veículo não
-
registrado
e não
-
vistoriado
—
bem como, talvez,
pela provocação em público
também. Em casa, a situação não iria ficar exatamente uma beleza.
Houve o eco de um tiro final
—
que reverberou pela rua abaixo
como a explosão de um morteiro
—
e então o Plymouth virou à esquerda,
para Martin Street, o que o lev
aria à Walnut, uns dois quilômetros acima.
O sol que se punha transformou ligeiramente em ouro a vetusta lataria
vermelha, quando o carro desapareceu de vista. Vi que Arnie tinha o
cotovelo dobrado sobre a janela.
Virei
-
me para LeBay, revoltado novamente,
disposto a dizer
-
lhe
mais algumas palavras ásperas. Confesso que estava fervendo por dentro.
No entanto, o que vi me tirou prontamente aquela idéia da cabeça.
Roland D. LeBay estava chorando.
Era horrível e grotesco, lamentável acima de tudo. Quando estava
com nove anos, tínhamos um gato chamado Capitão Beefheart, que foi
atropelado por um caminhão da Limpeza Urbana. Nós o levamos ao
veterinário
—
mamãe precisou dirigir devagar, porque chorava e não
conseguia ver direito, enquanto eu estava no banco traseir
o, com o
Capitão Beefheart. Ele estava em uma caixa e eu lhe dizia que o
veterinário ia salvá
-
lo, que tudo ia ficar bem, mas mesmo um garotinho
cabeça oca de nove anos como eu podia ver que nunca mais tudo ia ficar
novamente certo para o Capitão Beefheart,
porque algumas de suas tripas
estavam para fora, havia sangue saindo de seu ânus, fezes na caixa e em
seu pêlo, e ele estava morrendo. Tentei afagá
-
lo e ele me mordeu a mão,
bem nas peles sensíveis entre o polegar e o indicador. Foi uma dor forte e
aument
ou aquela sensação de pena. Eu nunca mais sentira nada igual,
desde então. Não que eu me queixasse, compreendam; não creio que as
pessoas sintam isso muitas vezes. Se alguém experimentar muitas dessas
sensações, é levado para fazer cestas no hospício.
LeBa
y estava de pé em seu relvado careca; não muito distante do
lugar em que aquela enorme mancha de óleo havia desfolhado tudo.
Puxara um lenço enorme e, de cabeça baixa, enxugava os olhos com ele.
As lágrimas brilhavam gordurosas em suas faces, mais como suo
r, do que
lágrimas verdadeiras. Seu pomo
-
de
-
adão subia e descia.
Virei a cabeça, para não ter de vê
-
lo chorando e, por acaso, meus
olhos se fixaram em sua garagem para um carro. Antes ela parecera
entulhada
—
com os apetrechos ao longo da parede, claro, po
rém
principalmente por causa daquele imenso carro velho, com seus faróis
dianteiros duplos, o pára
-
brisa panorâmico e o capô de um acre. Agora, as
coisas encostadas à parede serviam apenas para acentuar o vazio essencial
da garagem, boquiaberto como uma bo
ca desdentada.
Aquilo era quase tão horrível quanto LeBay. No entanto, quando
olhei de novo, o velho filho da puta já se controlara
—
bem, quase. Parara
de enxugar os olhos e enfiara o lenço no bolso traseiro de suas práticas
calças de velho. O rosto, cont
udo, continuava desolado. Muito desolado.
—
Bem, aí está
—
comentou, em voz roufenha.
—
Fiquei sem a
minha máquina, filho.
—
Eu só queria que meu amigo pudesse dizer a mesma coisa
—
repliquei.
—
Se soubesse o problema que ele vai ter com seus velhos, por
c
ausa daquela lata enferrujada...
—
Saia daqui!
—
ordenou o velho.
—
Você parece um maldito
carneiro! É só béé, béé, béé, que ouço saindo de sua goela! Acho que
aquele seu amigo sabe muito mais do que você. Vá ver se ele precisa de
ajuda!
Desci o gramado at
é meu carro. Não queria ficar por ali, perto de
LeBay, nem mais um segundo.
—
É só béé, béé, béé!
—
gritou ele as minhas costas, rabugentamente,
fazendo
-
me pensar naquela antiga canção dos Youngbloods:
Sou um cara
de uma só nota, nela toco tudo o que posso
.
—
Você não sabe metade do que
pensa que sabe!
Entrei em meu carro e afastei
-
me dali. Ao dobrar para a Martin
Street, olhei para trás ainda uma vez e o vi de pé em seu terreno, com o sol
brilhando em sua calva.
Da maneira como aconteceram as coisas, LeBay
estava certo. Eu não
sabia metade do que imaginava saber.
C
OMO
C
HEGAMOS À
D
ARNELL
'
S
Tenho um calhambeque 34
E o chamamos de biruta,
Compreendam, n
ão tem nada de jovem,
At
é já é bem velho, mas ainda muito bom...
—
Jan and Dean
Desci pela Martin até Walnut
e dobrei para a direita, em direção a
Basin Drive. Não demorei muito a emparelhar com Arnie. Ele havia
parado junto ao meio
-
fio e a tampa do capô de Christine estava erguida.
Um macaco de automóvel, tão velho que quase parecia ter sido usado
outrora para
trocar rodas dos carroções Conestoga, jazia contra o
empenado pára
-
choque traseiro. O pneu traseiro da direita estava murcho.
Freei atrás dele, e mal tinha saído do carro quando uma mulher
nova saiu de sua casa em nossa direção, esgueirando
-
se por entre um
a boa
coleção de objetos de plástico fincados em sua grama (dois flamingos cor
-
de
-
rosa, quatro ou cinco patinhos enfileirados atrás da grande mãe pata e
um poço dos desejos bastante apresentável, com flores de plástico
brotando do balde de plástico). A mul
her precisava urgentemente de
orientação dos Vigilantes de Peso.
—
Não podem deixar esse lixo aqui!
—
avisou, mascando boa
quantidade de chicletes.
—
Não podem deixar esse lixo parado diante da
nossa casa, espero que saibam disso.
—
Foi apenas um pneu vazi
o, madame
—
disse Arnie.
—
Vou tirar o
carro daqui, assim que...
—
Não pode deixá
-
lo aí e espero que saiba disso!
—
insistiu ela,
como que em louca circularidade.
—
Meu marido logo estará chegando e
não quer nenhuma lata velha diante da casa.
—
Não é uma l
ata velha!
—
exclamou Arnie, e algo em seu tom a fez
recuar um passo.
—
Não fale comigo nesse tom de voz, filho
—
disse insolentemente
aquela obesa rainha do
be
-
bop.
—
Não é preciso muita coisa para meu
marido ficar furioso!
—
Escute aqui
—
começou Arnie.
Era a mesma voz inexpressiva e perigosa que usara quando Michael
e Regina tinham começado a discutir com ele. Agarrei
-
lhe o ombro com
força. Não havia necessidade de mais confusão.
—
Obrigado, madame
—
falei.
—
Tiraremos o carro daqui em um
instante. Vamos
dar um jeito nele tão depressa, que nem vai acreditar.
—
Acho melhor
—
disse ela, e então apontou um polegar para o
meu Duster.
—
E o
seu
carro está parado diante da entrada da minha
garagem.
Fiz meu carro recuar. Ela espiou a manobra e depois também recu
ou
sacolejando para a casa, onde um garotinho e uma garotinha se
espremiam na porta. Também eram gorduchos. Cada um deles comia um
belo e nutritivo sanduíche.
—
O que foi, mãe?
—
perguntou o garotinho.
—
O que foi com o
carro daquele homem, mãe? O que foi?
—
Cale a boca!
—
ordenou a rainha do
be
-
bop,
empurrando as duas
crianças para dentro. Sempre gostei de ver pais esclarecidos como aquela
mulher; isso me enche de esperanças no futuro. Virei
-
me para Arnie.
—
Muito bem
—
falei, dizendo a única coisa intelig
ente em que
pude pensar
—
, no fundo, foi apenas um pneu furado, Arnie. Certo?
Ele sorriu aereamente.
—
Estou com um probleminha, Dennis
—
disse.
Eu sabia qual era o seu problema: não tinha sobressalente. Arnie
tornou a puxar a carteira
—
dava pena vê
-
lo fa
zendo aquilo
—
e olhou em
seu interior.
—
Preciso de um pneu novo
—
continuou.
—
Claro, acho que precisa. Um recauchutado...
—
Nada de recauchutados. Não é assim que quero começar.
Fiquei calado, mas olhei para meu Duster. Tinha dois recauchutados
nele e d
ecidi que eram ótimos.
—
Quanto acha que custariam um Goodyear ou Firestone novos,
Dennis?
Dei de ombros e consultei a pequena calculadora automotiva. Ela
concluiu que Arnie talvez conseguisse um pneu simples, sem banda
branca, por uns trinta e cinco dólar
es. Ele puxou duas notas de vinte da
carteira e as estendeu para mim.
—
Se for mais, com o imposto e tudo, pagarei a diferença.
—
Olhei
para ele com tristeza.
—
Quanto sobrou de seu pagamento da semana, Arnie? Seus olhos
estreitaram
-
se, desviando
-
se dos me
us.
—
O bastante
—
respondeu.
Decidi tentar mais uma vez
—
lembrem
-
se de que eu tinha apenas
dezessete anos, ainda acreditando que devemos mostrar aos outros como
agir melhor.
—
Você não conseguiria tomar parte em um jogo de pôquer de um
níquel
—
falei.
—
Enfiou neste carro o que ganhou em toda a semana.
Esvaziar a carteira vai ser um gesto muito familiar para você, Arnie. Por
favor, cara. Reflita bem!
Seus olhos eram pétreos. Eu nunca lhe vira antes aquela expressão e,
embora talvez me considerem o mais in
gênuo adolescente da América,
não me lembrava de tê
-
la visto em
qualquer outro
rosto. Estava surpreso e
desalentado
—
era como se, de repente, descobrisse que procurava ter
uma conversa racional com um indivíduo simplesmente lunático. Mais
tarde, tornei a
ver tal expressão e imagino que o mesmo lhes tenha
sucedido. Hermetismo absoluto. É a expressão facial do sujeito ao qual
dizemos que a mulher a quem ama o anda corneando pelas costas.
—
Pare com isto, Dennis
—
disse ele. Levantei as mãos, exasperado.
—
Es
tá bem! Está bem!
—
E também não precisa ir ver o maldito pneu, se não quiser.
—
Ainda aquela expressão pétrea, obstinada em seu rosto, e estupidamente
inflexível, posso jurar.
—
Eu dou um jeito!
Eu ia responder, e bem poderia ter dito algo bem desaforado,
mas
aconteceu que olhei para a esquerda. As duas criancinhas roliças estavam
lá, nos limites de seu gramado. Montadas em dois velocípedes idênticos,
gêmeos, com os dedos manchados de chocolate. Olhavam para nós,
solenes.
—
Não precisa se exaltar, cara
—
f
alei.
—
Vou arranjar o pneu.
—
Só vá se quiser mesmo ir, Dennis
—
disse ele.
—
Sei que já está
ficando tarde.
—
Está esfriando
—
respondi.
—
Moço?
—
chamou o garotinho, lambendo o chocolate dos dedos.
—
Mamãe disse que esse carro é um cocô.
—
Isso mesmo
—
ecoou a garotinha.
—
Cocô
-
bosta.
—
Cocô
-
bosta
—
disse Arnie.
—
Ora, isto é muito inteligente, não é,
crianças? Sua mãe é filósofa?
—
Não
—
respondeu o garotinho.
—
Ela é Capricórnio. Eu sou Libra.
Minha irmã é...
—
Volto o mais depressa que puder
—
falei,
desajeitadamente.
—
Certo.
—
Fique calmo.
—
Não se preocupe. Não vou agredir ninguém.
Corri para meu carro. Enquanto deslizava para trás do volante, ouvi
a garotinha perguntar a Arnie, bem alto:
—
Por que a sua cara é tão suja, moço?
Dirigi uns dois quilô
metros até JFK Drive que
—
segundo minha
mãe, criada em Libertyville
—
havia sido o centro de uma das zonas mais
apreciadas da cidade, na época em que Kennedy fora assassinado, em
Dallas. Talvez tivesse dado azar, rebatizar Barnswallow Drive em
homenagem a
o Presidente morto, porque desde os primeiros anos da
década de 60 a área nos arredores da rua degenerara para uma faixa ex
-
urbana. Havia um cinema
drive
-
in,
um McDonald's, um Burger King, um
Arby's e o Big Twenty Lanes. Havia ainda uns oito ou dez postos
de
gasolina, uma vez que a JFK Drive leva à Pennsylvania Turnpike, auto
-
estrada com pedágio.
Conseguir o pneu de Arnie devia ser coisa de minutos, mas os dois
primeiros postos onde parei eram daqueles de auto
-
serviço, que nem ao
menos vendem óleo, mas apen
as gasolina; tinham uma garota com ar de
retardada atrás de uma cabine de vidro à prova de bala, dessas que ficam
sentadas diante de um console de computador, lendo um
National
Enquirer e
mascando um punhado de goma, suficientemente grande para
asfixiar um
a mula do Missouri.
O terceiro era um posto Texaco, com uma liquidação de pneus. Pude
comprar para Arnie um pneu comum que se encaixaria em seu Plymouth
(eu não conseguia chamar o carro de Christine e nem pensar nele
—
nela?
—
por aquele nome), por apenas
vinte e oito e cinqüenta, mais o
imposto, porém só havia um sujeito trabalhando lá
—
e tinha que colocar
o pneu novo no aro de roda de Arnie, ao mesmo tempo em que bombeava
gasolina. A operação durou mais de quarenta e cinco minutos. Ofereci
-
me
para bombea
r a gasolina em seu lugar, enquanto ele ajeitava o pneu, mas
o sujeito disse que o patrão o mataria, se soubesse disso.
Quando finalmente pude colocar o pneu montado em meu porta
-
mala, pagando duas pratas ao cara pelo serviço, as primeiras luzes do
crepúsc
ulo se tinham transformado nas primeiras sombras de um
purpúreo anoitecer. Cada arbusto lançava sombras alongadas e
aveludadas e, ao rodar devagar subindo a rua, vi as últimas luzes do dia
espalhando
-
se quase horizontalmente, através do espaço entulhado de
lixo entre o Arby's e o boliche. Aquela claridade, tanto ouro flutuante no
céu, chegava a ser terrível, em sua estranha e inesperada beleza.
Fiquei surpreso pelo sufocante pânico que me subiu da garganta
como fogo seco. Era a primeira vez que experimentav
a tal sensação
naquele ano
—
aquele longo e estranho ano
—
, porém não seria a última.
Entretanto, é difícil explicar, inclusive, defini
-
la. Tinha algo a ver com a
certeza de ser 11 de agosto de 1978, de que no mês seguinte eu passaria
para meu último perío
do letivo no ginásio e que, quando as aulas
recomeçassem, aquilo significaria o final de uma longa e tranqüila fase de
minha vida. Eu me preparava para ser adulto, e via isso de algum
modo
—
tinha certeza de vê
-
lo, pela primeira vez, naquela maravilhosa,
m
as de certa forma antiga exibição de luminosidade dourada, flutuando
além da passagem entre o campo de futebol e um restaurante de segunda.
Compreendi que o que realmente assusta a gente sobre crescer: é que
paramos de experimentar a máscara da vida, começ
ando a experimentar
uma outra. Se ser criança quer dizer aprender a como viver, então, ser
adulto significa aprender a como morrer.
A sensação passou, mas em sua esteira eu me senti estremecido e
melancólico. Nenhuma das duas sensações fazia parte do meu e
u habitual.
Quando retornei a Basin Drive, via
-
me repentinamente alheio aos
problemas de Arnie e procurando enfrentar os meus
—
idéias sobre
tornar
-
me adulto, que tinham desembocado naturalmente em idéias como
universidade, viver fora de casa e tentar entr
ar para o time de futebol na
State, disputando minha posição com mais sessenta pessoas qualificadas,
em vez de apenas dez ou doze. Então, talvez a gente diga: 'Grande droga,
Dennis, tenho algumas novidades para você: um bilhão de chineses
vermelhos pouco e
stão se lixando se você entrar para o primeiro time,
como calouro universitário.' Muito justo. Estou apenas querendo dizer
que tais coisas pareciam francamente reais pela primeira vez... e
francamente aterradoras. Por vezes, a mente nos leva em viagens com
o
essa, mesmo que não queiramos.
Ver que o marido da rainha do
be
-
bop já
chegara em casa e que ele e
Arnie estavam quase frente a frente, parecendo dispostos a desgraçar tudo
a qualquer segundo, não contribuiu em nada para modificar meu ânimo.
Os dois garo
tinhos continuavam escarranchados solenemente em
seus velocípedes, os olhos viajando de modo alternado de Arnie para
Papai e de novo para Arnie, como espectadores de alguma apocalíptica
partida de tênis, em que o juiz abate alegremente o derrotado com um t
iro.
Pareciam esperar o momento de combustão, quando Papai achataria meu
esquelético amigo e transformaria seu corpo quebrado em gelatina.
Freei rapidamente e saí do carro, quase correndo para eles.
—
É o que lhe estou dizendo!
—
rugiu Papai.
—
Estou lhe d
izendo
que quero isso fora daqui e agora mesmo!
O homem tinha um enorme nariz achatado, repleto de veias
arrebentadas. As bochechas afogueadas eram cor de tijolo novo e, acima
da camisa de trabalho em sarja cinzenta, veias encordoadas sobressa
íam
no pescoç
o.
—
Não vou dirigir em cima do aro
—
disse Arnie.
—
Já lhe falei isso.
O senhor não dirigiria, se o carro fosse seu.
—
Dirigirei
você
sobre o aro, Cara de pizza!
—
exclamou Papai, sem
dúvida querendo mostrar a seus filhos como a gente grande resolve seus
problemas, no Mundo Real.
—
Não vai estacionar seu horroroso
calhambeque envenenado em frente da minha casa. Não me provoque,
garoto, ou vai sair machucado!
—
Ninguém vai sair machucado
—
falei.
—
Vamos, senhor. Dê
-
nos
algum tempo.
Os olhos de Arnie se vol
taram agradecidos para mim e percebi o
quanto estivera amedrontado
—
quão amedrontado ainda estava. Sempre
um pária, ele sabia que existia algo em si mesmo
—
só Deus sabia o quê
—
que fazia certo tipo de indivíduo querer acabar com ele. Devia estar certo
d
e que isso ia acontecer novamente
—
mas agora ele enfrentava o perigo.
Os olhos do homem pousaram em mim.
—
Mais um
—
disse, como que admirado por existirem tantos
imbecis no mundo.
—
Querem que acabe com os dois? É o que querem?
Pois acreditem, eu posso f
azer isso.
Sim, eu conhecia o tipo. Dez anos antes, teria sido um dos caras no
col
égio que achavam muito divertido arrancar os livros dos braços de
Arnie, quando ele seguia para sua sala de aulas, ou atirá
-
lo no chuveiro
com todas as roupas no corpo, depoi
s da educação física. Nunca
mudavam, aqueles caras. Apenas ficavam mais velhos e ganhavam um
câncer pulmonar, ao fumarem tantos Luckies, quando não eram vítimas
de uma embolia cerebral aos cinqüenta e três ou coisa assim.
—
Ninguém está querendo provocá
-
lo
—
falei.
—
Ele está com um
pneu arriado, pelo amor de Deus! Nunca teve um pneu arriado?
—
Quero esses dois fora daqui, Ralph!
A mulher com focinho de porco estava de p
é na entrada. Sua voz era
aguda e excitada. Aquilo era ainda melhor que o
Phil Donahue S
how.
Outros vizinhos tinham
-
se aproximado para ver os acontecimentos e
tornei a pensar, com grande angústia, que se já não tivessem chamado os
tiras, alguém logo os chamaria.
—
Nunca tive um pneu arriado e nem deixei um calhambeque em
pedaços diante da cas
a de alguém, durante três horas
—
disse Ralph, bem
alto.
Seus l
ábios estavam repuxados para trás e pude ver a saliva
brilhando em seus dentes, à claridade do sol que se punha.
—
Foi uma hora
—
repliquei, tranqüilo
—
, se tanto.
—
Não me venha com suas graci
nhas, garoto
—
disse Ralph. Não
estou interessado. E não gosto de vocês. Trabalho para viver. Volto para
casa cansado e não tenho tempo para discussões. Quero que tirem isso
daqui e
agora!
—
Tenho um sobressalente em meu porta
-
mala
—
falei.
—
Se, ao
menos,
pudéssemos colocá
-
lo...
—
E se o senhor tivesse um pouco de compostura
—
começou Arnie,
irritado.
Aquilo quase fez efeito. Se havia alguma coisa que o nosso chapa
Ralph n
ão ia admitir diante dos filhos, era ser chamado de sem
compostura. Avançou para Arni
e. Não sei como a coisa terminaria
—
com
Arnie na cadeia, talvez, seu precioso carro apreendido
—
mas de algum
modo fui capaz de erguer a mão e agarrar a de Ralph pelo pulso. O
encontro das duas provocou um nítido som de tapa, dentro do crepúsculo.
A garot
inha com focinho de porco debulhou
-
se em lamurientas
l
ágrimas.
O garotinho com focinho de porco ficou montado em seu veloc
ípede,
com o queixo quase batendo no peito.
Arnie, que sempre se esgueirava como um fantasma pela
área de
fumar da escola, nem ao meno
s se encolheu. Em verdade, parecia
querer
que aquilo acontecesse.
Ralph se voltou contra mim, os olhos esbugalhados de f
úria.
—
Muito bem, merdinha
—
disse.
—
Você primeiro! Sustive sua
mão, pressionando
-
a.
—
Vamos com calma, cara
—
falei, em voz baixa.
—
O pneu está em
meu porta
-
mala. Dê
-
nos cinco minutos para mudá
-
lo e sair de sua vista.
Por favor.
Pouco a pouco, foi diminuindo a pressão para suster
-
lhe a mão. Ele
olhou para os filhos, a garotinha choramingando, o garotinho de olhos
arregalados, e isso pa
receu decidi
-
lo.
—
Cinco minutos
—
assentiu. Olhou para Arnie.
—
Teve muita sorte
por eu não chamar a polícia. Essa coisa não foi vistoriada e também está
sem a placa de licença.
Esperei que Arnie dissesse algo também inflamado e acabasse de
vez com a trég
ua, mas talvez ele não houvesse esquecido tudo quanto
sabia sobre prudência.
—
Obrigado
—
disse.
—
Sinto muito ter
-
me exaltado.
Ralph grunhiu e enfiou a camisa de volta nas calças, em pequenos
gestos bruscos. Tornou a olhar para os filhos.
—
Vão para casa!
—
vociferou.
—
O que estão fazendo aqui?
Querem que lhes dê um chuta
-
bunda? Céus, que família criativa, pensei.
Pelo amor de Deus, não dê um chuta
-
bunda neles, Papai
—
os dois podem
fazer cocô
-
bosta nas calças.
As crianças voaram para junto da mãe, abando
nando os velocípedes.
—
Cinco minutos
—
repetiu Ralph, encarando
-
nos malignamente.
Mais tarde, nessa noite, quando estivesse batendo um papo com os
rapazes, poderia contar
-
lhes como fizera o seu papel, mantendo os limites
entre a geração das drogas e do se
xo. Sim, senhor, rapazes, eu disse a eles
para tirarem a droga daquele lixo da frente da minha casa, antes que eu
lhes desse um chuta
-
bunda. E, podem acreditar, eles voaram como se
tivessem os pés em fogo e os traseiros doloridos. Então, ele acenderia um
L
ucky. Ou um Camel.
Pusemos o macaco de Arnie debaixo do pára
-
choque. Arnie mal
movera a alavanca umas três vezes quando o macaco se partiu em dois.
Fez um som poeirento quando se dividiu e a ferrugem esvoaçou em torno.
Arnie me fitou, seus olhos humildes e
doridos ao mesmo tempo.
—
Não se incomode
—
falei.
—
Usaremos o meu.
Já começava a escurecer. Meu coração ainda batia acelerado e a boca
estava amarga, pela confrontação com o Grande Chefão de Basin Drive,
119.
—
Sinto muito, Dennis
—
disse Arnie, em voz
baixa.
—
Não tornarei
a envolvê
-
lo nisto.
—
Esqueça. Vamos logo colocar esse pneu.
Usamos o meu macaco para levantar o Plymouth (por vários e
terríveis segundos pensei que o pára
-
choque traseiro fosse desconjuntar
-
se,
em um rangido de metal podre, e retira
mos o pneu avariado. Colocamos o
novo, apertamos as porcas mais ou menos e então arriamos o carro. Foi
um alívio imenso vê
-
lo novamente equilibrado sobre a rua; a maneira
como o pára
-
choque empenado se inclinara debaixo do macaco chegara a
assustar
-
me.
—
P
ronto
—
disse Arnie, encaixando a antiga e amassada calota
sobre as porcas.
Fiquei olhando para o Plymouth e, de repente, voltou a sensação
que eu experimentara na garagem de LeBay. Senti isso quando observei o
novo Firestone na traseira direita. A banda n
egra ainda conservava um
dos adesivos do fabricante e as vivas marcas de giz amarelo, da apressada
calibragem no posto de gasolina.
Estremeci ligeiramente
—
mas era impossível transmitir a fantástica
sensação que me dominava. Era como se eu tivesse visto u
ma serpente
quase pronta a livrar
-
se da pele antiga, uma serpente que já se desfizera
de parte dessa pele, revelando o que havia de novo e cintilante por baixo...
Ralph estava de pé à entrada de sua casa, espiando para nós. Em
uma das mãos segurava um gote
jante hambúrguer com Pão Maravilha. A
outra mão enrolava
-
se em torno de uma lata de cerveja.
—
Simpático, ele, não?
—
murmurei para Arnie, quando joguei seu
macaco espatifado no porta
-
mala do Plymouth.
—
Um grande sujeito
—
murmurou Arnie, em resposta.
Bas
tou isso e começamos a rir contidamente, da maneira que ríamos,
ao superar uma situação tensa. Arnie jogou o pneu velho dentro do porta
-
malas, em cima do macaco, depois ficou rindo alto, com as mãos sobre a
boca. Ele parecia um garoto, apanhado em flagrant
e, na investida contra o
pote da geléia. Só em pensar nisso, comecei a rir com vontade agora.
—
De que estão rindo, seus vadios?
—
rugiu Ralph. Ele desceu os
degraus da entrada.
—
Hein? Querem rir com a cara virada do avesso por
um instante? Posso mostrar
como se faz, acreditem!
—
Saia daqui
depressa
—
falei para Arnie.
Corri de volta a meu Duster. Nada conseguia conter nosso riso
agora, as gargalhadas saíam naturalmente. Joguei
-
me no banco da frente e
liguei a chave, me torcendo de rir. À minha frente, o P
lymouth de Arnie
entrou em movimento com um rugido e uma espessa, fedorenta nuvem
de descarga azul. Mesmo acima da barulheira, eu conseguia ouvir suas
risadas incontidas, um som que beirava a histeria.
Ralph investiu através do gramado, ainda segurando o h
ambúrguer
gotejante e a lata de cerveja.
—
De que estão rindo, seus vadios? Hein?
—
Seu, seu careta! Quadradão!
—
gritou Arnie, triunfante, partindo
entre uma chocalhante fuzilaria de estouros.
Pisei no acelerador e tive que manobrar bruscamente, para evita
r
Ralph que, agora, aparentemente, partia para o homicídio. Eu continuava
rindo, porém não era mais um riso satisfeito, se é que chegara a sê
-
lo
—
era um som agudo e arquejante, quase como um grito.
—
Eu mato você, vagabundo!
—
rugiu Ralph.
Tornei a pisar n
o acelerador e, desta feita, quase engatei na traseira
de Arnie. Fiz a Ralph o mesmo gesto obsceno que Arnie fizera aquela
tarde, depois gritei:
—
Enfie!
Então, ele começou a correr atrás de nós. Tentou emparelhar e, por
alguns segundos, seus pés ressoaram
na calçada. Depois parou,
respirando com dificuldade e grunhindo.
—
Que dia mais louco!
—
exclamei em voz alta, algo amedrontado
pela trêmula e lacrimosa qualidade de minha voz. O gosto amargo me
voltara à boca.
—
Que dia mais infernalmente louco!
Em Ham
pton Street, a Garagem de Darnell era uma construção
alongada, com as laterais em folhas de zinco corrugado e um teto
enferrujado, também de zinco corrugado. Na fachada havia uma tabuleta
com letras ensebadas onde se lia: POUPE SEU DINHEIRO! SEU
KNOW
-
HOW,
NOSSAS FERRAMENTAS! Mais abaixo, em letras menores, lia
-
se:
Vaga na Garagem, Alugada por Semana, Mês ou Ano.
O depósito de automóveis velhos ficava atrás da Darnell's. Era uma
área com o comprimento de um quarteirão, encerrada entre muros
formados por lâmi
nas do mesmo zinco corrugado, com metro e meio de
altura, o indiferente assentimento de Will Darnell aos regulamentos do
Conselho de Zoneamento da Cidade. Não que houvesse alguma forma de
o Conselho fazer Will Darnell andar na linha, nem porque dois dos tr
ês
membros do Conselho de Zoneamento eram seus amigos. Em Libertyville,
Will Darnell conhecia todos que lhe interessavam. Era um daqueles tipos
encontrados em qualquer cidade, grande ou pequena, que se
movimentam silenciosamente por trás de qualquer número
de cenários.
Eu ouvira dizer que ele estava envolvido no ativo tráfico de drogas
entre os alunos do Ginásio de Libertyville e do Ginásio Darby. Também
ouvira dizer que era bem conhecido entre os escroques importantes de
Pittsburgh e Filadélfia. Eu não acr
editava nessa história
—
pelo menos,
penso
que não acreditava
—
, mas sabia que quem quisesse fogos de
artifício, bombas de segunda mão ou foguetes de qualidade inferior para o
Quatro de Julho, Will Darnell tinha para vender. Por meu pai, também
ficara sabe
ndo que Will fora acusado doze anos antes, quando eu era
apenas um guri de cinco anos, de ser um dos chefes de uma quadrilha de
carros roubados, que se estendia daquela nossa parte do mundo para leste,
até a Cidade de Nova Iorque e em toda a longitude para
cima, até Bangor,
no Maine. Finalmente, as acusações foram retiradas. No entanto, meu pai
dizia ter certeza de que Will Darnell devia estar atolado até as orelhas em
outras bandalheiras, o que quer que fosse, desde roubo da carga de
caminhões, a falsifica
ção de antigüidades.
Fique longe daquele lugar, Dennis,
dissera meu pai. Isto fora um ano
antes, não muito depois de eu ter adquirido meu primeiro calhambeque e
investido vinte dólares no aluguel de um dos boxes da Garagem Faça
-
você
-
mesmo, de Darnell, para
tentar trocar o carburador, em uma
experiência que terminara em total fracasso.
Eu devia ficar longe daquele lugar
—
mas lá estava, penetrando pela
entrada principal, atrás de meu amigo Arnie, depois do escurecer, nada
restando do dia senão uma mancha ave
rmelhada de fornalha no horizonte.
Os faróis dianteiros iluminaram um número suficiente de peças de carro
rejeitadas, destroços inaproveitáveis e sucata por toda parte, o que me
deixou mais deprimido e cansado do que nunca. Lembrei que não havia
telefonado
para casa e que meus pais certamente estariam se perguntando
em que diabo de lugar eu estaria.
Arnie rodou até uma imensa porta de garagem, com um cartaz ao
lado, dizendo BUZINE PARA ENTRAR. Uma claridade esmaecida
brotava de uma janela coberta de sujeira
, ao lado da porta
—
havia
alguém em casa
—
e mal contive um impulso de debruçar
-
me para fora
do carro e dizer a Arnie para levar o Plymouth até minha casa, por aquela
noite. Tive uma visão de nós dois dando com Will Darnell e seus
companheiros inventarian
do televisões coloridas contrabandeadas ou
repintando Cadillacs roubados. Os garotos detetives chegam a Libertyville.
Arnie ficou quieto, sem buzinar ou fazer coisa alguma. Eu já me
dispunha a sair e perguntar
-
lhe o que havia, quando ele caminhou até
onde
eu estacionara. Mesmo àquela débil claridade do lusco
-
fusco, ele
parecia profundamente constrangido.
—
Quer buzinar para mim, Dennis?
—
pediu, com humildade.
—
Parece que a buzina de Christine não funciona.
—
Claro.
—
Obrigado.
Buzinei duas vezes e, após u
ma pausa, a enorme porta da garagem
se ergueu, com um ruído chocalhante. O próprio Will Darnell estava
parado lá, com a pança sobrando acima do cinto. Acenou
impacientemente para que Arnie entrasse.
Manobrei meu carro, colocando
-
o de frente para a saída e
entrei
também.
O interior era imenso, abobadado e terrivelmente silencioso no fim
do dia. Havia pelo menos uns sessenta compartimentos para carros, cada
um equipado com sua própria caixa de ferramentas, aparafusada por
baixo, a fim de que os amadores com c
arros avariados, mas sem
ferramentas, fizessem eles mesmos os consertos. O teto era alto, cruzado
por vigas nuas e parecendo oscilantes.
Havia avisos pregados por toda parte: TODAS AS FERRAMENTAS
DEVEM SER INSPECIONADAS ANTES DE SUA PARTIDA e MARQUE
ANTECI
PADAMENTE SUA HORA PARA O ELEVADOR e SOLICITE
UM MANUAL DE MOTORES e NÃO ADMITIMOS LINGUAGEM
IMPRÓPRIA E PALAVRÕES. Vi dúzias de outros
—
para cada canto que
me virasse, um aviso parecia saltar em minha direção. Um enorme
homem
-
aviso era Will Darnell.
—
Bo
xe vinte! Boxe vinte!
—
gritou Darnell para Arnie, em sua voz
irritante e resfolegante.
—
Ponha o carro lá e desligue o motor, antes que
fiquemos todos asfixiados!
"Todos" parecia ser um grupo de homens em uma enorme mesa de
jogo, no canto mais distante. F
ichas de pôquer, cartas de baralho e
garrafas de cerveja espalhavam
-
se por sobre a mesa. Eles observavam a
nova aquisição de Arnie, com expressões que variavam da aversão ao
divertimento.
Arnie dirigiu o Plymouth para o boxe vinte, estacionou
-
o e desligou
o motor. Uma fumaceira azulada foi expelida para o imenso e cavernoso
recinto.
Darnell se virou para mim. Usava uma camisa branca semelhante a
um velame e calças cáqui marrons. Enormes rolos de gordura
destacavam
-
se em seu pescoço e caíam em babados, abaix
o do queixo.
—
Garoto
—
disse ele, naquela mesma voz resfolegante
—
, se
vendeu para ele aquele pedaço de merda, devia ter vergonha do que fez.
—
Não fui eu que vendi.
—
Por alguma absurda razão, senti que
devia justificar
-
me com aquela baleia, de uma forma
como jamais fizera
com meu pai.
—
Até procurei convencê
-
lo a cair fora do negócio.
—
Devia ter sido mais insistente.
Ele caminhou até Arnie, que então saía do carro. Arnie bateu a porta;
a ferrugem caiu em flocos, do painel oscilante daquele lado, em um f
ino
chuveiro vermelho.
Com ou sem asma, Darnell caminhava com os movimentos
graciosos e quase femininos do homem que é gordo há muito tempo e vê
um longo futuro de obesidade pela frente. E gritava para Arnie, antes
mesmo que meu amigo se virasse de frente,
com ou sem asma. Penso que
se poderia dizer ser ele um homem que não se deixava abater pela doença.
Como os caras na área de fumantes da escola, como Ralph, da Basin
Drive, ou como Buddy Repperton (penso que logo estaremos falando a
seu respeito), ele log
o sentia uma aversão por Arnie
—
era um caso de
antipatia à primeira vista.
—
Muito bem, esta foi a última vez que ligou essa merda mecânica
aqui dentro, sem o cano de descarga!
—
berrou ele.
—
Se o pegar fazendo
isso, será posto na rua, entendido?
—
Está
bem.
—
Arnie parecia pequenino, cansado e exaurido. Fosse
qual fosse a selvagem energia que o impelira até então, agora havia
desaparecido. Senti pena, uma pena ligeira, ao vê
-
lo daquele jeito. Eu...
Darnell não o deixou ir em frente.
—
Você quer um cano d
e descarga, que custa dois e cinqüenta a
hora, se fizer uma reserva antecipada. E vou lhe dizer uma coisa, neste
exato momento, que vai ter que decorar, meu amiguinho. Não sou
obrigado a ficar com merda nenhuma de vocês, garotos. Não sou. Este
lugar é para
caras trabalhadores, que precisam manter os carros andando
e botar pão na mesa, não para garotos ricos de universidade, que querem
sair apostando corridas no Orange Belt. É proibido fumar aqui dentro. Se
quiser uma tragada, tem que ir lá para trás, no dep
ósito.
—
Eu não fum...
—
Não me interrompa, garoto. Não me interrompa e nem venha
bancar o espertinho
—
disse Darnell.
Estava agora em pé diante de Arnie. Sendo mais alto e mais largo,
encobria meu amigo inteiramente.
Comecei a ficar irritado de novo. Na v
erdade, podia sentir meu
corpo gemer de protesto contra o barbante de ioiô em que minhas
emoções haviam estado, desde nossa chegada à casa de LeBay, quando
vimos que o maldito carro não estava mais sobre o gramado.
Adolescentes são uma classe tiranizada; a
pós alguns anos,
aprendemos a nossa própria versão de uma rotina de Pai Tomás quanto a
inimigos da gente, como Will Darnell.
Sim, senhor; não senhor; está bem;
fique certo.
Agarrei repentinamente o braço de Darnell.
—
Senhor?
Ele girou para mim. Descobri q
ue, quanto maior a minha antipatia
por adultos, mais apto me sinto a tratá
-
los por Senhor.
—
O que é?
—
Aqueles homens lá estão fumando. Seria melhor dizer a eles que
parem.
Apontei para os sujeitos à mesa de pôquer. Eles haviam distribuído
cartas para uma
nova mão. A fumaça pairava acima da mesa, em um halo
azulado. Darnell fitou os companheiros, depois olhou para mim. Seu rosto
era muito solene.
—
Está querendo ajudar seu amigo a ser mandado embora daqui,
Júnior?
—
Não
—
respondi.
—
Não, senhor.
—
Então,
feche sua matraca!
Voltando
-
se para Arnie, ele pousou as mãos carnudas sobre os
quadris avantajados e bem acolchoados.
—
Conheço um cara desagradável assim que o vejo
—
disse ele
—
, e
acho que estou vendo um, neste exato momento. Estou de olho em você,
gar
oto. Banque o engraçadinho comigo, uma só vez, e eu o farei cair
sentado sobre o traseiro, pouco importando quanto tenha pago adiantado!
Uma fúria cega subiu de meu estômago para a cabeça, fazendo
-
a
latejar. Por dentro, suplicava a Arnie para dizer àquele
gordo imbecil que
não chateasse, queria que ele o agredisse e depois corresse com seu
calhambeque para fora dali, o mais depressa possível. Claro que os
companheiros de pôquer de Darnell se meteriam e nós provavelmente
terminaríamos aquela maravilhosa noit
e no pronto
-
socorro do Hospital
Comunitário de Libertyville, enquanto nos costurariam a cabeça... mas
aquilo quase que valia a pena.
Arnie,
pedi mentalmente,
diga a ele que se foda e vamos dar o fora daqui.
Revide, Arnie! Não deixe que ele pise em você! Nã
o seja um perdedor, Arnie
—
se
enfrentou sua mãe, pode enfrentar também esse filho da puta. Faça isso apenas
esta vez, não seja um perdedor!
Arnie ficou calado por muito tempo, cabisbaixo, para então dizer:
—
Sim, senhor.
Foi tão baixo, que era quase inaud
ível. Como se ele estivesse
sufocado.
—
Como disse?
Arnie ergueu a cabeça. Tinha o rosto lívido. Os olhos estavam
marejados de lágrimas. Não agüentei olhar para aquilo. Doía demais.
Virei
-
me. Os jogadores de pôquer tinham parado de jogar e observavam
os ac
ontecimentos que se desenrolavam no boxe vinte.
—
Eu disse "sim, senhor"
—
repetiu Arnie, com voz trêmula.
Era como se tivesse assinado alguma terrível confissão. Tornei a
olhar para o carro, o Plymouth 58, estacionado ali, quando deveria estar
no depósito
de ferro
-
velho dos fundos, com o restante dos destroços
inúteis e enferrujados de Darnell
—
e o odiei novamente, pelo que estava
causando a Arnie.
—
Muito bem, caiam fora
—
disse Darnell.
—
Já fechamos.
Arnie caminhou cegamente, aos tropeções. Teria avanç
ado em linha
reta para uma pilha de velhos pneus carecas, se eu não o agarrasse pelo
braço e o guiasse. Darnell seguiu em direção contrária, rumando para a
mesa de pôquer. Quando chegou lá, disse algo aos outros, em sua voz
chiada. Todos riram grosseiramen
te.
—
Estou bem, Dennis
—
falou Arnie, como se eu lhe tivesse
perguntado. Os dentes estavam cerrados e o peito se movia em rápidas,
fundas inspirações.
—
Estou bem, me solte. Está tudo certo comigo.
Larguei seu braço. Cruzamos a porta e Darnell berrou para
nós:
—
E não me traga seus amigos vagabundos para cá ou o ponho para
fora daqui! Um dos outros acrescentou, em concordância:
—
E deixe sua droga em casa!
Arnie encolheu
-
se. Era meu amigo, porém eu o odiava quando se
encolhia daquele jeito. Escapamos para
a fria escuridão do exterior. A
porta chocalhou, quando foi arriada às nossas costas. Foi assim que
levamos Christine para a Garagem de Darnell. Um bocado divertido, não?
N
O
L
ADO DE
F
ORA
Estou com um carro e alguma gasolina,
Diga a todos que podem puxar
meu saco...
—
Glenn Frey
Entramos em meu carro e rodei para fora do pátio da garagem. Não
sei como, mas estava passando de nove da noite. Como o tempo voa,
quando a gente está se divertindo! Uma meia
-
lua já pairava no céu. Isso e
as luzes alaranjadas, no
parque de estacionamento do Monroeville Mall,
bastavam para eclipsar quaisquer possíveis estrelas cadentes a que se
pudesse fazer um pedido.
Rodamos os dois ou três primeiros quarteirões em silêncio total.
Então, de repente, Arnie desatou em um pranto furi
oso. Eu achava que ele
iria chorar, mas a força de seu choro assustou
-
me. Tentei intervir.
—
Arnie...
Desisti na hora. Ele ia chorar, até a vontade passar. As lágrimas e
soluços brotaram em um jato estridente e amargo, descontroladamente
—
Arnie já esgotar
a sua quota de controle para o dia. A princípio, pareceu
-
me ser apenas uma reação; eu sentia mais ou menos a mesma coisa, só que
minha raiva subira para a cabeça, fazendo
-
a latejar como um dente
cariado, e para o estômago, que se enovelava doentiamente.
Si
m, de início pensei que fosse tão
-
somente uma espécie de reação,
uma liberação espontânea e, no começo, talvez assim acontecesse. No
entanto, após um ou dois minutos, percebi que era muito mais do que isso,
que a coisa ia muito mais fundo. Então, comecei a
decifrar palavras, entre
os sons que ele emitia. Poucas a princípio, depois séries delas.
—
Eles me pagam!
—
gritou ele, engroladamente, entre os soluços.
—
Vou mostrar àqueles fodidos filhos da puta que vão me pagar, Dennis, farei com
que se arrependam,
os cretinos vão engolir... ENGOLIR... ENGOLIR!
—
Pare com isso
—
falei, assustado.
—
Esqueça, Arnie.
Arnie não queria esquecer. Começou a dar com os punhos no painel
de instrumentos acolchoado de meu Duster, com força bastante para
marcá
-
lo.
—
Eles me paga
m, você vai ver!
À claridade pálida da lua e de uma lâmpada em um poste próximo,
seu rosto parecia devastado e feroz. Naquele momento, Arnie era como
um estranho para mim. Estava longe, caminhando por algum dos frios
lugares do universo, que um Deus amante
de gracejos reserva para
pessoas como ele. Eu não o conhecia mais. Não queria conhecê
-
lo. Limitei
-
me a ficar ali, sentado, impotente e esperando pela volta do Arnie que eu
conhecia. Após um momento, ele voltou.
As palavras histéricas confundiram
-
se novame
nte com soluços. O
ódio se fora e ele apenas chorava. Era um som alto, penetrante e
desnorteado.
Fiquei parado ao volante do carro, não muito certo sobre o que
deveria fazer, mas desejando estar em outro lugar, qualquer lugar,
experimentando sapatos na Tho
m McAn's, preenchendo uma solicitação
de crédito em uma loja que vendesse com desconto, parado diante de um
cubículo de banheiro pago, com diarréia e sem um centavo no bolso.
Qualquer lugar, cara. Não precisava ser Monte Cario. Acima de tudo,
fiquei ali de
sejando ser mais velho. Desejando que ambos fôssemos mais
velhos.
Isto, no entanto, era fugir aos acontecimentos. Eu sabia o que fazer.
Relutantemente, contra a vontade, deslizei no assento, passei os braços em
torno dele e o abracei. Podia sentir seu rost
o, quente e febril, esmagado
contra meu peito. Ficamos assim por talvez uns cinco minutos. Depois o
levei de carro para casa. Então, fui para casa também. Nenhum de nós
dois comentou o assunto mais tarde, aquilo de abraçá
-
lo daquele jeito.
Ninguém passou p
ela calçada e nos viu estacionados junto ao meio
-
fio. Se
aparecesse alguém, sem dúvida pensaria que éramos um casal de
gays.
Dentro do carro, eu o abraçara e tentara demonstrar minha estima mais
que podia, perguntando
-
me como era possível eu ser o único am
igo de
Arnie Cunningham. Porque naquele momento, acreditem, eu não queria
ser seu amigo.
Não obstante, havia algo
—
percebi naquele momento, embora de
maneira muito vaga
—
talvez Christine se tornasse amigo
—
amiga?
—
dele. Não estava bem certo se gostava
disso, embora naquele longo e
alucinado dia houvéssemos passado os mesmos maus pedaços por causa
do Plymouth.
Quando paramos junto à calçada fronteira à sua casa, perguntei:
—
Tudo bem com você, cara? Ele forçou um sorriso.
—
Sim, está tudo bem.
—
Fitou
-
me
com tristeza.
—
Sabe de uma
coisa? Você deveria procurar outro tipo de caridade para fazer. Fundo
Cardíaco. Sociedade do Câncer. Qualquer coisa.
—
Ora, vá caindo fora!
—
Você sabe o que estou dizendo.
—
Se quer dizer que é um chorão, qual a novidade?
A lu
z da entrada foi acesa. Michael e Regina dispararam para fora,
sem dúvida querendo verificar se éramos nós ou a Polícia Estadual, vindo
comunicar
-
lhes que seu filho único fora atropelado na auto
-
estrada.
—
Arnold?
—
chamou Regina, em voz estridente.
—
É me
lhor dar o fora, Dennis
—
disse Arnie, sorrindo agora com
mais honestidade.
—
Você não precisa desta merda.
—
Saiu do carro e
disse obedientemente:
—
Olá, mamãe. Olá, papai.
—
Onde foi que esteve?
—
perguntou Michael.
—
Deixou sua mãe
terrivelmente preocup
ada, rapazinho!
Arnie tinha razão. Eu podia dispensar a cena. Olhei para trás, pelo
espelho retrovisor, apenas de relance, e o vi parado na calçada, parecendo
solitário e vulnerável
—
e então os dois o abraçaram e o guiaram de volta
ao ninho de 60.000 dóla
res. Na certa, lançavam sobre ele toda a influência
de sua última jornada paterna
—
o Treinamento para Eficiência Paterna, e
sabe
-
se lá o que mais. Michael e Regina eram absolutamente racionais
nesse sentido, aí estava a coisa. Haviam desempenhado papel
fu
ndamental para que Arnie se tornasse como era, mas eram racionais
demais para perceber isso.
Liguei o rádio na FM
-
104, onde continuava o
Block Party Weekend e
peguei Bob Seger e a Silver Builet Band cantando '
Still the Same'.
Aquilo
estava horrendamente pe
rfeito demais e passei para o jogo dos Phillies.
Os Phillies perdiam. Ainda bem. Combinava com o resto.
P
ESADELOS
Sou um corredor de estrada, meu bem,
E você não pode me alcançar.
Sim, sou um corredor de estrada, meu bem,
E você não consegue emparelhar co
migo.
Venha para cá e corra,
Querida, querida, você verá.
Chegue mais perto, meu bem! Pare atrás!
Vou jogar poeira nos seus olhos!
—
Bo Diddley
Quando cheguei em casa, papai e minha irmã estavam sentados na
cozinha, comendo sanduíches de açúcar mascavo. C
omecei
imediatamente a sentir fome e recordei que nem ao menos jantara.
—
Por onde andou, chefe?
—
perguntou Elaine.
Nem levantou os olhos da revista que lia
—
16, Creem
ou
Tiger Beat,
não sei qual era. Começara a chamar
-
me de chefe desde que eu descobrira
Bruce Springsteen, um ano antes, e ficara fanático. Evidentemente, aquele
tratamento era com a finalidade de irritar
-
me.
Aos quatorze anos, Elaine deixava a meninice para trás e se
transformava em uma futura beldade americana
—
alta, cabelos escuros e
olh
os azuis. Entretanto, no final daquele verão de 1978, era uma
adolescente agressiva, como uma multidão de tantos outros. Começara
com Donny e Marie Osmond aos nove anos, apaixonando
-
se por John
Travolta aos onze (cometi o erro de chamá
-
lo de John Revolta c
erto dia, e
ela me arranhou tanto que quase precisei levar um ponto no rosto
—
afinal, acho que eu merecia). Aos doze, ela gamou por Shaun. Depois foi
Andy Gibb. Só ultimamente vinha demonstrando gostos mais sinistros:
roqueiros da barulhenta música eletrô
nica, como Deep Purple e Styx, um
grupo novo.
—
Estive ajudando Arnie a levar o carro dele
—
falei, tanto para
meu pai, como para ela. Era mais do que isso, de fato.
—
Aquele asqueroso
—
suspirou Ellie, virando uma página de sua
revista.
De repente, senti
um súbito e espantoso ímpeto de arrancar a revista
de suas mãos, rasgá
-
la em duas e jogar
-
lhe os pedaços na cara. Isso me
deixou perceber, exatamente, como a tensão daquele dia fora mais forte
do que tudo o mais. Na verdade, Elaine não achava Arnie asquero
so; ela
apenas aproveitava qualquer oportunidade para irritar
-
me. Enfim, talvez
eu tivesse ouvido Arnie ser chamado de asqueroso vezes demais, nas
últimas horas. As lágrimas dele ainda secavam no peito de minha camisa
e é possível que também me sentisse um
pouco asqueroso.
—
O que "Beijinho" esteve fazendo estes dias, queridinha?
—
perguntei
-
lhe docemente.
—
Escrevendo algumas cartas de amor para
Erik Estrada? "Oh, Erik, eu morro por você, meu coração dispara como
louco, a cada vez que penso em seus lábios
grossos e melosos esmagando
os meus..."
—
Você é um animal
—
disse ela, friamente.
—
Um animal, é isso
que você é!
—
E não conheço ninguém melhor.
—
Está legal.
Ela pegou o sanduíche de açúcar mascavo, a revista, e disparou
bruscamente para a sala de estar
.
—
Não deixe essa coisa cair no chão, Ellie
—
avisou papai,
prejudicando um pouco sua retirada. Fui até a geladeira, mas rejeitei um
salsichão e um tomate, que não me agradaram muito. Havia
também meia embalagem de queijo pasteurizado, mas eu exagerara
ta
nto naquela porcaria quando na escola primária que, aparentemente,
esse exagero eliminara meu desejo por ele. Preferi meio litro de leite para
acompanhar meu sanduíche e abri uma lata de sopa Campbell com carne
picada.
—
Ele conseguiu?
—
perguntou papai.
M
eu pai é assessor tributário para a H & R Block. Como autônomo,
faz outros trabalhos sobre impostos. Antigamente era contador em tempo
integral para a maior firma de arquitetura de Pittsburgh, mas sofreu um
ataque cardíaco e deixou o cargo. É um excelente
sujeito.
—
Sim, conseguiu.
—
E você achou tão ruim como antes?
—
Pior ainda. Onde está mamãe?
—
Estudando
—
disse ele.
Seus olhos encontraram os meus e quase começamos a rir
sufocadamente. Olhamos, para outras direções logo em seguida,
envergonhados
—
embo
ra o fato de nos envergonharmos não ajudasse
muito. Minha mãe está com quarenta e três anos e trabalha como
higienista dentária. Durante muito tempo não trabalhou em sua
especialidade, mas voltou a ela quando papai teve o ataque cardíaco.
Quatro anos antes
, ela concluíra ser uma escritora latente e começou
a compor poemas sobre flores e a escrever contos sobre doces velhinhos
no outono de suas vidas. De vez em quando ficava francamente realista e
escrevia uma história sobre uma jovem tentada a "arriscar
-
se"
, mas então
decidia ser muito melhor que ela continuasse Pura para o Leito Nupcial.
Naquele verão, matriculara
-
se em um curso rápido para escritores, em
Horlicks
—
onde Michael e Regina lecionavam, lembrem
-
se
—
e
colecionava todos os seus temas e contos em
um livro a que dera o nome
de Rascunhos de Amor e Beleza.
Vocês podem estar pensando (e parabéns, se pensaram) que nada há
de engraçado sobre uma mulher que consegue manter um emprego,
cuidar da família e, ao mesmo tempo, desejar algo novo, querer expandi
r
um pouco seus horizontes. Claro que estão certos nisso. Também poderão
pensar que eu e meu pai tínhamos todos os motivos para envergonhar
-
nos,
que não passávamos de uma dupla de porcos discriminadores grunhindo
em nossa cozinha e, mais uma vez, têm toda
razão. Não quero discutir
este ponto, embora diga que, se tivessem sido obrigados a ouvir
constantes leituras extraídas de Rascunhos de Amor e Beleza, como eu e
papai
—
e também Elaine
—
poderiam compreender um pouco melhor a
origem de nossas risadinhas su
focadas.
Bem, ela foi e é uma excelente mãe. Creio que também tem sido uma
grande esposa para meu pai
—
pelo menos, nunca o ouvi queixar
-
se e ele
tampouco já passou toda a noite fora de casa, bebendo
—
, de maneira que
tudo quanto posso alegar em nossa defe
sa é que nunca rimos diante dela,
nenhum de nós dois. É uma desculpa esfarrapada, bem sei, porém melhor
do que nada. Nós não a magoaríamos, por nada do mundo.
Apertei a mão contra a boca, tentando estancar o riso. Papai pareceu
subitamente engasgado com se
u pão e o açúcar mascavo. Ignoro o que ele
pensava, mas o que eu tinha em mente era um artigo mais ou menos
recente, intitulado "Jesus Tinha um Cão?".
Somando
-
se ao que já acontecera naquele dia, isso era quase demais.
Fui até os armários em cima da pia e
peguei um copo para o leite.
Quando olhei para trás, papai já se controlara e isso me ajudou a
controlar
-
me também.
—
Você parecia meio aborrecido quando entrou
—
disse ele.
—
Está
tudo bem com Arnie, Dennis?
—
Tranqüilo
—
respondi, despejando a sopa em um
a frigideira, que
coloquei sobre o fogo.
—
Ele acabou de comprar um carro, uma boa droga,
mas está legal.
Claro que Arnie não estava legal, mas há certas coisas que não nos
dispomos a contar a nossos pais, pouco importando o quanto eles tenham
tido êxito n
a grande tarefa americana da paternidade.
—
Certas pessoas só enxergam as coisas quando as vêem com os
próprios olhos
—
disse ele.
—
Bem, espero que ele enxergue logo
—
falei.
—
Deixou o carro na
Darnell's, a vinte por semana, porque seus pais não deixaram
que o
estacionasse em casa.
—
Vinte por semana? Apenas por um boxe? Ou um boxe e
ferramentas?
—
Só o boxe.
—
Isto é um assalto!
—
Exato
—
respondi, percebendo que meu pai não entendera o
comentário como uma oferta para que Arnie estacionasse o carro em no
ssa
casa.
—
Quer jogar uma rodada de
cribbage?
*
—
Acho que sim
—
respondi.
—
Anime
-
se, Dennis! Não pode cometer erros por outras pessoas.
—
Sim, acho que tem razão.
Jogamos três ou quatro rodadas de
cribbage,
todas ganhas por ele
—
meu pai geralmente ganh
a, a menos que esteja muito cansado ou tenha
bebido uns dois drinques. De qualquer modo, não me incomodo. As vezes
que o derroto ficam valendo mais. Jogamos
cribbage
e mamãe apareceu
pouco depois, alegre, com os olhos brilhantes, parecendo jovem demais
par
a ser minha mãe, com o livro de contos e rascunhos apertado contra o
busto. Beijou meu pai
—
não o beijo leve costumeiro, mas um beijo de
verdade que, de repente, me fez perceber que eu devia estar em outro
lugar.
Ela fez as mesmas perguntas sobre Arnie e
seu carro, algo que
rapidamente começava a tornar
-
se o ponto alto das conversas naquela
casa, desde que Sid, irmão de mamãe, ficara arruinado e pedira um
*
Jogo de cartas (N.T.)
empréstimo a papai. Repeti a mesma lengalenga. Depois subi para meu
quarto. Eu me movia vagarosamente,
com a impressão de que papai e
mamãe tinham assuntos pessoais para cuidar... embora essa fosse uma
questão em que nunca me concentrara muito, como certamente vocês
compreenderão.
Elaine estava em seu quarto, ouvindo sua nova coleção de sucessos.
Pedi que
baixasse um pouco o volume, porque queria dormir. Ela me
espichou a língua. Eu não ia admitir aquilo, em absoluto. Entrei e fiz
-
lhe
cócegas, até ela dizer que ia vomitar. Falei, vá em frente, vomite, a cama é
sua
—
e fiz mais cócegas ainda. Ela então assum
iu sua expressão de "por
favor, Dennis, não ria de mim, porque isto é
terrivelmente
importante", e
ficando muito solene perguntou se era mesmo verdade que se podia atear
fogo a peidos. Carolyn Shambliss, uma de suas amigas, dissera ser
possível, mas Caroly
n mentia sobre quase
tudo.
Respondi
-
lhe que perguntasse a Milton Dodd, seu namoradinho
com cara de pênis. Foi quando Elaine ficou furiosa e tentou agredir
-
me,
perguntando por que você sempre tem que ser tão
nojento.
Dennis? Então
eu disse sim, era verdade
que se podia atear fogo a peidos, mas
aconselhei
-
a a não tentar. Fiz
-
lhe um ligeiro afago (o que se tornara
bastante raro em mim
—
aquilo sempre me deixava sem jeito,
depois
que
ela ficara com
seios,
de modo que
preferia as cócegas) e depois fui para meu
q
uarto.
Enquanto me despia, pensei: afinal, o dia não terminou tão ruim.
Por aqui há gente que me considera um ser humano, e também a Arnie.
Vou chamá
-
lo para vir amanhã ou no domingo. Ficaremos por aí, talvez
vejamos os Phillies jogando pela TV, podemos ai
nda nos divertir com um
jogo de damas idiota ou outra coisa qualquer, até mesmo o infalível jogo
de siga
-
a
-
pista, e nos livramos dessa sensação esquisita. Voltaremos a nos
sentir decentes outra vez.
Fui para a cama com tudo decidido na cabeça e devia ter p
egado no
sono em seguida, mas não foi assim. Eu não estava legal e sabia disso. As
coisas começaram a acontecer e, às vezes, não sabemos que droga elas são.
Motores. Eis aí algo mais, sobre a gente ser um adolescente. Há
todas aquelas máquinas e, de algum
modo, terminamos com as chaves de
ignição para uma delas, damos partida, mas ignoramos que merda
poder
ão ser ou o que se supõe que façam. Existem apenas pistas, mais
nada. O negócio da droga é assim, da mesma forma que o negócio da
bebida e o negócio do se
xo, por vezes outros negócios também
—
um
emprego de verão que gera um novo interesse, uma viagem, um curso no
colégio. Máquinas. Eles nos dão as chaves, algumas pistas e dizem: dê
partida, veja o que acontece, e, às vezes, isso pode levar
-
nos para uma
vid
a boa e satisfatória, mas em outras nos coloca direitinho na auto
-
estrada para o inferno, deixando
-
nos triturados e sangrando pela pista
afora.
M
áquinas.
Enormes. Como os motores 382, que eles costumavam colocar
naqueles carros antigos. Como Christine.
Fiq
uei acordado no escuro, virando
-
me de um lado para outro, at
é o
lençol desprender
-
se, ficar amarfanhado e embolado, enquanto eu
pensava em LeBay dizendo: O
nome da máquina é Christine.
De alguma
forma, Arnie captara o sentido da coisa. Quando éramos crianç
as,
havíamos tido patinetes e depois bicicletas. Dei um nome para a minha,
porém Arnie nunca batizou a sua
—
dizia que nomes eram para gatos,
cachorros e peixes. Só que isso fora antes, não agora. Agora ele chamava
aquele Plymouth de Christine e, pior aind
a, tratava
-
a sempre no feminino.
Eu n
ão gostava daquilo, embora sem saber por quê.
At
é meu pai falara no caso como se, em vez de comprar um
estropiado calhambeque, Arnie tivesse casado. Não era bem assim. De
modo algum. Seria?
Pare o carro, Dennis. Volte..
. Quero olhar para ela outra vez.
T
ão simples assim.
Sem nenhuma pondera
ção, e isso era incomum em Arnie, que em
geral costumava ponderar tudo cuidadosamente
—
sua vida o tinha
tornado dolorosamente cônscio do que acontecia a caras como ele, quando
ficavam
um pouco tocados e faziam algo (poxa!) no impulso do momento.
Desta vez, no entanto, ele agira como o homem que conhece uma corista,
envolve
-
se em um namoro tempestuoso, para terminar de ressaca e esposa
nova, na manhã de segunda
-
feira.
Aquilo tinha sido.
.. bem... como amor
à primeira vista.
N
ão importa, pensei. Começaremos tudo outra vez. Começaremos
amanhã. Então, obteremos alguma perspectiva sobre isto.
Por fim, peguei no sono. E sonhei.
A uivante rota
ção de um motor de arranque na escuridão.
Sil
êncio.
O motor de arranque uivando novamente.
O motor em funcionamento, morrendo, depois pegando.
A m
áquina correndo na escuridão.
Ent
ão, os faróis acesos, faróis enormes, faróis duplos e antigos, varando
-
me
como uma lanterna de mão contra o vidro.
Eu estava para
do aporta da garagem de LeBay e Christine l
á dentro
—
uma
nova Christine, sem nenhum amassado ou salpico de ferrugem. O pára
-
brisa
incólume, sombreado para um azul polarizado no alto. Do rádio brotavam os sons
rítmicos de Dale Hawkins em "Susie
-
Q "
—
uma v
oz de uma época morta,
impregnada de aterrorizante vitalidade.
O motor murmurando palavras de pot
ência, através de silenciosos duplos,
em envoltórios de vidro. Não sei como, eu sabia haver uma caixa de mudança
Hurst no interior e caixas de ligação Feully:
o óleo Quaker State acabara de ser
trocado
—
era agora de clara cor ambarina, o sangue vital automotivo.
Os limpadores de p
ára
-
brisa se ergueram de repente, uma coisa estranha,
porque não há ninguém atrás do volante, o carro está vazio.
—
Vamos garotão. Vam
os dar uma volta. Vamos rodar.
Sacudo a cabe
ça. Não quero entrar lá. Tenho medo de entrar lá. Não quero
dar uma volta. De repente, o motor começa a acelerar e morrer, acelerar e morrer;
é um som faminto, aterrador, como um cão feroz em uma correia fraca...
e eu
quero andar... porém meus pés parecem pregados ao pavimento gretado da calçada.
—
É a última chance, garotão.
E antes que eu possa responder
—
ou mesmo pensar em uma resposta
—
há
o guincho terrível da borracha desligando
-
se do concreto e Christine i
nveste
contra mim, seu radiador escancarado como uma boca aberta, cheio de dentes
cromados, os faróis ofuscantes...
Grito e acordo na escuridão morta das duas da madrugada,
assustado com o som de minha voz, o ruído apressado de pés descalços
correndo pelo
corredor assustando
-
me ainda mais. Minhas mãos
aferravam punhados do lençol. Puxei
-
o, estava todo embolado no meio da
cama. Um suor escorregadio envolvia meu corpo.
No fundo do corredor, Ellie gritou: "O que foi isso?", em seu próprio
terror.
A luz de meu
quarto iluminou tudo e lá estava mamãe, em uma
curta camisola que revelava mais do que ela permitiria, exceto na mais
extrema emergência. Logo atrás dela, papai amarrava o cinto do roupão,
fechado sobre absolutamente nada.
—
O que foi, meu bem?
—
pergunto
u mamãe.
Tinha os olhos arregalados e assustados. Eu não recordava a última
vez em que me chamara "meu bem" daquele jeito
—
aos quatorze anos?
Doze? Talvez dez? Não sei dizer.
—
Dennis?
—
chamou papai.
Então, surgiu Elaine mais atrás, depois entre eles, tr
emendo.
—
Voltem para a cama
—
falei.
—
Foi apenas um sonho. Nada mais.
—
Nossa!
—
disse Elaine, chocada pelo respeito à hora e à
ocasião.
—
Deve ter sido um verdadeiro filme de horror. Não foi, Dennis?
—
Sonhei que você tinha casado com Milton Dodd e veio
morar
comigo
—
respondi.
—
Não aborreça sua irmã
—
disse mamãe.
—
O que foi, Dennis?
—
Não me lembro.
De repente, percebi que o lençol era uma confusão, que havia um
tufo de pêlos púbicos aparecendo. Ajeitei tudo depressa, entre culpados
pensamentos de ma
sturbação, polução noturna e sabe
-
se mais lá o que,
martelando minha cabeça. Um deslocamento total. Nos primeiros dois ou
três vertiginosos momentos, eu nem mesmo tinha certeza se era grande ou
pequeno
—
havia apenas aquela imagem terrível, sombria e onipo
tente do
carro investindo para diante, um pouquinho a cada vez que o motor
funcionava, recuando, avançando de novo, o capô vibrando acima do
motor, o radiador semelhante a dentes de aço...
É a última chance garotão
.
Em seguida, a mão fria e seca de mamãe e
stava em minha testa, em
busca de febre.
—
Está tudo bem, mamãe
—
falei.
—
Não foi nada. Apenas um
pesadelo.
—
E você não se lembra...
—
Não. Esqueci tudo agora.
—
Fiquei assustada
—
disse ela, depois dando uma risadinha
trêmula.
—
Você só saberá o quanto
a gente se assusta, quando um de
seus filhos gritar no escuro.
—
Hum, nem me fale nisso
—
disse Elaine.
—
Vá para a cama, garotinha
—
disse papai, dando um tapinha leve
em sua nádega.
Ela obedeceu, não parecendo muito satisfeita. Talvez, superado o
medo in
icial, esperasse que eu tivesse um acesso de histeria. Isso lhe daria
um bom motivo de comentários, enfiada em seu sutiã de treinamento, no
programa matinal de discussões sobre o fato.
—
Você está bem mesmo?
—
perguntou mamãe.
—
Está, benzinho?
Aquela pala
vra novamente, trazendo antigas lembranças de joelhos
esfolados, ao cair de meu carrinho vermelho; seu rosto inclinado para
minha cama era o mesmo que eu vira nos febris acessos de todas aquelas
doenças infantis
—
caxumba, catapora, um ataque de escarlatin
a. Dando
-
me uma vontade absurda de chorar. Eu tinha nove anos e trinta e cinco
quilos em seu colo.
—
Claro que estou
—
respondi.
—
Muito bem
—
disse ela.
—
Deixe a luz acesa. Ajuda um pouco.
Com um último e hesitante olhar para meu pai, ela se foi. Eu tinh
a
algo para me deixar confuso
—
a idéia de que minha mãe jamais tivera
um pesadelo. Deve ser uma daquelas coisas que nunca nos ocorrem. E
quaisquer que fossem seus pesadelos, nenhum deles se transmitiria para
os Rascunhos de Amor e Beleza.
Papai se sentou
na beira da cama.
—
Não se lembra mesmo do que foi? Meneei a cabeça.
—
Deve ter sido horrível, para fazê
-
lo gritar daquele jeito, Dennis.
Seus olhos se fixavam nos meus, perguntando gravemente se
haveria alguma coisa que ele devesse saber. Quase lhe contei
—
o carro,
era o maldito carro de Arnie, Christine, a Rainha da Ferrugem, com vinte
anos de idade, aquela velharia fodida. Quase contei. Entretanto, sei lá
como, aquilo ficou engasgado em minha garganta, quase como se, falando,
eu traísse meu amigo. O bom
e velho Arnie, a quem um Deus amante de
gracejos decidira espancar com umas boas varadas.
—
Tudo bem
—
disse ele, e beijou meu rosto.
Pude sentir sua barba, diminutas cerdas espetando e que s
ó brotam
à noite. Senti também seu cheiro de suor e seu amor. Fi
z
-
lhe um afago
brusco e ele me afagou de volta.
Quando me vi sozinho, fiquei com o abajur da cabeceira aceso,
temendo voltar a dormir. Deitado de costas, peguei um livro, sabendo que
meus velhos estavam acordados em seu quarto, perguntando
-
se se eu
estari
a envolvido em alguma esp
écie de confusão ou se envolvera alguém
mais
—
talvez a chefe de torcida com corpo espetacular
—
em qualquer
tipo de problema.
Decidi que dormir era uma impossibilidade. Ficaria lendo at
é o dia
clarear e tiraria um cochilo na tarde
do dia seguinte, de preferência na
parte mais monótona do futebol. E, assim pensando, adormeci e acordei
na manhã seguinte, com o livro fechado e caído no chão, ao lado da cama.
P
RIMEIRAS
M
UDANÇAS
Eu lhe direi o que faria se tivesse dinheiro,
Eu iria
à c
idade e compraria um ou dois Mercurys,
Compraria um Mercury para mim
E cruzaria esta estrada para cima e para baixo.
—
The Steve Miller Band
Pensando que Arnie fosse aparecer naquele sábado, fiquei
perambulando pela casa
—
aparei a grama, limpei a garagem
, até mesmo
lavei todos os três carros. Mamãe observou com algum espanto toda
aquela diligência e, à hora do almoço de cachorro
-
quente com salada de
verduras, comentou que talvez eu devesse ter pesadelos com mais
regularidade.
Eu não queria telefonar para
a casa de Arnie, depois de todo aquele
desagradável ambiente que havia presenciado, mas quando chegaram as
preliminares do jogo e ele não apareceu, ganhei coragem e liguei. Regina
atendeu e, embora estivesse fazendo uma boa imitação do nada
-
mudou,
imaginei
detectar uma recente frieza em sua voz. Aquilo me entristeceu.
Seu único filho fora seduzido por uma velha e pelancuda prostituta
chamada Christine e seu cúmplice devia ter sido o velho chapa Dennis.
Talvez ele tivesse, inclusive, alcovitado o negócio. Ar
nie não estava em
casa, disse Regina. Estava na garagem de Darnell. Fora para lá desde nove
da manhã.
—
Oh!
—
murmurei, sem jeito.
—
Oh, poxa, eu não sabia disso.
—
Minha voz soava mentirosa e, pior ainda, eu a
sentia
mentir.
—
Não mesmo?
—
replicou Regina
, em sua nova voz fria.
—
Adeus,
Dennis.
O fone emudeceu em minha mão. Fiquei olhando para ele durante
um instante, depois o coloquei no gancho.
Papai se aboletara diante da TV, com sua frouxa bermuda púrpura,
calçando sapatos de lona e com seis latas de c
erveja na geladeira portátil a
seu lado. Os Phillies estavam tendo um dia ótimo, encurralando Atlanta
inteiramente. Mamãe saíra para visitar uma colega (acho que uma lia seus
rascunhos e poemas para a outra, exaltando
-
se juntas). Elaine fora para a
casa de
sua amiga Delia. Estava tudo quieto; lá fora, o sol brincava de
pique com algumas nuvens brancas. Papai me passou uma cerveja, o que
só faz quando se sente extraordinariamente bem
-
humorado.
Não obstante, o sábado ainda parecia desinteressante. Fiquei
pens
ando em Arnie, que não estava vendo o jogo ou aproveitando os raios
do sol, nem ao menos aparando a grama em sua casa e ficando com os pés
esverdeados. Arnie, nas sombras oleosas da Garagem Faça
-
Você
-
Mesmo
de Will Darnell, às voltas com aquela silenciosa b
anheira enferrujada,
enquanto homens gritavam e ferramentas caíam no cimento com
penetrante som metálico, a broca de ar comprimido afrouxando velhos
parafusos, a voz resfolegante e a tosse asmática de Will Darnell...
Que merda, eu estaria
enciumado? O
que
significava aquilo?
No sétimo turno do jogo, levantei
-
me e caminhei para a saída.
—
Aonde vai?
—
perguntou meu pai.
Isso mesmo, para onde eu ia? Para lá? Ficar espiando Arnie,
grudado a ele, ouvindo as implicâncias de Will Darnell? Procurando mais
uma dose
de sofrimento? Droga! Arnie já era um cara crescidinho.
—
A lugar nenhum
—
respondi.
Achei uma embalagem de biscoito na caixa do pão, cuidadosamente
empurrada para o fundo. Apanhei
-
a com certo prazer lúgubre, sabendo o
quanto Elaine ficaria enfurecida, ao
vir procurá
-
la durante um dos
comerciais de
Animada Noite de Sábado
e nada mais encontrar ali.
Voltei para a sala de estar. Sentei
-
me, filei outra cerveja de papai e
comi o biscoito de Elaine, inclusive rasgando a embalagem de papelão.
Ficamos vendo os Ph
illies acabarem com Atlanta. ("Deram uma surra
neles, Denny", eu podia ouvir meu avô, falecido cinco anos antes, dizendo
com sua voz esganiçada de velho, "uma surra pra valer!") e não pensei
mais em Arnie Cunningham.
Não muito.
Na tarde seguinte, ele apare
ceu em sua velha e desconjuntada
bicicleta de três velocidades, quando eu e Elaine jogávamos croqué no
gramado dos fundos. Ela insistia em acusar
-
me de estar roubando o jogo.
Vestia um
short,
cortado de calças velhas. Sempre o usava quando "estava
tendo su
as regras mensais". Minha irmã sentia grande orgulho daquelas
regras, que vinha tendo regularmente nos últimos quatorze meses.
—
Olá
—
disse Arnie, surgindo por uma esquina da casa.
—
Vocês
devem ser o Monstro da Lagoa Negra e a Noiva do Frankenstein, ou
D
ennis e Ellie.
—
O que você acha, cara?
—
falei.
—
Pegue um taco.
—
Não estou mais jogando
—
disse Elaine, deixando cair o seu taco
de jogar croqué.
—
Ele rouba ainda mais do que você.
Homens!
Depois que ela se foi, Arnie disse, em voz trêmula e afetada:
—
É a primeira vez que ela me chama de homem, Dennis.
Caiu de joelhos, com uma expressão de exaltada adoração no rosto.
Comecei a rir, Arnie sabia ser divertido, quando queria. Aquele era um
dos motivos de apreciá
-
lo tanto. Uma espécie de segredo, compreend
a.
Acho que ninguém mais percebia aquilo, além de mim. Certa vez, ouvi
falar de um milionário que roubara um Rembrandt e o guardara em seu
porão, onde ninguém mais podia vê
-
lo, além dele. Eu podia entender esse
sujeito. Não digo que Arnie fosse um Rembrand
t ou algum campeão de
inteligência, mas compreendia a atração de saber sobre algo bom... algo
que era bom, mas permanecendo em segredo.
Divertimo
-
nos com o croqué por alguns momentos, não jogando
para valer, mas tirando o máximo proveito de nossas boladas.
Finalmente,
uma bola atravessou a cerca viva até o quintal dos Blackfords e, após eu
ter rastejado até lá para recuperá
-
la, desistimos de jogar. Ficamos sentados
nas cadeiras do quintal. Dentro em pouco, Jay Hawkins Miador, nosso
gato substituto do Capitã
o Beefheart, deslizou furtivamente da porta, sem
dúvida esperando encontrar algum bom esquilinho, que assassinaria lenta
e malevolamente. Seus olhos verde
-
âmbar cintilaram à luz da tarde, agora
nublada e quieta.
—
Pensei que você viesse ver o jogo ontem
—
falei.
—
Foi uma boa
partida.
—
Estive na Darnell's
—
disse ele.
—
De qualquer modo, ouvi o jogo
pelo rádio.
—
Sua voz elevou
-
se três oitavas e fez uma boa imitação de
meu avô:
—
"Deram uma surra neles! Uma surra pra valer, Denny!".
Ri e assenti. Naquele d
ia, havia algo nele parecendo diferente talvez
fosse apenas por causa da claridade, bastante forte, mas ainda assim
sombria e crepuscular. Em primeiro lugar, Arnie parecia cansado, estava
com olheiras
—
mas, ao mesmo tempo, a pele estava um pouco melhor do
que ultimamente. Andara bebendo um bocado de Cocas no trabalho,
mesmo sabendo que não devia, é claro, mas incapaz de resistir à tentação,
de vez em quando. Seus problemas de pele tendiam a surgir em ciclos,
como na maioria dos adolescentes, dependendo do
estado de ânimo. No
caso de Arnie, contudo, os ciclos geralmente iam de ruim para pior, e
retornavam ao ruim.
Talvez fosse apenas a claridade.
—
O que fez no carro?
—
perguntei.
—
Não muita coisa. Troquei o óleo. Dei uma espiada no bloco do
motor. Enfim, n
ão está rachado, Dennis. LeBay ou alguém mais deixou o
bujão de drenagem em algum lugar ao longo da linha, eis tudo. Um
bocado do óleo velho tinha vazado para fora. Tive sorte em não soltar um
pistão, dirigindo na tarde de sexta
-
feira.
—
Como conseguiu hor
a com o elevador? Pensei que era preciso
uma reserva antecipada. Seus olhos desviaram
-
se dos meus.
—
Não houve problema
—
disse, mas havia desapontamento em sua
voz.
—
Fiz uns dois favores para o Sr. Darnell.
Abri a boca para perguntar que tipo de favores,
mas decidi que n
ão
queria saber. Provavelmente, os "dois favores" se reduziriam apenas a
uma ida à Schirmer's Lanchonete, na primeira esquina, a fim de trazer café
puro para os
habitués
da garagem, ou então juntar várias partes de carros
usados, para vend
a posterior. O que não me interessava era envolver
-
me
na extremidade Christine da vida de Arnie
—
e isso incluía saber como ele
estava se saindo (ou não saindo) na garagem de Darnell.
Havia ainda algo mais
—
uma sensação de perda. Eu não conseguia
definir
muito bem tal sensação, ou não queria defini
-
la. Hoje, posso
afirmar que se tratava da maneira como nos sentimos quando um amigo
nosso se apaixona por uma vagabunda experiente e metida a sebo. A
gente não gosta da vagabunda e, em noventa e nove por cento d
os casos,
ela também não vai com a nossa cara, de maneira que nos limitamos a
fechar a porta para aquele compartimento da antiga amizade. Feita a coisa,
tanto podemos esquecer o assunto... como descobrir que o amigo nos
esqueceu, em geral com entusiástica
aprovação da vagabunda.
—
Vamos ao cinema
—
disse Arnie, inquieto.
—
O que está passando?
—
Bem, há um daqueles violentos filmes Kung
-
fu, no State Twin, o
que acha disso?
Hiii
-
iah!
—
Ele fingiu dar um selvagem chute de caratê em
Jay Hawkins Miador, e o gato
saltou para longe como uma flecha.
—
Parece bom. Bruce Lee?
—
Não. Outro cara.
—
Como é o nome dele?
—
Não sei. Punhos Perigosos. Mãos Voadoras Mortais. Talvez seja
Genitais Furiosos, sei lá. O que me diz? Quando voltarmos, podemos
contar as partes mais v
iolentas para Ellie e fazê
-
la vomitar.
—
Está bem
—
falei.
—
Isto, se ainda pudermos entrar, pagando
uma prata cada um.
—
Claro. Podemos entrar até as três.
—
Vamos embora.
Fomos. Afinal, era um filme de Chuck Norris, n
ão ruim de todo.
Na segunda
-
feira, co
ntinuamos a constru
ção do alongamento da
Interestadual. Esqueci meu sonho. Aos poucos, percebi que não
continuaria vendo Arnie tanto tempo como antes; de novo, era como nos
sentimos se vamos perdendo contato com um cara recém
-
casado. Por
outro lado, meu ne
gócio com a chefe de torcida começou a esquentar.
Havia também outra coisa que esquentava como o diabo
—
por várias
noites, levei
-
a das corridas de submarinos no
drive
-
in
para casa, sentindo
os colhões latejarem de tal modo, que mal podia caminhar.
Nesse
í
nterim, Arnie passava na Darnell's a maioria do tempo livre,
depois que saía do trabalho.
BUDDY
REPPERTON
E eu sei, pouco importa quanto custe,
Oooooh, aquele duplo exaustor
Faz o meu motor berrar,
E o meu carro ent
ão terá
Uma descarga Cadillac.
—
Moon Ma
rtin
Nossa
última semana de trabalho corrido, antes do início das aulas,
foi a que precedeu o Dia do Trabalho. Quando passei pela casa de Arnie
para apanhá
-
lo aquela manhã, ele apareceu com uma enorme mancha
negro
-
azulada em torno de um olho e um feio cor
te na parte superior da
face.
—
O que houve com você?
—
Não quero falar sobre isso
—
respondeu ele, carrancudo.
—
Já
tive que explicar tanto a meus pais, que quase fiquei maluco.
Atirou sua maleta do lanche no assento traseiro e mergulhou em um
sombrio sil
êncio, que durou todo o trajeto até o trabalho. Alguns
companheiros o interrogaram sobre o corte, mas Arnie apenas deu de
ombros.
Nada comentei ao voltarmos para casa; apenas liguei o r
ádio e fiquei
entregue a mim mesmo. E talvez ficasse sem jamais ouvir a
história, se não
houvesse sido "atacado" por aquele seboso ítalo
-
irlandês chamado Gino,
pouco antes de deixarmos a Main Street para trás.
Naquela
época, Gino estava sempre me atocaiando
—
ele podia
esgueirar
-
se através do vidro fechado de um carro e reali
zar a façanha. O
estabelecimento Gino's Fine Italian Pizza (Deliciosa Pizza Italiana do Gino)
fica na esquina da Main com Basin Drive, e sempre que eu via o anúncio
com a pizza elevando
-
se no ar, com todos aqueles ii pontilhados por copos
de bebida (aquilo
piscava noite adentro, como é que se pode fugir?), sentia
a cilada funcionando novamente. Aquela noite, minha mãe estaria em
aula, isto significando que teríamos um jantar de sobras em casa. A
perspectiva não me deixava nem um pouco alegre. Eu e meu pai n
ão
éramos muito chegados a cozinhar e, quanto a Ellie, seria capaz até de
queimar água pura.
—
Vamos comer uma pizza
—
falei, manobrando para o pátio de
estacionamento do Gino's.
—
O que me diz? Uma bem grande e
gordurosa, cheirando como sovacos.
—
Que vio
lência, Dennis!
—
Sovacos
limpos
—
emendei.
—
Vamos.
—
Negativo. Estou de caixa baixa
—
disse Arnie, em um murmúrio.
—
Eu pago. Pode até ficar com aquelas horríveis e fodidas enchovas
em sua metade. E então, vamos?
—
Dennis, acho que eu não...
—
Com uma Pep
si
—
acrescentei.
—
Pepsi me acaba com a pele, você sabe disso.
—
Sim, eu sei. Um copo
grande
de Pepsi, Arnie.
Seus olhos cinzentos iluminaram
-
se pela primeira vez no dia.
—
Um copo
grande
—
repetiu.
—
Olha só! Você é mesmo pão
-
duro,
Dennis.
—
Dois, se pre
ferir
—
falei.
Era uma grande pedida, francamente
—
como oferecer barras de
chocolate à mulher gorda do circo.
—
Dois
—
ele disse, apertando meu ombro.
—
Dois copões de Pepsi,
Dennis!
—
Arnie começou a estirar
-
se no assento, com as duas mãos em
torno da ga
rganta e gritando:
—
Dois! Depressa! Dois! Depressa!
Eu ria tanto que quase embiquei com o carro para cima da parede
cinzenta de concreto. Quando sa
ímos de meu Duster, pensei, por que ele
não beberia duas sodas? Sem dúvida, andou afastado delas
ultimamente
.
A pequena melhora que eu percebera em seu rosto, naquele domingo
nublado de duas semanas atr
ás, agora era definitiva. Ele continuava
exibindo uma profusão de caroços e crateras, mas nem tantos estavam
—
perdoem
-
me, mas preciso dizer
—
gotejando. Arnie pa
recia melhor,
também em outros sentidos. Um verão inteiro trabalhando na estrada o
tinha bronzeado profundamente e o deixara na melhor forma física que já
estivera na vida. Assim, pensei que ele merecia sua Pepsi. Ao vencedor os
despojos.
O Gino's
é dirigi
do por um cara italiano formidável, chamado Pat
Donahue. Em sua caixa registradora, ele tem um adesivo dizendo MÁFIA
IRLANDESA, serve cerveja verde no Dia de São Patrício (em 17 de março
a gente nem pode chegar perto do Gino's, e uma das pedidas na vitrola
automática é Rosemary Clooney cantando "Quando os Olhos Irlandeses
Sorriem") e impressiona com um chapéu
-
coco reto que, em geral, usa
empurrado bem para trás.
A vitrola autom
ática é um antigo modelo Wurlitzer, com a parte
frontal em forma de bolha, um rem
anescente dos finais dos anos 40, e
todos os discos
—
não apenas Rosemary Clooney
—
têm etiquetas pré
-
históricas. Talvez seja a última vitrola automática do país em que se
consegue três músicas por uma moeda de 25 centavos. Nas raras ocasiões
em que fumo u
m baseado, é sobre o Gino's que fantasio
—
vejo
-
me
entrando lá, pedindo três pizzas caprichadas, uma garrafa de Pepsi e seis
ou sete daqueles doces de chocolate feitos em casa, especialidade de Pat
Donahue. Entào, imagino
-
me apenas sentado ali e devorando
tudo,
enquanto daquela vitrola sai uma firme torrente de Beach Boys e Rolling
Stones.
Entramos, fiz o pedido e ficamos sentados, vendo os tr
ês cozinheiros
de pizza jogando a massa no ar e tornando a pegá
-
la. Estavam trocando
amenidades em espirituoso estil
o italiano, como: "Vi você a noite passada
na pista de dança do Shriners's, Howie, quem era aquela coisa desajeitada
que estava com seu irmão?". "Oh,
ela?
Era sua irmã."
Quero dizer, parecia algo como Velho Mundo, como se pode
ag
üentar?
As pessoas entravam
e sa
íam, muitas delas estudantes de meu
colégio. Dentro em breve tornaria a vê
-
las pelos corredores e senti uma
repetição daquela forte nostalgia antecipada, aquela sensação de medo.
Em minha cabeça, ouvia o sinal de ir para casa, porém de algum modo
aque
le prolongado uivo soava como um alarma.
Lá vamos nós de novo,
Dennis, esta é a última vez, porque depois deste ano terá que aprender a ser adulto.
Eu podia ouvir as portas de armários batendo com força no vestiário,
ouvia o firme
ka
-
chonk, ka
-
chonk, ka
-
ch
onk
dos atacantes, cujas bastonadas
perturbavam os adversários mais fracos, e também ouvia Marty Bellerman
gritar rigorosamente: "Vamos em frente. Pedersen! Não esqueça disso!
Vamos em frente! É melhor dizer a esses cretinos dos gêmeos Bobbsey que
se separ
em!". O cheiro seco da poeira de giz na sala de aula, na Ala de
Matemática. O som das máquinas de escrever, nas grandes salas de aulas
de secretariado, no segundo andar. O Sr. Meecham, o diretor, fazendo os
comunicados do fim do dia, em sua voz monótona e
exigente. O almoço
ao ar livre, nas arquibancadas do campo de esportes, quando o tempo era
bom. Uma nova safra de calouros, parecendo desajeitados e perdidos. E,
tudo encerrado, a gente caminha corredor abaixo, vestindo aquele enorme
roupão de banho púrpur
a
—
e pronto. Terminou o ginásio. Liberam
-
nos
para um mundo inimaginável.
—
Você conhece Buddy Repperton, Dennis?
—
perguntou Arnie,
despertando
-
me de meu sonho. Nossa pizza já chegara.
—
Buddy o quê?
—
Repperton.
O nome era familiar. Trabalhei no meu lado
da pizza e me forcei a
recordar, enquanto isso. Lembrei, ap
ós um momento. Eu havia tido uma
discussão com ele, quando era ainda um dos desajeitados e pequenos
calouros. Acontecera em um baile de confraternização. A banda tirava
uma folga e eu esperava na
fila de bebidas, para conseguir uma soda.
Repperton empurrou
-
me, dizendo que calouros tinham que esperar, até
que todos os mais adiantados tivessem suas bebidas. Ele era então um
segundanista do ginásio, grande e corpulento, um significativo
segundanista.
Tinha um queixo em forma de lanterna, cabelos negros,
espessos e gordurosos, e olhos pequeninos, muito juntos. Entretanto,
aqueles olhos não eram totalmente estúpidos, deixando entrever um
desagradável brilho de inteligência. Repperton era um daqueles tipo
s que
passam a maior parte do tempo no ginásio na área de fumar.
Eu ousara emitir a her
ética opinião de que, na fila de bebidas, nada
significava ser veterano. Repperton convidou
-
me a ir lá fora com ele. A
esta altura, a fila se desfizera, tornando a organ
izar
-
se em um daqueles
cautelosos porém ansiosos pequenos círculos, que geralmente prenunciam
uma briga.
Uma recepcionista apareceu então, pondo um final naquilo.
Repperton prometeu que me pegaria, mas nunca o fez. Aquele havia sido
meu único contato com e
le, exceto quando via seu nome de vez em
quando na lista de detidos no final do dia, convocando
-
os para uma ida à
secretaria do colégio. Parecia
-
me que ele fora suspenso umas duas vezes,
além disso
—
e quando tal acontece, em geral é um bom sinal de que o
sujeito não fazia parte da Liga de Jovens Cristãos.
Contei a Arnie meu único contato com Repperton e ele assentiu
abatido. Tocou a equimose em torno do olho, que agora adquiria uma
horrível tonalidade esverdeada.
—
Foi ele.
—
Foi Repperton quem fez isso em
seu rosto?
—
Hum
-
hum.
Arnie contou que conhecia Repperton dos cursos de Mecânica de
Motores. Uma das ironias da perseguida e evidentemente infeliz vida
escolar de Arnie era o fato de seus interesses e aptidões o encaminharem
precisamente para um contato d
ireto com o tipo de gente que sentia ser
seu obrigatório dever chutar para fora o recheio dos Arnie Cunningham
deste mundo.
Quando estava no segundo ano secundário, fazendo um curso
chamado Motores Fundamentais (que nada mais era senão o simples e
velho Me
cânica de Motores 1, antes que a escola conseguisse do governo
federal um bom dinheiro para treinamento vocacional), um garoto
chamado Roger Gilman fizera Arnie pôr para fora toda a merda que tinha
no corpo. Sei que isso é francamente vulgar, porém não exi
ste forma mais
delicada e elegante de expor o fato. Gilman o fez espirrar o recheio. Foi
uma surra tão contundente
—
que Arnie precisou faltar dois dias à escola,
enquanto Gilman tirava uma semana de férias
—
cortesia da direção.
Atualmente, Gilman estava
preso, acusado de roubo de automóvel. Buddy
Repperton fizera parte do círculo de amigos de Roger Gilman e, de certa
forma, herdara a liderança de seu grupo.
Para Arnie, ir à aula na Classe de Motores, era como visitar uma
zona despoliciada. Então, se conse
guia sobreviver, corria todo o trajeto até
a outra extremidade da escola, com seu tabuleiro de xadrez debaixo do
braço, para uma reunião ou jogo no clube de xadrez.
Recordo a vez em que fui a um torneio de xadrez da cidade, em
Squirrel Hill, certo dia do a
no anterior, e então vi algo que, para mim,
simbolizava a esquizofrênica vida escolar de meu amigo. Lá estava ele,
inclinado gravemente sobre seu tabuleiro, em meio àquele profundo e
palpável silêncio que é, principalmente, o que se ouve em tais ocasiões.
Após uma longa e meditativa pausa, ele moveu a pedra, com a mão tão
profundamente impregnada de graxa e óleo que nem mesmo uma lixa
conseguiria limpar.
Claro está, que nem todos os colegas de curso eram contra ele; havia
muitos rapazes que não se metiam, p
orém muitos deles permaneciam em
seus próprios e firmes círculos de amigos ou permanentemente
indiferentes. Os que se reuniam em grupos fechados, em geral provinham
da zona mais pobre de Libertyville (e não me venham dizer que
estudantes secundários não se
portam de acordo com a zona da cidade de
onde se originam; eles se portam), sendo tão sérios e calados, que se
poderia cometer o engano de classificá
-
los como imbecis. Em sua maioria,
pareciam remanescentes de 1968, com cabelos compridos amarrados em
rabo
s
-
de
-
cavalo, seus
jeans
e camisetas tingidos, mas, em 1978, nenhum
desses caras queria derrubar o governo; eles queriam crescer e tornar
-
se
Mr. Goodwrench
1
.
E as salas de aulas profissionalizantes ainda são o destino final de
alunos desajustados e durões,
que não só freqüentavam a escola
—
ela
lhes servia como prisão. Então, agora que Arnie mencionava o nome de
Repperton, pude pensar em vários caras que circulavam em torno dele,
como um sistema planetário. Em sua maioria, andavam pelos vinte anos e
continu
avam lutando para terminar os estudos. Don Vandenberg, Sandy
Galton, "Penetra" Welch. O verdadeiro nome de "Penetra" era Peter, mas
os outros o chamavam assim, porque era visto farejando os concertos de
rock
em Pittsburgh, à espera de conseguir entrar.
Bud
dy Repperton se tornara dono de um Camaro azul, com dois
anos de fabricação, que havia capôtado umas duas vezes para fora da Rota
46, perto do Parque Estadual das Squantic Hills
—
segundo Arnie, ele o
adquirira de um dos companheiros de pôquer de Darnell.
A máquina
estava legal, porém
a carroceria mostrava amplamente os tristes efeitos da
capo
tagem. Repperton o levara para a garagem de Darnell, uma semana
após Arnie ter levado Christine, embora Buddy costumasse rondar por lá
ainda antes disso.
Nos primeiros
dois dias, Repperton parecera n
ão ter dado por Arnie
em absoluto. E Arnie, naturalmente, ficava muito feliz em não ser
percebido. Entretanto, Repperton mantinha
-
se em boas relações com
Darnell, parecendo não haver qualquer problema para conseguir
ferramen
tas muito requisitadas que, em geral, só eram acessíveis em
termos de reserva.
Ent
ão, Repperton começara a envolver
-
se com Arnie. Quando
voltava da vendedora automática de Coca ou do banheiro, derrubava e
espalhava por todo o piso do boxe de Arnie uma caix
a cheia de acessórios,
chave inglesa e juntas esféricas que ele estava usando. Ou então, se Arnie
tinha um café em sua prateleira, Repperton dava um jeito de atingi
-
lo com
o cotovelo e derramá
-
lo. Depois soltava um "Bem... me descuuuulpe...!",
como Steve M
artin, com seu largo sorriso perverso no rosto. Darnell, em
1
Elemento especializado, em uma oficina mecân
ica e postos de serviço, com estágio em
fábricas de automóveis e apto, entre outras coisas, a orientar o cliente sobre consertos em
seu veículo, reposição de peças genuínas e orçamento definitivo do trabalho. (N.T.).
seguida, berrava para Arnie recolher todos aqueles acessórios, antes que
algum deles sumisse por um ralo no chão ou coisa assim.
Em breve, Repperton se desviava de seu caminho para dar um
vigoroso
tapa nas costas de Arnie, acompanhado por um estrondoso:
"Como est
á se saindo, Cara de Cona?".
Arnie suportou aqueles ataques com o estoicismo do sujeito que j
á
viu algo igual antes, que já passou por tudo aquilo. Provavelmente,
esperava que Buddy Reppert
on se cansasse de amolá
-
lo ou que
encontrasse alguma outra vítima para substituí
-
lo. Havia ainda uma
terceira possibilidade, quase boa demais para acontecer
—
sempre havia a
esperança de que Buddy fosse justamente afetado por alguma coisa e
desaparecesse d
o cenário, como seu velho companheiro Roger Gilman.
Ent
ão, a coisa chegara às vias de fato, na tarde do último sábado.
Arnie estava lubrificando o carro, principalmente porque ainda não
acumulara fundos suficientes para as centenas de outros reparos que o
Plymouth exigia. Repperton aproximou
-
se, assobiando alegremente, com
uma Coca e um saco de amendoins em uma das mãos, um macaco de mão
na outra. Ao passar pelo boxe vinte, moveu brusca e vigorosamente o
macaco à altura da cintura e quebrou um dos faróis di
anteiros de
Christine.
—
Arrebentou
-
o em pedacinhos
—
contou
-
me Arnie, sobre nossa
pizza.
Ent
ão, mostrando no rosto uma exagerada expressão de tragédia,
Buddy Repperton dissera: "Oh, poxa, veja só o que fiz! Bem... me
descuuuulpe...".
Aquilo, entretanto, e
ra o m
áximo que Arnie podia suportar. O
ataque a Christine desencadeou as ações que ele ainda não fora capaz de
liberar
—
impeliu
-
o à retaliação. Deu a volta ao Plymouth, com os punhos
fechados, e atacou às cegas. Em um livro ou filme, talvez ele houvesse
esmurrado Repperton certeiramente, derrubando
-
o ao chão para uma
contagem de nocaute. Uma contagem até dez.
N
ão obstante, isso raramente acontece na vida real. Arnie nem
mesmo conseguiu chegar perto do queixo de Repperton. Atingiu
-
lhe
apenas a mão, derruba
ndo ao chão o saco de amendoins e despejando a
Coca
-
Cola inteiramente no rosto e camisa de Repperton.
—
Muito bem, seu filho da puta!
—
bradou Repperton. Parecia
quase comicamente surpreso.
—
Vou virar seu traseiro pelo avesso!
Avan
çou para Arnie empunhand
o o macaco. Vários dos outros
homens se aproximaram às carreiras e um deles disse a Repperton que
largasse o macaco e brigasse sem vantagens. Repperton atirou o macaco
para um lado e avançou.
—
Darnell não tentou pôr um fim à briga?
—
perguntei a Arnie.
—
Ele não estava lá, Dennis. Desapareceu uns quinze minutos ou
meia hora antes de tudo começar. Como se
soubesse
o que ia acontecer.
Arnie contou que Repperton havia feito a maior parte do estrago
logo de sa
ída. Primeiro o olho preto; o corte no rosto (feito
pelo anel do
colégio, adquirido por Repperton durante um de seus vários últimos anos
como veterano) aconteceu logo em seguida.
—
Além de várias outras coisas mais
—
acrescentou Arnie.
—
Que outras coisas?
Est
ávamos sentados em uma das cabinas do fundo. Ar
nie olhou em
torno, para certificar
-
se de que ninguém olhava para nós, e então ergueu a
camiseta. Respirei de maneira sibilante, quando vi aquilo. Era um terrível
pôr
-
do
-
sol em equimoses
—
amarelas, vermelhas, purpúreas, marrons
—
cobrindo
seu peito e est
ô
mago. Estavam apenas começando a esmaecer.
Não consegui entender como ele pudera ir trabalhar, massacrado daquele
jeito.
—
Tem certeza de que ele não lhe quebrou alguma costela, cara?
—
perguntei.
Eu estava francamente horrorizado. O olho preto e o corte d
o rosto
eram caf
é pequeno, perto de toda aquela coisa. Já vira o resultado de
brigas no colégio, estivera metido em algumas, porém agora contemplava
as conseqüências de uma surra em regra, pela primeira vez na vida.
—
Certeza absoluta
—
disse Arnie, com ca
lma.
—
Tive sorte.
—
Se teve!
Arnie n
ão contou muito mais, porém um garoto que eu conhecia,
chamado Randy Turner, estava lá e me contou o sucedido com mais
detalhes, quando as aulas começaram. Segundo ele, Arnie podia ter
apanhado muito mais, porém avançar
a para Buddy com muito mais
empenho e muito mais furioso do que ele esperara.
De fato, disse Randy, Arnie saltara para Buddy Repperton como se o
diabo lhe tivesse jogado um punhado de pimenta no traseiro. Seus bra
ços
se moviam como pás de moinho, os punhos
estavam em todos os lados.
Ele gritava, praguejava e babava. Tentei imaginar o quadro e não pude
—
em vez disso, via apenas Arnie socando meu painel de instrumentos, com
força apenas para deixar marcas, gritando que eles pagariam.
Arnie fizera Repperton r
ecuar at
é o meio da garagem, com o nariz
sangrando (mais por puro acaso, do que por boa pontaria), tendo
-
lhe
esmurrado o peito com tal violência que ele começou a tossir,
engasgando
-
se e terminando por perder o interesse em liquidar meu
amigo.
Buddy se vir
ara, segurando a garganta e tentando vomitar. Arnie
assestara um pontap
é nos fundilhos de Repperton, com sua bota de
trabalho de biqueira de aço, derrubando
-
o espalhafatosamente sobre a
barriga e os braços. Repperton ainda arquejava e segurava a garganta c
om
uma das mãos, o nariz jorrava sangue aos borbotões e (novamente,
segundo Randy Turner) Arnie parecia disposto a chutar o filho da puta
até acabar com ele quando Will Darnell magicamente reapareceu,
gritando em sua voz resfolegante que parassem com aquel
a merda,
parassem aquela merda, aquela
merda.
—
Arnie pensava que a briga estava para acontecer
—
falei a
Randy.
—
Pensou que fosse coisa combinada.
Randy deu de ombros.
—
Talvez fosse. Podia ser. Engraçado foi a maneira como Darnell
apareceu, quando Reppe
rton começou realmente a perder.
Uns sete sujeitos agarraram Arnie e o afastaram. A princ
ípio, ele
lutou como um demônio para libertar
-
se, gritando que o soltassem,
gritando que se Repperton não pagasse o farol quebrado, ele o mataria.
Depois se deixou sub
jugar, espantado e sem consciência de como podia
ter acontecido aquilo: Repperton caído e ele ainda de pé.
Repperton finalmente levantou
-
se, a camiseta branca suja de poeira
e graxa, o nariz ainda borbulhando sangue. Mergulhou na dire
ção de
Arnie. Randy co
ntou que mais parecia um ensaio de mergulho, quase por
amor às aparências. Outros sujeitos o contiveram e o afastaram dali.
Darnell aproximou
-
se de Arnie, dizendo que lhe entregasse a chave de sua
caixa de ferramentas e desse o fora.
—
Céus, Arnie! Por que
não me telefonou na tarde de sábado? Ele
suspirou.
—
Estava deprimido demais.
Terminamos nossa pizza e comprei uma terceira Pepsi para ele. Esse
tipo de refrigerante
é um veneno para a pele, mas um alívio para a
depressão.
—
Não sei se ele me mandou dar o
fora por aquele sábado ou para
sempre
—
comentou Arnie, quando voltávamos para casa.
—
O que você
acha, Dennis? Será que ele me chutou de lá definitivamente?
—
Você disse que ele lhe pediu a chave da caixa de ferramentas.
—
Exato, exato, foi o que ele fez
. Nunca fui chutado de
nenhum lugar
antes.
Arnie dava a impressão de que ia chorar.
—
Seja como for, aquele lugar é uma droga. E Will Darnell é um
filho da puta.
—
Acho que seria estupidez tentar continuar lá
—
disse ele.
—
E
mesmo que Darnell me deixe vol
tar, Repperton continua lá. Eu acabaria
brigando com ele outra vez e...
Comecei a cantarolar baixinho o tema de
Rocky.
—
Vá para o inferno, você e o garanhão que monta, Cavaleiro da
Montanha
—
disse ele, sorrindo ligeiramente.
—
Eu lutaria
realmente
com
el
e. Só que Repperton pode atacá
-
la novamente com aquele macaco,
quando eu não estiver lá. E, se fizesse isso, não creio que Darnell o
impedisse.
Como não respondi, talvez Arnie pensasse que eu era de sua mesma
opinião. Entretanto, não me entrava na cabeça q
ue seu velho calhambeque
enferrujado, aquele Plymouth Fury, fosse o alvo principal. E, se Repperton
não pudesse completar sozinho a demolição do alvo principal, bastaria
pedir ajuda a seus amigos
—
Don Vandenberg, "Penetra" Welch, etc.
Calcem suas botas fe
rradas, rapazes, vamos ter uma boa diversão esta
noite.
Ocorreu
-
me que eles poderiam acabar com ele. Não apenas arrasá
-
lo,
mas
matá
-
lo
mesmo. Sujeitos como eles às vezes fazem isso. As coisas
apenas passam de um certo limite e algum garoto termina morto. V
olta e
meia, a gente lê isso nos jornais.
—
... deixá
-
la?
—
Como?
Eu não seguira o fio de sua conversa. Mais acima, a casa de Arnie
estava à vista.
—
Perguntei se você tinha alguma idéia sobre onde eu poderia
deixá
-
la.
O carro, o carro, o carro, era tudo so
bre o que ele falava. Arnie
começava a soar como um disco rachado. E, pior ainda, era sempre ela, ela,
ela. Era inteligente o bastante para sentir sua crescente obsessão por ela
—
ele, maldição, ele
—
, mas não dava pela coisa. Nem se mancava.
—
Arnie
—
fal
ei.
—
Escute aqui, cara. Você tem coisas mais
importantes com que se preocupar, em vez de espremer os miolos
imaginando onde vai deixar o carro. Onde o guardará. Quero saber onde
você vai se guardar.
—
Como? De que está falando?
—
Pergunto o que fará, se B
uddy e seus capangas decidirem que vão
fazer você dançar.
Seu rosto subitamente adquiriu uma expressão consciente
—
tão
subitamente que dava medo ver. Consciente, impotente e sofrido. Era um
rosto que eu podia reconhecer, pois o vira nos noticiários, quand
o tinha
apenas oito ou nove anos
—
o rosto de todos aqueles soldados de pijamas
negros que tinham feito o diabo com o mais bem equipado e aguerido
exército do mundo.
—
Farei o que puder, Dennis
—
disse ele.
L
E
B
AY
M
ORRE
Não tenho carro e isso me corta o co
ração,
Mas tenho um motorista e já é um começo...
—
Lennon e McCartney
Tinham começado a passar o filme
Nos Tempos da Brilhantina
e levei
a chefe de torcida para vê
-
lo, aquela noite. Achei uma chatura, mas ela
adorou. Fiquei lá, vendo aqueles adolescente
s completamente irreais,
dançando e cantando (se eu quisesse adolescentes
realistas
—
bem, mais
ou menos
—
veria O
Balanço das Horas,
em alguma reapresentação), de
modo que minha mente se desligou do filme. De repente, fui acometido
por uma súbita idéia, c
omo às vezes costuma acontecer quando não
estamos concentrados em nada particular.
Desculpei
-
me e fui até o saguão, para usar o telefone público. Liguei
para a casa de Arnie, com rapidez e segurança. Decorara o número dele
desde que andava pelos oito anos,
ou coisa assim. Podia ter esperado até o
filme terminar, mas aquela idéia me pareceu diabolicamente boa, para
esperar tanto tempo. O próprio Arnie atendeu.
—
Alô?
—
Aqui é Dennis, Arnie.
—
Oh, Dennis!
Sua voz era tão inexpressiva e alheia que fiquei um po
uco assustado.
—
Você está bem, Arnie?
—
Como? Oh, claro que estou. Pensei que você tivesse levado
Roseanne ao cinema.
—
É do cinema que estou ligando.
—
Então, o filme não deve ser tão legal assim
—
disse Arnie, com
aquela voz ainda monótona, monótona e t
errível.
—
Roseanne está achando um barato.
Pensei que aquilo arrancasse o riso de Arnie, mas houve apenas
aquele silêncio paciente, aguardando.
—
Escute
—
falei
—
, encontrei a resposta.
—
Que resposta?
—
LeBay
—
respondi.
—
LeBay é a resposta.
—
Le...
—
d
isse ele, em voz estranha e aguda... para então silenciar
novamente. Aquilo começava a ser mais do que um susto para mim. Eu
nunca o vira desse jeito.
—
Exatamente
—
insisti.
—
LeBay. LeBay tem uma garagem e me
veio a idéia de que ele comeria um sanduíche
de rato morto se a margem
de lucro fosse suficientemente alta. Se você o procurar oferecendo uma
base, digamos, de dezesseis ou dezessete pratas por semana...
—
Muito engraçado, Dennis.
A voz de Arnie era gélida e odiosa.
—
Arnie, o que... Ele desligou.
Fi
quei parado, contemplando o fone e me perguntando que diabo
estava acontecendo. Alguma nova investida de seus pais? Teria ele
voltado à garagem e descoberto um novo dano em seu carro? Ou...
Uma súbita intuição
—
quase uma certeza
—
me colheu de súbito.
Rec
oloquei o fone no gancho e caminhei para o balcão onde vendiam
doces e pipocas e perguntei se tinham o jornal daquele dia. A garota que
atendia finalmente o pescou e voltou a estourar sua goma de mascar,
enquanto eu folheava a parte final do jornal, onde p
ublicam os obituários.
A garota me vigiava, talvez querendo ter certeza de que eu não usaria o
jornal para alguma estranha perversão ou possivelmente o comesse.
Nada encontrei
—
ou foi o que imaginei a princípio. Então, virando
a página, vi o cabeçalho. VE
TERANO DE LIBERTYVILLE FALECE AOS
71 ANOS. Havia uma foto de Roland D. LeBay em seu uniforme do
Exército, parecendo vinte anos mais jovem e com olhos muito mais vivos
do que nas ocasiões em que eu e Arnie o tínhamos visto. A notícia era
breve. LeBay falece
ra subitamente, na tarde de sábado. Deixava um irmão,
George, e uma irmã, Márcia. Os serviços funerários estavam marcados
para terça
-
feira, às duas da tarde.
Subitamente.
Nas notícias de falecimentos, sempre lemos: "após prolongada
enfermidade," "após brev
e enfermidade" ou "subitamente". Subitamente
pode significar qualquer coisa, desde embolia cerebral a uma eletrocussão
na banheira. Recordei algo que tinha feito a Ellie, quando ela não passava
de um bebê
—
teria uns três anos, talvez. Eu quase a matara de
susto, com
um boneco de molas. A mão de Dennis, seu grande irmão mais velho,
girava a pequena manivela que produzia música. Nada mau. Muito
interessante. E de repente
—
ploft!
De dentro da caixa saltava aquele
sujeito de rosto risonho e feio nariz de ganc
ho, quase lhe atingindo o olho.
Ellie abriu um berreiro e disparou em busca da mãe, enquanto eu ficava lá,
olhando sombriamente para o boneco que oscilava de um lado para outro,
sabendo que provavelmente seria repreendido, sabendo que
provavelmente
merecia
ser repreendido
—
eu sabia antecipadamente que o
boneco a assustaria, brotando da música daquele jeito, de repente, com
um terrível ruído.
Brotando tão subitamente.
Devolvi o jornal e fiquei lá, olhando apaticamente para os cartazes
que anunciavam PRÓXIMA
ATRAÇÃO e PARA BREVE.
Tarde de sábado.
Subitamente.
É engraçado como as coisas às vezes acontecem. Minha repentina
idéia havia sido de que talvez Arnie pudesse levar Christine de volta para
o lugar de onde viera, pagando a LeBay por isso. Agora, no entant
o,
LeBay estava morto. De fato, morrera no mesmo dia da briga de Arnie
com Buddy Repperton
—
o mesmo dia em que Buddy estraçalhara o farol
de Christine.
Tive imediatamente um retrato irracional de Buddy Repperton
movimentando aquele macaco
—
e, no mesmo ex
ato momento,
o olho de
LeBay espirra sangue, ele emborca de pernas para o ar e, subitamente,
muito subitamente...
Pare com isso, Dennis,
me adverti.
Pare com...
Então, em algum lugar lá no fundo de minha mente, algum ponto
perto do centro, uma voz sussurro
u:
Vamos garotão, vamos rodar por aí
—
e
silenciou.
A garota atrás do balcão explodiu sua goma de mascar e disse:
—
Você está perdendo o fim do filme. É a melhor parte.
—
Oh, sim, obrigado.
Comecei a caminhar para a porta do cinema e então mudei o rumo,
di
reto ao bebedouro. Minha garganta estava muito seca.
Antes de terminar de beber, as portas se abriram e todos começaram
a sair. Além e acima de suas cabeças em movimento, pude ler o nome dos
participantes do filme. Roseanne surgiu à vista, olhando em torno
à minha
procura. Atraiu muitos olhares de admiração e os devolveu com
simplicidade, naquele seu jeito sonhador e contido.
—
Den
-
Den
—
disse ela, tomando meu braço. Ser chamado Den
-
Den
não é a pior coisa do mundo, ter os olhos inutilizados por um rubro
ati
çador de brasas ou uma perna amputada por uma serra elétrica deve
ser muito mais terrível, mas nunca me importei muito com aquilo.
—
Onde é que você esteve? Perdeu o final do filme. E o fim é...
—
... a melhor parte
—
completei para ela.
—
Sinto muito. Houv
e
uma necessidade fisiológica. Aconteceu quando menos esperava.
—
Vou te contar tudinho, se me levar até a beira do rio, por um
momento
—
disse ela, pressionando meu braço contra o lado macio de seu
seio.
—
Se estiver querendo conversar, lógico.
—
Foi um f
inal feliz?
Ela sorriu para mim, os olhos grandes e doces, um pouco
atordoados, como sempre. Segurou meu braço ainda mais apertadamente
contra o seio.
—
Muito feliz
—
disse.
—
Gosto de finais felizes. E você?
—
Adoro
—
respondi.
Eu devia estar pensando na
promessa de seus seios, mas a verdade é
que voltara a concentrar
-
me em Arnie.
Naquela noite, tive um sonho novamente, porém neste Christine era
velha
—
não, não apenas velha; era anciã, um terrível carro de carroceria
desmantelada, algo que se esperaria ve
r em um baralho Tarot: em vez do
Homem Enforcado, o Carro Morto. Algo que se poderia quase acreditar
ser tão velho como as pirâmides. O motor rugia, morria e expelia uma
fedorenta fumaça azulada de óleo queimado.
Ele não estava vazio: Roland D. LeBay estav
a refestelado ao volante.
Seus olhos abertos eram vítreos e mortos. A cada vez que o motor pegava,
a carroceria carcomida de ferrugem vibrava, Christine se sacudia como
uma boneca de trapos. Seu crânio descascado assentia, para diante e para
trás.
Então, o
s pneus deram seu grito terrível, o Plymouth saltou da
garagem para cima de mim e, ao fazer isso, a ferrugem dissolveu
-
se, os
vidros antigos e rachados ficaram cristalinos, os cromados cintilaram com
selvagem frescor e os velhos pneus carecas subitamente f
loresceram em
carnudos Firestones de banda branca, cada reentrância da banda de
rolamento parecendo tão funda como o Grand Canyon.
Ele estrondeou para mim, os faróis despejando círculos brancos de
ódio, e então ergui as mãos, em um gesto estúpido e inútil
de defesa,
pensando:
Céus, essa fúria interminável...
Acordei.
Não gritei. Naquela noite, sufoquei o grito na garganta.
Com grande esforço.
Sentei
-
me na cama, uma poça fria de luar batia em um pedaço do
lençol e pensei:
Falecido subitamente...
Nessa noite
, não consegui tornar a dormir tão depressa.
O
F
UNERAL
Rabo
-
de
-
peixe branco, de ponta a ponta,
E roda como algo do paraíso aqui na terra,
Bem, cara, quando eu morrer,
Jogue meu corpo na traseira
E me leve para o ferro
-
velho em meu Cadillac.
—
Bruce Spring
steen
Brad Jeffries, nosso capataz de turma na estrada, andava pelos
quarenta e tantos anos, era careca, atarracado, permanentemente
queimado de sol. Gostava muito de gritar
—
principalmente quando
estávamos atrasados nos prazos de construção
—
mas era um
bocado
legal como pessoa. Fui procurá
-
lo na folga do café, para saber se Arnie
pedira algumas horas livres ou a tarde inteira.
—
Ele pediu duas horas, para ir a um enterro
—
disse Brad. Tirou os
óculos de aros metálicos e massageou os pontos vermelhos que
haviam
deixado, nos lados do nariz.
—
Bolas, não vá
pedir
também... vou perder
vocês dois no fim da semana, de qualquer jeito, e todos os imbecis ficam
aqui.
—
Tenho que pedir, Brad.
—
Por quê? Quem é o cara? Cunningham disse que ele lhe vendera
um carro,
foi tudo. Céus, nunca pensei que alguém fosse ao enterro de um
vendedor de carros usados, além dos parentes.
—
Não era um vendedor de carros usados, apenas um cara. Arnie
está tendo problemas nessa área, Brad. Acho que eu devia estar com ele.
Brad suspiro
u.
—
Certo. Certo, certo, certo! Pode tirar uma folga, de uma às três,
como ele. Se concordar em trabalhar durante a hora do almoço e ficar até
as seis, na sexta
-
feira.
—
Tudo bem, Brad. Obrigado.
—
Vou fazer de conta que trabalharam o horário normal
—
dec
larou
Brad.
—
Se alguém da Penn
-
DOT, em Pittsburgh, descobrir, minha cabeça
vai rolar.
—
Ninguém descobrirá.
—
Será uma pena perder vocês dois, rapaz.
Pegou o jornal e procurou a parte esportiva. Vindo de Brad, aquilo
era um elogio e tanto.
—
Foi um bom ve
rão para nós também.
—
Fico satisfeito em saber, Dennis. Agora dê o fora daqui e me deixe
ler o jornal. Obedeci.
Era uma da tarde quando peguei carona em uma niveladora até o
barracão principal da construção. Ar
n
ie estava lá dentro, pendurando seu
capacete
amarelo e vestindo uma camisa limpa. Olhou para mim com
espanto.
—
Dennis! O que está fazendo aqui?
—
Vim me aprontar para um enterro
—
falei.
—
O mesmo que você.
—
Não
—
disse ele prontamente.
Naquela palavra, encerrava
-
se tudo
—
os sábados que não passa
va
mais em casa, a frieza de Michael e Regina ao telefone, a maneira como ele
se portara, quando lhe ligara do cinema
—
, fazendo
-
me perceber o quanto
me isolara de sua vida e como aquilo acontecera da mesma forma como
LeBay tinha morrido. Subitamente.
—
Si
m
—
falei.
—
Sonhei com o sujeito, Arnie. Está me ouvindo?
Eu
sonhei
com ele. Vou ao enterro. Podemos ir juntos ou separados, mas eu
vou também.
—
Não estava brincando, estava?
—
Quê?
—
Quando ligou para mim, do cinema. Ainda não sabia que ele
estava morto
, sabia?
—
Droga! Acha que eu ia brincar com uma coisa dessas?
—
Não
—
respondeu ele, mas demorou um pouco.
Só respondeu depois de refletir cautelosamente. Via a possibilidade
de todas as mãos agora se voltarem contra ele. Will Darnell agira assim,
bem com
o Buddy Repperton. Imagino que também seu pai e sua mãe.
Contudo, não se tratava somente deles, nem mesmo principalmente deles,
porque nenhum era a causa primordial. Era o carro.
—
Você sonhou com ele?
—
Sonhei.
Ele ficou parado, segurando a camisa limpa,
meditando naquilo.
—
O jornal disse Cemitério de Libertyville Heights
—
comentei
finalmente.
—
Vai pegar o ônibus ou prefere ir comigo?
—
Vou com você.
—
Boa idéia.
Postamo
-
nos em uma elevação, um pouco acima da cerimônia à
beira da sepultura, não ousando
ou não querendo descer e juntar
-
nos ao
punhado das pessoas ali presentes. Ao todo, eram menos de uma dúzia,
metade composta de velhos sujeitos vestindo uniformes que pareciam
velhos e cuidadosa
mente preservados
—
quase se podia sentir o cheiro da
naftali
na. O ataúde de LeBay estava em deslizadores sobre a sepultura.
Havia uma bandeira sobre ele. As palavras do pregador chegaram até nós,
levadas pela brisa quente de um final de agosto: "O homem é como a relva,
que cresce e depois é aparada, o homem é como
a flor, que desabrocha na
primavera e esmaece no verão, o homem é amor, e ama o que desaparece.
Terminada a cerimônia, a bandeira foi removida e um homem
aparentando mais de sessenta anos jogou um punhado de terra sobre o
caixão. Pequenos fragmentos saltit
aram e caíram na fossa abaixo. O
noticiário do óbito dizia que ele deixara um irmão e uma irmã. Aquele
devia ser o irmão; a semelhança não era espantosa, mas existia.
Evidentemente, a irmã não comparecera; ali havia apenas homens, em
torno do buraco no chã
o.
Dois dos sujeitos da Legião Americana dobraram a bandeira em
formato de quepe e um deles a entregou ao irmão de LeBay. O pregador
pediu ao Senhor para abençoá
-
los e guardá
-
los, que Seu rosto fulgurasse
sobre eles e lhes desse paz. Em seguida, todos come
çaram a dispersar
-
se.
Olhei em torno, procurando Arnie, porém ele não estava mais ao meu
lado. Tinha
-
se afastado um pouco e o vi de pé sob uma árvore. Havia
lágrimas em suas faces.
—
Você está bem, Arnie?
—
perguntei.
Tive absoluta certeza de não ter visto
uma só maldita lágrima
vertida pelos que circundavam a sepultura. Pensei que, se Roland D.
LeBay soubesse que Arnie Cunningham seria o único a derramar lágrimas
por ele, na cerimônia simples junto à sepultura, em um dos mais
anônimos cemitérios do oeste d
a Pensilvânia, bem poderia ter rebaixado
cinqüenta pratas do preço de seu nojento carro. Afinal de contas, Arnie
ainda estaria pagando cento e cinqüenta a mais do que o calhambeque
valia.
Ele limpou o rosto com as palmas das mãos, em um gesto quase
selvage
m.
—
Estou ótimo
—
disse.
—
Vamos.
—
Está bem.
Pensei que ele se referia à hora de irmos embora, porém Arnie não
caminhou para onde eu estacionara meu Duster, começando, em vez disso,
a descer a elevação. Comecei a perguntar
-
lhe aonde ia, mas fechei a boca
;
eu o conhecia bem, sabia que pretendia falar com o irmão de LeBay.
O irmão estava parado com dois daqueles sujeitos com tipo de
Legionários, conversando tranqüilamente, com a bandeira debaixo do
braço. Usava o terno do homem que se aproxima da aposentado
ria, com
um rendimento insuficiente. Era um tecido com fino listrado azul, os
fundilhos ligeiramente brilhantes. A gravata aparecia com a ponta
amarrotada e a camisa branca estava amarelada no colarinho.
Ele nos viu chegando.
—
Com licença
—
disse Arnie
—
,
mas o senhor é o irmão do Sr.
LeBay, não?
—
Sim, sou eu mesmo.
Ele fitou Arnie de modo inquisitivo e, pensei, um tanto desconfiado.
Arnie estendeu a mão.
—
Meu nome é Arnold Cunningham. Conheci seu irmão
ligeiramente. Comprei um carro dele, não faz muito
tempo.
Quando Arnie estendeu a mão, LeBay a procurou
automaticamente
—
entre homens americanos, o único gesto que parece
mais arraigado do que o aperto de mão é observar a braguilha, para
certificar
-
se de que o zíper foi fechado, após a saída de um toalete
público.
Entretanto, quando Arnie acrescentou que comprara um carro de LeBay, a
mão vacilou no trajeto. Por um momento, pensei que não ia haver
qualquer aperto de mãos, que ele recuaria com a sua, deixando a de Arnie
boiar no vazio.
Entretanto, ele não fe
z tal coisa... pelo menos, não de todo. Apertou
superficialmente a mão de Arnie e depois a soltou.
—
Christine
—
disse ele, em voz inexpressiva. Sim, a semelhança do
parentesco era patente: na maneira como as sobrancelhas formavam uma
prateleira acima dos
olhos, na forma do queixo, nos olhos de um azul
-
claro. Este homem, no entanto, tinha o rosto mais suave, quase gentil;
duvido que um dia fosse ficar com a aparência magra e astuta de Roland
D. LeBay.
—
Na última notícia sua que me enviou, Rollie disse que
a
vendera.
Deus meu, também ele usava o maldito pronome feminino. E
Rollie!
Era difícil imaginar LeBay, com seu crânio pelado e o fedorento colete
ortopédico, sendo Rollie para alguém. Seu irmão, contudo, pronunciara o
diminutivo na mesma voz seca e indife
rente. Não havia amor naquela voz,
pelo menos nenhum que eu pudesse captar.
LeBay prosseguiu:
—
Meu irmão não escrevia com freqüência, Sr. Cunningham, mas
tinha uma tendência a vangloriar
-
se. Eu desejaria ter para ele uma palavra
mais delicada, porém creio
que não existe. Em seu bilhete, Rollie falava do
senhor como um "pato" e disse que lhe passara o que considerava "um
conto
-
do
-
vigário".
Fiquei de boca aberta. Virei
-
me para Arnie, quase esperando outro
acesso de fúria. Seu rosto, contudo, não se modificou
em absoluto.
—
Um conto
-
do
-
vigário
—
disse brandamente
—
é sempre a opinião
do espectador. Acredita nisso, Sr. LeBay?
LeBay riu... com certa relutância, observei.
—
Este é meu amigo. Estávamos juntos, no dia em que comprei o
carro. Fui apresentado e apert
ei a mão de George LeBay.
Os soldados já se tinham ido. Nós três, eu, Arnie e LeBay,
entreolhamo
-
nos desconfortavelmente. LeBay passou a bandeira do irmão
de uma para a outra mão.
—
Posso ser
-
lhe útil em alguma coisa, Sr. Cunningham?
—
perguntou LeBay fina
lmente. Arnie pigarreou.
—
Eu estava pensando na garagem
—
disse por fim.
—
Compreenda,
estou consertando o carro, tentando deixá
-
lo em condições de rodar
novamente pelas ruas. Meus pais não o querem em nossa casa e, desta
forma, eu estava pensando se...
—
Nada feito.
—
... talvez pudesse alugar a garagem.
—
O assunto está fora de discussão. De fato, é...
—
Eu pagaria vinte dólares por semana
—
disse Arnie.
—
Até vinte
e cinco, se quiser. Pestanejei. Arnie se portava como um menino, preso em
areia movediça,
que decide divertir
-
se comendo alguns bombons com
arsênico.
—
Impossível.
—
LeBay parecia cada vez mais constrangido.
—
Apenas a garagem
—
disse Arnie, sua calma começando a
fraquejar.
—
Apenas a garagem onde o carro
estava antes.
—
Não é possível
—
disse
LeBay.
—
Ainda esta manhã, registrei a
casa com os corretores da Century 21, Libertyville Realty e Pittsburg
Homes. Eles ficaram incumbidos de mostrá
-
la...
—
Claro, dentro de algum tempo, mas até lá...
—
...e eu não gostaria de tê
-
lo na propriedade. Compr
eende, não?
—
Ele se inclinou ligeiramente para Arnie.
—
Por favor, não me interprete
mal. Nada tenho contra adolescentes em geral... Se tivesse, provavelmente
estaria agora em um hospício, porque lecionei no ginásio de Paradise Falls,
Ohio, durante quase
quarenta anos, e você me parece um cortês e
inteligente exemplo do gênero adolescente. De qualquer modo, tudo
quanto pretendo fazer aqui, em Libertyville, é vender a casa e dividir
qualquer que seja o produto obtido, com minha irmã em Denver. Quero
ver
-
me
livre daquela casa, Sr. Cunningham, e também livre da vida de
meu irmão.
—
Entendo
—
disse Arnie.
—
Faria muita diferença se eu lhe
prometesse cuidar da propriedade? Aparar a grama? Repintar as portas e
janelas? Fazer pequenos reparos? Tenho muito jeito pa
ra essas coisas.
—
Ele é realmente bom nisso
—
falei.
Para Arnie, seria bom recordar, mais tarde, que eu estivera do seu
lado... mesmo não estando.
—
Já contratei um homem para ficar de olho
por lá e fazer um pequeno trabalho de conservação. Aquilo soava
pl
ausível mas, de repente, tive certeza absoluta de que era mentira. E
Arnie sabia também, pensei.
—
Está certo. Sinto muito sobre seu irmão. Ele parecia um... um
homem de grande força de vontade.
Quando Arnie disse isso, recordei o momento em que me virara
e
tinha visto LeBay com compridas e gordurosas lágrimas nas faces.
Bem, aí
está. Fiquei sem a minha máquina, filho.
—
Força de vontade?
—
LeBay sorriu cinicamente.
—
Oh, sim. Ele
era um filho da mãe com força de vontade.
—
Pareceu não notar o ar
chocado de
Arnie.
—
Com licença, senhores. Creio que o sol perturbou um
pouco o meu estômago.
Começou a caminhar. Ficamos parados, não muito longe da
sepultura, vendo
-
o afastar
-
se. LeBay parou subitamente e o rosto de Arnie
iluminou
-
se, sem dúvida pensando que o hom
em mudara de idéia de
repente. Por um momento, LeBay ficou parado sobre a grama, a cabeça
baixa, na postura de quem reflete profundamente. Então tomou a
caminhar para nós.
—
Se quer um conselho, esqueça aquele carro
—
disse a Arnie.
—
Venda
-
o. Se ninguém o
quiser comprar inteiro, venda
-
o por peças. E se
ninguém se interessar assim mesmo, leve para o ferro
-
velho. Faça isso, o
mais rápido possível. Como quem se livra de um vício. Creio que você
seria mais feliz.
Ficou olhando para Arnie, esperando que ele dis
sesse alguma coisa,
mas não houve resposta. Meu amigo apenas o encarou fixamente. Seus
olhos tinham aquela peculiar e estranha tonalidade que adquiriam
quando a mente de Arnie estava decidida em alguma coisa, os pés bem
firmes no chão. LeBay entendeu e ass
entiu. Pareceu angustiado e um
pouco indisposto.
—
Bom dia, senhores. Arnie suspirou.
—
Bem, suponho que isto encerra tudo.
Olhou para Lebay que se afastava, com certo ressentimento.
—
Certo
—
concordei, esperando soar mais infeliz do que me sentia.
Era o
sonho. Eu não gostava da idéia de Christine novamente
naquela garagem. Era semelhante demais ao meu sonho.
Em silêncio, começamos a caminhar de volta para meu carro. LeBay
piscou para mim. Os dois LeBays tinham piscado para mim. Tomei uma
súbita, impulsiva
decisão
—
só Deus sabe como as coisas podiam ter sido
muito diferentes, se eu não tivesse seguido meu impulso.
—
Ei, cara
—
falei.
—
Tenho que dar uma mijada. Será só um ou
dois minutos, certo?
—
Certo
—
disse ele, mal erguendo os olhos.
Continuou caminha
ndo, com as mãos enfiadas nos bolsos e os olhos
cravados no chão. Caminhei para a esquerda, onde um pequeno e discreto
aviso, com uma flecha ainda menor, indicava o trajeto para os toaletes.
Entretanto, quando escalei a primeira elevação e fiquei fora da v
ista de
Arnie, dobrei para a direita e corri para o pátio de estacionamento.
Alcancei George LeBay quando ele deslizava lentamente para trás do
volante de um diminuto Chevette, com um adesivo Hertz colado no pára
-
brisa.
—
Sr. LeBay!
—
chamei, arquejante.
—
Sr. LeBay!
—
Ele ergueu os
olhos, curiosamente.
—
Desculpe
-
me
—
falei.
—
Sinto muito incomodá
-
lo
novamente.
—
Não tem importância
—
respondeu ele
—
, mas continuo firme no
que disse a seu amigo. Não posso deixá
-
lo guardar o carro na garagem.
—
Faz muito be
m
—
falei.
Suas espessas sobrancelhas se elevaram.
—
Aquele carro
—
continuei
—
, aquele
Fury,
não gosto dele. Ele
continuou a olhar para mim, sem dizer nada.
—
Não creio que aquele carro tenha feito bem a meu amigo. Talvez,
em parte seja porque... Oh, eu n
ão sei como dizer...
—
Está com ciúmes?
—
perguntou ele, brandamente.
—
O tempo
que seu amigo passava com você agora é dedicado a... Christine?
—
Bem, acho que é isso
—
falei.
—
Somos amigos há muito tempo...
Só que... bem, não creio que se trate apenas di
sso.
—
Não?
—
Não.
—
Olhei em torno, para ver se avistava Arnie e, nesse meio
tempo, consegui concatenar os pensamentos.
—
Por que disse a ele para
levar o carro ao ferro
-
velho e esquecê
-
lo? Por que disse que era como um
vício?
Ele ficou calado e receio qu
e nada tivesse a dizer
—
pelo menos, não
a mim. Então, quase baixo demais para eu ouvir, perguntou:
—
Tem certeza de que isto é da sua conta, filho?
—
Não sei.
—
De repente, parecia muito importante fitá
-
lo nos
olhos.
—
No entanto, eu me preocupo com Arnie
, entende? Não quero vê
-
lo sofrer. Aquele carro já lhe trouxe problemas. Não quero que a situação
fique pior.
—
Venha a meu hotel esta noite. Fica logo depois da Western
Avenue, na saída da 376. Acha que pode encontrar?
—
Ajudei a compactar os lados da ram
pa
—
falei, estendendo
-
lhe as
mãos.
—
Ainda tenho bolhas.
Sorri, mas ele não correspondeu ao sorriso.
—
Rainbow Hotel. Há dois, na cabeceira daquela saída. O meu é o
mais barato.
—
Obrigado
—
falei, desajeitadamente.
—
Ouça, acha mesmo que...
—
Talvez não
seja da sua conta, da minha, nem da de ninguém
—
disse LeBay, em sua voz macia de professor, tão diferente do selvagem
cacarejo de seu falecido irmão (porém, de certo modo, tão fantasticamente
similar).
(e este é o melhor cheiro do mundo... excetuando talv
ez o de uma cona)
—
No entanto, vou lhe dizer uma coisa
—
prosseguiu ele.
—
Meu
irmão não era um bom homem. Em minha opinião, a única coisa que ele
realmente amou na vida foi esse Plymouth Fury que seu amigo comprou.
Portanto, o assunto deve ser entre eles
, apenas entre eles, pouco importa o
que me diga ou o que eu lhe possa dizer.
Ele sorriu para mim. Não era um sorriso agradável e, naquele
instante, pareceu
-
me ver Roland D. LeBay espiando através de seus olhos.
Fiquei arrepiado.
—
Filho, você talvez ainda
seja jovem demais para buscar sabedoria
nas palavras de alguém, preferindo as suas próprias, porém eu lhe digo
isto: o inimigo é o amor.
—
Assentiu lentamente para mim.
—
Exatamente.
Os poetas se enganam com o amor, de maneira contínua e por vezes
deliber
adamente. O amor é o velho carniceiro. O amor não é cego. O amor
é um canibal com visão extremamente apurada. O amor é como os insetos:
sempre faminto.
—
E o que ele come?
—
perguntei, inconscientemente.
Não tinha idéia de perguntar coisa alguma. Cada part
e minha,
exceto a boca, considerava insana toda aquela conversa.
—
A amizade
—
disse George LeBay.
—
Ele come a amizade. Se
fosse você, Dennis, eu agora me prepararia para o pior.
Fechou a porta do Chevette com um pluft! macio e ligou seu motor
de máquina
de costura. O carro afastou
-
se, deixando
-
me parado no final
do piso acimentado. De repente, lembrei que Arnie podia avistar
-
me
vindo daqueles lados e então saí dali o mais depressa que pude.
Enquanto me afastava, refleti que os coveiros, enterradores,
enge
nheiros perpétuos ou fosse lá que nome tivessem nos dias atuais,
naquele momento deviam estar baixando o caixão de LeBay à sepultura. A
terra atirada por George LeBay no final da cerimônia estaria dispersa
sobre a tampa, à maneira de uma cartada vitoriosa.
Tentei afastar a
imagem, porém outra ainda pior a substituiu: Roland D. LeBay, dentro do
ataúde forrado de seda, envergando seu melhor terno e sua melhor roupa
de baixo
—
sem
o nauseabundo e encardido colete ortopédico,
naturalmente.
LeBay estava debaixo
da terra, LeBay estava em seu caixão, com as
mãos cruzadas sobre o peito... e por que eu tinha tanta certeza de haver
em seu rosto um largo e debochado sorriso?
U
M
H
ISTÓRICO DE
F
AMÍLIA
Não ficou sabendo em Needham?
A Rota 128 está em suas linhas de força.
..
É tão frio aqui no escuro.
É tão excitante no escuro...
-
Jonathan Richmond e os Modern Lovers
O Rainbow Hotel era bastante ruim, sem dúvida. Tinha apenas um
andar, a pavimentação do pátio de estacionamento estava rachada e duas
das letras no anúncio d
e néon estavam avariadas. Era exatamente o tipo
de lugar onde se espera encontrar um idoso professor inglês. Sei o quanto
isto pode parecer deprimente, porém é a pura verdade. E, no dia seguinte,
ele devolveria seu carro à Agência Hertz, no aeroporto, para
em seguida
tomar o avião de volta a casa, em Paradise Falls, Ohio.
O Rainbow Hotel parecia uma enfermaria geriátrica. Havia vários
grupos sentados do lado de fora de seus aposentos, nas espreguiçadeiras
de jardim que a gerência fornecia para tal finalidad
e, cruzados os joelhos
ossudos, as meias brancas puxadas para cima, sobre as canelas peludas.
Todos os homens tinham uma aparência de alpinistas envelhecidos, eram
magricelas e rijos. Em sua maioria, as mulheres desabrochavam com a
macia gordura do pós
-
cin
qüenta, uma gordura sem esperanças de
desaparecer. Desde então, comecei a perceber a existência de hotéis que
parecem cheios apenas de pessoas com mais de cinqüenta anos como se
eles ficassem sabendo desses lugares através de um Telefone de
Emergência para
Idosos, mas Decentes. Traga a sua Histerectomia e
Próstata Dilatada para o Não
-
Tão
-
Cênico Rainbow Hotel. Sem Televisão,
mas Temos Dedos Mágicos, Apenas 25 Centavos a Injeção. Não vi
qualquer pessoa jovem no exterior das unidades e, a um lado, o
enferrujad
o equipamento do
playground
permanecia vazio, os balanços
lançando compridas sombras imóveis no chão. Em cima, um arco
-
íris de
néon, justificando o nome do lugar (Rainbow), arqueava
-
se sobre o
anúncio. Zumbia como um punhado de moscas presas em uma garrafa
.
LeBay estava sentado fora da Unidade 14, com um copo na mão.
Caminhei até lá e troquei um aperto de mão com ele.
—
Gostaria de um refrigerante?
—
perguntou ele.
—
No escritório
há uma máquina automática que os fornece.
—
Não, obrigado
—
respondi.
Peguei
uma das espreguiçadeiras que vi diante de uma unidade
vazia e me sentei ao lado dele.
—
Então, deixe
-
me contar
-
lhe o que posso
—
disse ele, em sua voz
culta e suave.
—
Sou onze anos mais novo que Rollie e um homem que
ainda está aprendendo a envelhecer.
Re
mexi
-
me desajeitadamente no assento e não disse nada.
—
Éramos quatro
—
disse ele.
—
Rollie o mais velho, eu o mais novo.
Nosso irmão Drew morreu na França, em 1914. Ele e Rollie fizeram
carreira no Exército. Fomos criados aqui, em Libertyville. Só que, na
quela,
época, Libertyville era muito, muito menor, compreenda, apenas uma
aldeia. Pequena o bastante para ter seus endinheirados e seus párias. Nós
pertencíamos aos párias. Éramos uma família pobre. Gente sem iniciativa.
Do lado errado dos trilhos. Escolha
o clichê.
Ele deu uma risadinha contida e despejou mais cerveja em seu copo.
—
Em verdade, só consigo recordar uma coisa constante sobre a
infância de Rollie, afinal, ele estava no quinto ano quando nasci mas é algo
de que me lembro perfeitamente.
—
O que
é?
—
Sua raiva
—
disse LeBay.
—
Rollie estava sempre furioso.
Irritava
-
se por ter de ir à escola com roupas velhas, irritava
-
se por nosso
pai ser um bêbado que não conseguia manter um emprego fixo em
nenhuma das metalúrgicas, irritava
-
se por nossa mãe não
conseguir fazer
com que nosso pai deixasse de beber. Ficava também irritado com as três
crianças menores
—
Drew, Márcia e eu
—
, pois tornávamos a pobreza
insustentável.
Ele estendeu o braço para mim e arregaçou a manga da camisa, a
fim de mostrar
-
me os du
ros e esbranquiçados tendões de seu braço de
velho, jazendo logo abaixo da superfície da pele luzidia e estirada. Uma
cicatriz alastrava
-
se do cotovelo até o pulso, onde finalmente se desfazia.
—
Isto foi um presente de Rollie
—
disse.
—
Eu tinha três anos
e ele
quatorze. Eu brincava com alguns blocos de madeira pintados, que fingia
serem carros e caminhões, na calçada diante de uma casa, quando ele
apareceu, a caminho da escola. Imagino que eu estivesse em seu caminho.
Ele me empurrou, ganhou a calçada e e
ntão voltou, para empurrar
-
me de
novo. Caí com o braço sobre as estacas pontiagudas do gradil que cercava
um punhado de plantas e girassóis, que minha mãe insistia em chamar de
"jardim". Sangrei o bastante para assustá
-
los até as lágrimas todos eles,
excet
o Rollie, que se limitou a ficar gritando: "De agora em diante, fique
fora do meu caminho, seu maldito imbecil, fique fora do meu caminho,
ouviu?".
Fascinado, contemplei a antiga cicatriz que agora parecia tortuosa,
porque o pequeno e rechonchudo braço de
três anos, no decorrer dos anos,
se transformara naquele outro, um braço de velho, magro e reluzente,
para o qual então olhava. Um ferimento que fora uma feia cratera
expelindo sangue, em algum momento de 1921, alongara
-
se pouco a
pouco naquela prateada pr
ogressão de marcas, como degraus de escada
de mão. O ferimento se fechara, mas a cicatriz... se espalhara.
Um terrível e impotente estremecimento sacudiu
-
me por dentro.
Recordei Arnie, esmurrando o painel de instrumentos de meu carro, Arnie
gritando roucam
ente que ia fazê
-
los pagar, que eles pagariam, eles
pagariam.
George LeBay olhava para mim. Ignoro o que viu em meu rosto,
mas baixou a manga lentamente e, quando a abotoou com firmeza sobre a
cicatriz, foi como se tivesse fechado as cortinas sobre um pass
ado quase
intolerável.
Ele bebericou mais cerveja.
—
Quando meu pai chegou em casa aquela noite, estivera em uma
das bebedeiras a que chamava de "caçar um emprego", e ouviu o que
Rollie tinha feito, quase lhe arrancou a pele com uma bruta surra. Rollie,
en
tretanto, não se retratava. Chorava, mas não se retratava.
—
LeBay
sorriu de leve.
—
Por fim, aterrorizada, minha mãe gritou para meu pai
acabar com aquilo, antes que o matasse. As lágrimas rolavam pelo rosto
de Rollie, mas ainda assim, ele não se retratav
a. "Ele estava em meu
caminho", dizia, por entre as lágrimas. "E se ficar no meu caminho outra
vez, torno a fazer a mesma coisa e ninguém pode impedir
-
me, nem
mesmo você, seu maldito velho beberrão!". Então meu pai lhe bateu no
rosto, fazendo seu nariz san
grar, e Rollie caiu no chão, com o sangue
fluindo por entre seus dedos. Minha mãe gritava, Márcia chorava, Drew
estava encolhido a um canto e eu berrava em desespero, amparando o
braço enfaixado. Pois Rollie continuava dizendo: "Eu farei a mesma coisa,
seu
beberrão
-
beberrão
-
maldito
-
velho
-
beberrão!".
Sobre nós, as estrelas começavam a despontar. Uma mulher idosa
saiu de uma unidade mais abaixo, apanhou uma mala surrada em um
Ford e a levou para seus aposentos. Um rádio tocava em algum lugar. Não
estava sinto
nizado para os
rocks
em FM
-
104.
—
É daquela sua fúria inesgotável que mais me lembro
—
repetiu
LeBay, com voz macia.
—
Na escola, ele brigava com todos que
zombavam de suas roupas ou da maneira como seu cabelo era coitado. Ele
brigava com qualquer um, se
s
uspeitasse
que queria fazê
-
lo de vítima. Era
suspenso vezes sem conta. Por fim, saiu da escola e entrou para o Exército.
"Os anos 20 não foram uma boa época para alguém estar no Exército.
Não havia dignidade, promoções, divisas e condecorações. Não havia
n
obreza. Ele vagou de base em base, primeiro no Sul, depois no Sudoeste.
Recebíamos uma carta mais ou menos de três em três meses. Ele
continuava furioso. Enfurecia
-
se contra os que chamava de 'bostas'. Tudo
acontecia por culpa dos 'bostas'. Os bostas não l
he davam a promoção que
merecia, os bostas tinham cancelado uma licença, os bostas não
conseguiam achar o próprio traseiro, com as duas mãos e uma lanterna.
Em duas ocasiões, pelo menos, os bostas o puseram atrás das grades.
"O Exército o suportou, porque
ele era um excelente mecânico,
conseguia manter rodando os velhos e decrépitos veículos que eram tudo
quanto o Congresso permitia que tivessem."
Constrangido, vi
-
me pensando em Arnie novamente
—
Arnie, que
era tão hábil com as mãos.
LeBay inclinou
-
se para
diante.
—
Mas o talento era apenas outra fonte para a cólera de Rollie, meu
rapaz. Uma cólera que só terminou quando ele comprou aquele carro, que
agora é de seu amigo.
—
O que quer dizer?
LeBay deu uma risadinha seca.
—
Rollie consertou caminhões de combo
io do Exército, carros dos
grandões do Exército, veículos para suprimento de armas do Exército.
Consertou
bulldozers e
manteve rodando os automóveis oficiais, com cuspo
e arame de enfardar. Certa vez, quando um congressista
-
visitante
apareceu para visitar
Fort Arnold, a oeste do Texas, e teve um problema
com seu carro, o oficial
-
comandante de Rollie, que estava louco para
causar boa impressão, ordenou
-
lhe que consertasse o luxuoso Bentley do
sujeito. Oh, claro, recebemos uma carta de quatro páginas sobre aq
uele
"bosta" em particular, uma arenga de quatro páginas, destilando o ódio e
o veneno de Rollie. Era de admirar que as palavras não queimassem o
papel.
"Todos aqueles veículos... e Rollie nunca teve um carro seu, senão
após a Segunda Guerra Mundial. Mesmo
então, o único que pôde adquirir
foi um velho Chevrolet, que mal podia correr e estava corroído pela
ferrugem. Nos anos 20 e 30 mal havia dinheiro suficiente, e durante os
anos de guerra ele estava ocupado demais, procurando manter
-
se vivo.
"Permaneceu na
oficina mecânica por todos aqueles anos e
consertou milhares de veículos para os bostas, sem nunca possuir um, que
fosse todo seu. Era novamente como estar em Libertyville. Nem mesmo o
velho Chevrolet conseguia amenizar a sensação ou o velho Hudson
Hornet
usado que ele comprou, um ano depois de casado."
—
Casado?
—
Ele não lhe contou isso, contou?
—
disse LeBay.
—
Ficaria
satisfeito rememorando incessantemente suas experiência no Exército suas
experiências na guerra e suas intermináveis confrontações com o
s bostas,
enquanto você e seu amigo pudessem ouvi
-
lo, sem pegar no sono... e ele
com a mão em seu bolso, apalpando
-
lhe a carteira o tempo todo. Rollie
não se daria ao trabalho de falar
-
lhes sobre Verônica ou Rita.
—
Quem foram elas?
—
Verônica foi sua espo
sa
—
disse LeBay.
—
Casaram
-
se em 1951,
pouco antes de Rollie partir para a Coréia. Poderia ter ficado em Stateside,
compreenda. Estava casado, a mulher esperava um filho e ele se
aproximava da meia
-
idade. No entanto, preferiu ir.
LeBay contemplou pensativ
amente o equipamento sem uso do
play
-
ground.
—
Foi bigamia, entenda. Em 1951, ele tinha quarenta e quatro anos e
já era casado. Casado com o Exército. E com os bostas.
LeBay tornou a calar
-
se. Seu silêncio tinha algo mórbido.
—
O senhor está bem?
—
pergunt
ei por fim.
—
Estou
—
disse ele.
—
Apenas pensava. Tinha maus pensamentos
sobre os mortos.
—
Olhou para mim com serenidade, exceto no tocante
aos olhos, que pareciam sombrios e magoados.
—
Compreenda, meu
rapaz, tudo isso me dói muito. Como disse que se ch
amava? Não quero
ficar aqui sentado, contando todas estas tristes e velhas cantigas para
alguém que não posso chamar pelo primeiro nome. Seria Donald?
—
Dennis
—
falei.
—
Escute, Sr. LeBay...
—
Dói mais do que eu poderia imaginar
—
prosseguiu ele.
—
No
ent
anto, já que começamos, vamos terminar, não? Só vi Verônica duas
vezes. Ela era da Virgínia Ocidental. Perto de Wheeling. Era o que se
poderia chamar uma sulista do interior e não muito inteligente. Rollie foi
capaz de dominá
-
la e não lhe dava valor, o que
parecia ser seu desejo. No
entanto, creio que ela o amava, pelo menos, até acontecer aquela coisa
horrível com Rita. Quanto a Rollie, não acredito que se tenha realmente
casado com uma mulher. Ele se casou com uma espécie de... muro das
lamentações.
"As c
artas que nos mandava... bem, você deve lembrar que ele
deixou a escola muito cedo. Aquelas cartas mal escritas significavam um
tremendo esforço para meu irmão. Eram a sua ponte suspensa, sua novela,
sua sinfonia, seu grande esforço. Não creio que as escre
vesse para livrar
-
se
do veneno que tinha no coração. Acho que as escrevia para transmiti
-
lo.
"Então, quando teve Verônica, as cartas cessaram. Ele agora contava
com dois ouvidos permanentes, não precisava mais preocupar
-
se conosco.
Suponho que tenha escrit
o para ela, nos dois anos que ficou na Coréia. Em
todo esse período, recebi apenas uma, e creio que Márcia recebeu duas.
Ele não ficou feliz com o nascimento da filha, em começos de 1952; houve
apenas um comentário azedo sobre ter em casa mais uma boca par
a
alimentar e a queixa de que os bostas arrancavam dele um pouco mais."
—
Ele nunca subiu de posto?
—
perguntei.
No ano anterior, eu tinha visto parte de um longo seriado para a TV,
uma daquelas novelas de televisão, chamado
A Antiga Águia. No
dia
seguinte
, encontrando uma brochura da história no
drugstore,
comprei
-
a
esperando uma boa novela de guerra. Acabei lendo sobre guerra e paz e
fiquei com algumas idéias novas sobre as Forças Armadas. Uma delas,
que a velha questão de promoções realmente continuava f
luindo, nos
tempos de guerra. Era
-
me difícil compreender como LeBay permanecera
no Exército desde inícios da década de 20, atravessara duas guerras e
ainda era um reles meganha, quando Ike se tornou presidente.
LeBay riu.
—
Ele era como Prewitt, em
A Um Pa
sso da Eternidade.
Quando
avançava de posto, depois era rebaixado por alguma coisa,
insubordinação, insolência ou embriaguez. Já lhe disse que ele foi detido?
Uma das vezes foi quando urinou na terrina do ponche, no Clube dos
Oficiais em Fort Dix antes de
uma reunião. Ele pegou apenas dez dias por
este desacato; acho que eles amoleceram, acreditando que aquilo não
passasse de uma brincadeira de bêbado, exatamente como alguns dos
próprios oficiais, sem dúvida, já tinham feito como membros de
associações estu
dantis... eles não faziam, não
podiam
fazer a menor idéia
sobre o ódio e mortal desprezo que jaziam por trás daquele gesto.
Contudo, imagino que, a essa altura, Verônica poderia ter contado a eles.
Olhei para meu relógio. Nove e quinze da noite. LeBay esti
vera
falando por quase uma hora.
—
Meu irmão voltou da Coréia em 1953; foi quando viu a filha pela
primeira vez. Imagino que a tenha contemplado por um ou dois minutos,
para em seguida devolvê
-
la à esposa e ir remendar seu velho Chevrolet
pelo resto do dia
... entediado, Dennis?
—
Não
—
respondi, e era verdade.
—
Durante todos aqueles anos, a única coisa que Rollie desejava
realmente era ter um carro novo em folha. Não um Cadillac ou um
Lincoln; ele não queria nivelar
-
se à classe superior, aos oficiais, aos
bostas.
Meu irmão queria um Plymouth novo, talvez um Ford ou um Dodge.
"Verônica escrevia de vez em quando, contando que eles passavam a
maior parte de seus domingos à procura de vendedores de carros, onde
quer que Rollie estivesse servindo. Ela e o bebê a
boletavam
-
se no velho
Hornet que meu irmão possuía no momento e Verônica lia pequenos
livros de histórias para Rita, enquanto Rollie visitava pátios empoeirados,
um atrás do outro, falando com vendedor após vendedor, discutindo
sobre compressão e cavalos d
e força, cabeçotes e relação de engrenagens...
Às vezes, penso na garotinha crescendo com o fundo musical daquelas
flâmulas açoitadas pela ventania ardente de meia dúzia de blindados do
Exército, e não sei se devo rir ou chorar.
Meus pensamentos voltaram n
ovamente para Arnie.
—
O senhor diria que ele estava obcecado?
—
Sim, eu diria isso. Rollie começou a dar dinheiro a Verônica para
ela guardar. Além de sua impossibilidade de ser promovido em sua
carreira além de suboficial, meu irmão tinha um problema com
o álcool.
Não era um alcoólatra, mas mergulhava em bebedeiras periódicas, a cada
seis ou oito meses. E, terminada a bebedeira, lá se fora o dinheiro que
conseguira economizar. Nunca tinha certeza de onde o gastara.
"Supostamente, cabia a Verônica pôr um p
aradeiro nisso. Era um
dos motivos pelos quais casara com ela. Iniciada a fase da bebedeira,
Rollie exigia que ela lhe entregasse o dinheiro. Ameaçou
-
a com uma faca,
certa vez, ferindo
-
lhe a garganta. Fiquei sabendo disso por minha irmã,
que volta e meia f
alava com ela ao telefone. Verônica não entregou o
dinheiro que, naquela época
—
1955
—
chegava a cerca de oitocentos
dólares, lembre
-
se do carro, meu bem', disse ela, com a ponta da faca
encostada ao pescoço. 'Se gastar o dinheiro em bebida, nunca terá aq
uele
carro novo'."
—
Acho que ela o amava
—
falei.
—
É possível. Entretanto, não fique com a romântica suposição de
que o amor de Verônica modificou Rollie de algum modo. A água pode
furar a pedra, mas somente após centenas de anos. Pessoas são mortais.
El
e pareceu vacilar, quanto a acrescentar algo mais naquele sentido,
e decidiu contra. O lapso me pareceu peculiar.
—
De qualquer modo, Rollie nunca as agrediu
—
disse ele.
—
Lembre
-
se, ainda, de que ele estava bêbado, quando encostou a faca na
garganta da e
sposa. Hoje em dia, há um terrível falatório nas escolas sobre
drogas, e não sou contra isso, porque acho obsceno pensar em crianças de
quinze e dezesseis anos andando por aí cheias de droga, mas continuo
acreditando que o álcool é a mais vulgar, a mais pe
rigosa droga que já se
inventou... e é legal.
"Quando meu irmão finalmente deixou o Exército, em 1957,
Verônica tinha posto de lado pouco mais de mil e duzentos dólares.
Adicionável a isto, havia uma substancial pensão de invalidez, pelo
problema que ele f
icou nas costas. Rollie moveu céus e terras por essa
pensão e venceu, segundo disse.
"Assim, finalmente havia dinheiro. Compraram a casa que você e
seu amigo visitaram; mas antes mesmo que fosse considerada a idéia de
uma moradia, naturalmente havia o carr
o. O carro era sempre primordial.
As visitas aos vendedores de automóveis atingiram o auge. Por fim, ele
escolheu Christine. Recebi uma longa carta a respeito. Era um cupê
esporte Fury, ele me forneceu todos os detalhes e números em sua carta.
Não me lembr
o deles, mas garanto como seu amigo poderia citar as
estatísticas vitais de Christine, ponto por ponto."
—
Suas medidas
—
falei.
LeBay sorriu, sem o menor humor.
—
Exato, suas medidas. Lembro
-
me de Rollie ter escrito que o preço
afixado era pouco abaixo de
3.000 dólares, mas ele "pechinchou", segundo
disse, até chegar a 2.100 com o vendedor. Fez a encomenda, pagou dez
por cento como entrada e, quando o carro chegou, saldou o resto da
dívida em dinheiro vivo... notas de dez e de vinte dólares.
"No ano seguin
te, Rita, que então estava com seis anos, morreu
asfixiada." Saltei na cadeira e quase a derrubei. Aquela voz macia de
professor era acariciante e eu estava cansado, quase chegara a cochilar. A
última frase fora como um balde de água fria em meu rosto.
—
S
im, foi exatamente isso
—
disse ele, vendo meu ar assustado e
questionador.
—
Eles tinham estado "motorando" o dia inteiro. Isso havia
substituído as expedições à caça de carros. "Motorando." Foi a palavra que
ele escolheu para tais excursões. Tirara
-
a de
uma daquelas músicas de
rock
and roll
que estava sempre escutando. Todos os domingos, os três saíam
"motorando". Havia bolsas para lixo nos assentos traseiro e dianteiro. A
garota não podia deixar nada cair no piso. Não podia fazer nenhuma
sujeira. Ela apr
endera bem a lição. Ela...
LeBay recaiu novamente naquele pensativo e peculiar silêncio, para
então prosseguir.
—
Rollie mantinha os cinzeiros limpos. Sempre. Era um fumante
inveterado, mas batia a cinza do cigarro fora da janela, em vez de dentro
do cinze
iro. Quando terminava de fumar, jogava o toco de cigarro
também pela janela. Se tivesse alguém com ele que usasse o cinzeiro,
assim que terminava a corrida retirava o cinzeiro e o limpava com um
lenço de papel. Lavava o carro duas vezes por semana e aplica
va polidor
duas vezes ao ano. Ele próprio o consertava, alugando tempo em uma
garagem local.
Perguntei
-
me se a garagem não seria a Darnell's.
—
Naquele particular domingo, pararam em um
stand
de beira de
estrada para alguns hambúrgueres, a caminho de casa.
Sabe como é, não
havia nenhum McDonald's naqueles tempos, apenas
stands à
beira da
estrada. E o que aconteceu foi... bastante simples, imagino...
Novamente aquele silêncio, como se ele procurasse decidir sobre o
que devia contar
-
me ou como separar de suas
especulações o que
realmente sabia.
—
Ela se engasgou com um pedaço de carne
—
disse ele por fim.
—
Quando a menina começou a sufocar
-
se e levou as mãos à garganta, Rollie
parou o carro e desceu com ela. Então, deitou
-
a de costas, tentando extrair
o que a
sufocava. Claro, hoje existe um novo método, a Manobra Heimlich,
que funciona bastante bem, em situações semelhantes. De fato, uma jovem
estudante para professora salvou um menino que se asfixiava na cantina
de minha escola, ainda o ano passado, empregand
o a Manobra Heimlich.
Só que, naquele tempo...
"Minha sobrinha morreu à beira da estrada. Acho que foi uma
horrenda, assustadora maneira de morrer."
Sua voz retomara aquela sonolenta cadência professoral, porém eu
não sentia mais sono. Em absoluto.
—
Ele t
entou salvá
-
la. Acredito nisso piamente. Como também
acredito que foi somente a má sorte que a fez morrer. Rollie estivera em
um ambiente desumano por muito tempo e não creio que amasse
demasiadamente a filha, se é que a amava. Contudo, em questões mortais
,
algumas vezes a falta de amor pode ser uma graça salvadora. Por vezes, o
necessário é apenas a desumanidade.
—
Mas não daquela vez
—
falei.
—
Por fim, ele a virou de cabeça para baixo, segurando
-
a pelos
tornozelos, com isto esperando fazê
-
la vomitar. Ach
o que tentaria uma
traqueotomia com seu canivete, se tivesse a mais leve idéia de como agir.
Só que, evidentemente, ele não sabia como. Ela morreu.
"Márcia, o marido e os filhos foram ao funeral. Eu também. Aquela
foi nossa última reunião familiar. Na ocas
ião, pensei que ele teria vendido
o carro. Estranhamente, fiquei um tanto desapontado. Aquele carro
figurara tanto nas cartas de Verônica e nas poucas escritas por Rollie, que
eu já o considerava quase um membro da família deles. Entretanto, Rollie
não o v
endera. Foram nele à Igreja Metodista de Libertyville, e Christine
estava polida... reluzente... e odiosa. Estava
odiosa.
—
LeBay se virou e
olhou para mim.
—
Pode acreditar nisso, Dennis?"
Tive que engolir em seco, antes de poder responder.
—
Sim, posso
—
respondi. LeBay assentiu soturnamente.
—
Verônica estava no assento do passageiro, como uma boneca de
cera. O que quer que ela tivesse sido, o que quer que houvesse em seu
íntimo, desaparecera. Rollie tivera o carro, ela tivera a filha. Não se
limitou a c
horar a perda. Morreu.
Fiquei quieto, tentando imaginar
—
procurando pensar no que faria,
se fosse eu. Minha filha começa a engasgar e sufoca no banco traseiro de
meu carro, depois morre à beira da estrada. Eu me desfaria daquele carro?
Por quê? Não havia
sido o
carro
que a matara, mas sim aquilo que a
sufocara, um pedaço de hambúrguer e a bebida, obstruindo sua traquéia.
Então, por que desfazer
-
me do carro? Restava apenas a leve questão de
que não poderia mais olhar para ele, nem mesmo pensar nele, sem hor
ror
e tristeza. Ei, cara, um urso se queixa da floresta?
—
O senhor o interrogou a respeito?
—
Claro que sim. Márcia estava comigo. Foi depois da cerimônia. O
irmão de Verônica viera de Glory, na Virgínia Ocidental, e a levou para
casa, após o serviço fúne
bre à beira da sepultura, ela estava em uma
espécie de profundo torpor, afinal.
"Ficamos sozinhos com ele, eu e Márcia. Aquela foi a verdadeira
reunião. Perguntei
-
lhe se pretendia desfazer
-
se do carro. Ficara
estacionado logo atrás do carro fúnebre que tro
uxera sua filha para o
cemitério, o mesmo cemitério em que Rollie foi sepultado hoje. Era
vermelho e branco... a Chrysler nunca ofereceu o Plymouth Fury 1958
naquelas cores; Rollie o conseguira com tal pintura, por encomenda.
Estávamos a uns quinze metros
dele e tive uma estranha sensação... a mais
estranha
ânsia...
de afastar
-
me ainda mais, como se ele pudesse ouvir
-
nos."
—
O que disse o senhor?
—
Perguntei
-
lhe se ia vender o carro. Em seu rosto surgiu aquela
expressão dura e obstinada que eu conhecia tão
bem, desde os tempos de
criança. Era a mesma expressão de quando me atirara contra o gradil
pontiagudo. A expressão que mostrara ao chamar meu pai de beberrão,
mesmo depois dele lhe ter feito o nariz sangrar. Rollie respondeu, 'Eu
seria louco se o vendesse
, George. Christine só tem um ano de uso e rodou
somente 11.000 milhas. Sabe que nunca se consegue o preço adequado em
uma venda, a menos que um carro tenha mais de três anos'.
"Respondi: 'Se isto significa uma questão de dinheiro para você,
Rollie, alguém
roubou o que restou de seu coração e colocou uma pedra
no lugar. Quer que sua esposa veja esse carro todo dia? Que
ande
nele?
Deus do céu, homem!'
"Aquela expressão não se modificou. Não, até ele contemplar o
automóvel, estacionado ao sol... junto ao carr
o funerário. Foi o único
momento em que suas feições se suavizaram. Recordo que me perguntei
se ele algum dia olhara para Rita daquele jeito. Não creio que o tenha feito.
Não estava nele ser assim."
LeBay ficou calado por um instante, antes de continuar.
—
Márcia disse para ele a mesma coisa. Sempre o temera, mas
naquele dia estava mais fora de si do que amedrontada... havia recebido
as cartas de Verônica, lembre
-
se, sabia o quanto a cunhada adorava a filha.
Disse para ele que, quando alguém morre, queima
-
s
e o seu colchão,
doam
-
se suas roupas ao Exército da Salvação, seja como for, aquilo fica
liquidado de algum modo, para que os vivos possam seguir em frente. Ela
lhe disse que Verônica nunca mais poderia seguir em frente, enquanto o
carro onde a filha morre
ra continuasse na garagem.
"Com aquele seu jeito sarcástico e hediondo, Rollie perguntou se
queria que encharcasse seu carro de gasolina e acendesse um fósforo, só
porque sua filha morrera sufocada. Minha irmã começou a chorar e
respondeu que era uma excel
ente idéia. Por fim, tomei
-
a pelo braço e a
levei dali. Não houve mais diálogo com Rollie, naquela época ou mais
tarde. O carro era dele e ele ficaria insistindo em conservá
-
lo durante três
anos, antes de poder vendê
-
lo, falaria sobre as milhas rodadas até
ficar
roxo, mas o simples fato acima de tudo era que pretendia mantê
-
lo,
porque assim queria.
"Márcia e os seus voltaram de ônibus para Denver e, que me conste,
nunca mais tornou a ver Rollie e nem mesmo escreveu
-
lhe um bilhete.
Não foi ao sepultamento de
Verônica."
A esposa dele. Primeiro a filha, depois a esposa. De certa forma, eu
sabia que fora exatamente assim. Bangue
-
bangue. Uma espécie de
entorpecimento me subiu das pernas até a boca do estômago.
—
Ela morreu seis meses depois. Em janeiro de 1959.
—
Mas nada tinha a ver com o carro
—
falei.
—
Nada a ver com o
carro, certo?
—
Teve tudo a ver com o carro
—
disse ele, suavemente.
Eu não queria ouvir mais aquilo, pensei. Só que, naturalmente,
acabei ouvindo. Meu amigo era agora o dono daquele carro e, po
r causa
do carro, algo em sua vida ganhara proporções descomunais, algo que
jamais deveria ter acontecido.
—
Depois que Rita morreu, Verônica entrou em depressão.
Simplesmente, nunca se recuperou disso. Tinha alguns amigos em
Libertyville, e eles tentaram
ajudá
-
la... ajudá
-
la a encontrar seu caminho
novamente, como se diz. Contudo, ela não conseguiu encontrá
-
lo. De
maneira alguma.
"Fora isso, tudo ia muito bem. Pela primeira vez na vida, meu irmão
tinha bastante dinheiro. Tinha sua pensão do Exército, sua p
ensão por
incapacidade física, e conseguira um emprego de vigia noturno, na fábrica
de pneus lá para o lado oeste da cidade. Fui de carro até lá, depois do
enterro, porém não existe mais."
—
Ela foi à falência, faz uns doze anos
—
comentei.
—
Eu ainda era
criança. No lugar, existe hoje uma lanchonete de comida chinesa.
—
Eles estavam saldando as prestações da casa, na proporção de
dois pagamentos mensais. E, naturalmente, agora não tinham mais
nenhuma filhinha com que se preocupar. Para Verônica, no entanto
,
nunca houve a mínima possibilidade, o menor impulso para a
recuperação.
"Ela se dispôs ao suicídio com incrível sangue
-
frio, por tudo o que
consegui descobrir. Se houvesse manuais para aspirantes ao suicídio, ela
devia ser incluída, como exemplo a ser im
itado. Foi à loja Western Auto,
aqui na cidade, a mesma onde comprei minha primeira bicicleta, há
muitos e muitos anos, e comprou seis metros de mangueira de borracha.
Adaptou uma extremidade ao cano de descarga de Christine e colocou a
outra em uma das ja
nelas traseiras. Nunca tirara carteira de motorista,
mas sabia como ligar o motor. De fato, era tudo quanto precisava saber."
Apertei os lábios, molhei
-
os com a ponta da língua, e ouvi minha
voz, pouco mais que um roufenho lamento:
—
Acho que vou querer ag
ora aquela soda.
—
Talvez fosse melhor trazer uma para mim também
—
disse ele.
—
A soda me mantém acordado, sempre foi assim, mas acho que, de
qualquer modo, passarei acordado a maior parte desta noite.
Desconfiei que eu também. Fui apanhar as sodas no esc
ritório do
hotel e, quando voltava, parei a meio caminho, no pátio de
estacionamento. Ele era apenas uma sombra mais forte diante de sua
unidade no hotel, as meias brancas reluzindo como pequenos fantasmas.
Pensei:
Talvez o carro seja amaldiçoado. Talvez s
eja isso. Parece uma perfeita
história de fantasmas. Há um poste indicador mais adiante... próxima parada, a
Zona Crepuscular!
Bem, era ridículo, não?
Claro que era. Recomecei a caminhar. Nem carros nem pessoas
podiam ser amaldiçoados, isso era coisa de fi
lmes de terror, muito
interessante para uma noite de sábado no
drive
-
in,
porém nada tinha em
comum, absolutamente nada, com os fatos corriqueiros de vida diária, que
formam a realidade.
Entreguei a ele sua lata de soda e ouvi o resto da história, a qual
po
deria ser resumida em uma linha: e ele viveu infeliz para sempre.
Agora sozinho, Roland D. LeBay conservara sua pequena casa e o terreno,
como conservara o Plymouth 1958. Em 1965, pendurara seu quepe de
vigia e o relógio de ponto de trabalho. Mais ou menos
na mesma época,
abdicara de seus penosos esforços para manter Christine parecendo e
rodando como nova, deixara
-
a desandar, da mesma forma que alguém
pode deixar um relógio parar.
—
Quer dizer que o carro ficou estacionado lá fora?
—
perguntei.
—
Desde 196
5? Durante treze anos?
—
Não. Ele o deixou na garagem, claro
—
disse LeBay.
—
Os
vizinhos jamais admitiram um carro apenas se deteriorando, no gramado
de alguém. No campo, talvez, mas não em Suburbia, EUA.
—
Certo, mas estava lá fora, quando nós...
—
Eu se
i. Ele o colocou no gramado com um aviso À VENDA,
pregado na janela. Fiz perguntas a respeito. Estava curioso, então
perguntei. Na Legião. Em sua maioria, os antigos companheiros tinham
perdido o contato com Rollie, mas um deles contou que vira o carro no
gramado, pela primeira vez, em maio deste ano.
Eu ia dizer algo, mas me calei. Uma terrível idéia me viera à cabeça,
uma idéia que consistia simplesmente nisto:
Era muito conveniente.
Conveniente demais. Christine ficara naquela garagem escura durante
anos
—
quatro, oito, doze, talvez mais. Então
—
meses antes de eu e Arnie
passarmos por lá, de Arnie vê
-
lo
—
Roland LeBay subitamente o tirara da
garagem e pregara nele um aviso de À VENDA.
Mais tarde
—
muito mais tarde
—
consultei exemplares atrasados
dos jor
nais de Pittsburgh e do
Keystone,
o jornal de Libertyville. LeBay
nunca anunciara o Fury, pelo menos nos jornais, que geralmente é onde se
anuncia um carro que se quer vender. Ele apenas o deixou em sua rua
suburbana
—
nem mesmo era uma rua principal
—
e e
sperou que o
comprador aparecesse.
Naquele momento, não entendi inteiramente o resto do
pensamento
—
pelo menos, não de qualquer modo lógico e racional
—
,
mas já tivera suficiente daquilo, para sentir uma repetição daquela fria,
perturbadora sensação de me
do. Era como se ele soubesse que um
comprador estava a caminho. Se não em maio, então em junho. Ou julho.
Ou agosto. De algum modo, em breve.
Não, tal pensamento não me viera de maneira lógica ou racional. Em
vez disso, o que imaginei foi um quadro inteira
mente visceral: uma planta
carnívora, à beira de um pântano, com suas verdes mandíbulas abertas,
esperando que algum inseto pousasse nelas.
O inseto
exato.
—
Recordo ter pensado que ele talvez desistira temendo não ter
chance de ser aprovado no exame de mo
torista
—
falei por fim.
—
Quando o sujeito envelhece, eles exigem que faça um ou dois exames por
ano. A renovação da licença deixa de ser automática.
LeBay assentiu.
—
Isto me parece bem próprio de Rollie
—
comentou.
—
Contudo...
—
O quê?
—
Li em algum lu
gar, e não me lembro quem disse ou escreveu isso,
que existem "épocas" na existência humana. Chegada a "época da
máquina a vapor", uns doze homens inventaram máquinas a vapor.
Talvez apenas um deles tenha conseguido a patente ou o crédito nos
livros de His
tória, porém, de repente, lá estavam todas aquelas pessoas,
trabalhando em uma única idéia. Como explicar o fato? Apenas que é a
época da máquina a vapor.
LeBay tomou um gole de sua soda e olhou para o céu.
—
Chega a Guerra Civil e então, imediatamente, é
"época do navio
blindado de ferro". Depois vem a "época da metralhadora". A seguinte que
conhecemos é a "época da eletricidade", seguida pela "época do sem
-
fio".
Finalmente, a "época da bomba atômica" Como se todas essas idéias não
viessem de indivíduos, m
as de alguma grande onda de inteligência, que
flui permanentemente... alguma onda de inteligência que reside fora da
humanidade.
Ele me encarou.
—
Essa idéia me assusta e tenho pensado muito nisso, Dennis.
Parece haver qualquer coisa... bem, decididamente
não
-
cristã a respeito.
—
E, para seu irmão, havia a "época de vender Christine"?
—
É possível. No Eclesiastes, diz que há um tempo para tudo: tempo
para plantar e tempo para colher, tempo para a guerra e tempo para a paz,
tempo de abandonar o estilingue e
tempo de juntar pedras. Um negativo
para cada positivo. Portanto, se houve uma "época de Christine" na vida
de Rollie, deve ter havido também uma época de abandonar Christine.
"Se foi assim, ele deve ter sabido. Rollie era um animal, e os animais
ouvem per
feitamente seus instintos.
"É ainda possível que ele finalmente se cansasse dela", concluiu
LeBay.
Concordei que podia ser isso, principalmente porque me sentia
ansioso para encerrar o assunto, embora a explicação não me deixasse
plenamente satisfeito. Geo
rge LeBay não tinha visto aquele carro, no dia
em que Arnie gritara para eu voltar atrás. Contudo, eu o vira. O 58 não
parecia um carro que estivera repousando tranqüilamente em uma
garagem. Estava sujo de poeira e amassado, com o pára
-
brisa rachado, um
pá
ra
-
choque entortado. Parecia um cadáver, que tivesse sido desenterrado
e deixado apodrecer ao sol.
Pensei em Verônica LeBay e estremeci.
Como se lesse meus pensamentos
—
parte deles, pelo menos
—
,
LeBay disse:
—
Pouco sei a respeito de como meu irmão viveu
ou se sentiu
durante seus últimos anos de vida, porém estou certo de uma coisa,
Dennis: quando ele achou, em 1965 ou seja lá quando foi, que era chegado
o momento de abandonar o carro, ele o abandonou. E quando achou que
era a hora de colocá
-
lo à venda, e
le o colocou à venda.
LeBay fez uma pausa.
—
Penso que nada mais tenho a lhe dizer... exceto quanto a acreditar,
sinceramente, que seu amigo seria mais feliz desfazendo
-
se daquele carro.
Olhei bem para ele, o seu amigo. No presente momento, não me pareceu
um jovem particularmente feliz. Estarei enganado?
Considerei a pergunta cuidadosamente. Não, felicidade não era e
nunca fora algo que se aplicasse a Arnie. No entanto, ele pelo menos
parecera contente, até ter começado a coisa com o Plymouth. Antes, era
co
mo se... tivesse alcançado um
modus vivendi
com a vida. Não era um
cara completamente feliz, mas dava para o gasto.
—
Não
—
respondi.
—
Não se enganou.
—
Não creio que o carro de meu irmão o faça feliz. Pelo contrário,
penso exatamente o oposto.
—
E, como
se tivesse lido meus pensamentos
alguns minutos antes, ele prosseguiu:
—
Não acredito em maldições, é
bom que saiba. Muito menos em fantasmas ou qualquer coisa
precisamente sobrenatural. Entretanto, acredito que emoções e eventos
possam ter uma certa... pr
olongada ressonância. Talvez as emoções
possam comunicar
-
se entre si, sob determinadas circunstâncias, caso tais
circunstância sejam suficientemente peculiares... da maneira como uma
caixa de leite adquire o sabor de certos alimentos muito condimentados,
q
ue foram deixados destampados na geladeira. Bem, pode ser apenas uma
fantasia ridícula de minha parte. Talvez fosse o caso de eu me sentir
melhor, sabendo que o carro em que minha sobrinha foi asfixiada e onde
minha cunhada suicidou
-
se tivesse sido prensad
o em um cubo de metal
sem valor. Talvez tudo quanto eu sinta seja uma sensação de decoro
ultrajado.
—
Sr. LeBay, o senhor disse que contratou alguém para cuidar da
casa de seu irmão, até que ela seja vendida. É verdade?
Ele se ergueu ligeiramente no assent
o.
—
Não, não é. Menti no impulso do momento. Não gostei da idéia
daquele carro de volta àquela garagem... como se houvesse reencontrado
o caminho de casa. Se existem emoções e sentimentos que permanecem
vivos, eles estarão lá, assim como na própria Christ
ine.
—
Então,
rapidamente, ele se emendou:
—
No
próprio
carro.
Não muito tempo depois, me despedi e segui meus faróis para casa,
através da noite, refletindo em tudo quanto LeBay me dissera. Perguntei
-
me se, para Arnie, faria alguma diferença contar
-
lhe q
ue uma pessoa
sofrera um acidente mortal em seu carro e outra, realmente, morrera
dentro dele. Eu sabia muito bem que não adiantava; à sua maneira, Arnie
podia ser tão obstinado quanto o próprio Roland LeBay. A encantadora
cena com seus pais, a respeito do
carro, demonstrara isso perfeitamente. O
fato de que ele continuava seguindo o curso de Mecânica de Motores, no
Ginásio de Libertyville, indicava a mesma coisa.
Pensei em LeBay dizendo:
Não gostei da idéia daquele carro de volta
àquela garagem... como se
houvesse reencontrado o caminho de casa.
Ele também dissera que o irmão levara o carro a algum lugar, a fim
de consertá
-
lo. Atualmente, existia em Libertyville apenas a Will Darnell's,
como garagem faça
-
você
-
mesmo. Poderia ter havido outra, nos anos 50,
ma
s eu não acreditava. No fundo, achava que Arnie estava consertando
Christine no lugar em que já tinha sido consertada antes.
Tinha
sido. Essa era a frase correta. Devido à briga com Buddy
Repperton, Arnie receava deixar o carro lá por mais tempo. Desta for
ma,
era possível que aquela via para o passado de Christine também estivesse
bloqueada.
E, naturalmente, não existem maldições. Mesmo a idéia de LeBay,
sobre emoções que se prolongam, era completamente absurda. Ele próprio
nem devia acreditar nisso. Exibir
a
-
me uma antiga cicatriz e usara a
palavra vingança. Sem dúvida, aquilo era bem mais próximo da verdade
do que qualquer falsa tolice sobrenatural. Sem dúvida.
Era isso. Eu tinha dezessete anos, iria para a universidade no ano
seguinte e não acreditava em c
oisas tais como maldições e emoções que
perduram, azedando o leite derramado dos sonhos. De modo algum
acreditava no poder do passado em estender suas horrendas mãos mortas
para os vivos.
Entretanto, agora sou um pouco mais velho.
M
AIS
T
ARDE
,
N
AQUELA
N
OIT
E
Quando eu estava motorando na montanha
Vi Maybelline em um Cupê de Ville,
Um Cadillac, disparando estrada afora,
Mas nada ultrapassava meu Ford V8...
—
Chuck Berry
Mamãe e Elaine já tinham ido dormir, porém papai estava acordado,
assistindo ao noticiári
o das 23 horas na TV.
—
Por onde andou, Dennis?
—
perguntou.
—
Jogando boliche
—
respondi.
A mentira veio natural e instintivamente a meus lábios. Não queria
que papai soubesse de nada daquilo. Embora fosse peculiar, não o era o
bastante para ser mais do q
ue moderadamente interessante. Pelo menos,
foi assim que racionalizei.
—
Arnie telefonou
—
disse ele.
—
Pediu que você ligasse, se voltasse
antes das onze e meia, mais ou menos.
Olhei para o meu relógio. Apenas onze e vinte. Entretanto, será que
já não tiv
era o bastante de Arnie e seus problemas para um dia?
—
E então?
—
Então, o quê?
—
Não vai telefonar para ele? Suspirei.
—
Está certo, acho que vou.
Fui até a cozinha, preparei um sanduíche de frango frio, enchi um
copo de Ponche Havaiano
—
um negócio espe
sso, mas eu adoro
—
e
disquei para a casa de Arnie. Ele mesmo atendeu, ao segundo toque.
Parecia alegre e excitado.
—
Dennis! Onde foi que esteve?
—
Jogando boliche
—
falei.
—
Escute, voltei à garagem de Darnell esta noite, sabe? E... escute só,
Dennis...
ele chutou Repperton! Repperton saiu e eu posso ficar!
Senti novamente aquele medo tomando forma em meu estômago.
Larguei o sanduíche. De repente, não o queria mais.
—
Arnie, acha que continuar lá é mesmo uma boa idéia?
—
O que quer dizer com isso? Reppert
on se foi. Não
acha
que é uma
boa idéia?
Pensei em Darnell, ordenando a Arnie que tirasse o carro de lá, antes
que poluísse sua garagem imunda. Darnell, dizendo a Arnie que não
explorava merda nenhuma de garotos como ele. Pensei na maneira
envergonhada com
o ele desviara os olhos, ao contar que conseguira hora
no elevador, para trocar seu óleo, fazendo "uns dois favores". Tive a
impressão de que Darnell talvez achasse divertido transformá
-
lo em seu
empregadinho de estimação. Sem dúvida, isso também divertiri
a bastante
os
habitués
e seus companheiros de pôquer. Arnie, vá buscar café, Arnie,
traga biscoitos, Arnie, mude os rolos de papel sanitário da privada e encha
o toalheiro com toalhas de papel.
Ei, Will, quem é o quatro olhos rondando lá
pelo banheiro?...
Oh, aquele? Seu nome é Cunningham. Os velhos dele lecionam
na universidade. Ele está aqui fazendo uma merda de curso de pós
-
graduação.
E
eles riram. Arnie se transformaria na piada local da garagem de Darnell,
em Hampton Street.
Pensei isso tudo, mas nada
disse. Achei que Arnie poderia muito
bem decidir se estava caminhando pela água ou pisoteando merda.
Aquilo não podia durar muito
—
ele era bastante esperto para ver. Bem,
assim esperava eu. Arnie era feio, mas não debilóide.
—
Se Repperton caiu fora, acho
que é uma excelente idéia
—
respondi.
—
Apenas pensei que a garagem de Darnell fosse uma medida
temporária. Quero dizer, vinte por semana, Arnie, é muita grana, sem
falar no aluguel de ferramentas, do elevador e tudo o mais.
—
Por isso pensei que seria fo
rmidável alugar a garagem do Sr.
LeBay
—
disse ele.
—
Achei que, mesmo pagando vinte e cinco por
semana, estaria em melhor situação.
—
Bem, isso é com você. Se pusesse um anúncio no jornal,
procurando vaga em uma garagem, aposto como...
—
Um momento, deixe
-
me terminar, Dennis
—
disse Arnie, ainda
excitado.
—
Quando fui lá esta tarde, Darnell me chamou de lado
imediatamente. Disse que lamentava o que Repperton fizera comigo.
Disse também que me julgara erradamente.
—
Darnell disse isso?
Acho que acreditei, m
as não confiei muito.
—
Exato. Perguntou se eu gostaria de trabalhar para ele, em horas
extras. Dez, talvez vinte horas por semana, durante as aulas. Separando
peças, manobrando o elevador, coisas assim. E posso ficar com o boxe por
dez dólares semanais, p
agando metade do aluguel pelas ferramentas e o
elevador. O que acha disso?
Pensei que era infernalmente bom demais, para ser verdade.
—
Veja bem onde põe o traseiro, Arnie.
—
O quê?
—
Meu pai diz que ele é um escroque.
—
Não vi o menor sinal disso por lá.
Acho que tudo não passa de
boato, Dennis. Darnell faz muito barulho, mas creio que é tudo.
—
Estou apenas dizendo para você ficar prevenido.
—
Passei o fone
para o outro ouvido e bebi um pouco de Ponche Havaiano.
—
Fique de
olhos bem abertos e caia fora de
pressinha, se a barra começar a ficar
pesada demais.
—
Está falando de alguma coisa específica?
Pensei nas vagas histórias sobre drogas e nas mais específicas sobre
carros roubados.
—
Não
—
respondi.
—
Apenas não confio nele.
—
Bem...
—
disse Arnie, hesita
nte. Pareceu refletir, mas retornou ao
tema original: Christine. Com ele, o tema sempre voltava a Christine.
—
De qualquer modo, vai ser legal, muito legal para mim, Dennis, se der
certo. Christine... está realmente mal. Consegui fazer algumas coisas nela,
mas para cada uma que faço, parece que tem mais quatro. Algumas que
ainda não sei resolver, mas vou aprender.
—
Hum
-
hum
—
falei, dando uma dentada no sanduíche.
Após minha conversa com LeBay, o entusiasmo por Christine, a
garota de Arnie, passara do zero
e penetrara em regiões negativas.
—
Ela precisa de um alinhamento das rodas dianteiras... Diabo, ela
precisa de pneus dianteiros novos, e novas sapatas de freios... anéis de
segmento... Posso tentar retificar os pistons... mas não conseguirei nada
disso co
m meu estojo de ferramentas Craftsman, de cinqüenta e quatro
pratas. Entende o que quero dizer, Dennis?
Era como se ele estivesse suplicando a minha aprovação. Com vazio
no estômago, lembrei
-
me de repente de um sujeito que tinha sido nosso
colega na escola
: Freddy Darlington, era o seu nome. Fred nada tinha de
excepcional, mas era um bom sujeito, com um senso de humor legal.
Então, conheceu uma prostituta de Penn Hills
—
estou querendo dizer
uma puta de verdade, a mais feliz em dar para todos, a maria
-
batal
hão,
escolha o seu pejorativo predileto. Tinha uma cara bronca e idiota, que me
fazia lembrar a traseira de um caminhão Mack, e não parava de mastigar
chicletes. O cheiro de Tutti
-
Frutti pairava em torno dela, numa nuvem
constante. Ficou grávida mais ou me
nos na época em que Freddy lhe
botou as mãos. De certa forma, sempre imaginei que ele a tivesse
apanhado, porque fora a primeira garota a deixá
-
lo ir até o fim. Aconteceu,
em seguida, que ele saiu da escola, arranjou emprego em um depósito, a
princesa teve
o bebê e Freddy apareceu com ela no baile de encerramento
do ginásio, no último mês de dezembro, querendo que tudo fosse o
mesmo, quando nada é mais o mesmo; e lá está ela, olhando para todos
nós, os rapazes, com aqueles olhos mortos e desdenhosos, as man
díbulas
subindo e descendo como as de uma vaca ruminando algo
particularmente saboroso, enquanto tínhamos que ouvir as novidades: ela
está de volta à pista de boliche, de volta à cantina de Libertyville, de volta
ao Gino's, andando de carro enquanto Freddy
trabalha, retornou ao
trabalho duro, dando para todos e divertindo a tropa. Sei que se costuma
dizer que um pau não tem consciência, mas eu lhe digo agora que certas
conas têm dentes, e então, ao olhar para Freddy, que parecia dez anos
mais velho, tive vo
ntade de chorar. Depois, quando Freddy falou sobre ela,
foi naquele mesmo tom suplicante que eu captava na voz de Arnie,
soando ao telefone em meu ouvido, naquele exato momento...
Vocês
gostaram mesmo dela, não foi, caras? Ela não é legal, caras? Não me sa
í tão mal,
hein, caras? Quero dizer, talvez seja apenas um pesadelo e logo estarei acordado,
certo? Certo? Certo?
—
É claro que entendo
—
falei ao telefone.
—
Tem razão, Arnie.
Toda aquela horrível, nojenta história de Freddy Darlington levara
talvez dois
segundos passando por meu cérebro.
—
Ótimo
—
disse ele, aliviado.
—
Apenas veja onde mete o traseiro, cara. E isto vale dobrado, para
quando voltar às aulas. Fique longe de Buddy Repperton.
—
Certo. Pode apostar que sim.
—
Arnie...
—
O quê?
Fiz uma pausa.
Queria perguntar
-
lhe se Darnell mencionara alguma
coisa sobre Christine ter estado antes em sua oficina, se a reconhecera.
Ainda mais, eu queria dizer
-
lhe o que acontecera à Sra. LeBay e sua
filhinha, Rita. Só que não pude. Ele adivinharia imediatamente de
onde
viera a informação. E, em seu estado emocional sobre o maldito carro,
poderia muito bem pensar que eu estivera agindo por trás de suas costas e,
de certo modo, fora isso mesmo. Contar tudo a ele talvez significasse o fim
de nossa amizade.
Eu já me en
chera de Christine, mas ainda me preocupava com Arnie.
Isto significava que aquela porta devia ser fechada para sempre. Nada
mais de andar me esgueirando e fazendo perguntas. Nada mais de
sermões.
—
Nada
—
respondi.
—
Ia apenas dizer que você parece ter
en
contrado um lar para sua banheira enferrujada. Parabéns.
—
Está comendo alguma coisa, Dennis?
—
Estou: um sanduíche de frango. Por quê?
—
Porque está mastigando em meu ouvido. É grosseiro demais.
Comecei a mastigar o mais ruidosamente que pude. Arnie imito
u
arrotos. Começamos a rir e aquilo foi bom
—
era como nos velhos tempos,
antes de seu casamento com aquele maldito e fodido carro.
—
Você é um filho da mãe, Dennis.
—
Certo. Aprendi com você.
—
Viado
—
disse ele e desligou.
Terminei o sanduíche e o Ponch
e Havaiano, lavei o prato e o copo e
voltei para a sala, disposto a tomar uma ducha e ir para a cama. Estava
exausto.
A certa altura de minha conversa ao telefone, ouvira a TV ser
desligada, o que me fez supor que papai tivesse subido. Não subira.
Continua
va ali, em sua poltrona reclinável, com a camisa aberta. Um tanto
desconcertado, reparei como os pêlos de seu peito estavam ficando
grisalhos, a maneira como o abajur de leitura, ao lado dele, penetrava
através de seus cabelos e mostrava o rosado do couro
cabeludo. O cabelo
estava rareando ali. Meu pai não era mais uma criança. Com maior
desconcerto ainda, refleti que em mais cinco anos, à época em que,
teoricamente, eu terminaria a faculdade, ele estaria com cinqüenta anos e
ficando calvo, o estereótipo do
guarda
-
livros. Cinqüenta anos em cinco, se
antes não caísse duro, com outro ataque cardíaco. O primeiro não tinha
sido grave
—
nenhuma cicatriz miocardiana, respondeu ele certa vez,
quando lhe perguntei. Entretanto, ele não tentara dizer que seria
imprová
vel um segundo ataque. Eu sabia dessa possibilidade, mamãe
sabia e ele também. Somente Ellie ainda o considerava invulnerável
—
mas eu não percebera uma pergunta em seus olhos, uma ou duas vezes?
Eu tinha quase certeza disso.
Falecido subitamente.
Senti os
cabelos se eriçarem em minha cabeça.
Subitamente.
Retesando
-
se em sua mesa de trabalho, apertando o peito.
Subitamente.
Deixando cair a raquete na quadra de tênis. Ninguém gosta de ter tais
pensamentos sobre o próprio pai, mas às vezes eles aparecem. Deus
sabe
que sim.
—
Não pude deixar de ouvir parte do que falou
—
disse ele.
—
É mesmo?
—
falei, prudentemente.
—
Arnie Cunningham meteu o pé em um balde de algo quente e
sujo, Dennis?
—
Eu... eu não tenho certeza
—
falei, lentamente.
Bem, afinal de contas, o
que eu tinha para confirmar? Noções vagas,
nada mais.
—
Quer falar a respeito?
—
Agora não, papai, se você não se importa.
—
Está bem
—
disse ele.
—
No entanto, se... como você disse ao
telefone, se a barra ficar muito pesada, pelo amor de Deus, quer me c
ontar
o que estiver acontecendo?
—
Certo, contarei.
—
Muito bem.
Comecei a caminhar para a escada e estava quase lá, quando ele me
deteve, ao dizer:
—
Fiz a contabilidade de Will Darnell e suas declarações de imposto
de renda durante quase quinze anos, voc
ê sabe.
Virei
-
me para ele, francamente surpreso.
—
Não. Eu não sabia.
Meu pai sorriu. Era um sorriso. Eu nunca o vira antes, podia
imaginar que mamãe o vira apenas algumas vezes e minha irmã talvez
nunca. Poder
-
se
-
ia pensar, a princípio, que fosse uma espé
cie de sorriso
sonolento, mas uma observação melhor diria que nada tinha de
sonolento
—
era cínico, rude e totalmente consciente.
—
Pode ficar de boca fechada sobre uma coisa, Dennis?
—
Posso
—
falei.
—
Acho que posso.
—
Não adianta apenas achar que pode.
—
Está bem. Eu posso.
—
Ótimo. Fiz a contabilidade de Darnell até 1975 e então ele
contratou Bill Upshaw, lá de Monrolville.
Meu pai me fitou atentamente.
—
Eu não diria que Bill Upshaw é um escroque, mas posso dizer
que seus escrúpulos são bastante transp
arentes para que se leia um jornal
através deles. E, no ano passado, ele comprou uma casa em Sewickely, no
estilo Tudor inglês, valendo 300 mil dólares. Pagamento à vista.
Fez um gesto para nossa casa, com um pequeno aceno do braço
direito e o deixou cair
de novo em seu colo. Ele e mamãe a tinham
comprado no ano em que nasci, por 62 mil dólares
—
agora devia valer
uns 150 mil
—
e só recentemente tinham conseguido resgatar a última
promissória do banco. Tivemos uma festinha no quintal, no fim do verão
passad
o. Papai acendeu a churrasqueira, espetou o pequeno papel rosa na
ponta do espeto mais comprido e cada um de nós teve a chance de segurá
-
lo sobre as brasas, até ele desaparecer por completo.
—
Nada de Tudor inglês por aqui, hein, Dennis?
—
comentou.
—
Esta
casa é legal
—
falei. Recuei e sentei
-
me no sofá.
—
Eu e Darnell nos separamos amistosamente
—
prosseguiu meu
pai
—
, não que eu me preocupasse muito com ele, em termos pessoais.
Sempre o achei um vigarista.
Assenti de leve, porque gostava daquilo; express
ava meus
sentimentos sobre Will Darnell, melhor do que qualquer palavrão.
—
No entanto, há toda uma diferença entre um relacionamento
pessoal e um relacionamento profissional. Deve
-
se aprender bem depressa
nesse assunto, ou a gente desiste e passa a vender
escovas e vassouras de
porta em porta. Nosso relacionamento profissional era bom, enquanto
durou... porém não durou muito. Então, decidi acabar com aquilo.
—
Não compreendo.
—
Havia sempre dinheiro aparecendo
—
disse ele.
—
Grandes
quantidades de dinheiro
, sem uma procedência limpa. A pedido de
Darnell, investi em duas sociedades anônimas, Aquecimento Solar
Pensilvânia e Gráfica Nova Iorque, que pareciam as firmas mais falsas
dentre todas que eram de meu conhecimento. Por fim, procurei
-
o, porque
queria ter
todas as minhas cartas na mesa. Comuniquei
-
lhe qual era a
minha opinião profissional: se houvesse uma auditoria do pessoal do
Imposto de Renda ou do Estado da Pensilvânia, era bem provável que ele
tivesse muitas explicações a dar e que logo eu estaria sab
endo demais para
lhe ser útil.
—
O que ele disse?
—
Começou a ficar inquieto
—
respondeu meu pai, ainda
mostrando aquele sorriso sonolento e cínico.
—
Na minha profissão, a
gente fica familiarizado com os sinais da inquietação, aos trinta e oito anos,
mais
ou menos... quero dizer, se formos bons no que fazemos. E eu não
sou dos piores. A intranqüilidade começa com o sujeito perguntando se
estamos satisfeitos com o trabalho, se o pagamento é suficiente. Se
respondemos que gostamos do trabalho mas, sem dúvida
, podíamos estar
ganhando mais, o sujeito nos encoraja a contar o que nos está pesando nas
costas: a casa, o carro, o colégio dos filhos, talvez uma esposa que goste de
roupas um pouco mais elegantes do que o orçamento doméstico permite...
Você entende?
—
Uma sondagem, certo?
—
É mais como apalpar
-
nos
—
disse ele, e então riu.
—
Pois bem, a
dança é semelhante a um minueto, ponto por ponto. Há todos os tipos de
frases, de passos e pausas. Depois que o sujeito confessa quais as cargas
financeiras de que gosta
ria de livrar
-
se, ele começa perguntando que tipo
de coisas gostaria de ter. Um Cadillac, uma casa de verão nas Catskills ou
Poconos, talvez um barco.
Sobressaltei
-
me ao ouvi
-
lo, sabendo o quanto meu pai sonhava com
um barco
—
era o que mais desejava naque
la época
—
por duas vezes,
fora com ele a marinas, ao longo do lago Rei George e do lago
Passeeonkee, em tardes ensolaradas de verão. Perguntava o preço dos
iates menores e eu vira um brilho cobiçoso em seus olhos. Agora,
começava a entender. Estavam fora
do nosso alcance. Sua vida talvez
tivesse tomado um rumo diverso se ele não tivesse de pensar em uma
universidade para os filhos, por exemplo.
—
E você recusou?
—
perguntei. Meu pai deu de ombros.
—
Já no início da conversa, deixei bem claro que não queria
dançar.
Antes de mais nada, porque isso significaria envolver
-
me mais com ele em
nível pessoal e, como disse, considerava
-
o um trapaceiro. Por outro lado,
tais sujeitos são fundamentalmente ignorantes no tocante a números, um
dos motivos pelos quais muito
s deles foram apanhados por sonegação de
impostos. Eles acham que a gente pode camuflar um rendimento ilegal.
Estão certos disso.
—
Papai riu.
—
Enfiaram na cabeça essa idéia mística
de que podemos lavar dinheiro como lavamos roupas, quando tudo
quanto pod
emos realmente fazer é um malabarismo, até que isso
desmorone e nos caia na cabeça.
—
Foram esses os motivos?
—
Dois ou três deles.
—
Papai me fitou dentro dos olhos.
—
Não sou
nenhum maldito trapaceiro, Dennis.
Houve um momento de instantânea comunicação
entre nós
—
ainda
agora, quatro anos mais tarde, fico arrepiado ao pensar nisso, embora não
possa afirmar que sou capaz de transmitir a vocês a sensação. Não porque
ele me tratasse como igual aquela noite, pela primeira vez; não porque
estivesse me mostran
do o ansioso cavaleiro errante, ainda escondido
dentro do homem que, de cabeça baixa, lutava pela vida em um mundo
sujo e desonesto. Creio que o percebia como uma
realidade,
alguém que
existia muito antes de minha chegada ao palco, uma pessoa que tivera su
a
ração de sofrimento. Nesse momento, acho que poderia tê
-
lo imaginado
fazendo amor com minha mãe, ambos suados e esforçando
-
se pelo final
—
e não ficaria embaraçado.
Então ele baixou os olhos, esboçou um sorriso defensivo e fez aquela
voz seca e vigorosa
de Nixon, uma imitação em que era muito bom:
—
Vocês merecem saber se seu pai é um trapaceiro. Bem, eu não sou
um trapaceiro, podia ter aceitado o dinheiro, mas isso...
ha
-
rrrã...
teria sido
errado.
Ri alto demais, uma liberação da tensão
—
e senti o momen
to passar;
embora parte de mim não o desejasse, a outra parte queria isso era
demasiado intenso. Penso que ele devia sentir o mesmo.
—
Pssst! Vai acabar acordando sua mãe e ela fará o diabo conosco,
por ficarmos acordados até tão tarde.
—
Desculpe. Escute,
papai, você sabe em que ele está metido? Estou
falando de Darnell.
—
Naquele tempo eu não sabia e nem queria saber, porque então
seria uma parte da coisa. Tinha minhas idéias e ouvi algumas coisas.
Carros roubados, imagino. Não que Darnell os tenha levado
para aquela
garagem da Hampton Street; ele não é totalmente imbecil, e só mesmo um
idiota sujaria o prato onde come. Talvez esteja também envolvido em
contrabando.
—
Armas e munições?
—
perguntei, em voz algo rouca.
—
Nada tão romântico. Se eu fosse capaz
de adivinhar, diria que
principalmente cigarros... cigarros e bebidas, os dois velhos e infalíveis
produtos. O contrabando é como um delírio. Talvez um carregamento de
fornos de microondas ou televisões coloridas, de vez em quando, se o
risco for baixo. O
suficiente para mantê
-
lo ocupado durante tantos anos.
Papai me fitou com ar grave.
—
Ele tem enfrentado bem os riscos e teve sorte por muito tempo,
Dennis. Bem, nesta cidade, talvez não precisasse realmente de sorte. Se
tudo fosse exatamente como em Lyber
tyville, acho que ele poderia
continuar para sempre ou, pelo menos, até cair morto com um ataque do
coração, mas os rapazes dos impostos estaduais são cações, enquanto os
federais são as grandes baleias brancas. Ele teve sorte, mas qualquer dia os
agentes
vão cair em cima dele, como a Grande Muralha da China.
—
Você... você soube de alguma coisa?
—
Nem um sussurro. Aliás, não estou em posição de saber nada.
Acontece, apenas, que gosto muito de Arnie Cunningham e sei que você
anda preocupado com essa históri
a do carro.
—
Certo. Ele está... bem, ele não está se portando com muita lucidez
com relação a isso, papai. Tudo para Arnie é o carro, o carro, o carro.
—
Pessoas sem muitas chances tendem a agir assim
—
disse ele.
—
Às vezes é um carro, em outras uma namo
rada, uma carreira ou
instrumento musical, quando não, uma obsessão doentia por alguma
figura famosa. Tive um colega alto e feio, a quem chamávamos de
Cegonha. Com Cegonha, foi o trenzinho elétrico. Ele foi apaixonado por
trenzinhos desde o segundo grau, e
seu conjunto era quase a oitava
maravilha do mundo. Ele deixou Brown no segundo semestre de seu ano
de calouro. Estava com notas péssimas, e teve que escolher entre o colégio
e seus trens Lionel. Cegonha preferiu os trens.
—
O que aconteceu com ele?
—
Mat
ou
-
se em 1961
—
disse meu pai e levantou
-
se.
—
Minha
opinião é que pessoas decentes às vezes podem ficar cegas e nem sempre
por culpa delas. Talvez Darnell acabe deixando Arnie de lado. Passará a
vê
-
lo apenas como outro cara qualquer, escorregando para bai
xo de seu
carro em um deslizador. Entretanto, se Darnell tentar usá
-
lo, olhe por ele,
Dennis. Não o deixe ser puxado para a dança.
—
Está bem, vou tentar, mas talvez não possa fazer grande coisa.
—
Hum
-
hum. Sei disso muito bem. Vai subir?
—
Claro.
Subimos
e, embora cansado como estava, fiquei muito tempo
acordado. Aquele fora um dia movimentado. Lá fora, um vento noturno
agitava suavemente um ramo contra o lado da casa e, muito distante, no
centro da cidade, ouvi garotos fazendo chiar os pneus no asfalto u
m som
que, dentro da noite, assemelhava
-
se ao gargalhar desesperado de uma
mulher histérica.
C
HRISTINE E
D
ARNELL
Ele soube de um casal
vivendo nos EUA,
Contou que eles trocaram seu bebê por um Chevrolet:
Falemos agora do futuro,
Esqueçamos o passado...
—
Elvis Costello
Entre trabalhar durante o dia no projeto da construção da estrada e
trabalhar em Christine à noite, Arnie não estivera muito tempo com seus
pais. As relações haviam ficado bastante tensas e desgastantes. O lar dos
Cunningham, que sempre for
a agradável e relaxante no passado, agora
era um campo armado. Esta é uma situação que muita gente lembra de
sua adolescência, imagino; talvez, gente demais. O adolescente é egoísta
bastante para considerar
-
se a primeira pessoa do mundo a descobrir certa
c
oisa em particular (geralmente é uma garota, mas nem sempre tem que
ser assim), e os pais são demasiado broncos e possessivos, têm medo de
soltar o cabresto. Ambos os lados pecam. Algumas vezes, isso se torna
doloroso e ultrajante
—
nenhuma guerra é tão su
ja e amarga como uma
guerra civil. Tal situação era particularmente penosa no caso de Arnie,
porque a separação acontecera muito tarde, seus pais já estavam
demasiado acostumados a manejar tudo à sua maneira. Não seria injusto
afirmar que haviam programado
a vida do filho.
Assim, quando Regina e Michael propuseram um fim de semana de
quatro dias em sua casa do lago, ao norte do Estado de Nova Iorque, antes
do reinicio das aulas, Arnie concordou, embora desejasse ardentemente
aqueles últimos quatro dias para
trabalhar em Christine. Passando cada
vez mais horas trabalhando, ele me contara como ia "mostrar a eles", ia
transformar Christine em um carro de verdade e "mostrar a todos eles". Já
planejara restaurar o vermelho brilhante e marfim original do Plymouth,
após terminado o trabalho na carroceria.
Contudo, lá se foi com os pais, determinado a ser obediente e afável
durante aqueles quatro dias inteiros e divertir
-
se com eles
—
em um fac
-
símile racional. Apareci em sua casa, na véspera de partirem, e fiquei
al
iviado ao perceber que ambos me tinham absolvido de culpa no assunto
do carro de Arnie (que ainda não tinham nem mesmo visto).
Aparentemente, haviam decidido ser aquilo uma obsessão particular. Para
mim, foi ótimo.
Regina estava ocupada, fazendo as malas.
Ajudei Arnie e Michael a
amarrarem sua velha canoa Oldtown na capota do Scout, o carro da
família. Terminado o trabalho, Michael sugeriu ao filho
—
com o ar de um
rei poderoso, concedendo um favor quase inacreditável a dois de seus
vassalos favoritos
—
que
ele entrasse e pegasse algumas cervejas para nós.
Fingindo a expressão e o tom de admirada gratidão, Arnie
respondeu que seria formidável. Ao afastar
-
se, piscou
-
me um olho.
Michael recostou
-
se contra o Scout e acendeu um cigarro.
—
Arnie já está se cansan
do dessa história do carro, Dennis?
—
Não sei
—
respondi.
—
Quer me fazer um favor?
—
Claro, se eu puder
—
respondi cauteloso.
Tinha certeza de que ele me pediria para procurar Arnie, bancar o
conselheiro e tentar convencê
-
lo a "parar com aquilo". No entan
to, ele
disse:
—
Se tiver tempo, vá até a Darnell's enquanto estivermos fora e veja
que tipo de progresso ele está fazendo. Fiquei interessado.
—
Por que esse interesse?
Mal fiz a pergunta, pensei imediatamente que fora bastante rude,
mas era tarde demais.
—
Porque desejo que ele seja bem
-
sucedido
—
disse Michael com
simplicidade e olhou para mim.
—
Oh, Regina continua absolutamente
contrária a isso. Se Arnie tiver um carro, significa que está crescendo. E, se
está crescendo, isso significa... bem, toda uma
série de coisas
—
terminou
ele, desajeitadamente.
—
Você poderia considerar
-
me também contra essa
história, porém isso foi antes. Claro, a princípio ele me pegou de
surpresa.... Tive visões de uma lata
-
velha estacionada diante de nossa casa,
até Arnie ir
para a universidade, ou dele asfixiando
-
se até a morte com o
cano de descarga, qualquer noite.
O pensamento de Verônica LeBay saltou em minha cabeça,
involuntariamente.
—
Agora, no entanto...
—
Michael deu de ombros, olhou para a
porta entre a garagem e a
cozinha, deixou o cigarro cair e o esmagou com
o salto.
—
Ele está visivelmente empenhado. Adquiriu um senso de
respeito próprio nesse assunto. Eu gostaria de, pelo menos, vê
-
lo pôr o
carro rodando.
Talvez ele percebesse algo em meu rosto, porque ao prosse
guir, o
tom era defensivo.
—
Não esqueci inteiramente o que significa ser jovem
—
disse.
—
Sei que um carro é importante para um rapaz como Arnie. Regina é que
não consegue ver isso tão claramente. Sempre teve a primeira e última
palavra e não se conforma
em ser passada para trás. Recordo que um
carro é importante... se um rapaz tem que sair com garotas.
Então, era assim que ele pensava. Encarava Christine como o meio
para uma finalidade, não a própria finalidade. Perguntei
-
me o que
pensaria, se lhe contass
e que a única idéia de Arnie era colocar aquele
Fury rodando e legalizado. Perguntei
-
me, também, se isso não o deixaria
um tanto ou quanto inquieto.
Ouvimos o baque da porta da cozinha ao se fechar.
—
Você daria uma espiada?
—
Está bem
—
respondi.
—
Se é o
que você quer.
—
Obrigado.
Arnie voltava com as cervejas.
—
O que estava agradecendo?
—
perguntou a Michael.
Falava em tom jovial e despreocupado, mas seus olhos se moveram
entre nós com rapidez, desconfiadamente. Tornei a reparar que sua pele
estava fica
ndo muito melhor e que seu rosto parecia ter
-
se revigorado.
Pela primeira vez,
Arnie e garotas
foram dois pensamentos que não me
pareceram mutuamente excludentes. Ocorreu
-
me que Arnie tinha um
rosto quase atraente, não como o de um peitudo salva
-
vidas, rei
-
do
-
baile
-
estudantil, porém de um modo diferente, interessante e suave. Ele jamais
seria o tipo de Roseanne, mas...
—
Por ele ajudar com a canoa
—
disse Michael, com naturalidade.
—
Ah.
Bebemos nossas cervejas e depois fui para casa. No dia seguinte, o
fel
iz trio partiu para Nova Iorque, presumidamente a fim de redescobrir a
unidade familiar, perdida durante o último terço daquele verão.
Um dia antes de eles voltarem, fui de carro até a garagem de
Darnell
—
tanto para satisfazer minha curiosidade como a de
Michael
Cunningham.
Situada à frente do depósito de carros velhos, este do comprimento
do quarteirão, a garagem parecia tão atraente à luz do dia, como na noite
em que havíamos trazido Christine
—
tinha todo o encanto de uma
ratazana morta.
Estacionei em
uma vaga diante da loja de acessórios que pertencia
também a Darnell
—
muito bem provida de peças, como cabeçotes Feully,
caixas de mudança Hurst e supercompressores Ram
-
Jett (para todos
aqueles trabalhadores que precisavam manter seus velhos carros rodand
o
a fim de poderem pôr pão na mesa, sem dúvida), para não mencionar
uma vasta seleção de compactos pneus e uma imensa variedade de calotas
especiais. Espiar pela janela da loja de acessórios para alta velocidade de
Darnell era como observar uma louca Disne
ylândia automotiva.
Afastei
-
me dali e cruzei o piso alcatroado para a garagem e para os
sons ruidosos de ferramentas, gritos, rajadas de metralhadoras das chaves
de boca pneumáticas. Um indivíduo de aparência desmazelada, com uma
surrada jaqueta de couro,
estava às voltas com uma velha bicicleta, junto a
um dos boxes da garagem, desmontando a tubuladora ou tornando a
montá
-
la. Havia um fundo arranhão interrompido, descendo por sua face
esquerda. As costas da jaqueta do sujeito exibiam uma caveira' usando
um
a boina verde e o fascinante lema MORRAM TODOS ELES E QUE
DEUS OS DIVIDA.
Fitou
-
me com olhos injetados de sangue, como um lunático
Rasputin, depois voltou a atenção para o que fazia. As ferramentas à sua
volta se dispunham em ordenação cirúrgica, havendo e
m cada uma,
estampadas a tinta, as palavras DARNELL'S GARAGE.
Lá dentro, o mundo se enchia do barulho reverberante e evocativo
de ferramentas e do som de homens trabalhando nos carros, gritando
palavrões para aquele em que trabalhavam. Sempre os palavrões
e sempre
do gênero feminino: "Vamos, sua filha da puta", "Afrouxe, sua cona",
"Venha cá, Rick, e me ajude a tirar fora esta racha".
Olhei em torno, procurando Darnell, mas não o vi em parte alguma.
Ninguém prestou muita atenção em mim, de maneira que camin
hei até o
boxe vinte, onde estava Christine, agora apontando o focinho para fora,
como se tivesse todo o direito de estar ali. No boxe à direita, dois caras
gordos, ambos vestindo camisas da associação de boliche, estavam
colocando um toldo na carroceria d
e uma camioneta
pickup,
que já vira
dias melhores. O boxe do outro lado estava deserto.
Quando me aproximei de Christine, senti que voltava aquele arrepio.
Não havia motivos para isso, mas era impossível controlá
-
lo
—
e, sem
pensar, movi
-
me um pouco para a
esquerda, em direção ao boxe vazio.
Não queria ficar na frente dela, de Christine.
Meu primeiro pensamento foi de que a pele de Arnie havia
melhorado ao mesmo tempo que a de Christine. O segundo, que ele
estava fazendo seus melhoramentos de modo curiosame
nte ao acaso...
quando, em geral, meu amigo costumava ser muito metódico.
A antena empenada e caída fora substituída por uma nova e
retilínea, que cintilava à luz das lâmpadas fluorescentes. Metade da grade
do radiador do Fury havia sido trocada; a outra m
etade continuava
amassada e salpicada de ferrugem. Havia também algo mais...
Caminhei ao longo do lado direito do carro, até o pára
-
choque
traseiro, com o cenho franzido.
Bem, era no outro lado, sem dúvida,
pensei.
Assim, dei a volta pelo outro lado, mas t
ambém não estava lá.
Fiquei em pé junto à parede dos fundos, ainda de cenho franzido,
procurando lembrar. Estava absolutamente certo de que quando vira
aquele carro no gramado de LeBay, com um aviso À VENDA colado ao
pára
-
brisa, havia um amassado enferruja
do, de bom tamanho, em um ou
outro lado do veículo, perto da traseira
—
a espécie de marca de batida
funda que meu avô sempre chamava de "coice de mula". Estávamos
rodando ao longo da estrada de pedágio, quando passamos por um carro
com um amassado enorme
em alguma parte da lataria. Vovô então disse:
"Ei, Denny, dê uma espiada naquilo! Foi um coice de mula!". Meu avô era
do tipo que sempre tem uma frase pronta para tudo.
Comecei a pensar que imaginara aquilo e abanei a cabeça de leve.
Aquilo era uma idéia s
em sentido. O amassado estivera lá, podia recordá
-
lo perfeitamente. Só porque não estava agora, não significava que nunca
estivera antes. Sem dúvida, Arnie fizera uma lanternagem no local, uma
excelente lanternagem, para fazê
-
lo desaparecer.
Exceto que...
Bem, não havia o menor
sinal
de que ele houvesse feito qualquer
coisa ali. No lugar não havia pintura, nenhuma massa cinzenta para
nivelar a superfície da lataria, qualquer mancha de tinta. Apenas o
vermelho opaco e o branco sujo de Christine.
No entanto,
havia um maldito
amassado ali!
Um amassado fundo e
coberto de poeira, em um ou outro lado do carro.
De qualquer modo, ele agora desaparecera.
Fiquei ali, entre a barulheira ensurdecedora de ferramentas e
maquinismos, sentindo
-
me muito solitário e, de repen
te, muito assustado.
Estava tudo errado, tudo louco. Ele substituíra a antena do rádio, quando
o cano de descarga praticamente se arrastava pelo chão. Substituíra
metade do radiador, mas não a outra. Falara comigo sobre um conserto
geral na traseira, mas d
entro do carro; substituíra o rasgado e empoeirado
estofamento do banco de trás por um outro, novo e brilhante. O
estofamento do banco dianteiro continuava um destroço empoeirado, com
uma mola assomando para fora, no banco do passageiro.
Não gostei daquilo
nem um pouco. Era loucura, sem nenhum traço
da meticulosidade de Arnie.
Algo me acudiu à mente, uma lembrança fugaz e, sem mesmo
analisá
-
la, fiquei atrás do carro e olhei para todo ele
—
não apenas para
um detalhe aqui e outro acolá, mas abrangendo tudo.
Então, consegui:
tudo se encaixava no lugar e o arrepio voltou.
Aquela noite, quando tínhamos levado Christine para a garagem. O
pneu arriado. A substituição. Eu olhara para o pneu novo no carro velho e
havia pensado que um pouquinho daquela velhice toda f
ora retirada, que
o automóvel novo
—
recente, cintilante, acabado de sair da linha de
montagem, em um ano quando Ike ainda era presidente e Batista
continuava mandando em Cuba
—
reaparecia um pouquinho, através
daquele pneu.
O que eu via agora era mais ou
menos isso... só que, em vez de um
mero pneu novo, havia todos os tipos de coisas
—
a antena, a grade do
radiador cintilando pela metade, um lado traseiro em reluzente vermelho
-
escuro, aquele novo estofamento no banco de trás.
Por sua vez, isto me fez reco
rdar algo da infância. Eu e Arnie
freqüentávamos a Escola Bíblica de Férias durante uma quinzena a cada
verão e, todos os dias, a professora contava uma história da Bíblia,
deixando
-
a por terminar. Então, ela dava a cada garoto uma folha em
branco de "pape
l mágico". Quando a gente passava a borda de uma
moeda ou o lado do lápis sobre o papel, de sua brancura ia gradualmente
emergindo uma ilustração
—
a pomba trazendo o ramo de oliveira para
Noé, as muralhas de Jerico desmoronando, coisas milagrosas assim.
A
quilo nos deixava fascinados, vendo as ilustrações irem surgindo pouco
a pouco. A princípio, apenas linhas flutuando no vazio... depois, essas
linhas se ligavam a outras... ganhavam coerência... ganhavam
significado.
Olhei para a Christine de Arnie com cre
scente horror, tentando
afugentar a sensação de que, nela, via algo terrivelmente similar àquelas
mágicas frustrações de milagres.
Tive vontade de espiar debaixo do capô.
De repente, parecia muito importante espiar o que havia lá.
Caminhei para a frente do
carro (não queria ficar diante dele, não
havia um bom motivo para isso, apenas eu não queria) e remexi no capô,
em busca do trinco. Não consegui abri
-
lo. Então, percebi que devia estar
dentro do carro.
Comecei a dar a volta, quando vi algo mais, algo que
me deixou
mais assustado ainda. Eu podia estar enganado sobre o coice de mula.
Sabia que não estava mas, pelo menos
tecnicamente..
Só que isto era completamente outra coisa.
A teia de aranha das rachaduras no pára
-
brisa diminuíra.
Estava positivamente meno
r.
Minha mente recuou at
é o dia, um mês atrás, quando eu
perambulara pela garagem de LeBay, a fim de dar uma espiada no carro,
enquanto Arnie entrava na casa para fechar negócio com o velho. Todo
lado esquerdo do pára
-
brisa era uma imensa teia de aranha de
rachaduras,
que se espraiavam de uma ziguezagueante fenda central, provavelmente
causada por uma pedrada.
Agora, a teia de aranha parecia menor e mais simples
—
por aquele
lado, era possível enxergar
-
se dentro do carro, o que eu não pudera fazer
antes, ti
nha certeza (apenas uma ilusão devido à luz, eis tudo, cochichou
minha mente).
No entanto, eu tinha que estar enganado
—
porque isso era
impossível. A gente substitui um pára
-
brisa, isto não é problema, havendo
dinheiro para a despesa. No entanto, fazer um
a teia de aranha de
rachaduras encolher...
Ri um pouco. Era um som tr
êmulo, e um dos sujeitos que trabalhava
com a lona da camioneta olhou para mim com curiosidade, em seguida
comentando algo com o companheiro. Era um som trêmulo, porém talvez
melhor do qu
e nenhum som. Claro que era a luz nada mais. Eu vira o
carro, pela primeira vez, com o sol brilhando em cheio sobre o pára
-
brisa
estilhaçado e o vira, pela segunda vez, nas sombras da garagem de LeBay.
Via
-
o, agora, sob a luz fluorescente daqueles tubos co
locados muito no
alto. Três momentos diferentes e, tudo somado, traduzia
-
se em uma ilusão
de ótica.
Ainda assim, eu queria olhar debaixo do cap
ô. Mais do que nunca.
Cheguei at
é o lado do motorista e sacudi a porta. Ela não se abriu.
Estava trancada. Claro
que estava: via abaixados todos os quatro botões
que trancavam as portas. Arnie não deixaria seu carro aberto ali, para que
alguém chegasse e ficasse remexendo em tudo. Repperton podia ter ido
embora, mas a espécie sordidus é uma erva daninha comum. Tornei
a rir.
O tolo e velho Dennis
—
mas agora meu riso soou ainda mais agudo e
trêmulo. Eu começava a sentir
-
me aéreo, como me sentia às vezes de
manhã, após ter fumado um pouco de erva além da conta.
Trancar as portas do Fury era uma atitude muito natural, cl
aro.
Exceto que, ao dar a volta ao carro pela primeira vez, julguei perceber
levantados todos os bot
ões que fechavam as portas.
De novo, caminhei lentamente para a traseira do carro. Aquela
velharia, pouco mais que uma carca
ça enferrujada. Eu não pensava e
m
nada específico
—
tenho certeza disso
—
exceto, talvez, que era como se
Christine soubesse que eu queria entrar e puxar a alavanca de liberação do
capô.
Ent
ão, por não querer que eu entrasse, o carro trancara as próprias
portas?
Francamente, era uma id
éi
a hilariante. Tão hilariante que tomei a rir
(várias pessoas agora olhavam para mim, de maneira como os outros
sempre olham para quem está sozinho e ri, sem qualquer motivo
aparente).
Foi quando aquela m
ão enorme caiu em meu ombro e me fez girar.
Era Darne
ll, com um toco apagado de charuto enfiado no meio da boca. A
outra extremidade estava molhada, com uma aparência lamentável. Ele
usava pequenos óculos com lentes até a metade, e os olhos atrás delas
eram friamente especulativos.
—
O que está fazendo, garo
to?
—
perguntou.
—
Isto aqui não é seu.
Os caras da camioneta olhavam avidamente para n
ós. Um deles
cutucou o outro e sussurrou algo.
—
É de um amigo meu
—
respondi.
—
Eu o trouxe para cá com ele.
Talvez se lembre de mim. Eu era aquele com o enorme tumor n
a ponta do
nariz e o...
—
Pouco me importa se vocês trouxeram o carro para cá em um
skate
—
disse ele.
—
Não lhe pertence. Guarde suas piadas sem graça e dê
o fora, garoto. Caia fora daqui!
Meu pai estava certo
—
ele era um miserável. E eu ficaria mais do
q
ue feliz em dar o fora dali; podia pensar em seis mil lugares, pelo menos,
onde preferiria estar, naquela antevéspera do fim das férias de verão. A
própria Caverna Negra, em Calcutá, seria superior. Não muito, mas
sempre superior. No entanto, o carro me pe
rturbava. Um monte de
coisinhas que, somadas, formavam uma baita erupção que precisava ser
coçada. Olhe por ele, meu pai dissera, e fora um bom conselho. O
problema é que eu não conseguia
-
acreditar no que via.
—
Meu nome é Dennis Guilder
—
falei.
—
Meu pa
i já fez sua
contabilidade, não foi?
Ele me fitou por um tempo imenso, sem qualquer express
ão em seus
olhinhos de porco. De repente, tive a impressão de que ia dizer que pouco
se lixava quem fosse meu pai, que era melhor eu
dar o fora dali e deixar
que aqu
eles homens continuassem consertando seus carros para poderem
continuar pondo p
ão em suas mesas. Et cetera.
Ent
ão, Darnell sorriu, mas o sorriso nem tocou seus olhos.
—
Você é o filho de Kenny Guilder?
—
Sou eu mesmo.
Ele deu tapinha no cap
ô do carro de Ar
nie com uma gorda e pálida
mão
—
havia dois anéis nos dedos e um deles parecia um diamante de
verdade. No entanto, o que pode saber um garoto como eu?
—
Sendo assim, acho que tudo está bem com você. Se for o filho de
Kenny. Por um segundo, pensei que ele i
a pedir minha identidade.
Os dois sujeitos do lado voltaram a trabalhar em sua camioneta e,
aparentemente, decidiram que nada mais transpiraria de interessante.
—
Vamos até o escritório, conversar um pouco
—
disse ele.
Virou
-
se e come
çou a caminhar, sem ao
menos olhar para trás.
Parecia certo de que eu o seguiria. Caminhava como um barco de velas
enfunadas, a camisa branca esvoaçando, com uma circunferência
impressionante de quadris e costas, inverossímil. Muitas pessoas gordas
sempre me afetam dessa maneir
a, com nítida impressão de
inverossimilhança, como se eu estivesse olhando para uma fantástica
ilusão de ótica. Acontece, no entanto, que provenho de uma longa linha de
pessoas magras. Para minha família, sou um peso
-
pesado.
Darnell fez uma pausa aqui e al
i, a caminho de seu escrit
ório, o qual
tinha uma parede envidraçada, dando para o interior da garagem. Fazia
-
me recordar ligeiramente o deus Moloch, sobre quem havia lido em
minha aula de Origens de Literatura
—
era o deus que se supunha capaz
de ver tudo,
com seu único olho vermelho. Darnell gritou para um sujeito
colocar o silencioso em seu cano de descarga, antes que ele o expulsasse
dali; gritou para outro indivíduo algo sobre como "as costas de Nicky o
estavam atrapalhando novamente" (isto provocou uma
série de ferozes e
ruidosas gargalhadas dos dois); berrou para outro que ajuntasse aquelas
fodidas latas de Pepsi
-
Cola, será que ele nascera em um monturo de lixo?
Aparentemente, Will Darnell nada sabia sobre o que minha mãe sempre
denominava "um tom norm
al de voz".
Eu hesitei por um momento, mas depois o segui. Acho que a
curiosidade matou o gato.
O escrit
ório dele era em estilo Primitivo Carburador Americano,
uma cópia de todo infecto escritório de garagem, de costa a costa, em um
país que corre sobre b
orracha e ouro ambarino. Havia um calendário
sebento com uma deusa loura em shorts curtíssimos e blusa aberta,
trepada em uma cerca, no campo. Havia placas ilegíveis de meia dúzia de
companhias que vendiam peças para carros. Pilhas de livros de
contabilida
de. Uma antiga máquina de somar. Havia uma foto
—
que
Deus nos perdoe!
—
de Will Darnell usando um fez e montado em uma
motocicleta miniatura, que parecia quase arriada sob seu corpo volumoso.
Havia ainda o cheiro de charutos há muito usados e de suor.
Dar
nell sentou
-
se em uma cadeira girat
ória, com braços de madeira.
A almofada gemeu debaixo dele, com um som cansado, mas conformado.
Ele se reclinou para trás. Tirou um fósforo da cabeça oca de um jóquei
negro de cerâmica. Depois o riscou em uma tira de lixa
que cobria uma
beirada da mesa e acendeu com ele o toco de charuto. Tossiu, fundo e
demoradamente, o peito largo e flácido sacudindo
-
se para cima e para
baixo. Diretamente atrás dele, pregado à parede, havia um quadro de
Garfield, o Gato. "Quer uma viagem
para a Cidade de Dentes Frouxos?",
perguntava Garfield, sobre uma pata erguida. Aquilo parecia uma perfeita
síntese de Will Darnell: Miserável na Residência Oficial.
—
Quer uma Pepsi, garoto?
—
Não, obrigado
—
falei.
Sentei
-
me na cadeira de espaldar reto,
oposta a ele. Darnell olhou
para mim
—
novamente aquele olhar frio e calculista
—
e então assentiu.
—
Como vai seu pai, Dennis? Continua às voltas com a Bolsa?
—
Vai muito bem. Quando lhe contei que Arnie trouxera o carro
para cá, ele logo se lembrou do s
enhor. Disse que Bill Upshaw é que faz
sua contabilidade agora.
—
Hum
-
hum. Um bom homem. Um bom homem. Não tanto quanto
seu pai, mas bom.
Assenti. Um silêncio caiu entre nós e comecei a sentir
-
me inquieto.
Will Darnell não parecia pouco à vontade, não olha
va para nada em
particular. Aquele frio olhar de apreciação nunca mudava.
—
Seu companheiro o mandou aqui para descobrir se Repperton foi
mesmo embora?
—
perguntou ele, tão de repente, que me sobressaltei.
—
Não
—
respondi.
—
De maneira nenhuma.
—
Bem, dig
a a ele que foi mesmo embora
—
prosseguiu Darnell,
ignorando o que eu acabara de dizer.
—
Um burro metido a sebo. Sempre
digo a eles, quando vêm com seu lixo para cá: andem na linha ou caiam
fora. Ele trabalhava para mim, fazendo um pouquinho disto e um
po
uquinho daquilo, mas talvez tenha pensado que era dono da chave de
ouro para a privada ou coisa assim. Um sabe
-
tudo
novato.
Ele começou a tossir novamente e demorou muito a parar o acesso
de tosse. Era um som doentio. Eu começava a sentir claustrofobia,
co
nfinado naquele escritório, mesmo com a janela se abrindo para a
garagem.
—
Arnie é um bom rapaz
—
disse Darnell finalmente, ainda me
avaliando com os olhos. Mesmo quando tossia, a expressão não
mudava.
—
Ele se vira muito bem. Sabe fazer as coisas.
Fazer
o quê? Eu quis perguntar, mas faltou coragem.
Darnell acabou contando. Excetuando
-
se o olhar frio, aparentemente
ele se sentia expansivo.
—
Ele limpa o chão, recolhe a tralha dos boxes da garagem no fim
do dia, mantém as ferramentas inventariadas, juntamen
te com Jimmy
Sykes... Preciso ter muito cuidado com as ferramentas por aqui, Dennis.
Elas costumam fugir quando viro as costas.
—
Ele riu e sua risada
transformou
-
se em um chiado.
—
Botei o Arnie também desmontando
peças, lá nos fundos. O garoto tem boas m
ãos. Boas mãos e mau gosto
para carros. Há anos não vejo uma carcaça pior do que aquele 58.
—
Acho que Arnie o encara como um passatempo
—
comentei.
—
Claro
—
disse Darnell, expansivamente.
—
Claro que sim. Até o
dia em que não quiser bancar o mandão com a
quilo, aqui dentro. Como
aquele imbecil, aquele Repperton. Bem, acho que não há muita
possibilidade disso por algum tempo, hein?
—
Penso que não. Aquele carro está um bocado ruim.
—
Que merda ele pretende fazer?
—
perguntou Darnell. Inclinou
-
se
para diante
, subitamente, os ombros enormes subindo até a raiz dos
cabelos. Franziu as sobrancelhas e os olhos desapareceram, exceto por
dois pequenos botões gêmeos.
—
Que merda ele pretende? Estive metido
nesse ramo a vida inteira e
nunca
vi ninguém consertar um car
ro da
maneira louca como ele está fazendo. Uma piada? Uma brincadeira?
—
Não estou entendendo
—
falei, embora estivesse, e perfeitamente
bem.
—
Pois eu lhe dou a dica
—
replicou Darnell.
—
O garoto traz o
carro para cá e, a princípio, faz nele tudo o que e
u esperava que fizesse.
Que diabo, ele não tem dinheiro escapando pelo traseiro, certo? Se tivesse,
não estaria aqui. Ele troca o óleo. Muda o filtro. Graxa, lubrificante, um
dia vi os dois Firestones novos que ele trouxe para as rodas dianteiras, a
fim de
combinarem com as duas traseiras.
Duas traseiras? Fiz a pergunta a mim mesmo e então concluí que ele
comprara três pneus novos, para combinarem com o original que eu lhe
levara, na noite em que trazíamos Christine para a garagem.
—
Então, um belo dia cheg
o aqui e vejo que ele substituiu os
limpadores de pára
-
brisa
—
continuou Darnell.
—
Nada estranho, exceto
que o carro não irá a lugar nenhum, com chuva ou com sol, durante muito
tempo. Depois, uma antena nova para o rádio e pensei: ele vai ficar
ouvindo o
rádio enquanto trabalha, arriando a bateria. Agora, o garoto me
vem com um novo assento coberto e metade da grade do radiador. Afinal,
o que significa tudo isto? Uma brincadeira?
—
Não sei
—
respondi.
—
Ele comprou as peças de reposição com o
senhor?
—
Não
—
disse Darnell, parecendo ofendido.
—
Não sei onde as
conseguiu. Aquela grade... não tem nem sinal de ferrugem! Ele deve ter
encomendado de algum lugar. Da Custom Chrysler, em Nova Jersey, ou
outro lugar semelhante. Só que... e a outra metade? Enfiada em
seu rabo?
Nunca ouvi falar de uma grade para radiador que chegasse em duas
partes.
—
Não sei de nada. Sinceramente. Ele esmagou o toco do charuto.
—
E não me venha dizer que não está curioso. Via a maneira como
olhava para aquele carro. Dei de ombros.
—
A
rnie não fala muito sobre ele
—
respondi.
—
Oh, não, aposto como não fala. É um filho da mãe de boca
fechada. No entanto, é um batalhador. Aquele Repperton apertou o botão
errado, quando se meteu com Cunningham. Se trabalhar legal este outono,
posso arranj
ar
-
lhe um emprego fixo para este inverno. Jimmy Sykes é um
bom garoto, mas não muito chegado ao departamento cerebral.
—
Seus
olhos me avaliaram.
—
Acha que ele é bom trabalhador, Dennis?
—
Arnie é legal.
—
Tenho um bocado de carros no fogo
—
comentou ele.
—
Um
bocado. Alugo caminhões sem grades na carroceria para sujeitos que
precisam transportar seus carrões envenenados até Filadélfia. Recolho a
tralha depois das corridas. Estou sempre necessitando de gente nesse
negócio. Bem, gente de confiança.
Comecei
a ter a desagradável suspeita de que estava sendo
convidado a dançar. Levantei
-
me precipitadamente, quase derrubando a
cadeira.
—
Tenho mesmo que ir andando
—
falei.
—
E... Sr. Darnell... ficaria
muito grato se não dissesse a Arnie que estive aqui. Ele é..
. um pouco
suscetível sobre o carro. Para ser franco, seu pai andava curioso e queria
saber como ele está se saindo.
—
O garoto tirou um monte de bosta da porta de casa, não foi?
—
O
olho direito de Darnell se fechou astutamente em algo que não era bem
uma
piscadela.
—
Seus velhos engolem alguns quilos de laxativo e depois
ficam em cima dele, de pernas bem abertas, não é assim?
—
Bem... o senhor sabe como é.
—
Pode apostar que sei.
Ele se levantou em um movimento flexível e bateu em minhas costas,
com força
bastante para fazer
-
me vacilar sobre os pés. Com ou sem
respiração chiada e tosse, ele era um sujeito forte.
—
Não direi nada
—
prometeu, caminhando comigo até a porta.
Sua mão continuava em meu ombro, o que me deixava nervoso e
também um pouco irritado.
—
Quero lhe confessar uma coisa que também me preocupa
—
falou.
—
Devo ver uns cem carros por aqui, a cada ano... bem, não tantos,
mas entende o que quero dizer, e preciso ficar de olho neles. Pois quase
juraria que já vi aquele antes. Quando não era a vel
haria que está agora.
Onde foi que o garoto o conseguiu?
—
Com um homem chamado Roland LeBay
—
respondi, pensando
no irmão de LeBay, ao me contar que ele próprio fazia a manutenção, em
alguma garagem do tipo faça
-
você
-
mesmo.
—
Está morto agora.
Darnell est
acou subitamente.
—
LeBay?
Rollie
LeBay?
—
Isso mesmo.
—
Do Exército? Reformado?
—
Exato.
—
É isso mesmo, raios! Durante seis, talvez oito anos, ele trouxe o
carro para cá, tão regular como um relógio. Depois parou de vir. Isso foi
há muito tempo. Aquele s
ujeito era um filho da puta. Se a gente
despejasse água fervendo por sua maldita garganta abaixo, ele mijaria
cubos de gelo. Não se dava com ninguém.
—
Darnell apertou meu ombro
com mais força.
—
Seu amigo Cunningham sabe que a mulher de LeBay
suicidou
-
se
naquele carro?
—
É mesmo?
—
exclamei, fingindo surpresa.
Eu não queria deixá
-
lo saber que meu interesse fora suficiente para
procurar o irmão de LeBay, após o funeral. Receava que Darnell pudesse
repetir a informação para Arnie
—
completa, com a fonte. Dar
nell me
contou a história toda. Primeiro a filha, depois a mãe.
—
Poxa!
—
tornei a exclamar, quando ele terminou.
—
Tenho
certeza de que Arnie não sabe disso. Vai contar a ele?
Aquele olhar avaliador novamente.
—
Você vai?
—
Não
—
respondi.
—
Não vejo moti
vos para contar.
—
Nem eu.
—
Ele abriu a porta, e o ar cheirando a graxa pareceu
quase purificado, depois da fumaça de charuto no escritório.
—
Aquele
filho da puta do LeBay, maldito seja! Espero que esteja oferecendo a face
direita e depois a esquerda lá
no inferno. E dando o traseiro.
—
Sua boca
se encurvou perversamente por um instante e depois ele olhou na direção
do boxe vinte, onde repousava Christine com sua velha pintura
enferrujada, a antena e metade da grade do radiador reluzindo de novas.
—
Essa
cadela
aqui outra vez
—
continuou ele, e então olhou para
mim.
—
Bem, dizem que o centavo falso sempre aparece, não é?
—
Sim, acho que dizem
—
respondi.
—
Até logo, garoto
—
disse, enfiando um novo charuto na boca.
—
Diga alô a seu pai por mim.
—
Eu direi.
—
E diga a Cunningham para ficar de olho naquele traste do
Rupperton. Tenho a impressão de que ele não aceita fácil uma derrota.
—
Eu também
—
falei.
Saí da garagem, parando uma vez a fim de olhar para trás
—
contudo, vista da claridade, Christine era pou
co mais do que uma sombra
entre sombras. O
centavo falso sempre aparece,
tinha dito Darnell. Fui para
casa com aquela frase na cabeça.
C
ALAMIDADES DO
F
UTEBOL
Aprender a tocar saxofone,
Só tocar o que eu gostar,
Beber uísque escocês
A noite inteira
E morre
r atrás do volante...
—
Steely Dan
As aulas começaram, e nada de importante aconteceu por uma
semana ou duas. Arnie não soube que eu estivera na garagem, o que me
alegrou, pois não creio que aceitasse a notícia com muita satisfação.
Darnell ficou de boca
fechada, como prometera (talvez por questões
pessoais). Telefonei para Michael certa tarde, depois das aulas, sabendo
que Arnie já teria ido para a garagem, e lhe contei que ele fizera alguma
coisa no carro, mas que este ainda estava longe de poder andar l
egalmente
pelas ruas. Comentei minha impressão de que seu filho apenas procurava
distrair
-
se na garagem. Michael acolheu as notícias com um misto de
alívio e surpresa. Isto encerrou a questão... por algum tempo.
Eu via Arnie de vez em quando, assim como al
go que entra em
nosso campo visual, pelo canto do olho. Ele perambulava pelos corredores,
tínhamos aulas de três matérias juntos e, por vezes, aparecia lá em casa,
depois das aulas ou nos fins de semana. Em certas ocasiões, parecia que
nada mudara realment
e, porém Arnie ficava mais tempo na Darnell's do
que em minha casa, e seguia para Philly Plains
—
a pista de corridas para
automóveis
—
nas noites de sexta
-
feira, juntamente com Jimmy Sykes, o
empregado meio idiota de Darnell. Lá corriam carros esportes e
outros
modelos de classe, envenenados, em sua maioria Camaros e Mustangs,
com todos os vidros retirados e com fechos corrediços. Arnie e Jimmy
Sykes os recolhiam ao caminhão de carroceria aberta de Darnell e
voltavam com o lixo recente para o cemitério de
automóveis.
Foi mais ou menos nessa época que Arnie machucou as costas. Não
foi nada sério
—
pelo menos, era o que dizia
—
, mas minha mãe percebeu
que havia algo errado com ele, quase em seguida. Arnie apareceu um
domingo para ver o jogo dos Phillies, que
naquele ano abriam caminho
para uma glória moderada, e durante o terceiro tempo levantou
-
se para
pegar um copo de suco de laranja para cada um de nós. Mamãe estava
sentada no sofá com papai, lendo um livro. Ergueu os olhos quando Arnie
retomava e disse:
—
Você está mancando, Arnie.
Penso ter visto uma expressão inesperada de surpresa no rosto dele,
por um ou dois segundos
—
um ar furtivo, quase culpado. Talvez me enganasse. Se
aconteceu,
um segundo depois havia desaparecido.
—
Acho que forcei as costas em P
lains, a noite passada
—
disse ele,
entregando
-
me o suco de laranja.
—
Jimmy Sykes deixou escorregar a
última das peças batidas que carregávamos, quando ela estava
praticamente em cima do caminhão. Pude vê
-
la escorregando para fora, e
então levamos umas du
as horas fazendo força para endireitar tudo.
Empurrei com as costas. Acho que não devia ter forçado tanto.
Parecia uma explicação muito minuciosa para um simples coxear,
porém eu talvez estivesse enganado sobre isso também.
—
Precisa ter mais cuidado com s
uas costas
—
disse mamãe,
severamente.
—
O Senhor...
—
Podemos ver o jogo agora, mãe?
—
falei.
—
...só lhe dá uma
—
concluiu ela.
—
Sim, Sra. Guilder
—
respondeu Arnie, obedientemente. Elaine
entrou na sala.
—
Ainda tem um resto de suco ou os dois cabeças
-
d
e
-
pepino
beberam tudo?
—
Por favor, me dê uma folga!
—
gritei.
Tinha havido uma grande jogada naquele segundo e perdi toda a
seqüência.
—
Não grite com sua irmã, Dennis
—
murmurou papai, das
profundezas de
The Hobbyist,
a revista que estava lendo.
—
Sobrou
muita coisa, Ellie
—
disse Arnie para ela.
—
Às vezes, Arnie
—
retrucou Elaine
—
, você me surpreende como
um ser quase humano. Ela foi para a cozinha.
—
Quase humano, Dennis!
—
sussurrou Arnie, aparentemente à
beira de lágrimas de gratidão.
—
Você ouviu i
sso? Quase
humaaaano!
Talvez seja apenas uma lembrança retrospectiva
—
ou a
imaginação
—
levando
-
me a crer que seu humor fosse forçado, irreal,
apenas uma fachada. Seja ou não verdadeira a recordação, o assunto sobre
suas costas encerrou
-
se, embora ele vol
ta e meia mancasse, durante aquele
outono.
Pessoalmente, eu andava muito ocupado. Havia rompido com a
chefe de torcida, mas em geral sempre encontrava alguém para uma volta
nas noites de sábado... se não estivesse esgotado pelo treino constante de
futebol.
O treinador Puffer nada tinha do miserável que era Will Darnell,
porém estava longe de ser uma flor; como metade dos treinadores de
ginásio nas cidades pequenas da América, ele moldava suas técnicas de
treinamento pelas do falecido Vince Lombardi, cujo le
ma principal era de
que ganhar não significava tudo, era
a única coisa.
Vocês ficariam
surpresos, se soubessem quanta gente
—
que deveria entender melhor do
assunto
—
acredita nessa mentira deslavada.
Um verão de trabalho para a Carson Brothers me deixara
em
excelente forma, e creio que poderia valer
-
me para toda a temporada
—
se
aquela houvesse sido uma temporada vitoriosa. Entretanto, por ocasião da
briga feia que eu e Arnie tivemos com Buddy Repperton, perto da área de
fumar, nos fundos da oficina
—
e cr
eio que aconteceu durante a terceira
semana de aula
—
, já era francamente visível que não teríamos uma
temporada de vitórias. Isso tornou extremamente difícil a convivência
com o treinador Puffer, porque em seus dez anos no Ginásio Libertyville
ele
jamais
tivera uma temporada de derrotas. Aquele foi o ano em que
Puffer teve que se sujeitar a uma amarga humildade. Foi uma dura lição
para ele... e também para nós.
Nosso primeiro jogo, contra os Tigres de Luneburg, foi em setembro.
Bem, Luneburg não passa de u
m vilarejo. Trata
-
se de uma merdinha de
ginásio rural no extremo oeste de nosso distrito, e durante meus anos no
Libertyville o grito de guerra costumeiro, após a convencida defesa de
Luneburg ter permitido mais um
touchdown,
um ponto para nós, era:
CONTEM
-
PRA
-
NÓS
-
COMO
-
É
-
BOSTA
-
DE
-
VACA
-
NO
-
SEU
-
PÉ!
Seguido
por um estrondoso, sarcástico aplauso:
HUUURRRAAAA,
LUUUUNEBURG!
Fazia vinte anos que Luneburg não conseguia derrotar um time de
Libertyville, mas nesse ano eles se levantaram e acabaram conosco
completament
e. Eu jogava na extrema
-
esquerda e, chegado o meio tempo,
estava moralmente convicto de que carregaria nas costas, pelo resto da
vida, cicatrizes de marcas de travas. O escore era então de 17
-
3. Terminou
com 30
-
10. A torcida do Luneburg delirava. Eles derr
ubaram as traves do
gol, como se aquele fosse um jogo pelo Campeonato Regional, e
carregaram nos ombros seus jogadores para fora do campo.
Nossa torcida, que viera em ônibus fretados especialmente para a
ocasião, ficou encolhida nas arquibancadas de visita
ntes, parecendo
perdida sob um forte e prematuro calorão de setembro. No vestiário,
atordoado e pálido, o treinador Puffer sugeriu que ficássemos de joelho e
rezássemos, pedindo orientação para as semanas vindouras. Percebi então
que a calamidade não termi
nara, que apenas começava.
Caímos sobre os joelhos doloridos, arranhados e cansados,
desejando apenas uma chuveirada que nos lavasse aquele cheiro de
derrota, enquanto ouvíamos Puffer explicar a situação a Deus, em uma
peroração de dez minutos, encerrada c
om a promessa de que faríamos a
nossa parte, se Ele fizesse a Sua.
Na semana seguinte, treinamos três horas diárias (em vez dos
costumeiros noventa minutos a duas horas), sob o sol escaldante. À noite,
eu caía na cama e sonhava com seus berros:
"Ataque aqu
ele otário! Ataque!
Ataque!".
Eu partia em desabalada carreira, até começar a sentir que
minhas pernas sofreriam uma decomposição espontânea (provavelmente,
no mesmo instante em que meus pulmões explodiriam em chamas).
Lenny Barongg, um de nossos
tailbacks
,
tivera um ataque brando de
insolação e, misericordiosamente
—
para ele, pelo menos foi dispensado
pelo resto da semana.
Eu só via Arnie quando ele aparecia para jantar comigo, meus pais e
Ellie nas noites de quinta ou sexta
-
feira. Às vezes aparecia para
ver um ou
dois jogos conosco, nas tardes de domingo, mas, além disso, perdi
-
o de
vista por completo
—
ou quase isso. Naquela época, andava ocupado
demais em arrastar minhas dores e sofrimentos até as salas de aula,
treinando e voltando para casa, a fim de
fazer os deveres de casa em meu
quarto.
Voltando às calamidades do futebol, acho que o pior de tudo era a
maneira como os outros olhavam para mim, Lenny e o resto do time pelos
corredores. Hoje em dia, esse "espírito de colégio" se compõe
principalmente de
besteiras inventadas pelos administradores de escolas,
ao recordarem o inferno das disputas de futebol nas tardes de sábado,
quando jovens, mas esquecendo convenientemente que muito disso
resultava de estarem bêbados, no cio ou as duas coisas. Quando há u
m
comício em favor da legalização da maconha, é possível ver
-
se um pouco
desse espírito de colégio. No entanto, em se tratando de futebol, basquete
ou atletismo, a maioria dos alunos não dá nenhuma banana. Estão todos
ocupados demais em conseguir entrar pa
ra a universidade, em chegar ao
ponto final com alguma garota ou procurando confusão. Muito ocupados,
em geral.
Ainda assim, ficamos acostumados à vitória
—
começamos a
acreditar que ela nos pertence por direito. Libertyville estivera formando
equipes venc
edoras por muito tempo; a última vez que o colégio havia
sido derrotado
—
pelo menos, até meu último ano lá
—
fora doze anos
antes, em 1966. Assim, na semana após a derrota para Luneburg, embora
não houvesse choro nem ranger de dentes, havia aqueles olhare
s atônitos
nos corredores e alguns comentários na habitual reunião da tarde de
sexta
-
feira, no final do sétimo tempo. Os comentários deixaram o
treinador quase púrpura e ele convidou aqueles "esportistas
-
de
-
meia
-
tigela e amigos
-
das
-
horas
-
boas" a aproveitar
em a tarde de sábado para
verem a reabilitação do século.
Não sei se os esportistas
-
de
-
meia
-
tigela e os amigos
-
das
-
horas
-
boas
apareceram ou não, mas eu estava lá. Jogávamos em casa e nossos
adversários eram os Ursos de Ridge Rock. Ridge Rock é uma cidade d
e
mineração e, embora os garotos que freqüentam o Ginásio de Ridge Rock
sejam caipiras, não são caipiras frouxos. São caipiras durões, ferozes e
decididos. No ano anterior, o time de futebol de Libertyville os vencera
por pouco, na disputa do título region
al, e um dos comentaristas
esportivos locais comentara que a vitória não acontecera porque o time de
Libertyville era melhor, mas porque sua torcida era mais animada. Posso
afirmar que isso também fez o treinador arrancar os cabelos.
De qualquer modo, aque
le foi o ano dos Ursos. Foram como um rolo
compressor contra nós. Fred Dann saiu do jogo com uma concussão, no
primeiro tempo. No segundo, Norman Aleppo foi levado para o Hospital
Comunitário de Libertyville com um braço quebrado. E, no último
período, os
Ursos marcaram três
touchdowns
consecutivos, dois deles como
punt returns.
O escore final foi de 40
-
6. Deixando de lado a falsa modéstia,
eu lhes confesso que marquei o sexto ponto. Entretanto, não ponho o
realismo ao lado da modéstia: o que tive foi sorte
.
Assim sendo... mais uma semana de infernal treinamento no campo.
Outra semana com o treinador gritando:
"Ataque aquele otário."
Certo dia,
treinamos durante quase quatro horas, e quando Lenny sugeriu ao
treinador que seria ótimo termos algum tempo de sob
ra para os trabalhos
de casa, cheguei a pensar
—
apenas por um instante
—
que Puffer ia
surrá
-
lo com o cinto. Ele passara a ficar jogando seu molho de chaves
constantemente, de uma das mãos para a outra, recordando
-
me o Capitão
Queeg, no filme
Motim.
Supon
ho que a maneira como você perde é um
indicador muito melhor para o caráter do que a forma como vence. Puffer,
que nunca vira um 0
-
2 em sua carreira de treinador, reagia com uma fúria
cega e inútil, como um tigre enjaulado e acuado pelos filhotes cruéis.
N
a tarde da sexta
-
feira seguinte
—
que seria 22 de setembro
—
foi
cancelada a reunião costumeira, durante os últimos quinze minutos do
sétimo tempo. Nenhum jogador se preocupava com aquilo; ficar ali de pé
e ser apresentado por doze gigantes chefes de torci
da, pela décima
milionésima vez, era bem tedioso. Nessa noite, fomos convidados pelo
treinador a voltar ao ginásio e ficamos duas horas vendo os filmes,
testemunhando nossa humilhação infligida pelos Tigres e Ursos, nos jogos
filmados. Talvez aquilo tivess
e a finalidade de levantar nosso moral,
porém eu fiquei apenas deprimido.
Nessa noite, antes de nosso segundo jogo do ano em casa, tive um
sonho singular. Não foi bem um pesadelo, não como aquele em que eu
acordara a casa com meus gritos, claro, mas ainda
assim foi...
desconfortável. Estávamos jogando contra os Dragões da cidade de
Filadélfia, e soprava um vento forte. Os sons dos gritos da torcida, a voz
estridente e distorcida de Chubby McCarhy, brotando do alto
-
falante,
quando anunciava os
downs
e
yards
do jogo, o próprio som dos jogadores
atacando
-
se entre si, tudo tinha um toque fantástico, que ecoava naquele
vento firme e constante.
Nas arquibancadas, os rostos apareciam amarelados e
estranhamente sombreados, como máscaras chinesas. As chefes de torcid
a
dançavam e cabriolavam como autômatos de corda. O céu tinha um
cinzento esquisito, coberto de nuvens. Estávamos apanhando em toda a
linha. O treinador gritava suas ordens, mas ninguém conseguia ouvi
-
lo.
Os Dragões afastavam
-
se de nós rapidamente e a bola
estava sempre com
eles. Lenny Barongg" parecia estar jogando em meio a uma dor terrível:
tinha a boca repuxada para baixo, em trêmula meia circunferência, como
uma máscara de tragédia.
Fui atacado, derrubado e atropelado. Fiquei caído, muito atrás da
linh
a de formação dos jogadores, encolhido, tentando recuperar a
respiração. Olhei para cima e lá, parada no meio da pista de atletismo,
atrás das arquibancadas dos visitantes, estava Christine. Novamente se
mostrava cintilante, como recém
-
saída da fábrica, pa
recendo ter deixado o
salão de exibição apenas uma hora antes.
Arnie estava sentado no teto do carro, as pernas cruzadas como
Buda, fitando
-
me inexpressivamente. Gritou alguma coisa para mim,
porém o ruído do vento quase sobrepujou o que dissera. Tive a im
pressão
de ouvir algo assim:
Não se preocupe, Dennis! Cuidaremos de tudo, portanto,
fique calmo! Está tudo sob controle!
Cuidariam de quê? Foi o que me perguntei, caído no campo de jogo
do sonho (que, por algum motivo, meu eu onírico transformara em pista
de corrida de cavalos), lutando para recuperar o fôlego, a cueca
penetrando cruelmente na junção das coxas, logo abaixo dos testículos.
Cuidariam de quê?
De quê?
Não houve resposta. Apenas o brilho malévolo dos faróis amarelos
de Christine, e Arnie sentado
tranqüilamente, de pernas cruzadas sobre a
capota, naquele vento forte e barulhento.
No dia seguinte, partimos para a luta novamente, em benefício do
bom e velho Ginásio de Libertyville. Não foi tão ruim como em meu
sonho
—
ninguém saiu ferido naquele sá
bado, e por um breve momento
do terceiro
quarter
até pareceu que teríamos uma chance
—
mas então
o
quarterback
da cidade de Filadélfia deu sorte com uns dois passes
longos
—
quando a situação começa a perigar,
tudo
dá errado
—
e
tornamos a perder.
Depois d
o jogo, o treinador Puffer limitou
-
se a ficar sentado no
banco. Não olhou para nenhum de nós. Restavam onze jogos em nosso
calendário, mas ele já era um homem derrotado.
E
NTRA
L
EIGH
,
S
AI
B
UDDY
Não lhe contei vantagem, meu bem,
Então, não me venha humilhar
,
Tenho as rodas mais velozes da cidade,
Quem quiser passar à frente, nem adianta tentar,
Porque também tenho asas, cara,
Minha máquina pode voar,
É o meu cupê endoidado,
Você nem sabe o que tenho...
—
The Beach Boys
Tenho absoluta certeza de que foi na t
er
ça
-
feira seguinte à nossa
derrota diante dos Dragões da cidade de Filadélfia que as coisas
começaram a agitar
-
se outra vez. Devíamos estar a 26 de setembro.
Eu e Arnie assistimos a tr
ês aulas juntos, sendo uma delas Tópicos
da História Americana, um curs
o seriado, no quarto período. Nas
primeiras nove semanas, o professor fora o Sr. Thompson, chefe do
departamento. Então, o tema era Duzentos Anos de Desenvolvimento e
Crise. Arnie dizia que aquela era a aula do tchau
-
tchau, porque ficava
justamente antes d
a hora do almoço e os estômagos da gente pareciam ter
coisas mais interessantes para fazer.
Terminada a aula daquele dia, uma garota aproximou
-
se de Arnie e
perguntou
-
lhe se tinha o trabalho de Ingl
ês para casa. Ele tinha. Folheou
com cuidado seu caderno d
e anotações e, enquanto isso, ela o observava
seriamente com olhos azul
-
escuros, nunca os desviando do rosto dele.
Tinha cabelos louro
-
escuros, cor de mel fresco
—
não do tipo refinado,
mas daquele que sai direto da colméia
—
, mantidos presos para trás por
uma fita azul, combinando com os olhos. Ao vê
-
la, meu estômago deu
uma reviravolta de felicidade. Depois que a garota terminou de copiar o
trabalho, Arnie olhou para ela.
Aquela n
ão era a primeira vez que eu via Leigh Cabot, é claro, ela
havia sido transf
erida de uma cidade em Massachusetts para Libertyville,
três semanas antes, de modo que já ficara conhecida. Alguém me contara
que seu pai trabalhava para a 3M, o pessoal que fabrica a fita adesiva
Scotch.
N
ão era a primeira vez também que eu reparava nela
, porque Leigh
Cabot era
—
usando os termos mais simples
—
uma bela garota. Em uma
obra de ficção, percebi que os escritores sempre inventam um pequeno
defeito aqui ou acolá nas mulheres e jovens que criam, talvez por
pensarem que a beleza real seja um est
ereótipo ou por acharem que um ou
dois senões tornam a dama mais real. Assim, a heroína é bonita, com
exceção do lábio inferior um pouco longo demais, ou apesar de ter o nariz
ligeiramente afilado. Talvez tenha o busto achatado. Sempre há alguma
coisa.
Com
Leigh, no entanto, era beleza pura. Tinha a pele clara e perfeita,
em geral com um toque de cor perfeitamente natural. Mediria um metro e
setenta, mais ou menos, alta para uma garota, mas n
ão em excesso, com
um corpo adorável
—
seios bonitos e firmes, uma
cinturinha que quase se
poderia contornar com as mãos (pelo menos, dava vontade de tentar),
quadris bem feitos, pernas bem torneadas. Uma garota bonita,
sexy,
de
belo corpo
—
artisticamente sem graça, imagino, sem o lábio inferior
demasiado longo, o nariz
afilado, uma reentrância ou saliência erradas em
algum lugar (nem ao menos um gracioso dentinho torto
—
ela devia ter
tido um excelente ortodontista, também), mas o caso é que ela
nada
tinha
de sem graça, quando a gente a contemplava.
Alguns caras j
á tinh
am dado em cima dela, mas haviam sido
delicadamente afastados. Imaginava
-
se que, provavelmente, Leigh Cabot
estava com dor
-
de
-
cotovelo por causa de algum sujeito de Andover,
Braintrese ou seja lá de onde viera, mas que o tempo a faria recuperar
-
se.
Em duas
das aulas a que eu assistira com Arnie, ela também estivera
presente, de maneira que minha idéia era apenas aguardar um pouco,
antes de tentar uma aproximação.
Agora, observando os olhares roubados entre os dois, quando Arnie
procurara o dever e depois, q
uando ela o anotava cuidadosamente,
perguntei
-
me se chegaria a ter chance daquela aproxima
ção. Então, ri para
mim mesmo. Arnie Cunningham, o próprio e velho Cara de Pizza e Leigh
Cabot. Era totalmente ridículo. Era...
O sorriso interior quase secou de repe
nte. Pela terceira vez
—
a
definitiva
—
eu percebia que a pele dele estava se curando sozinha, com
uma rapidez quase impressionante. As equimoses haviam desaparecido.
Algumas ainda tinham deixado mínimas cicatrizes reentrantes ao longo
das faces, é verdade
, mas se um cara tem feições fortes, aquelas pequenas
reentrâncias não parecem significar muito. De uma forma um tanto louca,
até parecem dar mais caráter.
Leigh e Arnie estudaram
-
se disfar
çadamente. Também estudei
Arnie disfarçadamente, perguntan
do
-
me qu
ando e como aquele milagre
acontecera. A luz do sol penetrava com força pelas janelas da sala do Sr.
Thompson, delineando claramente as linhas do rosto de meu amigo. Ele
parecia... mais velho. Como se tivesse vencido as equimoses e a acne, não
somente com
lavagens ou aplicações regulares de qualquer creme especial,
mas conseguindo algum meio de adiantar o relógio por três anos.
Também estava usando o cabelo de modo diferente
—
agora era mais
curto, e as costeletas que cismara de usar, desde que pudera culti
vá
-
las
(uns dezoito meses atrás), tinham desaparecido.
Fiquei pensando naquela tarde encoberta, quando t
ínhamos ido ver
o filme Kung
-
fu de Chuck Norris. Fora a primeira vez em que eu notara
alguma melhora, concluí. Mais ou menos na época em que ele havia
c
omprado o carro. Sim, devia ser isso. Adolescentes do mundo, rejubilem
-
se! Resolvam dolorosos problemas de acne para sempre! Comprem um
carro velho e ele fará com que...
O sorriso interior, que voltara a aflorar, de repente azedou.
Comprem um carro velho e
ele far
á... o quê? Será que ele irá
modificar suas cabeças, suas maneiras de pensar, desta forma alterando o
metabolismo? Liberando o eu real? Tive a sensação de ouvir Stukey James,
nosso antigo professor de Matemática, sussurrando em minha cabeça seu
ins
istentemente repetido refrão:
Se seguirmos esta linha de raciocínio até o
amargo fim, senhoras e senhores, aonde isso nos levará?
Certo
—
aonde?
—
Obrigada, Arnie
—
disse Leigh, em sua voz doce e clara.
J
á havia copiado o dever de casa em seu caderno de ap
ontamentos.
—
Tudo bem
—
disse ele.
Os olhos dos dois se encontraram
—
agora entreolhavam
-
se, em vez
de se observarem furtiva
mente
—
, e até eu pude sentir a fagulha saltar.
—
Vejo você no sexto tempo
—
disse ela.
Depois se afastou, os quadris ondulando su
avemente sob uma saia
verde de tric
ô, os cabelos oscilando contra as costas do suéter.
—
O que tem você a ver com o sexto tempo dela?
—
perguntei.
Eu tinha tempo vago naquele per
íodo. Estudaria os corredores
fiscalizados pela terrível Srta. Raypach, a quem
todos nós chamávamos de
Sita. Rat
-
Pack (Trouxa
-
de
-
Ratos), só que nunca em presença dela, como é
fácil imaginar.
—
Cálculo
—
respondeu ele, naquela voz sonhadora e melosa, tão
diferente da que eu conhecia, que me provocou o riso. Arnie olhou para
mim, de c
enho franzido.
—
De que está rindo, Dennis?
—
Cal
-
Q
-
luuuu
—
respondi.
Revirei os olhos, agitei as m
ãos como asas e ri mais alto. Ele fingiu
que ia me esmurrar.
—
É bom tomar cuidado, Guilder
—
falou.
—
Desgrude, Cara de barata!
—
Eles botam você na univers
idade e vamos ver o que acontece ao
fodido time de futebol!
O Sr. Hodder, que ensina aos calouros os mais primorosos detalhes
gramaticais (e tamb
ém como masturbar
-
se, no dizer de certos
espirituosos), ia passando por nós nesse exato momento.
—
Cuidado com
sua linguagem nos corredores!
—
disse
significativamente para Arnie, franzindo o cenho.
Depois seguiu em frente, com uma pasta em uma das m
ãos e, na
outra, um hambúrguer apanhado na fila do almoço. Arnie ficou vermelho
como uma beterraba; sempre enrubescia
se um professor lhe
dizia alguma
coisa (tratava
-
se de uma rea
ção tão automática que quando estávamos no
primário acabava castigado por coisas que não fizera, apenas porque
parecia
culpado). Suponho que isso tenha algo a ver com a maneira como
foi criado p
or Regina e Michael
—
eu sou legal, você é legal, eu sou uma
pessoa, você é uma pessoa, nós nos respeitamos profundamente, e quando
alguém fizer algo errado sentiremos uma reação alérgica de culpa.
Acredito que isso faça parte da criação liberal de filhos
na América.
—
Cuidado com sua linguagem, Cunningham
—
falei.
—
Tu
tá
envorvido
num monte
de probrema.
Ele começou a rir também. Descemos o
corredor reverberante de ruídos. As pessoas caminhavam
depressa de um lado para outro ou se apoiavam contra seus
arm
á
rios, comendo. Não se devia comer pelos corredores, mas muitos não
ligavam para isso.
—
Trouxe seu almoço?
—
perguntei.
—
Trouxe. Num saco de papel pardo.
—
Vá pegar. Vamos comer lá fora, nas arquibancadas.
—
A esta altura, ainda não se encheu daquele camp
o de futebol?
—
perguntou Arnie.
—
Se ficasse muito mais tempo deitado de barriga, no
sábado passado, acho que um dos zeladores o plantaria.
—
Não ligo. Vamos à forra essa semana. Além do mais, quero sair
daqui.
—
Certo. Encontro você lá fora.
Arnie afasto
u
-
se e rumei para meu arm
ário, a fim de pegar meu
almoço. Havia trazido quatro sanduíches, para começar. Desde que o
treinador iniciara suas sessões
-
maratonas de treinamento, eu vivia
faminto.
Segui ao longo do corredor, pensando em Leigh Cabot e em como
m
uita gente ficaria alvoro
çada se aqueles dois começassem a sair juntos.
Nos colégios, a sociedade é muito conservadora, como todos sabem. Nada
de grandes repressões, mas é assim. As garotas sempre usam as modas
mais loucas, os rapazes às vezes deixam o cab
elo chegar até o traseiro,
todos fumam uma maconhazinha ou cheiram um pouco de coca
—
mas
tudo não passa de uma camada externa de verniz, a defesa usada
enquanto fazemos experiências e procuramos imaginar o que acontecerá,
exatamente, em nossa vida. É como
um espelho
—
usado para refletir de
volta a luz do sol nos olhos de pais e professores, esperando confundi
-
los,
antes que nos tornem ainda mais confusos do que já estamos. No fundo, a
maioria dos estudantes de ginásio é quase tão careta como um bando de
b
anqueiros republicanos em uma reunião social da igreja. Há garotas que
podem ter todo álbum já produzido do conjunto Black Sabbath, mas se
Ozzy Osbourne for à escola que elas freqüentam e convidar uma delas
para sair, essa garota (e todas as suas amigas) s
eria capaz de arrebentar de
rir apenas ante tal idéia.
Agora sem espinhas, Arnie estava legal
—
de fato, parecia mais do
que isso. Contudo, nenhuma garota que freqüentasse a escola quando ele
ainda tinha o rosto em sua pior aparência aceitaria sair com ele
, creio eu.
De fato, não o viam como era agora, mas apenas a lembrança do que
Arnie havia sido. Com Leigh, no entanto, era diferente. Sendo uma aluna
transferida, não fazia idéia de como era horrível a aparência dele, em seus
três primeiros anos no Ginásio
de Libertyville. Bem, poderia ter uma
noção, se folheasse o
Libertonian
do ano anterior e visse a foto de Arnie no
clube de xadrez, mas, curiosamente, aquela mesma tendência republicana
certamente a faria passar por cima do detalhe. O
de agora é eterno
—
interrogue qualquer banqueiro republicano e ele lhe dirá que o mundo
deve ser governado exatamente assim.
Ginasianos e banqueiros republicanos... Em crian
ça, todos aceitamos
como fato consumado que tudo se modifica constantemente. Quando
adulto, o indivídu
o acredita seriamente que tudo irá mudar, pouco
importando o esforço para ser mantido o
status quo
(os próprios
banqueiros republicanos sabem disso
—
podem não gostar, mas sabem).
Apenas quando se é adolescente é que se fala o tempo todo em modificar,
mas
acreditando, no fundo do coração, que isso nunca acontece realmente.
Sa
í com minha gigantesca sacola de lanche na mão e caminhei em
diagonal pelo pátio de estacionamento, rumando para o edifício em que
ficavam as oficinas. É uma estrutura alongada, com lat
erais metálicas
corrugadas e pintadas de azul
—
em formato não muito diferente da
garagem de Will Darnell, porém muito mais limpa. Ali dentro ficam as
oficinas para trabalhos em madeira, as oficinas para mecânica de motores
e o departamento de artes gráfic
as. A área de fumar fica, em princípio, nos
fundos da edificação, mas nos dias de bom tempo, durante a folga para o
almoço, em geral se vê
alunos das oficinas alinhados em ambos os lados
do pr
édio, com suas botas de motoqueiros ou sapatos de biqueira,
reco
stados contra a parede, rumando e conversando com as namoradas.
Ou apalpando
-
as.
Nesse dia, n
ão havia uma alma no lado direito das oficinas, e isso
poderia ter
-
me alertado sobre algo anormal, mas não foi assim. Eu estava
concentrado em meus próprios e dive
rtidos pensamentos sobre Arnie e
Leigh, bem como na psicologia do Estudante Moderno do Ginásio
Americano.
A verdadeira
área de fumar
—
a área "designada" para fumar
—
fica
em um pequeno beco sem saída, atrás da oficina de mecânica de motores.
Além das ofic
inas, a cinqüenta ou sessenta metros de distância, está o
campo de futebol, dominado pelo grande painel elétrico da marcação de
pontos, com DURO NELES, TERRIERS, engalanando sua parte superior.
Havia um grupo de pessoas pouco al
ém da área de fumar, umas
vi
nte ou trinta, amontoadas em estreito círculo. Esse tipo de aglomeração
geralmente significa uma briga ou o que Arnie costuma chamar "puxa
-
empurra"
—
dois sujeitos, que não estão muito a fim de brigar, ficam
empurrando um ao outro, esmurrando
-
se nos ombros
com força, com isso
tentando proteger as respectivas reputações de machos.
Olhei para l
á, mas sem grande interesse. Não queria assistir a uma
briga, mas sim comer meu almoço e descobrir o que estava acontecendo
entre Arnie e Leigh Cabot. Se existisse algo
entre os dois, por menor que
fosse, isso talvez o livrasse daquela obsessão por Christine. Uma coisa era
certa: Leigh Cabot não tinha qualquer ferrugem na lataria.
Ent
ão, uma garota gritou e alguém mais bradou:
—
Ei, assim, não! Largue isso, cara!
Aquilo
n
ão soava muito normal. Mudei de rumo, para ver o que
havia. Abri caminho por entre o grupo apertado e vi Arnie no círculo, de
pé, com as mãos ligeiramente estiradas para diante, ao nível do peito.
Parecia assustado e pálido, mas não em pânico. Um pouco à
sua esquerda,
estava o seu saco de almoço, completamente achatado contra o solo. No
meio do saco, havia a impressão de uma sola de tênis. Em direção oposta a
Arnie, de
jeans
e camiseta justa sobre cada músculo e saliência do tórax,
estava Buddy Repperton.
Tinha um canivete de mola na mão direita e o
movia lentamente de trás para diante, à frente do rosto, como um mágico
fazendo passes místicos.
Buddy era alto e de ombros largos. Tinha cabelos longos e negros.
Usava
-
os amarrados atr
ás da cabeça, em rabo
-
de
-
c
avalo, com uma tira de
couro cru. As feições do rosto eram rudes e idiotas, com expressão
malévola. Sorria de leve. O que senti foi uma mistura covarde de puro
medo e angústia. Ele não parecia apenas idiota e malévolo, parecia louco.
—
Eu disse que ia pega
r você, cara
—
falou maciamente para Arnie.
Inclinou o canivete e o esgrimiu de leve no ar, na dire
ção de Arnie,
fazendo
-
o encolher
-
se um pouco. A lâmina retrátil tinha cabo de marfim,
com um pequeno botão cromado que o fazia saltar para fora ou recolher
-
s
e no punho. A lâmina parecia ter uns vinte centímetros de
comprimento
—
não era um canivete, em absoluto, mas uma maldita
baioneta.
—
Vamos, Buddy, marque ele!
—
gritou Dan Vandenberg
alegremente.
Senti a boca seca. Olhei para o garoto perto de mim, algum
calouro
careta, que eu n
ão conhecia. Ele parecia completamente hipnotizado, de
olhos arregalados.
—
Ei
—
falei. Como não olhasse para mim, cutuquei
-
o nas costelas
com o cotovelo.
—
Ei!
Ele saltou e olhou para mim aterrorizado.
—
Vá chamar o Sr. Casey. Está
almoçando na oficina de trabalhos
em madeira. Vá chamá
-
lo, agora mesmo!
Repperton olhou para mim, depois para Arnie.
—
Vamos, Cunningham
—
desafiou.
—
O que me diz, não está
querendo briga?
—
Largue o canivete primeiro, seu bosta
—
disse Arnie.
A voz era
perfeitamente calma. Bosta. Onde
é que eu ouvira aquilo
antes? Não fora dito por George LeBay? Sim, isso. Também ouvira a
palavra na boca de seu irmão.
Aparentemente, Repperton n
ão ligou muito. Enrubesceu e
aproximou
-
se mais de Arnie. Arnie girou, afastand
o
-
se. Pensei que
alguma coisa estava para acontecer ali, bem depressa
—
talvez daquelas
que exigem suturas e deixam cicatriz.
—
Vá chamar Casey,
já
!
—
falei para o calouro de jeito careta.
Ele se foi, mas pensei que, sem d
úvida, tudo já teria acontecido an
tes
do Sr. Casey chegar... a menos que eu pudesse retardar um pouco as
coisas.
—
Largue esse canivete, Repperton
—
falei. Seus olhos se voltaram
novamente para mim.
—
Você não sabe de nada
—
replicou.
—
O amigo de Cara de Cona.
Por que não vem tirar ele de
mim?
—
Você tem um canivete, mas ele não
—
falei.
—
Pelo meu manual,
isso faz de você uma fodida galinha covarde.
O vermelho de seu rosto aumentou. Agora, sua concentração se
rompera. Ele olhou para Arnie, depois para mim. Meu amigo dirigiu
-
me
um olhar de
pura gratidão
—
e moveu
-
se um pouco mais para perto de
Repperton. Não gostei daquilo.
—
Largue o canivete!
—
gritou alguém para Repperton.
Logo depois, alguém mais gritou também:
"Largue o
canivete!".
Então, todos começaram a cantar:
"Largue o
canivete,
l
argue o
canivete,
largue o
canivete!".
Repperton pareceu não gostar. Não se importava de ser o alvo das
atenções, mas aquele era o tipo errado de atenção. Seu olhar começou a
saltar nervosamente, primeiro para Arnie, depois para mim, em seguida
para os out
ros. Uma mecha de cabelo lhe caiu na testa e ele a jogou para
trás.
Quando tornou a olhar para mim, esbocei um movimento como se
fosse avançar para ele. O canivete girou agora em minha direção e Arnie
se moveu
—
moveu
-
se mais depressa do que eu poderia acr
editar. Foi
uma cutelada com a mão direita, em um golpe de caratê meio fajuto, mas
eficiente. Atingiu com força o pulso de Repperton e arrancou
-
lhe o
canivete da mão, fazendo
-
o cair com um som metálico no chão sujo.
Repperton abaixou
-
se, tentando recuperá
-
lo. Arnie cronometrou o
movimento com mortal precisão e, quando a mão de Repperton chegou ao
asfalto, pisou em cima dela. Com toda a força. Repperton gritou.
Don Vandenberg entrou rapidamente em cena. Com um tranco
brutal, atirou Arnie ao chão. Mal pensand
o no que fazia, entrei no círculo
e chutei o traseiro de Vandenberg com toda a força que tinha
—
levantei o
pé, em vez de arrastá
-
lo; chutei
-
o como chutaria uma bola.
Vandenberg, um cara alto e magro, que naquela época teria uns
dezenove ou vinte anos, com
eçou a gritar e saltitar, segurando os
fundilhos. Esqueceu toda sua idéia de socorrer Buddy, deixou de ser um
fator determinante na situação. Acho espantoso eu não ter aleijado
Vanderberg com aquele chute. Jamais chutei alguém ou alguma coisa com
tanta for
ça, e meus amigos, fiquem certos de que me senti ótimo.
De repente, um braço passou em torno de meu pescoço e havia uma
mão entre minhas pernas. Percebi o que ia acontecer, apenas um segundo
tarde demais para poder evitá
-
lo de todo. Meus colhões foram aper
tados
com firmeza e a dor espraiou
-
se, em um berro de pura agonia, subindo
das virilhas para o estômago, depois descendo até as pernas, tornando
-
as
tão frouxas e vacilantes, que quando o braço largou meu pescoço eu
simplesmente arriei como um trapo no piso
cimentado da área de fumar.
—
Gostou disso, cara de pica?
—
perguntou
-
me um sujeito
atarracado e de dentes estragados. Ele usava um daqueles pequenos e
delicados óculos com aros de arame, óculos que pareciam
absurdos em seu rosto grande e pesadão. Era "Pe
netra" Welch, outro
amigo de Buddy
De súbito o círculo de espectadores começou a diluir
-
se e ouvi uma
voz de homem gritando:
—
Afastem
-
se! Afastem
-
se,
imediatamente!
Vamos, rapazes, andando!
Andando, droga, estou mandando!
Era o Sr. Casey. Finalmente, Sr.
Casey.
Buddy Repperton recolheu seu canivete de mola do chão. Fez a
lâmina retrair
-
se e, com um gesto rápido, guardou
-
o no bolso traseiro da
calça. Tinha a mão arranhada e sangrando, com todos os sinais de que ia
inchar. Filho da puta miserável, pensei. De
sejei que aquela mão inchasse
como uma das luvas usadas pelo Pato Donald nas histórias em
quadrinhos.
"Penetra" Welch afastou
-
se de mim, olhou na direção em que soava
a voz do Sr. Casey e tocou delicadamente o canto da boca com o polegar.
—
Fica pra mais t
arde, cara de pica
—
disse.
Don Vandenberg agora dançava mais devagar, mas ainda esfregava
a parte afetada. Lágrimas de dor escorriam
-
lhe pelo rosto. Então, Arnie
estava ao meu lado, passando um braço ao redor de meu corpo, ajudando
-
me a levantar. Sua cami
sa estava um bocado suja, devido à queda, quando
Vandenberg o derrubara. Vi tocos de cigarros amassados contra os joelhos
de sua calça
jeans.
—
Você está bem, Dennis? O que foi que ele fez corn você?
—
Deu um apertãozinho em meu saco. Já estou melhor.
Pelo
menos, assim esperava. Se você é homem e já lhe deram um
bom apertão nos colhões alguma vez (e que homem não passou por isso?),
sabe o que estou dizendo. Se for mulher, não sabe
—
não pode saber. A
agonia inicial é apenas o começo; ela desaparece, substit
uída por uma
dorida e latejante sensação de pressão, que se enovela na boca do
estômago. Uma sensação que diz:
Ei, você! É bom estar aqui, rondando a boca
de seu estômago e fazendo com que você tenha vontade de vomitar o almoço e
borrar as calças ao mesmo
tempo! Acho que vou ficar por aqui algum tempo, certo?
Que tal uma meia hora ou coisa assim? Grande!
Levar um apertão nos colhões
não é um dos mais excitantes momentos da vida.
O Sr. Casey abriu caminho entre os espectadores que se
dispersavam e percebeu a
situação. Não era um sujeito grande, como o
treinador Puffer, nem mesmo parecia forte. Era de altura e idade
medianas, e começava a ficar careca. Os óculos enormes, de armação de
chifre, davam um ar conservador em seu rosto. Gostava de camisas
brancas e s
imples
—
sem gravata
—
e usava uma delas agora. Não era um
sujeito grande, mas impunha respeito. Ninguém o fazia de trouxa, porque
ele não tinha medo dos rapazes, aquele medo profundo que tantos
professores sentem. E os rapazes sabiam disso. Buddy e Don sa
biam.
"Penetra" também. Isso se refletia na maneira como baixaram os olhos e
moveram os pés inquietamente.
—
Dêem o fora
—
ordenou rispidamente o Sr. Casey, aos poucos
espectadores restantes. Eles começaram a afastar
-
se. "Penetra" Welch
decidiu dar o golpe
e acompanhá
-
los.
—
Você não, Peter
—
disse o Sr.
Casey.
—
Ora, Sr. Casey, eu não fiz nada
—
disse "Penetra".
—
Nem eu
—
emendou Don.
—
Por que está sempre acusando a
gente? O Sr. Casey aproximou
-
se de onde eu estava, ainda amparado por
Arnie.
—
Tudo bem c
om você, Dennis?
Finalmente eu estava conseguindo superar a crise
—
o que não
aconteceria, se uma de minhas coxas não tivessem bloqueado
parcialmente a mão de "Penetra". Assenti.
O Sr. Casey caminhou para onde Buddy Repperton, "Penetra" Welch
e Don Vandenb
erg se enfileiravam, zangados e remexendo os pés. Don
não estivera brincando, falara por todos eles. De fato, sentiam
-
se acusados.
—
Muito interessante, não?
—
disse finalmente o Sr. Casey.
—
Três
contra dois. É assim que costuma agir, Buddy? A desvantagem
não parece
importar
-
lhe muito.
Buddy ergueu o rosto, atirou a Casey um olhar maligno e enfurecido,
depois tornou a baixá
-
lo.
—
Foram eles que começaram. Esses dois.
—
Não é verdade...
—
começou Arnie.
—
Cale a boca, cara de cona
—
disse Buddy.
Ia acrescen
tar algo, mas antes que pudesse o Sr. Casey o agarrou e
atirou contra a parede dos fundos da oficina. Ali havia um pequeno aviso:
FUMAR SOMENTE AQUI. O Sr. Casey começou a bater Buddy
Repperton contra aquele aviso e, a cada vez que o sacudia, o aviso
balan
çava, como uma dramática marcação. Sacudia Repperton da maneira
como eu ou vocês sacudiríamos uma grande boneca de trapo. Acho que
tinha uma musculatura escondida em algum lugar.
—
Quer fechar sua bocarra?
—
disse ele, tornando a bater Buddy
contra o aviso
.
—
Vai
calar
esse boca ou vou ter de
limpá
-
la!
Porque não
vou ouvir coisas assim, ditas por
você,
Buddy!
Por fim, ele largou a camisa de Repperton, agora fora da calça,
mostrando seu estômago branco e sem cor. O Sr. Casey olhou para Arnie.
—
O que estava
dizendo?
—
perguntou.
—
Passei pela área de fumar a caminho das arquibancadas, onde ia
comer meu almoço
—
disse Arnie.
—
Repperton estava aqui, fumando
com seus amigos. Chegou para mim, arrancou o saco do almoço da minha
mão e o pisoteou. Esmagou
-
o.
—
Ele
pareceu prestes a dizer algo mais,
vacilou e desistiu.
—
Foi isso que começou a briga.
Entretanto, eu não ia deixar aquilo assim. Não sou dedo
-
duro nem
falador em circunstâncias normais. Repperton, contudo, aparentemente
decidira ser necessário mais do que
uma boa surra para vingar
-
se por ter
sido expulso da Darnell's. Poderia ter feito um buraco nos intestinos de
Arnie, talvez até o matasse.
—
Sr. Casey
—
falei.
Ele olhou para mim. Mais atrás, os olhos verdes de Buddy brilharam
malevolamente em minha direç
ão
—
era um aviso.
Fique de boca fechada,
isto é entre nós.
Até um ano antes, uma distorcida noção de orgulho
poderia forçar
-
me a fazer seu jogo e não ir em frente. Agora era diferente.
—
O que é, Dennis?
—
Ele está atrás de Arnie desde o verão. Tem um can
ivete e parecia
decidido a usá
-
lo.
Arnie olhava para mim, os olhos cinzentos opacos e herméticos.
Recordei quando ele chamara Repperton de bosta
—
a palavra de
LeBay
—
e senti um arrepio nas costas.
—
Seu fodido mentiroso!
—
gritou Repperton, dramaticament
e.
—
Não tenho canivete nenhum! Casey olhou para ele em silêncio.
Vandenberg e Welch agora pareciam muito pouco à vontade
—
assustados. Sua possível punição por aquele pequeno tumulto
progredira para além dos castigos
—
a que estavam acostumados
—
e da
sus
pensão
—
que já haviam experimentado
—
beirando os limites
extremos da expulsão.
Bastava eu dizer mais uma palavra. Pensei a respeito. Quase não
falei. No entanto, Arnie estava envolvido e ele era meu amigo. Além do
mais, eu não apenas
achava que
ele podia
usar aquele canivete
—
eu
sabia.
Falei.
—
É um canivete de mola.
Agora os olhos de Repperton não apenas brilharam, eles fulguraram,
prometendo o inferno, a danação e um longo período de inatividade,
fazendo tração para endireitar o corpo machucado.
—
É me
ntira dele, Sr. Casey
—
disse em voz rouca.
—
Ele está
mentindo, juro por Deus. O Sr. Casey nada disse. Virou
-
se lentamente
para Arnie.
—
Cunningham
—
perguntou
—
, Repperton puxou um canivete
para você?
A princípio, parecia que ele não ia responder. Depois
, em uma voz
tão baixa que mais parecia um suspiro, soltou:
—
Puxou.
O olhar cáustico de Repperton agora foi para nós dois.
Casey se virou para "Penetra" Welch e Don Vandenberg. Percebi
imediatamente uma mudança em seu método de resolver a situação.
Começa
ra a mover
-
se lenta e cautelosamente, como se testasse as próprias
pisadas com cuidado, antes de dar mais um passo. O Sr. Casey já havia
sentido as conseqüências.
—
Havia um canivete na briga?
—
perguntou a eles.
"Penetra" e Vandenberg olharam para os pés
e não responderam.
Seu gesto já era uma resposta suficiente.
—
Vire seus bolsos pelo avesso, Buddy
—
disse o Sr. Casey.
—
Uma merda que eu vou fazer isso!
—
exclamou Buddy, em voz
esganiçada.
—
Não pode me obrigar!
—
Se está querendo dizer que não tenho au
toridade, enganou
-
se
—
disse o Sr. Casey.
—
Se está querendo dizer que não posso virar seus
bolsos pelo avesso eu mesmo, se quiser, também enganou
-
se. Mas...
—
Muito bem, tente, tente!
—
gritou Buddy para ele.
—
Jogo você
através dessa parede, seu carequin
ha fodido!
Meu estômago contorcia
-
se, impotente. Eu odiava coisas como
aquela, horríveis cenas de confrontação
—
e nunca fizera parte de
nenhuma pior.
O Sr. Casey, no entanto, tinha a situação sob controle e não se
desviava de seu curso.
—
Mas, não farei i
sso
—
concluiu ele.
—
Você mesmo é que vai virar
seus bolsos pelo avesso.
—
Uma merda, se vou obedecer!
—
disse Buddy.
Estava de pé contra a parede dos fundos da oficina, de modo que o
volume no bolso da calça não aparecia. As fraldas da camisa pendiam em
duas abas amarrotadas sobre a frente do
jeans.
Seus olhos se moviam para
todos os lados, como os de um animal acuado.
O Sr. Casey se virou para "Penetra" e Don Vandenberg.
—
Vocês dois vão para o gabinete e fiquem lá até eu chegar
—
disse.
—
Não se atrevam
a ir para outro lugar, já estão com problemas de
sobra, para acrescentar mais um.
Os dois começaram a afastar
-
se lentamente, muito juntos, como por
medida de proteção. "Penetra" arriscou um olhar para trás. No prédio
principal soou o aviso de chamada para
as aulas. Todos começaram a
caminhar para lá, alguns deles envolvendo
-
nos em olhares curiosos.
Tínhamos perdido a hora do almoço, mas pouco importava. Eu não sentia
mais fome.
O Sr. Casey tornou a concentrar sua atenção em Buddy.
—
Você está dentro do col
égio agora
—
ele disse
—
e deve agradecer
a Deus por isso, porque se você está realmente com um canivete e se você
o sacou, isso é agressão à mão armada. Mandam você para a prisão por
causa disso.
—
Prove, prove que estou com um canivete
—
Buddy gritou.
Su
as bochechas chamejavam, a respiração saía em pequenos e
rápidos arquejos nervosos.
—
Se não virar seus bolsos para fora imediatamente, preencherei
uma ficha de dispensa para você. Depois vou chamar os tiras e, no minuto
em que puser os pés fora do portão
principal, eles o agarrarão. Percebe em
que enrascada se meteu?
—
Olhou severamente para Buddy.
—
Procuramos manter o nome desta casa
—
continuou
—
, mas se me forçar a
preencher uma dispensa, seu traseiro pertencerá a eles, Buddy. Se não
tiver um canivete
em seu poder, é claro que tudo estará certo com você,
mas se tiver e eles o encontrarem...
Houve um momento de silêncio. Nós quatro estávamos imóveis.
Achei que e
\
e não cederia, preferindo aceitar a dispensa e tentar enterrar
o canivete, rapidamente, em al
gum lugar. Então, deve ter percebido que
os tiras o procurariam e terminariam encontrando, porque o puxou do
bolso traseiro e o jogou no piso cimentado. O canivete bateu sobre o botão
de pressão. A lâmina soltou e cintilou malignamente ao sol da tarde: vin
te
centímetros de aço cromado!
Arnie olhou para ela e passou o dorso da mão sobre a boca.
—
Vá para o gabinete, Buddy
—
disse tranqüilamente o Sr. Casey
—
,
e espere até eu chegar lá.
—
O gabinete que se foda!
—
gritou Buddy. Sua voz era aguda e
histérica d
e raiva. O cabelo tornara a cair sobre a testa e ele o jogou para
trás.
—
O que vou fazer é dar o fora desse maldito chiqueiro!
—
Perfeitamente, tudo bem
—
disse o Sr. Casey.
A inflexão e excitamento de sua voz seriam os mesmos, se Buddy
lhe tivesse oferec
ido uma xícara de café. Compreendi, então, que Buddy
estava liquidado no Ginásio de Libertyville. Nada de suspensão ou três
dias de férias: seus pais receberiam pelo correio o rijo formulário azul de
expulsão, explicando por que ele fora expulso e informan
do sobre seus
direitos e opções legais quanto ao assunto.
Buddy olhou para mim e Arnie. Então sorriu.
—
Vocês me pagam
—
disse.
—
Ainda vamos ajustar contas. Vão
desejar nunca terem nascido, seus merdas.
Chutou o canivete e ele deslizou, girando e cintilan
do. Ele parou a
alguma distância e Buddy afastou
-
se, as travas nos tacões de suas botas de
motoqueiro dando estalidos e rangendo. O Sr. Casey se voltou para nós.
Tinha a expressão triste e fatigada.
—
Sinto muito
—
disse.
—
Está tudo bem
—
replicou Arnie.
—
Vocês querem cartões de dispensa? Posso preenchê
-
los para os
dois, se acharem melhor ficar em casa o resto do dia.
Olhei para Arnie, que sacudia a camisa para limpá
-
la. Ele abanou a
cabeça.
—
Não é preciso, está tudo bem
—
falei.
—
Certo. Preencherei ent
ão os cartões de atraso.
Fomos à sala do Sr. Casey e ele preencheu cartões de atrasados para
nossa aula seguinte, uma das que, por acaso, teríamos juntos
—
Física
Avançada. Quando entramos no laboratório de Física, um bocado de
gente olhou curiosamente par
a nós e ouvimos alguns cochichos.
A ficha de ausência da tarde circulou no final do sexto período.
Observei
-
a e vi os nomes de Repperton, Vandenberg e Welch, cada um
deles com um (S) após o nome. Pensei que eu e Arnie seríamos chamados
ao gabinete no fim d
as aulas, para contarmos o sucedido à Sra. Lothrop, a
chefe de disciplina. Não fomos.
Procurei Arnie depois das aulas, pensando que iríamos juntos para
casa em meu carro, a fim de comentarmos o caso, mas também me
enganei quanto a isso. Ele já se mandara p
ara a Garagem de Darnell, a fim
de trabalhar em Christine.
C
HRISTINE
O
UTRA
V
EZ NA
R
UA
Tenho um Ford Mustang 66, vermelho
-
cereja,
Com uma potência de 380 cavalos,
Compreenda, ele é potente demais
Para rastejar em rotas interestaduais.
—
Chuck Berry
De fat
o, só tive uma chance de falar com Arnie, depois da partida de
futebol do sábado seguinte. Também foi aquela a primeira vez que
Christine saiu para a rua, desde o dia em que ele a comprara.
O time foi para Hidden Hills, a uns vinte e cinco quilômetros de
d
istância, na viagem mais silenciosa que já vi, em nosso ônibus de
atividades escolares. Era como se rumássemos para a guilhotina e não
para uma partida de futebol. O próprio fato de a contagem deles (1
-
2) ser
ligeiramente melhor do que a nossa, era um fato
r que não levantava muito
o moral. Puffer, o treinador, ocupava o banco atrás do motorista, pálido e
silencioso, como se estivesse de ressaca.
Em geral, a viagem para uma partida em outro local era uma
combinação de caravana e circo. Um segundo ônibus, lot
ado com as
chefes de torcidas, a banda e todos os estudantes do Ginásio de
Libertyville que se alistassem como "torcedores" ("torcedores", meu Deus
do céu! quem acreditaria nisso, se não houvéssemos todos cursado o
ginásio?) rodava atrás do ônibus do time.
Após os dois ônibus, havia uma
fila de quinze ou vinte carros, em sua maioria repletos de adolescentes,
quase todos os veículos com DURO NELES, TERRIERS colado nos pára
-
choques, buzinando, de faróis acesos e todos aqueles detalhes que, sem
dúvida, vocês a
inda recordam de seus tempos escolares.
Naquela viagem, contudo, havia apenas o ônibus das chefes
-
de
-
torcida/banda (assim mesmo, nem inteiramente lotado quando, em um
ano vencedor, se você não se alistasse até terça
-
feira, não tinha chance de
ir) e três ou
quatro carros atrás dele. Os amigos dos bons tempos tinham
se mandado. Eu ia sentado no ônibus do time, perto de Lenny Barongg,
perguntando
-
me sombriamente se não me arrancariam a cueca naquela
tarde, e ignorando por completo que um dos poucos carros atrá
s de nós
era Christine.
Só a vi quando descemos do ônibus, no pátio de estacionamento do
Ginásio de Hidden Hills. A banda deles já estava no campo e ouvíamos
claramente a batida do bombo, amplificada de modo estranho, sob o céu
anuviado e sombrio. Aquele s
eria o primeiro sábado realmente bom para
futebol
—
frio, de céu fechado e outonal.
Já foi surpresa suficiente ver Christine estacionada ao lado do
ônibus da banda, mas quando Arnie saiu por um lado e Leigh Cabot pelo
outro, fiquei pasmo
—
e também um pouq
uinho enciumado. Ela usava
calças compridas justas de lã marrom e um pulôver branco de malha, os
cabelos alourados derramando
-
se maravilhosamente sobre os ombros.
—
Arnie!
—
chamei.
—
Ei, cara!
—
Oi, Dennis
—
respondeu ele, um pouco acanhado.
Eu percebia q
ue alguns jogadores saindo do ônibus também
estavam surpresos: ali estava Cunningham Cara de Pizza, com a
fascinante transferida de Massachusetts. Como, em nome de Deus,
aquilo
acontecera?
—
Como vai?
—
Bem
—
disse ele.
—
Conhece Leigh Cabot?
—
Sim, da sal
a de aulas
—
falei.
—
Oi, Leigh.
—
Oi, Dennis. Como é, vão vencer hoje? Baixei a voz para um
sussurro.
—
Vai ser um jogo combinado. Pode apostar o traseiro.
Arnie enrubesceu um pouco ao ouvir
-
me, mas Leigh levou a mão à
boca e deu uma risadinha.
—
Vamos fa
zer o possível, mas não sei dizer
—
continuei.
—
Torceremos por sua vitória
—
disse Arnie.
—
Até posso ver nos
jornais de amanhã: Transportado pelo Ar, Guilder Quebra o Recorde
de
Touchdown
da Associação.
—
Guilder Levado para o Hospital com Fratura de Crâ
nio, seria o
mais provável
—
repliquei.
—
Quantos rapazes vieram? Dez? Quinze?
—
Vai sobrar mais lugar nas arquibancadas para os que vieram
—
disse Leigh.
Ela tomou o braço de Arnie
—
acho que o surpreendendo e
agradando. Eu já gostava dela. Ela podia ser
uma garota sexualmente
provocante ou repugnante
—
em minha opinião, um bando de garotas
realmente bonitas é uma ou outra coisa
—
, mas ela não era nada disso.
—
Como vai o rodante?
—
perguntei, aproximando
-
me do carro.
—
Nada mau.
Arnie me seguiu, tentando
não rir de forma tão escandalosa. O
trabalho progredira e já havia muita coisa feita no Fury, de maneira que
não parecia mais tão absurdo e irremediável. A outra metade da grade
antiga e enferrujada do radiador fora substituída e desaparecera por
completo
o ninho de rachaduras no pára
-
brisa.
—
Você trocou o pára
-
brisa
—
comentei. Arnie assentiu.
—
E o capô.
O capô estava límpido, novo em folha, formando um chocante
contraste com as laterais pontilhadas de ferrugem. Era um vermelho vivo
de carro de bombeiros
. Aparência brilhante. Arnie o tocou
possessivamente e o toque se transformou em carícia.
—
Hum
-
hum. Eu mesmo o coloquei.
Algo daquilo penetrou em mim. Ele havia feito
tudo
sozinho, não?
—
Você disse que ia transformá
-
lo em peça de exposição
—
falei.
—
Ach
o que estou começando a acreditar.
Dei a volta, até o lado do motorista. A forração lateral das portas e
do piso continuava suja e surrada, mas agora o estofamento do banco
dianteiro fora substituído, bem como o do traseiro.
—
Vai ficar muito bonito
—
diss
e Leigh, mas havia uma nota falsa
em sua voz.
Seu tom não soara naturalmente brilhante e efervescente, como
quando estávamos falando sobre o jogo
—
e isso me fez observá
-
la. Um
olhar apenas foi suficiente. Ela não gostava de Christine. Adivinhei de
maneira
tão completa e absoluta, como se houvesse captado uma das
ondas cerebrais de Leigh no ar. Senti que faria o possível para gostar do
carro, porque gostava de Arnie. No entanto... ela não iria gostar
realmente
de Christine.
—
Quer dizer que já legalizou o c
arro para rodar na rua
—
falei.
—
Bem...
—
Arnie pareceu pouco à vontade.
—
Não consegui ainda.
A legalização completa.
—
O que quer dizer?
—
A buzina não funciona e, às vezes, as lanternas traseiras apagam,
quando piso no freio. Deve existir um curto em a
lgum lugar, mas até
agora ainda não descobri onde.
Olhei para o pára
-
brisa novo. Havia um adesivo recente de inspeção
sobre ele. Arnie seguiu meu olhar e conseguiu ficar constrangido e algo
agressivo ao mesmo tempo.
—
Will me arranjou o adesivo
—
explicou.
—
Ele sabe que o carro
está noventa por cento legal.
Além disso, pensei, você conseguiu sair com sua
garota, certo?
—
Não é perigoso, é?
—
perguntou Leigh.
A pergunta foi dirigida a nós dois. Ela franzira o cenho
ligeiramente
—
creio que captara a súbita
corrente fria entre Arnie e eu.
—
Não
—
respondi.
—
Creio que não. Quando estiver com Arnie e
ele na direção, estará em companhia do próprio anjo da guarda.
Meu comentário rompeu a estranha tensão que se formara. Do
campo chegou até nós um esganiçado disso
nante de metais, seguido pela
voz do instrutor da banda, perfeitamente nítida sob o céu carregado:
—
De novo, por favor! Isto é Rodgers e Hammerstein, não rock and ro
-
ool!
De novo, por favor!
Nós três nos entreolhamos. Eu e Arnie começamos a rir
e, após um
momento, Leigh riu também.
Ao fitá
-
la, tornei a sentir aquele ciúme momentâneo. Eu nada mais
queria senão o melhor para meu amigo Arnie, porém ela era realmente
alguma coisa
—
dezessete anos, caminhando para os dezoito, fascinante,
perfeita, saudável, viv
a para tudo em seu mundo. Roseanne era bonita à
sua maneira, porém Leigh a fazia parecer um bicho
-
preguiça tirando um
cochilo.
Foi então que comecei a querê
-
la? Que comecei a querer a garota de
meu melhor amigo? Sim, suponho que tenha sido. No entanto, eu
lhe juro,
nunca a teria assediado, se as coisas tivessem acontecido de modo
diferente. Apenas, eu não imaginava que pudessem ser diferentes. Talvez
fosse tão
-
somente uma questão de sentimentos.
—
É melhor irmos andando, Arnie, ou não encontraremos um bom
l
ugar nas arquibancadas dos visitantes
—
disse Leigh, com uma entonação
de grande dama.
Ele sorriu. Ela ainda lhe segurava o braço de leve, deixando
-
o
bastante desajeitado com aquilo. Por que não? Se fosse comigo, se tivesse
minha primeira experiência com u
ma garota daquelas, alguém tão bonita
como Leigh, já estaria três quartos apaixonado por ela. Desejei a ele o
melhor com ela. Gostaria que vocês acreditassem nisso, mesmo que não
acreditem em mais nada do que vou contar, daqui por diante. Se alguém
merecia
um pouco de felicidade, era Arnie.
O resto do time tinha ido para os vestiários dos visitantes, nos
fundos da ala do ginásio da escola, e agora Puffer mostrava a cabeça.
—
Será que pode nos favorecer com a sua presença, Sr. Guilder?
—
gritou ele.
—
Sei qu
e é pedir muito, mas espero que me perdoe, se tiver
algo mais importante a fazer. Se não tiver, poderia trazer seu rabo até este
vestiário?
Murmurei para Arnie e Leigh:
—
Isto é Rodgers e Hammerstein, não
rock and ro
-
ool
—
e corri na
direção do prédio. Cami
nhei para os vestiários
—
Puffer voltara para
dentro
—
e Arnie e Leigh afastaram
-
se para
as arquibancadas. A meio caminho para as portas, parei e voltei até
Christine. Aproximei
-
me dela em um círculo, ainda persistia aquele
absurdo preconceito contra camin
har à frente do carro.
Na traseira, vi uma placa de concessionário da Pensilvânia, mantida
no lugar por uma mola. Virei
-
a do outro lado e vi uma fita adesiva fosca,
com os dizeres: ESTA PLACA É DE PROPRIEDADE DA GARAGEM
DARNELL, LIBERTYVILLE, PA.
Deixei a
placa cair de volta e levantei
-
me, de cenho franzido. Então,
Darnell dera a Arnie um adesivo de inspeção, quando o carro ainda estava
longe de ter condições para trafegar; ele lhe emprestara uma placa de
concessionário, a fim de poder usar o carro e trazer
Leigh ao jogo. Além
do mais, deixara de ser "Darnell" para Arnie, que pouco antes o chamara
de "Will". Interessante, mas não muito confortador.
Perguntei
-
me se Arnie era idiota o bastante para pensar que os Will
Darnell do mundo algum dia prestavam favore
s por pura bondade.
Esperei que não fosse, mas não tinha certeza. Eu não tinha mais muita
certeza sobre Arnie. Ele mudara demais nas últimas semanas.
Nós pintamos o diabo no campo e conseguimos ganhar o jogo
—
como se viu mais tarde, foi um dos únicos dois
que ganhamos em toda a
temporada... embora eu não estivesse mais no time, quando ela terminou.
Não tínhamos direito algum de vencer: fomos para o campo já nos
sentindo derrotados e perdemos o lançamento. Os Hilmen Montanheses
(nome tolo para uma equipe, m
as o que há de tão inteligente em ser
conhecido como os
Terriers
—
cães de toca
—
se descemos a isto?)
avançaram quarenta metros em duas primeiras jogadas, penetrando em
nossa linha de defesa como queijo em goela de pato. Então, em sua
terceira jogada segu
ida, o zagueiro deles deixou a bola escapar. Gary
Tardiff a agarrou e rastejou sessenta metros para o escore, com um
enorme sorriso aberto no rosto.
Os Hilmen e seu treinador perderam a pose, protestando que a bola
estava impedida na linha do centro, mas o
s árbitros discordaram e
ganhamos por 6
-
0. De meu lugar no banco, eu podia olhar até as
arquibancadas dos visitantes e via que os poucos torcedores do
Libertyville estavam ficando alucinados. Acho que tinham todo o direito,
afinal era a primeira vez que le
vávamos a melhor em uma partida, em
toda a temporada. Arnie e Leigh sacudiam bandeirolas dos Terriers.
Acenei para eles. Leigh me viu, acenou de volta e depois cutucou Arnie.
Ele acenou também. Pareciam estar ficando muito íntimos, lá em cima, o
que me fez
sorrir.
Quanto ao jogo, não perdemos o entusiasmo, após aquela contagem
obtida na pura sorte. Havíamos conseguido para nós essa coisa mística, o
ímpeto
—
talvez pela última vez do ano. Não quebrei o recorde de
touchdown
da Associação, conforme Arnie previ
ra, mas fiz pontos três
vezes, uma delas em uma corrida de noventa metros, a mais longa que já
fizera. Chegado o meio tempo, a contagem era de 17
-
0 e o treinador se
tornara um novo homem. Ele entrevia uma grande reviravolta à nossa
frente, a maior arrancad
a na história da Associação. Claro está que era um
sonho louco, como se viu depois, porém ele tinha motivos para ficar
eufórico naquele dia, e gostei que assim fosse, como gostei do
aprofundamento da amizade de Arnie e Leigh.
O segundo tempo não foi tão bo
m; nossa defesa reassumiu a postura
cabisbaixa a maior parte do tempo, a mesma postura de nossos três
primeiros jogos, porém a contagem continuou bem a nosso favor.
Vencemos por 27
-
18.
O último quarto de hora ia pelo meio quando o treinador me
mandou sair
e entrou Brian McNally, que me substituiria no ano
seguinte
—
em realidade, ainda mais cedo do que isso, como se viu depois.
Tomei uma ducha, troquei de roupa e saí, no momento em que soava o
aviso para os dois últimos minutos de jogo.
O pátio de estaciona
mento estava repleto de carros, mas vazio de
gente. Uma gritaria selvagem vinha do campo, quando a torcida dos
Hilmen insistia com seu time para que fizesse o impossível, naqueles dois
últimos minutos da partida. Da distância em que me achava, tudo me
pare
cia tão sem importância, como indubitavelmente o era.
Caminhei em direção a Christine.
Lá estava ela, com sua lataria lateral pontilhada de ferrugem, o capô
novo e a traseira parecendo ter mil quilômetros de comprimento. Um
dinossauro dos soturnos dias do
bop
dos anos 50, quando todos os
milionários do petróleo eram do Texas e o dólar ianque tripudiava do iene
japonês, em vez de ser o contrário. De volta aos tempos em que Carl
Perkins cantava sobre calças três quartos cor
-
de
-
rosa e Johnny Horton
cantava sob
re dançar
-
se a noite inteira no piso de madeira dura de uma
espelunca, e o maior ídolo dos adolescentes no país era Edd "Kookie"
Byrnes.
Toquei em Christine. Tentei acariciá
-
la, como Arnie fizera. Queria
gostar daquele carro por causa de Arnie, como Leigh
havia feito.
Certamente, se alguém fosse capaz de forçar
-
se a gostar dele, esse alguém
era eu. Leigh conhecia Arnie a apenas um mês. Eu o conhecera a vida
inteira.
Deslizei a mão pela superfície enferrujada, pensando em George
LeBay, Verônica e Rita LeBay.
Em algum ponto de tais pensamentos, a
mão que supostamente devia acariciar fechou
-
se em um punho e esmurrei
subitamente o flanco de Christine, com quanta força pude, com violência
bastante para me machucar a mão e me fazer dar uma risadinha defensiva,
per
guntando
-
me que diabo eu pensava estar fazendo.
Ouvi o som de flocos de ferrugem desprendendo
-
se da lataria.
O som de um bombo, vindo do campo de futebol, como gigantesca
pulsação cardíaca.
O som de minhas próprias pulsações cardíacas.
Experimentei a porta
da frente.
Estava trancada.
Passei a língua pelos lábios e senti que estava assustado.
Era quase como se
—
aquilo era engraçado, era hilariante
—
, era
quase como se o carro não gostasse de mim, como se desconfiasse que eu
queria intrometer
-
me entre ele e
Arnie, como se soubesse que eu não
queria caminhar diante dele porque...
Tornei a rir, mas então recordei meu sonho e fiquei sério. Aquilo era
demais, para deixar
-
me sossegado. Não era Chubby McCarthy clamando
pelo rádio, claro, não em Hidden Hills, mas o
final daquilo provocou uma
sensação desagradável e fantástica de
déjà vu
—
o som dos gritos da
torcida, o som do contato de corpos acolchoados, o vento sibilando por
entre as árvores que pareciam recortadas, sob um céu encoberto.
O motor dispararia. O carr
o saltaria para diante, recuando,
avançando, recuando. E então os pneus chiariam, quando rugissem
diretamente para mim...
Afugentei o pensamento. Era tempo de parar de entulhar
-
me com
toda aquela merda idiota. Era tempo
—
mais do que tempo
—
de
controlar m
inha imaginação. Aquilo ali era um carro
—
não uma "ela" mas
um "ele", não realmente Christine, mas apenas um Plymouth Fury 1958,
que saíra de uma linha de montagem em Detroit, juntamente com mais
uns quatrocentos mil outros.
Isso funcionou... pelo menos t
emporariamente. Só para demonstrar
que não estava nem um pouco amedrontado, ajoelhei
-
me e espiei debaixo
do carro. O que vi lá era ainda mais louco do que a estranha maneira pela
qual o Plymouth estava sendo reconstruído no alto. Havia três
amortecedores n
ovos mas o quarto era uma ruína escura e suja de graxa,
parecendo ter estado ali desde sempre. O cano de descarga era tão novo
que ainda reluzia como prata, porém o silencioso tinha uma aparência de
meia
-
idade, pelo menos, enquanto que a junção do cano de
descarga se
mostrava em péssimo estado. Ao olhar para este último, pensei nas
emanações que poderiam passar para dentro do carro e isso me fez
novamente recordar Verônica LeBay. Porque emanações do cano de
descarga podem matar.
Elas...
—
O que está fazendo
, Dennis?
Creio que estava mais inquieto do que imaginava, porque me
levantei como uma flecha, o coração disparando no peito. Era Arnie. Ele se
mostrava frio e irritado.
Porque eu dava uma espiada em seu carro? Por que isso deveria deixá
-
lo tão
fora de si?
Uma boa pergunta. No entanto, era evidente que o deixara
furioso.
—
Examinava seu potente motor
—
falei, tentando aparentar
naturalidade.
—
Onde está Leigh?
—
Foi ao toalete
—
respondeu ele, encerrando este ponto. Os olhos
cinzentos permaneciam fixos em m
eu rosto.
—
Dennis, você é meu melhor
amigo, o melhor que já tive. Acho que me poupou uma viagem ao
hospital outro dia, quando Repperton puxou aquela faca para mim, mas
não gosto do que anda fazendo pelas minhas costas, Dennis. Você nunca
foi assim.
Houve
um tremendo rugido da torcida no campo
—
os Hillmen
tinham acabado de fazer o tento final do jogo, com menos de trinta
segundos de tempo restando.
—
Não sei de que diabo está falando, Arnie
—
respondi.
No entanto, sentia
-
me culpado. Culpado pela maneira co
mo me
sentira ao ser apresentado a Leigh, avaliando
-
a, desejando
-
a um
pouquinho
—
desejando a garota que, tão evidentemente, Arnie queria
para si. Contudo... fazer algo por trás de suas costas? Era isso que eu
estivera fazendo?
Suponho que ele poderia ter
encarado assim a questão. Eu estava
sabendo que seu irracional
—
interesse, obsessão, seja lá o que for
—
, sua
postura
irracional sobre o carro era o aposento trancado na casa de nossa
amizade, o lugar em que eu não poderia penetrar sem atrair todo tipo de
problemas. E, se ele não me surpreendera tentando arrombar a porta, pelo
menos me apanhara espiando pelo buraco da fechadura.
—
Acho que sabe
muito bem
do que estou falando
—
respondeu ele,
e não estava apenas irritado, mas enfurecido, conforme pude const
atar,
com certa apreensão.
—
Você, meu pai, minha mãe, estão todos me
espionando "para o meu bem", não é assim que se diz? Eles o mandaram à
Garagem de Darnell para bisbilhotar, não foi?
—
Escute aqui, Arnie, espere um pouco...
—
Cara, não pensou que eu ac
abaria descobrindo? Não disse nada
quando soube porque... bem, porque somos amigos. Só que não gosto
disso, Dennis. Tem que haver um limite e acho que o estou marcando. Por
que não deixa meu carro em paz e pára de se meter onde não foi chamado?
—
Em primei
ro lugar
—
respondi
—
não foram seu pai e sua mãe.
Michael me chamou de lado e pediu que desse uma espiada no que você
já tinha feito com o carro. Concordei, porque também estava curioso. Seu
pai sempre foi muito legal comigo. O que mais poderia responder
a ele?
—
Devia ter respondido "não".
—
Você não entende, Arnie. Ele está do seu lado. Sua mãe ainda
espera que tudo isto dê em nada, foi o que percebi, mas Michael tem
realmente esperança de que você ponha o carro rodando. Ele me disse isso.
—
Claro, era a
melhor maneira de convencer você.
—
Arnie estava
quase rosnando.
—
Na verdade, ele está interessado é em ter certeza de
que continuo atrapalhado com o carro. É só o que interessa a eles. Não
querem que eu cresça, porque então estariam enfrentando a própri
a
velhice.
—
Está sendo muito duro, cara.
—
Talvez você acredite nisso. Talvez o fato de vir de uma família
mais ou menos normal deixe você de miolo mole, Dennis. Eles me
ofereceram um carro novo quando eu tirasse o diploma, sabia?
Tudo o que eu devia faze
r era desistir de Christine, tirar A em todas
as matérias e concordar em matricular
-
me em Horlicks... onde os dois
poderiam manter
-
me sob sua vigilância direta por mais quatro anos.
Fiquei sem saber o que dizer. Aquilo era pura estupidez, claro.
—
Portanto
, fique fora disso, Dennis. É tudo quanto tenho a dizer.
Será melhor para nós dois.
—
De qualquer modo, não contei nada a ele
—
repliquei.
—
Falei
apenas que você estava consertando umas coisinhas, aqui e ali. Ele
pareceu ficar aliviado.
—
Oh, aposto que s
im!
—
Não fazia a menor idéia de que o carro estivesse quase no ponto
de poder rodar na rua. Mas falta ainda alguma coisa. Dei uma espiada por
baixo dele e vi que o cano de juntura da descarga está em terríveis
condições. Espero que esteja dirigindo com os
vidros arriados.
—
Não venha me dizer o que devo fazer! Conheço esse carro muito
melhor do que você!
Foi quando comecei a me encher daquilo. Não estava gostando do
rumo que o caso tomava
—
não queria discutir com Arnie, especialmente
agora, quando Leigh c
hegaria a qualquer momento
—
, mas pude sentir
alguém no compartimento cerebral do andar de cima, começando a
apertar aqueles botões vermelhos, um por um.
—
Talvez seja verdade
—
repliquei, controlando a voz
—
, mas não
estou muito certo sobre até que ponto
você conhece as pessoas. Will
Darnell lhe deu um adesivo de licença inadequado. Se você for apanhado,
Arnie, poderá perder seu certificado estadual de inspeção. Ele arranjou
também uma placa de concessionário. Por que Darnell fez isso, Arnie?
Pela primeira
vez, Arnie ficou na defensiva.
—
Eu já lhe disse. Ele sabe que estou trabalhando no carro.
—
Não seja imbecil! Aquele cara não daria uma muleta a um
caranguejo aleijado se não tirasse nisso algum proveito e você sabe.
—
Pelo amor de Deus, Dennis, quer faz
er o favor de ficar fora disso?
—
Escute aqui, cara
—
falei, dando um passo para ele.
—
Estou
pouco me lixando se você tem ou não um carro. Só não quero que se meta
em enrascadas por causa dele. Sinceramente.
Ele me fitou com incerteza.
—
E outra coisa: po
r que estamos aqui aos gritos, um para o
outro?
—
acrescentei.
—
Só porque espiei debaixo de seu carro, para ver
como o cano de descarga estava preso?
Enfim, aquilo não era tudo o que eu tinha feito. Não tudo. E penso
que ambos sabíamos disso.
No campo de
jogo, o tiro final soou com um "bangue" monótono.
Uma brisa ligeira começara a soprar e estava esfriando. Viramo
-
nos para o
som do tiro e avistamos Leigh, caminhando em nossa direção, trazendo
suas bandeirolas e as de Arnie. Ela acenou. Acenamos em respost
a.
—
Posso muito bem cuidar de mim, Dennis
—
avisou ele.
—
Está legal
—
respondi simplesmente.
—
Espero que possa.
De repente, senti vontade de perguntar
-
lhe até que ponto ia sua
amizade com Darnell. Foi uma pergunta que não pude fazer, porque
originaria u
ma discussão ainda mais amarga. Seriam ditas coisas que
talvez nunca mais fossem reparadas.
—
Claro que posso
—
disse ele.
Tocou seu carro e a expressão dura dos olhos suavizou
-
se.
Experimentei uma mistura de alívio e inquietação
—
alívio, por afinal não
a
cabarmos brigando, pois tínhamos conseguido controlar as palavras que,
se ditas, seriam o golpe final. Não obstante, tive a sensação de que não
fora fechado apenas um aposento em nossa amizade, mas toda uma
maldita ala. Ele rejeitara totalmente o que eu ti
nha para dizer e deixou
bem claras as condições para que nossa amizade continuasse: tudo estaria
bem, desde que eu não me atravessasse em seu caminho.
Se ele pudesse perceber, essa também era a atitude de seus pais. De
qualquer modo, Arnie teria que descob
rir isso em outra oportunidade.
Leigh chegou até nós, com gotas de chuva cintilando em seu cabelo.
Estava corada, os olhos brilhantes de boa saúde e saudável excitamento.
Exalava uma ingênua e não
-
testada sexualidade, que me deixou com a
cabeça ligeirament
e zonza. Não que eu fosse o objeto principal de sua
atenção
—
Arnie é que o era.
—
Como foi que terminou?
—
perguntou ele.
—
Vinte e sete a dezoito
—
disse ela, para acrescentar,
jovialmente:
—
Nós acabamos com eles. Onde estavam vocês dois?
—
Conversando
sobre carros, nada mais
—
falei.
Arnie dirigiu
-
me um olhar divertido
—
pelo menos, seu senso de
humor não havia desaparecido, juntamente com o senso comum. Pensei
que houvesse algum motivo de esperança, na maneira como olhava para
ela. Estava gamado por Le
igh, da cabeça aos pés. No momento, ainda era
uma queda lenta, mas certamente a velocidade aumentaria, com eles dois
saindo juntos. A pele de Arnie limpara completamente e sua aparência era
muito boa, apesar de um tanto intelectual, por causa dos óculos qu
e usava.
Não era o tipo de pessoa que se esperaria fosse do agrado de alguém
como Leigh Cabot; o que qualquer um imaginaria, era vê
-
la pendurada ao
braço da versão ginasial americana de Apolo.
As pessoas agora cruzavam o campo correndo, nossos jogadores e
os adversários, nossa torcida e a deles.
—
Apenas conversando sobre carros
—
repetiu Leigh, zombeteira.
Ergueu o rosto para Arnie e sorriu. Ele sorriu também, um sorriso
enternecido e satisfeito, que encheu meu coração de alegria. Bastava olhar
para ele e
eu poderia dizer que quando Leigh lhe sorria daquele jeito,
Christine era o assunto mais remoto em sua mente, ficava relegada ao seu
lugar exato, isto é, um meio de transporte.
Achei aquilo ótimo.
N
AS
A
RQUIBANCADAS
Ó Senhor, quer me comprar um Mercedes
-
Be
nz?
Todos os meus amigos dirigem Porsches,
Preciso ser compensado...
—
Janis Joplin
Nas primeiras duas semanas de outubro, vi Arnie e Leigh um
bocado de vezes pelos corredores, primeiro recostados contra seus
armários pessoais, o dele ou o dela, conversan
do antes do toque de ida
para casa; depois de mãos dadas; em seguida, saindo da escola enlaçados
pelos ombros. Tinha acontecido. No jargão escolar, eles estavam "saindo
juntos". Pensei que era bem mais do que isso. Pensei em como estavam
apaixonados.
Eu nã
o vira mais Christine desde o dia em que derrotamos o time de
Hidden Hills. Aparentemente, ela retornara à Darnell's para novos
reparos
—
talvez isso fizesse parte do acordo entre Arnie e Darnell,
quando este lhe emprestara a placa de concessionário e o ad
esivo ilegal
aquele dia. Não vi o Fury, mas vi Leigh e Arnie muitas vezes... e também
ouvi muito a respeito dos dois. Eram um assunto quente, nas fofocas da
escola. As garotas queriam saber o que Leigh
vira
nele, afinal; os rapazes,
sempre mais práticos e
vulgares, queriam apenas saber se meu amigo
tampinha já conseguira ir "até o fim do caminho" com sua garota. Eu não
me preocupava com nenhuma das duas coisas, mas de tempos em tempos
me perguntava o que pensariam Regina e Michael sobre o caso extremo de
pr
imeiro amor de seu filho.
Em certa segunda
-
feira de meados de outubro, eu e Arnie
almoçamos juntos nas arquibancadas, perto do campo de futebol, como
havíamos planejado fazer naquele dia em que Buddy Repperton exibira
sua faca. Aliás, Repperton fora realme
nte expulso por causa daquilo.
"Penetra" e Don saíram
-
se com três dias de suspensão. No momento,
comportavam
-
se como bons meninos. E, nesse ínterim não
-
tão
-
doce, o
time de futebol sofrera mais duas derrotas. Nossa contagem agora era de
1
-
5 e o treinador re
caíra em rabugento silêncio.
Meu saco de almoço não estava tão bem abastecido como no dia de
Repperton e da faca; o único ponto positivo que eu via em nossa contagem
de 1
-
5 era que agora nos mantínhamos tão atrás dos Ursos de Ridge Rock
(cuja contagem era
de 5
-
0
-
1) que somente se o ônibus da equipe deles
despencasse por um abismo conseguiríamos fazer alguma coisa na
Associação.
Estávamos sentados ao brando sol de outubro
—
não faltava muito
tempo para os fantasmas feitos de lençóis, as máscaras de borracha
e
fantasias compradas no Woolworth
—
, mastigando e falando pouco.
Arnie tinha um ovo grelhado com temperos picantes e o trocou por um de
meus sanduíches de carne fria. Os pais pouco sabem sobre as vidas
secretas dos filhos, penso eu. Desde o primeiro grau,
todas as segundas
-
feiras Regina Cunningham colocava um ovo
-
grelhado
-
picante na
lancheira de Arnie, e todos os dias, depois de havermos jantado carne
assada (em geral na ceia dos domingos), eu tinha uma fatia daquela carne
em meu sanduíche. Acontece que se
mpre detestei carne assada fria e
Arnie sempre detestou aqueles ovos picantes, embora eu nunca o tivesse
visto rejeitar um ovo preparado de outro modo. Muitas e muitas vezes me
perguntei o que pensariam nossas mães se soubessem que parte ínfima
das centena
s de ovos picantes e dúzias de sanduíches de carne assada fria,
postos em nossas respectivas lancheiras, tinham sido realmente comidos
por aqueles a quem eram destinados.
Comi meus biscoitos e Arnie seus doces de figo em barra. Ele me
olhou para certificar
-
se de que eu espiava e então enfiou todas as seis
barras de doce de figo na boca, ao mesmo tempo, começando a mastigá
-
las. Suas bochechas se incharam grotescamente.
—
Que falta de educação, raios!
—
exclamei.
—
Ung
-
un
-
guut
-
ung
—
replicou Arnie.
Comecei a
espetar meus dedos em suas costelas, onde ele sempre
sentira muita cócega, gritando:
—
Vou tocar piano em suas costelas! Ouviu bem, Arnie? Vou tocar
piano em suas costelas! Ele começou a rir, expelindo pequenos punhados
de massa de doce meio mastigada. Sei
o quanto isto pode parecer
detestável, mas era bastante divertido.
—
Pare, Dennis!
—
disse ele, com a boca ainda cheia de doce.
—
Como disse? Não consigo entender o que diz, seu filho da mãe!
Eu continuava a fazer
-
lhe cócegas, no estilo que denominávamos
"tocar piano" quando éramos crianças (por algum motivo hoje perdido nas
areias do tempo), enquanto ele ficava se torcendo, retorcendo e rindo.
Engoliu tudo o que tinha na boca e depois arrotou.
—
Nossa! Você é muito mal
-
educado, Cunningham!
—
exclamei.
—
E
eu não sei?
Ele parecia realmente satisfeito com aquilo. Talvez estivesse mesmo;
que eu soubesse, nunca fizera aquele truque das seis barras de doce
enfiadas na boca ao mesmo tempo, diante de mais ninguém. Se cometesse
tal atrocidade em presença dos pais,
acho que Regina pariria um gatinho e
Michael possivelmente teria uma trombose cerebral.
—
Quantas você já conseguiu enfiar na boca?
—
perguntei.
—
Uma vez já botei doze ao mesmo tempo
—
disse ele
—
, mas
pensei que fosse sufocar. Eu ri com vontade.
—
Já fe
z a demonstração para Leigh?
—
Estou reservando para a festa de fim de ano
—
disse.
—
Espero
também poder tocar piano nas costelas dela.
Rimos à beça com isso e percebi o quanto às vezes sentia falta de
Arnie
—
e eu tinha o futebol, o conselho de estudante
s, uma nova
namorada que (assim esperava) consentiria em masturbar
-
me, antes que
terminasse a temporada do
drive
-
in.
Minhas esperanças de que ela fosse
além disso eram mínimas: a garota parecia encantada demais consigo
mesma. De qualquer modo, seria uma ex
periência divertida.
Mesmo com tanta coisa acontecendo, eu ainda sentia falta de Arnie.
Primeiro havia sido Christine, agora eram Leigh e Christine. Nesta ordem,
era o que esperava.
—
Onde está ela hoje?
—
perguntei.
—
Indisposta
—
informou ele.
—
Ficou me
nstruada e parece que
não passa muito bem com suas regras.
Ergui as sobrancelhas mentalmente. Se ela discutia seus problemas
femininos com ele, é porque já estavam ficando muito íntimos.
—
Como foi que pediu a ela para ir ao jogo de futebol aquele dia?
Qua
ndo jogamos em Hidden Hills?
Ele riu.
—
O único jogo de futebol a que já fui, desde calouro. Demos sorte a
você, Dennis.
—
Foi só telefonar para ela e convidá
-
la?
—
Quase não tive coragem. Foi o primeiro encontro que tive.
—
Ele
me fitou com acanhamento.
—
Na véspera, acho que só dormi umas duas horas. Depois que
telefonei, e ela disse que iria comigo, fiquei em pânico, achando que tinha
feito um papel idiota ou que Buddy Repperton ia aparecer e querer brigar.
Pensei que ia acontecer qualquer coisa terrível
.
—
Você parecia ter tudo sob controle.
—
É mesmo?
—
Ele ficou satisfeito.
—
Hum, é bom ouvir isso, mas a
verdade é que estava apavorado. Ela já tinha conversado comigo nos
corredores, sabe como é, me perguntava sobre os deveres de casa e coisas
assim. Ent
rou para o clube de xadrez, mesmo não sendo muito boa...
Agora está ficando melhor. Estou ensinando como se joga.
Aposto que sim, vivaldino,
pensei, não ousando dizer em voz alta.
Ainda recordava a maneira como Arnie se voltara contra mim, naquele
dia do j
ogo em Hidden Hills. Por outro lado, eu queria ouvir aquilo,
estava morrendo de curiosidade. Conquistar uma garota fascinante como
Leigh Cabot devia ter sido uma dureza.
—
Então, depois de algum tempo, comecei a pensar que ela poderia
estar interessada em
mim
—
prosseguiu Arnie.
—
Talvez eu demorasse
mais a me convencer do que qualquer outro cara... estou falando de caras
como você, Dennis.
—
Lógico, sou uma fera
—
respondi.
—
Aquilo a que James Brown
costumava chamar de máquina sexual.
—
Bem, você não é ne
nhuma máquina sexual, mas entende de
garotas
—
disse Arnie, muito sério.
—
Você as compreende. Sempre tive
medo delas e nunca sabia o que dizer. E ainda não sei, acho. Leigh é
diferente.
—
Eu tinha receio de convidá
-
la para sair.
—
Ele continuou e
pareceu
considerar a questão.
—
Quero dizer, Leigh é uma garota bonita,
muito bonita mesmo. Você não acha, Dennis?
—
Acho. Que me conste, é a mais bonita da escola. Ele sorriu
satisfeito.
—
Eu também acho... mas pensei que só achasse porque a amo.
Olhei para meu a
migo, esperando que não se envolvesse em
problemas maiores do que poderia controlar. A esta altura, naturalmente,
eu não tinha idéia do significado da palavra problema.
—
Além do mais, ouvi dois caras conversando um dia, no
laboratório de química, Lenny Ba
rongg e Ned Stroughman. Ned contava a
Lenny que a convidava para sair e que ela se recusara, de maneira
delicada... como se talvez aceitasse um segundo convite. Quando imaginei
que ela poderia estar firme com Ned na primavera, comecei a ficar com
um ciúme
dos diabos. Você entende o que quero dizer?
Sorri e assenti. Lá fora, no campo, as chefes de torcida ensaiavam
novas rotinas. Não achei que fossem de grande ajuda para o nosso time,
mas era gostoso espiá
-
las. Suas sombras acumulavam
-
se em torno dos pés
sob
re a grama verde, à luz brilhante do meio
-
dia.
—
Outra coisa que me tocou, foi ver que Ned não parecia chateado...
nem tampouco envergonhado ou... rejeitado. Nada assim. Ele a convidou,
levou um fora e foi tudo. Decidi que também podia fazer aquilo. Mas
en
tão, quando liguei para a casa dela, suava pelo corpo todo. Cara, foi o
diabo! Fiquei imaginando Leigh rindo de mim e dizendo qualquer coisa
como
"Eu, sair com você, seu asqueroso? Deve estar sonhando! Ainda não estou
desesperada!".
—
É
—
concordei.
—
Não
sei como ela não disse isso. Ele me
esmurrou o estômago.
—
Vou tocar piano em suas tripas, Dennis! Vou fazer você vomitar!
—
Pare com isso
—
falei.
—
E depois? Arnie deu de ombros.
—
Não há muito mais para contar. A mãe dela atendeu, quando
liguei para lá,
e disse que ia chamá
-
la. Ouvi o barulho do fone sendo
colocado em cima da mesa e quase desliguei.
—
Arnie exibiu dois dedos,
afastados entre si por menos de um centímetro.
—
Faltou isto para que eu
desligasse. Sem brincadeira!
—
Conheço a sensação
—
falei
, e conhecia mesmo.
A gente se preocupa com as zombadas, o desprezo em qualquer
dose, pouco importando se jogamos futebol ou somos um nanico com
espinhas e de óculos, mas não creio que vocês possam avaliar o grau em
que Arnie deve ter sentido isso. Seu ges
to exigira uma coragem fenomenal.
Convidar uma garota para sair é algo insignificante, mas em nossa
sociedade existem todos os tipos de forças negativas, girando atrás de tão
simples conceito
—
quero dizer, há caras que cursam todo o ginásio e
nunca
reúnem
coragem bastante para convidar uma garota a um encontro.
Nem uma só vez,
em todos os quatro anos. E isto não acontece apenas com
um ou dois caras, mas com bandos deles. Como também há bandos de
garotas tristonhas que nunca foram convidadas. É uma merda de
maneira
de dirigir as coisas, quando se pára para refletir a respeito. Muita gente se
machuca. Eu podia imaginar perfeitamente o terror de Arnie, esperando
que Leigh viesse atender o telefone; a sensação de mortal espanto à idéia
de que não pretendia conv
idar uma garota qualquer, porém a
garota mais
bonita da escola.
—
Ela atendeu
—
continuou Arnie.
—
Disse: "Alô?" e, cara, eu não
conseguia falar nada! Tentei, mas nada saía da garganta além de ar
resfolegado. Então ela insistiu: "Alô, quem está falando?",
como se fosse
uma espécie de trote, sabe como é. Fiquei pensando: isto é ridículo! Se
pude conversar com ela no corredor, devia ser capaz de falar com ela pelo
maldito telefone. Tudo que Leigh pode dizer é não, quero dizer, não vai
me
matar,
nada disso, se
a convidar para sair. Então, falei: "oi, aqui é Arnie
Cunningham". Ela respondeu: "oi", e blablablá, conversa mole, conversa
mole, conversa mole, até eu perceber que nem mesmo, droga, sabia para
onde convidá
-
la. E logo ficaríamos sem assunto, ela ia desli
gar... Foi
quando lhe disse a primeira coisa que me passou pela cabeça, perguntei se
queria ir comigo ao jogo de futebol no sábado. Ela disse que adoraria ir,
foi bem assim, como se só estivesse esperando que eu a convidasse, você
saca?
—
Vai ver, ela esta
va mesmo esperando que você a convidasse.
—
Hum... Talvez sim.
Arnie meditou na questão, bestificado. O sinal tocou, significando
cinco minutos para o quinto tempo. Eu e Arnie nos levantamos. As chefes
de torcida correram para fora do campo, com seus saiot
es agitando
-
se
provocativamente.
Descemos as arquibancadas, jogamos os sacos vazios do almoço em
um dos barris de lixo, pintados com as cores da escola
—
laranja e preto,
falando
-
se do Dia das Bruxas
—
e caminhamos para a escola.
Arnie ainda sorria, record
ando a maneira como tudo havia
acontecido, naquela primeira vez com Leigh.
—
Convidá
-
la para ir ao jogo foi puro desespero.
—
Muito obrigado
—
repliquei.
—
É isso o que mereço por ter
botado os bofes pra fora a tarde toda do sábado, hein?
—
Você entende o
que eu quero dizer. Então, depois que ela
concordou em ir comigo, tive aquela idéia horrível e liguei para você
lembra
-
se?
Lembrei
-
me de repente. Ele ligara para saber se íamos jogar em casa
ou fora, tendo parecido absurdamente arrasado, quando lhe falei q
ue seria
em Hidden Hills.
—
Pois lá estava eu, prestes a sair com a garota mais bonita da escola,
doidão por ela, e fico sabendo que o jogo ia ser fora daqui. E com meu
carro emperrado na garagem de Will.
—
Podiam ter ido no ônibus.
—
Eu sei, mas na hora n
em pensei nisso. O ônibus sempre
costumava estar lotado, uma semana antes do jogo. Não podia imaginar
que tanta gente fosse deixando de assistir às partidas, com o time
perdendo.
—
Não me lembre isso
—
pedi.
—
Então, apelei para Will. Sabia que Christine a
güentaria a viagem,
mas ainda não tinha a papelada legal para a rua. Resumindo, eu estava
desesperado.
Desesperado, como?
—
perguntei
-
me, fria e repentinamente.
—
Ele foi muito legal comigo. Disse que compreendia o quanto
aquilo era importante e, se...
—
Ar
nie fez uma pausa, parecendo
considerar.
—
Bem, era a tal história do grande encontro
—
terminou,
desajeitadamente.
E se...
Bem, não era da minha conta.
Olhe por ele,
meu pai tinha dito.
Recusei também este pensamento.
Passávamos agora pela área de fumar,
deserta, exceto por três caras
e duas garotas, fumando apressadamente o que restava de um baseado.
Usavam o artifício de uma carteirinha de fósforos, dobrada como clipe
para segurar a minúscula guimba. O odor evocativo da maconha, tão
similar ao aroma das
folhas de outono queimadas lentamente, deslizou
por minhas narinas.
—
Tem visto Buddy Repperton?
—
perguntei.
—
Não e nem quero
—
respondeu ele.
—
E você?
Eu o vira apenas uma vez, quando ele aparecera no posto de
gasolina Happy Gas, de Vandenberg, na Rota
22, em Monroeville. O posto
tinha uma bomba apenas, pertencia ao pai de Vandenberg e vivia à beira
da falência, desde o embargo do petróleo árabe, em 73. Buddy não me
vira
—
eu estava apenas passando por perto.
—
Não cheguei a falar com ele.
—
Acha que el
e falaria?
—
perguntou Arnie, com um sarcasmo que
não lhe era costumeiro.
—
O grande bosta!
Sobressaltei
-
me. Aquela palavra novamente. Pensei a respeito, disse
a mim mesmo, que diabo, e então perguntei
-
lhe onde ouvira aquele termo
tão específico.
—
Lembra
-
se do dia em que comprei o carro?
—
perguntou.
—
Não
o dia em que dei o dinheiro de entrada, mas aquele em que paguei o
restante.
—
Claro que me lembro.
—
Entrei com LeBay em sua casa, enquanto você ficava do lado de
fora. Havia uma cozinha minúscula, com
uma toalha de xadrez vermelho
na mesa. Sentamo
-
nos e ele me ofereceu uma cerveja. Achei que devia
aceitar. Eu queria o carro e não pretendia ofendê
-
lo de modo algum,
entende? Assim, cada um bebeu uma cerveja, enquanto ele começava com
aquela interminável d
ivagação... como a chamaria? Acho que arenga.
Aquela arenga sobre todos os bostas estarem contra ele. Era o nome que
empregava, Dennis. Os bostas. Disse serem os bostas que o forçavam a
vender o carro.
—
O que queria dizer com isso?
—
Sem dúvida, queria da
r a entender que era velho demais para
dirigir, mas não se expressou em palavras. Era tudo culpa deles. Dos
bostas. Os bostas queriam que ele fizesse exame de estrada para motorista
a cada dois anos e um exame de vista todo ano. Era este último que o
preoc
upava. Alegou que não o queriam na rua, que ninguém o queria
dirigindo. Então, alguém atirou uma pedrada em seu carro.
"Sinceramente, eu compreendia tudo aquilo. Mas não compreendo
como ele pôde...
—
Arnie fez uma pausa rente à porta, esquecendo que já
est
ávamos atrasados para a aula. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos
traseiros do
jeans
e franzia o cenho.
—
Não compreendo como ele pôde
deixar Christine ficar parada, arruinando
-
se daquela maneira, Dennis. Do
jeito como estava, quando a comprei. Principalment
e, se falava sobre ela
como se realmente a amasse... você talvez vá pensar que isso fazia parte
da conversa fiada para me vender o carro, mas não era. Então, já no fim,
quando ele contava o dinheiro, deu uma espécie de resmungo: 'Esse carro
de merda! Que m
e foda, se sei por que o quer, garoto. É o ás de espadas.'
Respondi qualquer coisa, alegando achar que eu poderia pôr Christine em
excelente estado. Ele respondeu: 'Tudo isso e ainda mais. Se os bostas
permitirem"'
Entramos. O Sr. Lehereux, professor de Fr
ancês, rumava
apressadamente para algum lugar, a cabeça calva luzindo sob as luzes
fluorescentes.
—
Estão atrasados, garotos
—
disse ele, em uma voz ofegante, que
me fez lembrar o coelho branco de
Alice no País das Maravilhas.
Ele caminhou mais depressa, a
té ficar fora de vista. Então, nós dois
voltamos a caminhar devagar.
—
Quando Buddy Repperton foi atrás de mim daquele jeito
—
disse
Arnie
—
, confesso que fiquei com medo de verdade.
—
Ele baixou a voz,
sorrindo, mas sério.
—
Quase borrei as calças, se que
r saber. Enfim, acho
que usei a palavra de LeBay sem sentir. Não acha que se aplica ao caso de
Repperton?
—
Tem razão.
—
Preciso ir agora
—
disse Arnie.
—
Cálculos primeiro, depois
Mecânica de Motores III. De qualquer modo, acho que fiz todo o curso
trabal
hando em Christine.
Arnie apressou
-
se e fiquei no corredor, parado por coisa de um
minuto, vendo
-
o afastar
-
se. Havia um período vago em meu horário, sob
a orientação da Srta. Trouxa
-
de
-
Ratos. Era o sexto período das segundas
-
feiras, e achei que podia esgue
irar
-
me para os fundos, sem ser visto. Já
havia feito isso antes. Por outro lado, os alunos do último ano sempre
levavam a melhor em muitas coisas, como eu ia rapidamente aprendendo.
Fiquei ali, tentando afastar uma sensação de medo, que nunca fora
tão amo
rfa, tão pouco concreta. Havia algo errado, qualquer coisa fora do
lugar, não combinado. Senti um calafrio, que nem todo o brilhante sol de
outubro, penetrando por todas as janelas do ginásio, conseguia desfazer.
As coisas eram as mesmas de sempre, mas est
avam se dispondo para uma
mudança
—
eu podia pressentir isso perfeitamente.
Fiquei ali, tentando pôr
-
me em movimento, dizer a mim mesmo que
o calafrio não passava de temores sobre meu próprio futuro, sendo essa a
mudança que me inquietava. Talvez o medo fi
zesse parte disso.
Possivelmente, mas não todo ele.
Esse carro de merda! Que me foda, se sei por
que o quer, garoto. É o ás de espadas.
Avistei o Sr. Lehereux, que voltava do
gabinete, e comecei a mover
-
me.
Penso que todos nós temos uma espécie de enxada a
trás da cabeça,
que, em momentos de tensão ou problemas, pode ser movimentada e
simplesmente introduzir tudo que nos preocupa em uma grande fenda no
solo de nossa mente consciente. Livrando
-
se de tudo. Enterrando
-
o. No
entanto, a tal fenda penetra no subco
nsciente e, às vezes, em sonhos, os
corpos despertam e caminham. Tornei a sonhar com Christine naquela
noite. Desta vez, Arnie estava ao volante e o cadáver em decomposição de
Roland D. LeBay oscilava obscenamente no banco do passageiro,
enquanto o carro r
ugia para fora da garagem e vinha contra mim,
espetando
-
me com os círculos selvagens de seus faróis.
Acordei com o travesseiro apertado contra a boca, para sufocar os
gritos.
O
A
CIDENTE
Mais depressa, mais depressa,
Amigão, ninguém te deixa pra trás.
—
Th
e Beach Boys
Até o Dia de Ação de Graças, aquela foi a última vez que conversei
com Arnie
—
que conversei realmente com ele
—
, porque fui posto fora
de circulação no sábado seguinte. Era o dia em que tornávamos a
enfrentar os Ursos de Ridge Rock e, desta
feita, perdemos pela contagem
verdadeiramente espetacular de 46
—
3. Entretanto, eu não estaria mais lá,
quando o jogo terminou. Já teria transcorrido uns sete minutos do terceiro
quarto de tempo, quando vi o campo livre, agarrei um passe e me
dispunha a cor
rer, no exato momento em que fui atingido
simultaneamente pelos três jogadores da linha de defesa dos Ursos.
Houve um instante de dor horrenda, um clarão ofuscante como se eu
houvesse sido apanhado na área zero de uma explosão nuclear... e depois
a escurid
ão. Uma escuridão total.
Tudo permaneceu escuro por um período razoavelmente longo,
embora eu não tivesse qualquer noção do fato. Fiquei inconsciente por
cerca de cinqüenta horas, e ao acordar no final da tarde de segunda
-
feira,
23 de outubro, estava no Ho
spital Comunitário de Libertyville. Vi papai e
mamãe por perto. Também Ellie, parecendo pálida e cansada. Havia
olheiras escuras em torno de seus olhos e fiquei absurdamente comovido;
minha irmã ainda tinha forças para chorar por mim, apesar das
guloseimas
que eu roubava da caixa de pão, depois que ela ia dormir,
apesar da caixinha de pílulas de vitaminas que lhe dera, quando ela estava
com doze anos e havia passado uma semana observando
-
se de perfil no
espelho, vestindo sua camiseta mais apertada, para ver
se seus peitinhos
estavam mais crescidos (Ellie prorrompera em lágrimas e mamãe ficara
irritada comigo por quase duas semanas) e apesar das irritantes
brincadeirinhas fraternas de eu sou melhor do que você.
Arnie não estava lá quando acordei, mas apareceu
pouco depois e se
juntou à minha família; ele e Leigh tinham ficado na sala de espera.
Naquela noite, meu tio e minha tia de Albany deram as caras e, pelo
restante da semana, houve um fixo desfilar de parentes e amigos
—
toda a
equipe de futebol esteve no
hospital para visitar
-
me, incluindo
-
se o
treinador Puffer, que parecia ter envelhecido vinte anos. Talvez tivesse
descoberto que existem coisas piores do que uma temporada de derrotas.
Foi o treinador que me deu a notícia de que eu nunca mais poderia volt
ar
ao futebol. A julgar pela expressão grave e tensa de seu rosto, não sei o
que ele esperava
—
que eu explodisse em choro ou tivesse um acesso de
histeria. Entretanto, quase não esbocei qualquer reação, interna ou
externamente. Já bastava a alegria de sab
er
-
me vivo e que, eventualmente,
tornaria a andar.
Se eu houvesse sido atingido apenas uma vez, sem dúvida escaparia
bem e pronto para outra. O corpo humano, no entanto, não foi feito para
ser comprimido de três ângulos diferentes, ao mesmo tempo. Eu estav
a
com as duas pernas quebradas, a esquerda em dois lugares. Meu braço
direito havia sido puxado para trás, quando caí, de maneira que ostentava
uma feia fratura parcial no antebraço. Entretanto, tudo isso era apenas o
enfeite do bolo. Também tive o crânio
fraturado, e mais o que o médico
incumbido de meu caso persistia em qualificar como "um acidente na
porção inferior da coluna", com isto querendo dizer que, por fração de
centímetro, eu escapava de ficar paralisado da cintura para baixo, pelo
resto da vida
.
Recebi montes de visitas, montes de flores, montes de cartões. De
certo modo, tudo isso era muito agradável
—
como estar vivo para ajudar
a comemorar a própria ressurreição.
Entretanto, houve também um bocado de dores e um bocado de
noites em que não pod
ia dormir; um de meus braços ficou suspenso acima
do corpo através de pesos e roldanas, o mesmo acontecendo a uma das
pernas (ambas comichavam o tempo todo, por sob o gesso) e houve
também mais uma carapaça de gesso temporária
—
conhecida como
"molde compr
essor"
—
em torno da parte inferior do torso. Além do mais,
havia a perspectiva de uma longa permanência no hospital e viagens
intermináveis de cadeira de rodas àquela câmara de horrores tão
inocentemente intitulada Ala de Terapia.
Oh, havia mais uma coisa
—
eu tinha um bocado de tempo.
Eu lia o jornal. Fazia perguntas aos que me visitavam. E por diversas
vezes, quando as coisas prosseguiram e minhas suspeitas começaram a
tomar proporções exageradas, interroguei
-
me sobre se não poderia estar
perdendo a razã
o.
Fiquei no hospital até o Natal, e ao voltar para casa aquelas
suspeitas já quase haviam adquirido sua moldagem final. A cada vez me
era mais difícil negar essa monstruosa configuração e eu sabia muitíssimo
bem que não estava perdendo o juízo. Em certos
sentidos, teria sido até
melhor
—
mais confortador
—
se pudesse ter acreditado nisso. Àquela
altura, no entanto, além de estar terrivelmente assustado, estava também
quase apaixonado pela garota de meu melhor amigo.
Havia tempo para pensar... tempo demais.
Tempo para xingar cem vezes a mim mesmo, pelo que vinha
pensando sobre Leigh. Tempo para contemplar o forro de meu quarto e
desejar jamais ter ouvido falar de Arnie Cunningham... de Leigh Cabot...
ou de Christine.
Arnie
—
Canções adolescentes sobre
amor
A
S
EGUNDA
D
ISCUSSÃO
O vendedor chegou pra mim e disse:
"D
ê seu Ford de entrada,
E lhe arranjo um carro que comer
á a estrada!
Basta me dizer o que deseja e assinar nesta linha,
Que lhe entregarei o carro novo dentro de uma hora.
Vou ficar com um carr
ão
E d
isparar estrada abaixo;
Ent
ão, adeus preocupações
Com aquele Ford caindo aos peda
ços.
—
Chuck Berry
O Plymouth 1958, de Arnie Cunningham, foi licenciado para
trafegar nas ruas, na tarde de 19 de novembro de 1978. Ali se encerrava o
processo
—
realmente in
iciado na noite em que ele e Dennis Guilder
trocaram aquele primeiro pneu arriado
—
, com o pagamento de uma taxa
de licença no valor de 8,50 dólares, uma taxa rodoviária municipal de 2
dólares (que também incluía a permissão de estacionamento grátis nos
pa
rquímetros do centro da cidade) e 15 dólares por uma placa de
matrícula. No Departamento de Veículos a Motor, em Monroeville, Arnie
recebeu a chapa da Pensilvânia HY
-
6241
-
J.
Ele voltou do DVM para Libertyville em um carro que Will Darnell
lhe emprestara e
saiu da Garagem Fa
ça
-
Você
-
Mesmo de Darnell atrás do
volante de Christine. Levou
-
a para casa.
Seu pai e sua m
ãe chegaram juntos da Universidade Horlicks, cerca
de uma hora mais tarde. A briga teve início quase imediatamente.
—
Vocês o viram?
—
perguntou Arn
ie, dirigindo
-
se aos dois, porém
principalmente ao pai.
—
Acabei de registrá
-
lo esta tarde.
Sentia
-
se orgulhoso e tinha motivos. Christine acabara de ser lavada
e polida, reluzia
à última claridade do sol da tarde de outono. Ainda tinha
um bocado de ferrug
em, mas parecia mil vezes melhor do que naquele dia
em que Arnie a trouxera. Os estofos das portas, como o capô e as traseiras
estavam novos em folha. O interior se apresentava impecável,
imaculadamente limpo. Os vidros e cromados cintilavam.
—
Sim, eu...
—
começou Michael.
—
É claro que o vimos!
—
explodiu Regina. Preparava um drinque,
que mexia com um misturador de coquetel em um copo de cristal,
formando furiosos círculos no sentido contrário ao movimento de um
relógio.
—
Quase o atropelamos. Não o quero
estacionado aqui. A casa vai
parecer um depósito de carros usados!
—
Mamãe!
—
exclamou Arnie, ofendido e espantado.
Olhou para o pai, mas Michael se afastara para preparar um
drinque
—
talvez decidindo que ia precisar de um.
—
Muito bem
—
disse Regina Cun
ningham. Seu rosto estava
ligeiramente mais pálido que de costume. O ruge nas faces salientava
-
se,
quase como a pintura de um palhaço. Engoliu metade de seu gim com
tônica, fazendo uma careta como quem sente o gosto de um remédio
amargo.
—
Leve
-
o de volta
para onde esteve. Não o quero aqui e não vou
admiti
-
lo aqui, Arnie. É a palavra final.
—
Levá
-
lo de volta?
—
disse Arnie, agora não só ofendido, como
também irritado.
—
Formidável, não? Lá ele me sai a vinte pratas por
semana!
—
Está lhe saindo a muito mai
s do que isso
—
replicou Regina.
Terminou de beber seu drinque e largou o copo. Virou
-
se e o encarou.
—
Estive dando uma espiada em seu talão de cheques outro dia...
—
Você fez
o quê?
—
exclamou Arnie, com olhos arregalados.
Ela enrubesceu ligeiramente, mas
n
ão baixou os olhos. Michael se
aproximou e parou junto à porta, olhando pesaroso da mulher para o filho.
—
Eu queria saber quanto você andou gastando nesse maldito
carro
—
disse ela.
—
Será alguma coisa demais? Você tem que ir para a
universidade o ano q
ue vem. Que me conste, na Pensilvânia não estão
dando estudo de graça nas universidades.
—
Então você apenas entrou em meu quarto e revirou tudo, até
encontrar meu talão de cheques, não foi?
—
disse Arnie. Seus olhos
cinzentos estavam frios de ódio.
—
Talv
ez estivesse procurando por
maconha também. Ou revistas pornográficas. Quem sabe, manchas de
esperma nos lençóis?
Regina ficou boquiaberta.
É possível que esperasse dele uma reação
de mágoa ou raiva, mas não aquela fúria total e descontrolada.
—
Arnie!
—
r
ugiu Michael.
—
E daí, por que não?
—
gritou Arnie, em resposta.
—
Pensei que o
assunto fosse coisa
minha!
Deus é testemunha do quanto vocês ficaram
dizendo que era minha responsabilidade!
—
Estou muito decepcionada por sua atitude, Arnold
—
disse
Regina.
—
Decepcionada e magoada. Você está se portando como...
—
Não venha me dizer como me porto! Como acha que me sinto?
Trabalhei como o diabo para conseguir licenciar o carro, trabalhei nele
mais de dois meses e meio, mas quando o trago para casa, a primeira
coisa
que ouço de você é para tirá
-
lo da entrada. Como é que deveria me sentir?
Feliz?
—
Não é motivo para usar esse tom com sua mãe
—
disse Michael.
A despeito das palavras, o tom era desajeitadamente conciliatório.
—
Ou
para empregar esse tipo de linguag
em.
Regina estendeu o copo para o marido.
—
Prepare
-
me outro drinque. Há uma garrafa fechada de gim na
despensa.
—
Fique aqui, papai
—
disse Arnie.
—
Por favor. Vamos resolver
isto!
Michael Cunningham olhou para a esposa, depois para o filho e em
seguida n
ovamente para ela. Ambos pareciam como que de pedra. Ele
recuou para a cozinha, apertando o copo de Regina.
Regina se virou implac
ável para o filho. A cunha estivera em sua
porta desde finais do último verão e talvez ela percebesse ser aquela sua
última ch
ance para chutá
-
la novamente.
—
Em julho, você tinha quase quatro mil dólares no banco
—
disse.
—
Cerca de três quartos de todo o dinheiro que conseguiu nos
últimos anos, mais os juros...
—
Oh, você esteve de olho o tempo todo, não?
—
disse Arnie.
Sentou
-
s
e de repente, encarando a mãe. Seu tom era de desgostosa
surpresa.
—
Mamãe, por que não retirou o maldito dinheiro e colocou em
uma conta em seu nome?
—
Porque até recentemente
—
disse ela
—
você parecia
compreender qual era a finalidade desse dinheiro. No
s últimos dois meses,
ele se foi diluindo em carro
-
carro
-
carro e, mais recentemente, em garota
-
garota
-
garota. Como se você tivesse enlouquecido, quanto a essas duas
coisas.
—
Muito bem, obrigado. Afinal, sempre posso receber uma bela
opinião sem preconceit
os, sobre a maneira como estou dirigindo minha
vida!
—
Este julho, você tinha quase quatro mil dólares. Para os seus
estudos,
Arnie. Para os seus
estudos.
Agora, tem apenas pouco mais de dois
mil e oitocentos. Pode esbravejar como quiser, e admito que dói
um pouco,
mas aí estão os fatos. Em dois meses, você deu cabo de mil e duzentos
dólares. Talvez seja por isso que não suporto ver aquele carro. Você devia
compreender meus sentimentos. Para mim, isso é como...
—
Ouça...
—
... como jogar fora uma enorme not
a de dólar.
—
Posso lhe dizer duas coisas?
—
Não, não creio que possa, Arnie
—
disse ela, como se encerrasse o
assunto.
—
Sinceramente, 118 não creio que possa.
Michael retornara com o copo de Regina, cheio de gim at
é a metade.
Acrescentou água tônica no b
ar e entregou a ela. Regina bebeu, tornando a
fazer aquela careta de repugnância. Arnie permaneceu sentado na
poltrona perto da TV, olhando pensativamente para a mãe.
—
E você leciona em uma universidade!
—
exclamou.
—
Leciona em
uma universidade e é essa
a sua atitude? "Tenho dito. Vocês agora se
limitem a ficar de boca fechada." Formidável! Sabe de uma coisa? Tenho
pena de seus alunos.
—
Veja lá o que diz, Arnie!
—
disse ela, apontando
-
lhe um dedo.
—
Veja lá como fala!
—
Posso dizer duas coisas ou não?
—
Fale, embora não faça qualquer diferença. Michael pigarreou.
—
Reg, acho que Arnie tem razão. Francamente, esta não é uma
atitude construt... Ela se voltou para o marido como um felino.
—
E nem uma palavra você também! Michael emudeceu.
—
A primeira coisa
que quero dizer é o seguinte
—
Arnie
começou.
—
Se você examinou minha poupança um pouco mais
atentamente, e tenho certeza disso, deve ter percebido que o total baixou
de uma só vez em dois mil e duzentos dólares na primeira semana de
setembro. Tive que co
mprar toda a parte dianteira nova para Christine.
—
E fala nisso como se estivesse orgulhoso do que fez!
—
exclamou
Regina, irritada.
—
É claro que estou.
—
Arnie fixou os olhos nos dela.
—
Eu mesmo
montei aquela parte dianteira, sem que ninguém me ajudass
e. Ninguém
seria capaz...
—
aqui sua voz pareceu vacilar momentaneamente, mas
depois se firmou.
—
Ninguém seria capaz de distingui
-
la da original.
Enfim, o que quero dizer é que o total daquele dinheiro aumentou em
seiscentos dólares, a partir daí. Porque
Will Darnell gostou do meu
trabalho e me conseguiu algo para fazer. Se eu puder acrescentar
seiscentos dólares à conta de poupança, de dois em dois meses, e posso
consegui
-
lo, se Will me contratar para ir a Albany, onde ele compra seus
carros usados, em mi
nha conta haverá quatro mil e seiscentos dólares
quando terminar o período escolar. E se eu trabalhar em horário integral
no próximo verão, estarei começando a universidade com quase sete mil
dólares. Então, você pode deixar todo o dinheiro à porta desse c
arro que
tanto odeia.
—
Isso de nada lhe adiantará, se não conseguir uma boa
universidade
—
contra
-
atacou ela, dissecando desafiadoramente o assunto,
como fazia tantas vezes nas reuniões do departamento, quando alguém
ousava questionar uma de suas opiniões
... algo não muito freqüente. Ela
não assentia, limitando
-
se a passar para outra faceta do caso.
—
Suas
notas baixaram.
—
Não tanto para criar problemas
—
disse Arnie.
—
O que quer dizer com "não tanto para criar problemas"? Você
teve um deficiente em Cálc
ulo! Recebemos o cartão com a nota vermelha
faz apenas uma semana!
Aqueles cart
ões vermelhos, às vezes conhecidos como cartões
-
de
-
bomba pelo corpo estudantil, eram despachados em meados de cada
período a estudantes com nota média 75 ou menos, durante as pr
imeiras
cinco semanas do trimestre.
—
Aquilo foi baseado em uma única prova
—
disse Arnie
tranqüilo.
—
O Sr. Fenderson é tão famoso por dar tão poucas provas na
primeira metade do trimestre que qualquer um pode levar para casa um
cartão vermelho com um F,
por não entender um conceito básico
—
e
terminar com um A, abrangendo todo o ano letivo. Eu poderia ter
-
lhes
dito tudo isto, se me tivessem perguntado. Só que não perguntaram. Aliás,
foi somente o terceiro cartão vermelho que recebi, desde que comecei o
gi
násio. Minha média continua sendo 93 e vocês dois sabem o quanto é
boa e...
—
Pois eu digo que irá baixar!
—
exclamou Regina em voz aguda,
dando um passo para ele.
—
É tudo por causa de sua maldita obsessão
com esse carro! Arranjou uma namorada; acho ótimo
, excelente,
formidável! Mas a mania por esse carro é insana! O próprio Dennis diz...
Arnie estava de p
é, tão depressa, tão próximo dela, que Regina
recuou um passo, sua fúria suplantada momentaneamente pela dele.
—
Deixe Dennis fora disto
—
disse Arnie, e
m voz malevolamente
gélida.
—
Isto é entre nós!
—
Está bem
—
respondeu Regina, pisando novamente em chão
firme.
—
O simples fato é que suas notas irão baixar. Eu sei disso, como
seu pai, e uma prova é aquele cartão vermelho em Matemática.
Arnie sorriu conf
iantemente e Regina pareceu desconfiada.
—
Bem, vou lhe dizer uma coisa
—
falou Arnie.
—
Deixe eu ficar
com o carro aqui, até terminar o período das provas. Se eu tiver alguma
nota mais baixa do que C, prometo vendê
-
lo a Darnell. Ele o comprará;
sabe que p
ode obter mil pratas pelo carro, no estado em que se encontra
agora. E o valor só tende a subir.
Arnie refletiu um pouco.
—
Farei ainda melhor
—
disse.
—
Se eu não estiver no quadro de
honra do semestre, também me livrarei dele. Isto significa que estou
ap
ostando meu carro como conseguirei um B em Cálculo, não apenas pelo
trimestre, mas por todo o semestre. O que me diz?
—
Não
—
respondeu Regina prontamente.
Lan
çou ao marido um olhar de:
Não se meta nisto.
Michael, que tinha
aberto a boca, fechou
-
a prontame
nte.
—
Por que não?
—
perguntou Arnie, com enganadora suavidade.
—
Porque é um truque seu, sabe muito bem!
—
gritou Regina para
ele, agora com fúria total e incontida.
—
E não vou mais ficar aqui
debatendo esta imbecilidade e ouvindo suas insolências! Eu..
. eu mudei
suas fraldas sujas! Já falei que quero aquele carro fora daqui, ande nele, se
quiser, mas não o deixe onde eu tenha que vê
-
lo! Pronto! Está decidido!
—
O que acha disto, papai?
—
perguntou Arnie, encarando Michael.
Seu pai tornou a abrir a boca
para falar.
—
Ele acha o mesmo que eu
—
disse Regina.
Arnie a fitou novamente. Os olhos de ambos encontraram
-
se, a
mesma tonalidade de cinza.
—
O que ele disser pouco importa, não?
—
Penso que isto já foi longe demais e...
Ela come
çou a dar meia
-
volta, a b
oca ainda dura e decidida, os olhos
estranhamente confusos. Arnie pegou seu braço, pouco acima do cotovelo.
—
Pouco importa, não é? Porque quando você decide algo, não quer
ver, não quer ouvir e nem
pensar.
—
Pare com isso, Arnie!
—
gritou Michael.
Arnie o
lhou para sua m
ãe e ela lhe devolveu o olhar. Os olhos de
ambos estavam gélidos, impenetráveis.
—
Pois eu vou dizer por que não quer nem considerar o assunto
—
continuou Arnie, naquela mesma voz suave.
—
Não se trata de dinheiro,
porque o carro me pôs em c
ontato com um trabalho em que sou bom, e no
qual terminarei ganhando dinheiro. Você sabe disso. Não são as minhas
notas, também. Elas não estão piores do que sempre foram. E você
também sabe disso. É porque você não admite que eu escape de sua
coleira, com
o faz com seu departamento, como faz com
ele!
—
Arnie
apontou o indicador para Michael, que tinha uma expressão irritada,
culpada e infeliz ao mesmo tempo.
—
Você não quer me ver fora da
coleira em que sempre estive!
O rosto de Arnie agora estava vermelho,
as m
ãos crispadas ao longo
do corpo.
—
Toda aquela asneira liberal sobre a família decidir as coisas,
discuti
-
las em reunião, fazê
-
las funcionar... No entanto, o fato é que
você
sempre escolheu minhas roupas para o colégio, meus sapatos para o
colégio, co
m quem eu podia andar e com quem não podia,
você
decidia
onde passaríamos as férias,
você
dizia a ele quando trocar de carro e por
qual carro. Bem, isto é uma coisa que você não pode dirigir e então fica
com um ódio desgraçado, não é mesmo?
Ela o esbofeteo
u no rosto. O som foi como um tiro de rev
ólver na
sala de estar. Lá fora, o crepúsculo se instalara e os carros passavam
indistintos, os faróis dianteiros semelhantes a olhos amarelos. Christine
estava estacionada na entrada asfaltada dos Cunningham, como
estivera
uma vez no gramado de Roland D. LeBay, só que agora parecendo
consideravelmente melhor de aparência
—
altaneira e acima de toda
aquela feia e indecente discussão familiar. Ela havia, talvez, brotado para
o mundo.
De repente, de modo chocante, Regi
na Cunningham come
çou a
chorar. Aquilo era um fenômeno, algo assim como a chuva no deserto,
uma coisa que Arnie só a vira fazer quatro ou cinco vezes em toda a sua
vida
—
e em nenhuma das outras ocasiões fora ele o culpado pelas
lágrimas.
Era um choro assu
stador
—
contou ele a Dennis, mais tarde
—
, pelo
simples fato de existir. Terrível, porém ainda havia mais: as lágrimas a
tinham feito envelhecer de um golpe, como se Regina houvesse dado um
salto espantoso dos quarenta e cinco para os sessenta anos, no es
paço de
segundos.
O acinzentado p
étreo de seu olhar ficara aguado e enfraquecido.
Subitamente, as lágrimas lhe corriam pelas faces, estragando a pintura do
rosto.
Ela tateou na borda da lareira
à procura de seu drinque e os dedos
colidiram contra o copo, q
ue caiu e espatifou
-
se. Uma espécie de incrédulo
silêncio pairou entre eles três, um espanto por as coisas terem chegado a
tal extremo.
N
ão obstante, mesmo por entre a fraqueza das lágrimas, ela
conseguiu dizer:
—
Não quero aquele carro em nossa garagem ou
na entrada, Arnold.
—
Ele não ficará aqui, mamãe
—
respondeu Arnie friamente.
Caminhou para a porta, depois se virou e olhou para eles.
—
Obrigado. Por serem tão compreensivos. Muito obrigado, aos
dois. Então saiu.
A
RNIE E
M
ICHAEL
Desde que voc
ê foi embo
ra
Ando por a
í de óculos escuros
Mas sei que tudo ficar
á legal
Enquanto puder ter meu negr
íssimo
e brilhante Cadillac.
—
Moon Martin
Michael alcan
çou Arnie na entrada para carros, ocupada por
Christine. Pousou a mão no ombro do filho. Arnie sacudiu o ombr
o para
libertar
-
se do contato e continuou remexendo o bolso, em busca das
chaves do carro.
—
Arnie, por favor.
Arnie deu uma r
ápida meia
-
volta. Por um momento, esteve à beira
de tornar absoluta a escuridão da noite, agredindo o pai. Então, parte da
tensão
em seu corpo diminuiu e se recostou no carro, tocando
-
o com a
mão esquerda, alisando
-
o, parecendo extrair forças dele.
—
Está bem
—
disse.
—
O que você quer?
Michael abriu a boca e ent
ão pareceu incerto quanto ao que fazer.
Um ar de impotência
—
teria sido
divertido, se não parecesse tão
horrivelmente taciturno
—
tomou conta de seu rosto. Ele parecia ter
envelhecido, estava desfigurado e nervoso.
—
Arnie
—
disse ele, parecendo forçar as palavras contra algum
enorme peso de inércia se opondo.
—
Eu sinto muit
o, Arnie.
—
Hum
-
hum
—
respondeu Arnie, virando
-
se e abrindo a porta do
lado do motorista. Um cheiro agradável de carro bem cuidado escapou do
interior.
—
Pude ver, pela maneira como ficou do meu lado.
—
Por favor
—
disse Michael.
—
Isto é muito duro para m
im. Mais
do que possa imaginar. Algo em sua voz fez com que Arnie se virasse.
Havia desespero e infelicidade no olhar de seu pai.
—
Não digo que eu quisesse ficar do seu lado
—
disse Michael.
Também vejo o lado dela, compreenda. E vi a maneira como você se
impôs, querendo que fosse feita a sua vontade, a todo custo...
Arnie deu uma risada mal
évola.
—
Em outras palavras, vocês dois pensam o mesmo.
—
Sua mãe está atravessando uma crise de idade
—
comentou
brandamente Michael.
—
Isto tudo é muito difícil para
ela.
Arnie pestanejou, a princ
ípio não muito certo do que ouvira. Era
como se, de repente, seu pai lhe tivesse dito algo na "língua do p"; aquilo
parecia ter tanta importância como se estivesse discutindo escores de
beisebol.
—
C
-
como?
—
Crise de idade, en
velhecimento. Ela anda assustada, tem bebido
demais e, às vezes, sente dores físicas. Não sempre
—
acrescentou, vendo
o ar alarmado de Arnie
—
, mas já foi ao médico e agora sabemos que é por
causa da mudança de idade. De qualquer modo, sua mãe está
emocion
almente perturbada. Você é filho único e, da maneira como ela
está agora, deseja apenas que tudo lhe corra bem, seja lá a que preço for.
—
Ela quer tudo à sua maneira, o que não é nenhuma novidade.
Ela
sempre
quis tudo à sua maneira.
—
O que sua mãe acha c
erto para você, é o que considera correto.
Isso é óbvio
—
disse Michael.
—
Entretanto, o que o faz achar
-
se tão
diferente? Ou melhor? Você insistiu em enfrentá
-
la e ela sabia disso.
Como eu também sabia.
—
Foi ela que começou e...
—
Não, quem começou foi v
ocê, quando trouxe o carro para casa,
embora sabendo qual a opinião dela. Sua mãe também está certa em outro
ponto: você mudou, Arnie. Desde aquele primeiro dia, quando chegou em
casa, com Dennis e anunciou que comprara um carro. Foi quando tudo
começou. P
ensa que isso não a perturbou? Que não me perturbou também?
Vermos nosso filho exibindo traços de personalidade que nem mesmo
sabíamos existir?
—
Ora, vamos, papai! Foi apenas um...
—
Nós agora nunca o vemos, você está sempre trabalhando em seu
carro ou co
m Leigh.
—
Você está começando a falar como mamãe. Michael riu
subitamente
—
mas era um riso tristonho.
—
Está enganado, filho. Nem imagina quanto.
Sua mãe
tem sua
própria personalidade e
você
se parece com ela, mas eu pareço apenas o
cara incumbido de alg
uma idiota força de paz das Nações Unidas, prestes
a botar no fogo o traseiro coletivo.
Arnie encolheu
-
se um pouco; sua m
ão tornou a encontrar o carro e
começou a acariciá
-
lo... acariciá
-
lo...
—
Está legal
—
disse.
—
Acho que entendo o que quer dizer. Não
sei
como permite que ela o manobre desse jeito, mas por mim, tudo bem.
O sorriso triste e humilhado permaneceu, um tanto como a careta do
c
ão que ficou caçando uma marmota durante muito tempo, em um dia
calorento de verão.
—
Certas coisas talvez constituam
um sistema de vida. Talvez,
também, haja compensações que você não pode entender, nem eu possa
explicar. Como... bem, eu a amo, compreenda.
Arnie deu de ombros.
—
Certo, mas... e daí?
—
Podemos dar uma volta?
Arnie pareceu surpreso, depois contente.
—
Cla
ro. Entre. Algum lugar em particular?
—
O aeroporto.
As sobrancelhas de Arnie arquearam
-
se.
—
O aeroporto? Por quê?
—
Eu lhe direi quando chegarmos lá.
—
E Regina?
—
Sua mãe foi para a cama
—
disse Michael, com voz branda. Arnie
teve o decoro de enrubescer
ligeiramente.
Arnie dirigiu bem e com firmeza. Os novos far
óis de Christine
rasgavam a prematura escuridão em um límpido e fundo túnel luminoso.
Arnie passou pela residência dos Guilder, depois dobrou à esquerda para
Elm Street, junto ao sinal de trânsit
o. Em seguida, rumou para a JFK Drive.
A rota I
-
376 os levou à I
-
287 e então tomaram a direção do aeroporto. O
tráfego era ligeiro. O motor ronronava maciamente, através dos novos
canos de descarga. Os mostradores no painel de instrumentos irradiavam
um mí
stico fulgor esverdeado.
Arnie ligou o r
ádio e encontrou a WDIL de Pittsburgh, estação em
FM, que só tocava músicas antigas. Gene Chandler cantava
"The Duke of
Earl'.
—
Esta coisa roda como um sonho
—
disse Michael Cunningham,
parecendo admirado.
—
Obrigad
o
—
respondeu Arnie, sorrindo. Michael respirou fundo.
—
Tem cheiro de
novo.
—
Há muita coisa nova aqui dentro. As capas traseiras me ficaram
em oitenta pratas. Parte do dinheiro que provocou tanta reclamação de
Regina. Fui à biblioteca, pedi um monte de l
ivros e tentei copiar tudo, o
melhor que pude. De qualquer modo, não foi tão fácil como se possa
pensar.
—
Por que não?
—
Em primeiro lugar, o Plymouth Fury 58 não foi lançado como um
carro clássico, de maneira que ninguém escreveu muito a respeito,
inclus
ive nos volumes retrospectivos sobre automóveis: O
Carro Americano,
Automóveis Americanos Clássicos, Automóveis dos Anos 50,
coisas assim. O
Pontiac 58 foi um clássico, mas somente no segundo ano saiu o modelo
Bonneville. O T
-
Bird 58, com aletas em forma d
e orelha de coelho, é que
foi realmente o último grande Thunderbird, acho eu. Além disso...
—
Não pensei que você entendesse tanto de carros antigos
—
disse
Michael.
—
Há quanto tempo se interessa pelo assunto, Arnie?
Ele deu de ombros vagamente.
—
O pior
é que LeBay havia feito um pedido pessoal, diretamente a
Detroit. O Plymouth não oferecia um modelo Fury em vermelho e branco...
procurei restaurar o carro o mais igual possível à maneira como foi feito
em Detroit. Suei um bocado para isso.
—
Por que desej
a restaurá
-
lo exatamente como LeBay o tinha?
Novamente, aquele vago encolher de ombros.
—
Sei lá. Apenas me pareceu o mais acertado a fazer.
—
Olhe, acho que fez um trabalho excelente.
—
Obrigado.
Michael inclinou
-
se e observou o painel de instrumentos.
—
O que é?
—
perguntou Arnie, um pouco rudemente.
—
Macacos me mordam
—
disse Michael.
—
Nunca vi
isso
antes!
—
O quê?
—
Arnie baixou os olhos.
—
Oh, o odômetro...
—
Está rodando para trás, não?
Realmente, o odômetro girava para trás. Naquele dia, o entardec
er
de 1º de novembro, indicava 79.500 e tantas milhas. Enquanto Michael
espiava, o indicador das dezenas de milha girou de 2 para 1, depois para 0.
Quando voltou a 9, o marcador de milhas comeu mais uma.
Michael riu.
—
Eis algo que você deixou passar, filh
o. Arnie riu também
—
um
leve riso.
—
Concordo
—
disse.
—
Segundo Will, deve haver um fio cruzado
em algum lugar. Creio que não vou mexer nisso. Chega a ser divertido, ter
um odômetro que anda para trás.
—
Ele é preciso?
—
Como?
—
Bem, se você for de nossa
casa à Praça da Estação, ele subtrairia
cinco milhas do total?
—
Oh, entendi
—
disse Arnie.
—
Não, ele não tem nada de preciso.
Atrasa duas ou três milhas, para cada milha real percorrida. Às vezes mais.
O cabo do velocímetro vai acabar rebentando, cedo o
u tarde e, quando o
trocar, o problema se resolverá por si só.
Michael já enfrentara um ou dois cabos do velocímetro rebentados e
olhou para o ponteiro, esperando o tremular característico, indicando que
ali havia problema. O ponteiro, entretanto, permanec
ia imóvel, pouco
acima de 40. O velocímetro parecia excelente; apenas o odômetro é que
enlouquecera. Estaria Arnie acreditando realmente que os mesmos cabos
serviam para o velocímetro e o odômetro? Certamente que não.
Ele riu e comentou:
—
É qualquer coisa
de fantástico, filho.
—
Por que o aeroporto?
—
perguntou Arnie.
—
Vou lhe dar um tíquete de trinta dias de estacionamento
—
disse
Michael.
—
Cinco dólares. Mais barato do que na garagem de Darnell e
você poderá ter o carro sempre que quiser. O ônibus para
o aeroporto faz
parada nos pontos normais de outros ônibus.
—
Céus, é a coisa mais louca que já ouvi!
—
bradou Arnie.
Manobrou para o retorno, diante de uma sombria loja de lavagem a
seco.
—
Vou ter que andar trinta quilômetros de ônibus até o aeroporto
p
ara apanhar meu carro quando quiser? Oh, não! De maneira nenhuma!
Ia dizer mais alguma coisa, quando foi subitamente agarrado pelo
pescoço.
—
Agora escute
—
disse Michael.
—
Sou seu pai, portanto, me ouça!
Sua mãe tinha razão, Arnie. Você ficou irracional,
mais do que irracional,
nos dois últimos meses. Aliás, ficou bastante estranho!
—
Me larga
—
exclamou Arnie, esforçando
-
se para libertar
-
se.
Michael não o largou, mas afrouxou a pressão.
—
Vou colocar a situação por outro ângulo para você
—
disse.
—
Sim,
o aeroporto fica a uma boa distância, mas os mesmos 25 centavos que
o levam à garagem de Darnell o trarão até aqui. Há garagens de
estacionamento mais próximas, porém na cidade são maiores as
incidências de roubo e vandalismo. Aqui no aeroporto, ao contrár
io, é
perfeitamente seguro.
—
Nenhum estacionamento público é seguro.
—
Em segundo lugar, é mais barato que uma garagem no centro da
cidade e
muito
mais barato do que na Darnell's.
—
Não é esta a questão, sabe muito bem!
—
Talvez esteja certo
—
disse Micha
el
—
, mas também está
esquecendo algo, Arnie. A questão real.
—
Suponhamos que você me diga qual é.
—
Certo, eu direi.
—
Michael fez uma ligeira pausa, olhando
fixamente para o filho. Ao falar, sua voz era baixa e contida, quase tão
melodiosa como sua flau
ta.
—
Juntamente com qualquer noção do que é
razoável, você parece ter perdido inteiramente o sentido de perspectiva.
Está quase com dezoito anos, em seu último ano em uma escola pública.
Creio que já decidiu não entrar para Horlicks; estive vendo as broch
uras
de universidades que levou para casa...
—
Isso mesmo, não vou para Horlicks
—
disse Arnie, agora um
pouco mais calmo.
—
Não depois de tudo isto. Você não pode imaginar o
quanto estou querendo afastar
-
me daqui. Bem, talvez imagine.
—
Sim, eu imagino. T
alvez seja a melhor providência. Melhor do
que esta constante animosidade entre você e sua mãe. Tudo quanto lhe
peço é que não conte a ela por enquanto, que espere até ter enviado seus
documentos de solicitação à universidade.
Arnie deu de ombros, sem nada
prometer.
—
Você irá levar seu carro para lá, caso ainda esteja rodando...
—
Ele estará rodando.
—
...e
se
for uma universidade que permita aos calouros
estacionarem seus carros no
campus.
Arnie se virou para o pai, com a
surpresa brotando de sua raiva lat
ente. Estava surpreso e inquieto. Aquela
era uma possibilidade que ainda não havia considerado.
—
Não irei para uma universidade que não me permita ter meu
carro comigo
—
disse.
Seu tom era de paciente recitação, o tipo de voz que um professor de
crianças
excepcionais usaria em aula.
—
Viu só?
—
exclamou Michael.
—
Ela tem razão. Basear sua
escolha de universidade na política escolar envolvendo calouros e carros é
totalmente irracional. Você ficou obcecado por este carro.
—
Não creio que você consiga entend
er. Michael apertou os lábios
por um momento.
—
De qualquer modo, que diferença faz vir de ônibus ao aeroporto
para apanhar seu carro, se quiser sair com Leigh? Claro, é um
inconveniente, porém não tão grande assim. Significa que você só o usará
se houver
necessidade, além de poupar dinheiro da gasolina.
—
Michael
fez uma pausa e tornou a exibir seu sorriso tristonho.
—
Ambos sabemos
que Regina não encara isto como jogar dinheiro fora. Para ela, este é o seu
primeiro passo decisivo para afastar
-
se dela... d
e nós. Acho que sua mãe...
oh, droga, que sei eu?
Interrompeu
-
se, fitando o filho. Arnie o encarou, pensativo.
—
Leve o carro para a universidade com você; mesmo se os calouros
forem proibidos de ter carros no
campus,
sempre há outros meios de...
—
Como es
tacionar no aeroporto?
—
Sim, mais ou menos isso. Quando você vier para casa nos fins de
semana, Regina ficará tão contente em vê
-
lo que nem mencionará o carro.
Diabo, ela provavelmente até irá para a entrada de automóveis ajudá
-
lo a
lavá
-
lo e poli
-
lo, ape
nas para descobrir o que você estará fazendo. Dez
meses. Então, tudo terminará. Podemos ter paz na família novamente.
Vamos, Arnie. Dirija.
Arnie afastou
-
se da frente da lavanderia e reentrou no tráfego.
—
Esta coisa está no seguro?
—
perguntou Michael, ab
ruptamente.
Arnie riu.
—
Está brincando? Neste Estado quando não se tem um seguro de
responsabilidade legal e acontece um acidente os tiras nos matam. Sem
isso, seremos sempre os culpados, mesmo que o outro carro caia do céu e
nos amasse o teto. Este é um
dos meios pelos quais os bostas mantêm os
adolescentes fora das estradas, na Pensilvânia.
Michael quis dizer a ele que um número despropositado de
acidentes fatais na Pensilvânia
—
41 por cento
—
envolvia motoristas
adolescentes. Regina lera a estatística
para ele, como parte de um artigo no
suplemento dominical de um jornal, declamando o número em lentos tons
apocalípticos,
"Quarenta e um
por cento!", pouco depois de Arnie ter
comprado o carro. Não obstante, ficou calado, concluindo que seu filho
não quere
ria ouvir aquilo... pelo menos em seu atual estado de espírito.
—
Apenas um seguro de responsabilidade legal?
Estavam passando sob um sinal refletor, dizendo FAIXA
ESQUERDA
—
PARA O AEROPORTO. Arnie ligou o pisca
-
pisca e
mudou de faixa. Michael pareceu rel
axar um pouco.
—
Só depois dos vinte e um anos se pode fazer um seguro contra
acidentes; essas merdas de companhias de seguros são ricas como Creso,
mas não nos cobrem, a menos que a vantagem esteja
escandalosamente
do
lado delas.
Na voz de Arnie havia uma
nota um tanto impertinente, algo que
Michael jamais havia notado antes. Também estava espantado e um pouco
consternado pela escolha das palavras de seu filho. Imaginava que ele
empregasse tal tipo de linguagem com os companheiros (pelo menos, foi o
que ma
is tarde comentou com Dennis Guilder, parecendo ignorar por
completo que, até seu último ano de ginásio, Arnie não tivera outro
companheiro além do próprio Dennis), mas o fato é que jamais a usara
diante dos pais.
—
Seu registro de motorista e se é ou não
motorista habilitado nada
têm a ver com isso
—
prosseguiu Arnie.
—
Não se pode ter uma batida,
porque as merdas das tabelas atuariais deles dizem que não se pode bater.
Quando o cara faz vinte e um anos, tudo bem, mas desde que esteja
disposto a gastar uma
fortuna, em geral, os prêmios das apólices acabam
sendo mais altos do que as multas impostas ao carro, até completarmos os
vinte e três anos, ou por aí, a menos que estejamos casados. Oh, os bostas
pensaram em tudo direitinho! Eles sabem como encurralar a
gente, ora se
sabem!
À frente e acima deles, as luzes do aeroporto fulguravam, as pistas
de pouso e decolagem delineavam
-
se em místicas paralelas de
luminosidade azulada.
—
Se alguém chegar para mim e perguntar qual a forma de vida
humana mais baixa, resp
onderei que é um agente de seguros.
—
Parece ter feito um profundo estudo a respeito
—
comentou
Michael.
Não ousava dizer algo mais, pois Arnie parecia esperar um pretexto
para um novo acesso de ódio.
—
Andei perguntando em cinco companhias diferentes. Ape
sar do
que mamãe insinuou, não sinto a menor vontade de jogar meu dinheiro
fora.
—
E responsabilidade legal foi o máximo que conseguiu?
—
Certo. Seiscentos e cinqüenta dólares por ano. Michael assobiou.
—
Exatamente isso
—
acrescentou Arnie.
Outro sinal in
termitente avisava que as duas faixas da mão esquerda
eram para estacionar, as da direita para partida ou saída. À entrada do
pátio de estacionamento, o caminho se dividia novamente. À direita,
havia um portão automático, onde era obtido um tíquete para
es
tacionamento de curto prazo. No lado esquerdo, ficava a cabina
envidraçada onde permanecia o encarregado do pátio de estacionamento,
vendo uma pequena TV em preto e branco e fumando um cigarro.
Arnie suspirou.
—
Talvez você esteja certo. Enfim, esta pode s
er a melhor solução.
—
Claro que é
—
disse Michael, aliviado. Arnie estava se
assemelhando agora ao antigo Arnie e aquele brilho duro de seus olhos
desaparecera finalmente.
—
Dez meses, eis tudo.
—
Certo.
Dirigiu até a cabina. O encarregado, um rapazinho c
om a suéter
preta e laranja do ginásio, com o escudo do Libertyville nos bolsos, fez
deslizar a divisão envidraçada e inclinou
-
se para fora.
—
O que vai ser?
—
perguntou.
—
Eu queria um tíquete para trinta dias
—
disse Arnie, enfiando a
mão no bolso para t
irar a carteira.
Michael pousou a mão sobre a dele.
—
A idéia foi minha
—
disse.
—
Eu pago.
Arnie puxou a mão, com delicadeza, mas firmemente, e tirou a
carteira.
—
O carro é meu
—
respondeu.
—
Eu mesmo pago.
—
Eu só queria...
—
começou Michael.
—
Eu sei
—
disse Arnie
—
, mas quero pagar. Michael suspirou.
—
Dava para imaginar. Você e sua mãe... Tudo ficará ótimo, desde
que feito como sugeri. Os lábios de Arnie tremeram momentaneamente,
depois sorriram.
—
Bem... é isso aí
—
disse ele.
Os dois se entreolharam
e começaram a rir.
No mesmo instante em que riram, o motor de Christine morreu. Até
então, a máquina viera funcionando com absoluta perfeição. Agora,
simplesmente, silenciara; as luzes do marcador do óleo e amperagem se
apagaram.
Michael ergueu as sobranc
elhas.
—
O que terá sido?
—
Não sei
—
respondeu Arnie, franzindo o cenho.
—
Nunca
aconteceu antes. Girou a chave e o motor pegou imediatamente.
—
Bem, parece que não foi nada
—
comentou Michael.
—
No fim da semana, vou dar um jeito na regulagem
—
murmurou
Arnie.
Ligou o motor e ouviu atentamente. Naquele momento, Michael
constatou que Arnie não tinha a menor semelhança com seu filho. Parecia
uma outra pessoa, alguém muito mais velho e endurecido. Sentiu uma
leve, mas extremamente dolorosa aguilhoada de medo
no peito.
—
Ei, vai querer o tíquete ou prefere ficar aí a noite inteira,
discutindo sua regulagem?
—
perguntou o encarregado do pátio de
estacionamento.
Arnie o achou vagamente familiar, como acontece quando vemos
alguém se movimentando pelos corredores
da escola, sem que tenhamos
nada a ver com tal pessoa.
—
Oh, sim, desculpe.
Arnie entregou
-
lhe uma nota de cinco dólares e o encarregado lhe
deu um tíquete mensal.
—
No fim do pátio
—
indicou o rapazinho.
—
Não esqueça de
revalidar o tíquete cinco dias ant
es do fim do mês, se quiser ter a mesma
vaga novamente.
—
Certo.
Arnie dirigiu para os fundos do pátio, a sombra de Christine
avolumando e encolhendo, quando passavam sob os postes com
lâmpadas de sódio. Encontrou uma vaga e manobrou o carro para ela.
Quan
do desligou o motor, fez uma careta e levou a mão às costas.
—
Isso ainda o incomoda?
—
perguntou Michael.
—
Só um pouquinho
—
respondeu Arnie.
—
Quase havia
desaparecido, mas voltou ontem. Devo ter levantado algum peso, sem
querer. Não esqueça de trancar
sua porta.
Os dois saíram e trancaram o carro. Uma vez fora dele, Michael se
sentiu muito melhor
—
como se estivesse mais ligado ao filho e,
provavelmente ainda mais importante, com a impressão de não ser tão
grande o seu papel de bobo impotente com uma ti
lintante carapuça de
sininhos, na discussão que acontecera em casa. Fora do carro, surgia a
sensação de que algo poderia ser salvo daquela noite
—
talvez muita coisa.
—
Vejamos o quanto esse ônibus é rápido
—
disse Arnie.
Juntos, começaram a cruzar o pátio
de estacionamento em direção
ao terminal, como dois companheiros.
No trajeto para o aeroporto, Michael formara uma opinião sobre
Christine. Ficara impressionado com o trabalho de restauração feito por
Arnie, mas não gostava do carro em si
—
teve por ele p
rofunda antipatia.
Refletiu que era ridículo sentir
-
se daquela forma em relação a um objeto
inanimado, porém a antipatia estava ali, forte e indiscutível, como um
caroço em sua garganta.
Era impossível isolar a fonte do antagonismo. Aquele carro
provocara
um amargo problema familiar, e ele supôs que talvez fosse esse
o motivo... porém não era tudo. Michael não gostara do jeito como
Arnie
ficava,
quando na direção: algo arrogante e petulante ao mesmo tempo,
como um pequeno rei. O modo impotente como injuriar
a o seguro... seu
uso daquela palavra feia e contundente
—
"bostas"
—
, inclusive a maneira
como o carro morrera, quando tinham rido juntos.
Havia ainda o cheiro. Não era perceptível logo de início, mas estava
lá. Não o cheiro das novas capas dos assentos,
porque este era bastante
agradável. O outro exalava um odor sutil, amargo e quase (mas não
inteiramente) secreto. Um odor antigo. Bem, disse Michael para si mesmo:
o carro é velho; por que, raios, era de se esperar um cheiro de novo?
E
isto fazia
um sentid
o indiscutível. A despeito do trabalho realmente fantástico que
Arnie fizera nele ao restaurá
-
lo, o Fury tinha vinte anos de idade. Aquele
cheiro acre e mofado poderia provir da forração antiga do porta
-
mala ou
dos tapetes velhos, por baixo dos novos. Talv
ez se originasse do
estofamento original, sob os novos e reluzentes. Apenas um cheiro de
idade.
No entanto, aquele cheiro subjacente, difuso e vagamente doentio o
preocupava. Parecia ir e vir em ondas, às vezes bastante perceptível, em
outras totalmente in
detectável. Não parecia ter uma fonte específica.
Quando no auge, era o cheiro semelhante ao exalado pelo cadáver
putrefato de algum animal pequeno
—
um gato, um camundongo, talvez
um esquilo
—
que houvesse penetrado no porta
-
mala ou rastejado para o
inter
ior da estrutura, e lá tivesse morrido.
Michael estava orgulhoso com o que seu filho realizara... e muito
satisfeito em sair do carro dele.
S
ANDY
Primeiro caminhei pelo Pare e Compre,
Depois passei de carro pelo Pare e Compre.
Gostei muito mais, quando pa
ssei dirigindo pelo Pare e Compre,
Porque tinha o rádio ligado.
—
Jonathan Richmond e os Modern Lovers
O encarregado do pátio de estacionamento naquela noite
—
de fato,
todas as noites, das seis da tarde às dez da noite
—
era um jovem
chamado Sandy Galton
, o único membro do bando de amigos íntimos de
Buddy Repperton que não estivera presente na área de fumar no dia em
que Buddy fora expulso do colégio. Arnie não o reconheceu, mas Galton o
viu muito bem.
Afastado da escola e sem o menor interesse em iniciar
as
providências para sua readmissão no início do semestre da primavera, em
janeiro, Buddy Repperton tinha ido trabalhar no posto de gasolina
dirigido pelo pai de Don Vandenberg. Em suas poucas semanas de serviço
ali, ele já pusera em ação um razoável núme
ro de tramóias
—
como dar
troco incompleto aos clientes apressados demais para contar as notas
recebidas, praticar a farsa da recauchutagem (cobrando do cliente um
pneu recauchutado como se fosse novo e embolsando a diferença de
quinze a sessenta dólares),
praticar ato semelhante com "peças usadas" e
também vender tíquetes de inspeção a rapazinhos do ginásio e da
próxima Universidade de Horlicks, jovens demasiado ansiosos em
manterem na estrada suas mortais arapucas.
O posto ficava aberto vinte e quatro hor
as por dia e Buddy
Repperton trabalhava no último turno, de 9 da noite às cinco da manhã.
Por volta de onze da noite, "Penetra" Welch e Sandy Galton às vezes
apareciam lá, no velho e maltratado Mustang de Sandy. Richie Trelawney
costumava ir em sua Firebir
d, e Don, naturalmente, estava sempre
chegando e saindo quase todo o tempo, quando não ficava divertindo
-
se
na escola. Por volta de meia
-
noite de qualquer dia da semana, era comum
ver
-
se seis ou oito indivíduos nas dependências do prédio, bebendo
cerveja e
m xícaras sujas, esvaziando em rodízio uma garrafa do Texas
Driver de Buddy, fumando um baseado ou comendo qualquer coisa,
arrotando, contando piadas sujas, mentindo sobre quantas conas estavam
comendo e talvez ajudando Buddy a roubar o que quer que estive
sse
dando sopa por ali.
Durante uma daquelas reuniões de fim de noite, em princípios de
novembro, aconteceu de Sandy mencionar que Arnie Cunningham estava
estacionando sua máquina na área do aeroporto de longo prazo. De fato,
Cunningham havia pago um tíque
te de estadia por trinta dias.
Buddy, cuja conduta costumeira durante aquelas reuniões de
fanfarronice a altas horas era de macambúzio retraimento, empurrou
bruscamente para trás sua cadeira de assento plástico barato, sobre todas
as quatro pernas, e coloc
ou sua garrafa de Driver sobre o armário dos
limpadores de pára
-
brisa, com um baque surdo.
—
O que foi que você disse?
—
perguntou.
—
Cunningham? O
velho Cara de Cona?
—
Hum
-
hum
—
disse Sandy, surpreso e um tanto inquieto.
—
Era
ele.
—
Tem certeza? O cara
que me chutou da escola? Sandy olhou para
ele com crescente alarma.
—
Exato. Por quê?
—
E ele ficou com um tíquete de trinta dias, sinal de que vai ficar
estacionado nas vagas de longo prazo.
—
Certo. Talvez seus velhos não quisessem que ele deixasse o car
ro
em...
A voz de Sandy extinguiu
-
se. Buddy Repperton começara a sorrir.
Aquele sorriso não era uma visão agradável, não apenas porque os dentes
por ele revelados começassem a ficar cariados. Era como se algum terrível
mecanismo, em alguma parte, tivesse a
cabado de ganhar vida e começasse
a funcionar, ganhando alta velocidade.
Buddy olhou em torno, de Sandy para Don, depois "Penetra" Welch
e Richie Trelawney. Os outros o encararam interessados e um pouco
assustados.
—
O Cara de Cona
—
disse ele em tom suave
, acariciante.
—
O
velho Cara de Cona já legalizou sua máquina e seus velhos caretas fizeram
ele estacionar no aeroporto...
Ele riu.
"Penetra" e Don trocaram um olhar que tanto tinha de inquieto
como de ansioso.
Buddy inclinou
-
se para eles, de cotovelos no
s joelhos dos
jeans.
—
Ouçam
—
começou.
A
RNIE E
L
EIGH
Rodando em meu automóvel,
Com meu bem junto de mim, no volante,
Roubei um beijo e rodei mais depressa,
A curiosidade ficando mais forte
—
Rodando e ouvindo o rádio,
Sem nenhum destino certo.
—
Chuck Be
rry
O rádio do carro estava na WDIL e Dion cantava "Runaround Sue"
em sua voz forte, a plenos pulmões, porém nenhum deles o ouvia.
Ele escorregara a mão por baixo da camiseta que ela usava e
encontrara a glória macia dos seios, coroados por mamilos eretos
e rijos de
excitamento. A respiração dela saía em haustos curtos e ofegantes. E, pela
primeira vez, encaminhara a mão para onde ele queria, para onde ele a
necessitava,
na junção das coxas, onde pressionava, virava e mexia, sem
experiência, mas com desejo
suficiente para suprir a deficiência.
Ele a beijou e ela abriu a boca amplamente, expondo a língua. O
beijo foi como inalar o límpido aroma/sabor de uma floresta após a chuva.
Ele podia sentir o excitamento, a ânsia que ela exalava, como uma aura.
Inclino
u
-
se para ela,
estirou
-
se
em sua direção, todo inteiro e, por um
momento, sentiu
-
a corresponder com pura e simples paixão.
Então, ela não estava mais ali.
Arnie sentou
-
se ereto, admirado e estupidificado, um pouco à
direita do volante, quando a luz do teto
de Christine se acendeu. Foi um
breve clarão, a porta do passageiro bateu com firmeza, fechando
-
se, e a
luz voltou a desligar
-
se.
Ele ficou parado mais alguns segundos, não muito certo sobre o
acontecido, momentaneamente nem muito certo de onde se encontr
ava.
Seu corpo estava em total ebulição
—
um confuso amontoado de emoções
e erráticas reações físicas, metade maravilhosas e metade terríveis. Sua
glande doía; o pênis enrijecera como uma barra de ferro e os testículos
latejavam surdamente. Ele podia senti
r a adrenalina turbilhonando
velozmente no sangue, subindo, descendo, indo a todos os recantos.
Seu punho fechado caiu com força sobre a perna. Então, deslizando
no assento, abriu a porta e foi atrás dela.
Leigh estava de pé bem na borda da terraplenagem,
olhando para a
escuridão mais abaixo. Dentro de um brilhante retângulo, no meio
daquela escuridão, Sylvester Stallone varou a noite, vestido como um
jovem líder trabalhista dos anos 30. Arnie tinha experimentado
novamente a sensação de viver em algum sonho
maravilhoso que, a
qualquer momento, poderia transformar
-
se em pesadelo... talvez isso já
tivesse começado a acontecer.
Ela estava demasiado perto da borda
—
ele lhe pegou o braço e a
puxou delicadamente para trás. O solo ali era seco e esboroado. Não hav
ia
gradil nem mureta. Se a terra da borda cedesse Leigh teria ido junto, cairia
em alguma parte das moradias suburbanas espalhadas a esmo em torno
do
drive
-
in
de Liberty Hill.
A terraplenagem tinha sido o local de encontro dos namorados,
desde tempos imemo
rais. Ficava no final de Stanson Road, uma longa e
serpenteante faixa de duas pistas asfaltadas, que primeiro se curvara para
fora da cidade, depois formando uma curva apertada e retomando até
morrer como rua sem saída em Libertyville Heights, onde outrora
houvera uma fazenda.
Era 4 de novembro e a chuva que começara no início daquela noite
de sábado transformara
-
se em ligeiro chuvisco. Eles tinham a
terraplenagem e a visão grátis do
drive
-
in
(embora silenciosa) para si
mesmos. Arnie a conduziu de volta ao
carro
—
ela voltou de boa
vontade
—
, observando os diminutos pingos do chuvisco no rosto de
Leigh. Foi somente no interior, à luz fantasmagórica do clarão esverdeado
que brotava do painel de instrumentos, que Arnie teve certeza: ela estava
chorando.
—
O qu
e foi?
—
perguntou ele.
—
O que houve de errado? Ela
sacudiu a cabeça e chorou mais forte.
—
Eu fiz... alguma coisa que você não queria?
—
Engolindo em seco,
obrigou
-
se a perguntar:
—
Tocando
-
me daquele jeito?
Ela tornou a sacudir a cabeça, mas Arnie não t
inha certeza do
significado. Ele a abraçou, desajeitado e preocupado. No fundo da mente,
pensava na camada de neve que se formara, na viagem de volta descendo
a ladeira e no fato de que ainda não colocara pneus de neve em Christine.
—
Nunca fiz isso com ne
nhum rapaz
—
disse ela, contra o ombro
dele.
—
Foi a primeira vez que toquei... você sabe. Fiz porque queria.
Porque quis mesmo.
—
Então, o que foi?
—
Não posso... aqui.
As palavras saíram lentas e difíceis, uma de cada vez, com quase
medrosa relutância.
—
Na terraplenagem?
—
disse Arnie.
Olhou estupidamente em torno, pensando que Leigh talvez
acreditasse que só tinham ido ali para verem o filme sem pagar.
—
Neste carro!
—
gritou ela, de repente.
—
Não posso fazer amor
com você neste carro!
—
Hein?
—
Ele a
fitou, sem entender.
—
De que está falando? E por
que não?
—
Porque... porque... eu não sei!
—
Ela se esforçou para dizer algo
mais, porém explodiu em novas lágrimas.
Arnie tornou a abraçá
-
la, até vê
-
la acalmar
-
se.
—
Apenas não sei a quem você está amando
mais
—
disse Leigh,
quando o choro permitiu.
—
Isso é...
—
Arnie interrompeu
-
se, meneou a cabeça e sorriu.
—
Isso é loucura, Leigh!
—
Será mesmo?
—
perguntou ela, observando
-
lhe o rosto.
—
Com
qual de nós você fica mais tempo? Comigo... ou com ela?
—
Está
falando de Christine?
Ele olhou em torno, esboçando aquele enigmático sorriso que ela
tanto podia achar adorável ou terrivelmente odioso
—
às vezes, ambas as
coisas ao mesmo tempo.
—
Estou
—
disse Leigh, em voz sem entonação. Baixou os olhos
para as mãos q
ue jaziam inanimadas sobre as calças compridas de lã
azul.
—
Acho que é imbecilidade minha.
—
Fico muito mais tempo com você
—
disse Arnie. Meneou a
cabeça.
—
Isso é loucura. Bem, talvez seja o normal... e apenas eu ache
uma loucura, porque nunca tive uma
namorada antes.
Estendeu a mão e tocou
-
lhe os cabelos, onde cascateavam sobre um
ombro do casaco aberto. Por baixo, a camiseta dizia DÊ
-
ME
LIBERTYVILLE OU DÊ
-
ME A MORTE e os mamilos salientavam
-
se sob o
algodão fino de modo tão sensual que Arnie se sentiu
algo delirante.
—
Pensei que garotas sentissem ciúmes de outras garotas. Não de
carros. Leigh riu brevemente.
—
Tem razão. Deve ser porque você nunca teve uma namorada.
Carros são garotas. Não sabia?
—
Ora, francamente...
—
Então, por que não lhe deu o nom
e de Christopher?
Repentinamente, Leigh bateu com a palma aberta, fortemente,
contra o assento. Arnie pestanejou.
—
Ora, vamos, Leigh. Não faça isso.
—
Não gosta que eu bata em sua garota?
—
perguntou ela, com
súbito e inesperado veneno. Então, percebeu os
olhos magoados.
—
Sinto
muito, Arnie.
—
Sente mesmo?
—
disse ele, fitando
-
a inexpressivamente.
—
Parece que ninguém gosta de meu carro, no momento: você, meu pai,
minha mãe, até mesmo Dennis. Larguei couro do corpo, trabalhando nele,
e tudo significa apen
as zero para os outros!
—
Significa algo para mim
—
disse ela, maciamente.
—
O
trabalho
que deu.
—
Hum
-
hum
—
disse Arnie, taciturnamente. A paixão, o calor
haviam desaparecido. Sentia frio agora e tinha o estômago um pouco
nauseado.
—
Escute, é melhor irmo
s andando. Não tenho pneus para neve.
Seus pais vão achar muito esquisito, nós dois irmos jogar boliche e depois
ficarmos presos na Stanson Road.
Leigh riu baixinho.
—
Eles não sabem onde a Stanson Road termina.
Arnie ergueu uma sobrancelha para ela, parte
do bom humor
retornando.
—
Isto é o que
você
pensa
—
disse.
Arnie dirigiu lentamente na descida, quando voltavam. Christine se
saiu muito bem, na estrada íngreme e serpenteante, suas rodas aderindo
perfeita e facilmente ao solo. O chuveiro de estrelas te
rrestres, que eram
Libertyville e Monroeville, foi ficando maior, depois se fundiu e parou de
ostentar qualquer formato. Leigh olhava para aquilo com tristeza,
sentindo que a melhor parte de uma noite potencialmente espetacular de
algum modo se perdera. Es
tava irritada, menosprezando
-
se
—
insatisfeita,
foi o que supôs. Havia uma dor surda em seus seios. Ignorava se
pretendia deixá
-
lo ir "até o fim da linha" como era eufemisticamente
conhecido, mas depois que a situação chegara a um certo ponto, nada
havia s
ido como esperara... tudo porque havia aberto a maldita boca no
momento errado.
Seu corpo estava confuso e o mesmo acontecia aos pensamentos. Por
várias vezes, durante a quase silenciosa corrida de volta, ela abriu a boca,
a fim de tentar esclarecer como s
e sentia... para tornar a fechá
-
la, receando
ser interpretada erradamente. Aliás, a própria Leigh não sabia ao certo
como se sentia.
Não tinha ciúmes de Christine... e tinha, ao mesmo tempo. Quanto a
isso, Arnie não dissera a verdade. Leigh fazia uma boa i
déia de todo o
tempo que ele gastava consertando o carro, mas o que havia de tão errado
nisso? Arnie tinha habilidade manual, gostava de trabalhar no carro e este
rodava como um relógio... exceto por aquele esquisito detalhe do
odômetro, cujos números corr
iam para trás.
Carros são garotas,
ela dissera, sem pensar muito no que dizia; aquilo
apenas lhe escapara da boca. Evidentemente, nem sempre isto era verdade,
porque não pensava no sedã de sua família como tendo um gênero em
particular; era apenas um Ford.
Só que...
Esqueça, livre
-
se de todas essas idiotices, essas besteiras! A verdade
era muito mais brutal, inclusive mais louca, não? Ela não pudera fazer
amor com ele, não pudera tocá
-
lo daquele jeito íntimo, muito menos
pensara em fazê
-
lo chegar ao clímax
daquela maneira (ou da outra, a
maneira real
—
tinha pensado nisso vezes sem conta, enquanto jazia em
sua cama estreita, sentindo um novo e quase incrível excitamento assaltá
-
la), dentro do carro.
Não naquele carro.
Porque a parte mais alucinante de tudo h
avia sido sentir que
Christine os
espiava.
Sentir que talvez tivesse ciúmes deles, que os
desaprovava, até mesmo odiava. Porque havia ocasiões (como agora,
quando Arnie dirigia o Plymouth tão suave e delicadamente através das
camadas de neve que se iam for
mando) em que ela sentia estarem os
dois
—
Arnie e Christine
—
abraçados, envolvidos em perturbadora
paródia do ato amoroso. Porque Leigh não se sentia
andando
em Christine;
ao entrar no carro para ir com Arnie a algum lugar, sentia
-
se
engolida por
Christi
ne. E o ato de beijá
-
lo, de fazer amor com ele, parecia uma
perversão, pior que o
voyeurismo
ou exibicionismo
—
era como fazer amor
dentro do corpo de sua rival.
E a parte realmente louca daquilo era que odiava Christine.
Odiava
-
a e a temia. Leigh passara
a ter uma vaga irritação contra
caminhar diante da nova grade do radiador ou muito perto do porta
-
mala.
Surgiam
-
lhe vagos pensamentos do freio de emergência falhando ou da
mudança passando bruscamente de parado para ponto morto, por algum
motivo. Jamais nu
trira pensamentos semelhantes em relação ao sedã da
família.
O mais importante, contudo, era não querer fazer nada no carro... ou
mesmo ir nele a algum lugar, se pudesse evitá
-
lo. De algum modo, Arnie
ficava diferente quando dentro do carro, transformava
-
s
e em uma pessoa
que ela não conhecia mais. Adorava o contato das mãos dele em seu
corpo
—
seus seios e coxas (ainda não permitira que ele tocasse o seu
centro, mas desejava as mãos de Arnie lá; achava que, se ele a tocasse lá,
ela certamente se diluiria).
O contato dele sempre lhe provocava um sabor
de excitamento na boca, a sensação de que cada sentido estava vivo e
deliciosamente sincronizado. No carro, entretanto, tais sensações pareciam
embotadas... talvez porque, no carro, Arnie fosse menos honestament
e
apaixonado e, de certo modo, mais lúbrico.
Leigh tornou a abrir a boca quando dobraram para a sua rua,
querendo explicar um pouco daquilo mas, novamente, nada conseguia
dizer. Por que falar? Nada havia realmente para explicar
—
era tudo
muito vago. Vapor
es nebulosos. Bem... havia uma coisa
—
mas isto não
poderia contar a ele, porque o magoaria demais. E Leigh não queira feri
-
lo,
pois achava que estava começando a amá
-
lo.
Contudo, a coisa existia. Estava lá.
O cheiro
—
um cheiro forte e pútrido, camuflado
sob o aroma dos
estofamentos novos e do fluido de limpeza que ele usara nos tapetes do
piso. Estava lá, fraco, mas terrivelmente desagradável. Quase nauseante.
Como se, alguma vez, qualquer coisa houvesse rastejado para
dentro do carro e tivesse morrido lá
.
Ele lhe deu um beijo de boa
-
noite à porta de casa, a neve cintilando
prateada no cone de luz amarela, despejada pela lâmpada da entrada de
carros, aos pés dos degraus da varanda. A claridade reluzia como jóias, no
louro
-
escuro de seus cabelos.
Arnie gos
taria de tê
-
la beijado realmente, mas o fato de os pais dela
poderem estar espiando da sala de estar
—
deviam estar lá, sem dúvida, o
forçou a beijá
-
la quase formalmente, como se beijaria uma prima querida.
—
Sinto muito
—
disse ela.
—
Agi como uma tola.
—
Não
—
respondeu Arnie, obviamente querendo dizer sim.
—
Foi apenas porque
—
sua mente forneceu algo que era um
curioso híbrido de verdade e mentira
—
não me pareceu correto no carro.
Em
nenhum
carro. Quero ficar com você, mas não estacionados no escuro,
n
o fim de uma rua sem saída. Você compreende?
—
Claro
—
disse ele.
—
Compreendo perfeitamente o que quer dizer.
Lá em cima, na terraplenagem, dentro do carro, ficara um pouco
aborrecido com ela... para ser franco, ficara bem irritado. Agora, no
entanto, jun
to à porta de sua casa, achou que podia compreender
—
e
admirou
-
se por não querer negar
-
lhe nada ou contrariar
-
lhe a vontade de
modo algum.
Ela o afagou, passou os braços por seu pescoço. O casaco continuava
aberto e Arnie pôde sentir o toque macio e enlou
quecido de seus seios.
—
Amo você
—
disse Leigh, pela primeira vez.
Então, deslizou para dentro de casa, deixando
-
o de pé
momentaneamente na entrada, agradavelmente surpreso e muito mais
acalorado do que deveria estar, naquela pulsante e tamborilante neve
de
fins do outono.
A idéia de que os Cabot poderiam achar peculiar que ele
permanecesse parado à sua porta por muito mais tempo, sob a neve,
finalmente abriu caminho em seu cérebro entorpecido. Arnie deu meia
-
volta e começou a caminhar pela entrada de carr
os, entre o pulsar e o
tamborilar da neve, estalando os dedos e sorrindo. Estava agora rodando
na montanha
-
russa, fazendo a melhor parte do trajeto, a que só deixam a
gente fazer uma vez.
Perto do ponto em que a alameda de concreto se unia à calçada, ele
p
arou, o sorriso desaparecendo do rosto. Christine ficara junto ao meio
-
fio
com pequenos flocos de neve desfeitos misturados ao chuvisco, perolando
seu vidro, maculando as luzes vermelhas de lembrete do painel interno.
De passagem, ele se perguntou qual ser
ia a fonte daquela particular
expressão
—
luzes de lembrete;
uma expressão desagradável. Seus
pensamentos foram então cortados pela cogitação mais importante:
deixara Christine com o motor ligado e ele havia parado. Era a segunda
vez que acontecia.
—
Fiaçã
o molhada
—
murmurou para si mesmo.
—
Tem que ser
isso.
Não podiam ser as velas, colocara todo um novo conjunto na
garagem de Will, apenas dois dias antes. Oito novas Champions e...
Com qual de nós você fica mais tempo? Comigo... ou com ela?
O sorriso reto
rnou, mas agora era inquieto. Bem, ele ficava mais
tempo às voltas com carros
em geral
—
claro. Isto, porque trabalhava para
Will. Não obstante, era ridículo imaginar que...
Você mentiu para ela. Não foi?
Não,
respondeu para si mesmo, nervoso.
Acho que, na
realidade, não se
poderia dizer que menti para ela...
Não mesmo? Então, que nome dá a isso?
Pela primeira e única vez, desde que levara Leigh ao jogo de futebol
em Hidden Hill, ele lhe pregara uma grande mentira. Porque a verdade é
que ficava mais tempo co
m Christine e odiava tê
-
la estacionada naquela
área de longa estadia do pátio de estacionamento do aeroporto, exposta ao
vento e à chuva, dentro em pouco também à neve...
Mentira para Leigh.
Ele ficava mais tempo com Christine.
E isso era...
Era...
—
Errad
o
—
resmungou, e a palavra quase se perdeu entre o
pegajoso e misterioso som da neve caindo.
Arnie ficou parado na calçada, contemplando o carro cujo motor
silenciara, um viajante do tempo, maravilhosamente ressuscitado da era
de Buddy Holly, de Khruschev
e de Laika, a cadela espacial. E odiou
-
o de
repente. Não estava bem certo do que, mas ele lhe tinha feito algo.
Alguma coisa.
As luzes de lembrete, deformadas para olhos vermelhos em forma
de bolas de futebol, pela umidade na vidraça, pareciam zombar dele
e
censurá
-
lo ao mesmo tempo.
Arnie abriu a porta do lado do motorista, deslizou para o volante e
tornou a fechá
-
la. Cerrou os olhos. A paz fluiu por ele e as coisas pareciam
acudir juntas à mente. Sim, mentira para ela, mas fora uma pequena
mentira. Uma me
ntirinha insignificante. Não
—
uma mentira
absolutamente
sem importância.
Estirou a mão, sem abrir os olhos, e tocou o retângulo de couro ao
qual as chaves estavam presas
—
velho e surrado, com as iniciais R.D.L.
gravadas a fogo. Arnie não sentira necessid
ade de um novo porta
-
chaves
ou de um pedaço de couro com suas próprias iniciais.
Entretanto, havia algo peculiar sobre a etiqueta de couro que reunia
as chaves, não havia? Sim, havia. Algo bastante peculiar.
Quando contara o dinheiro sobre a mesa da cozinh
a de LeBay e ele
lhe jogara as chaves através da toalha de oleado em xadrez vermelho e
branco, o retângulo de couro estava puído, deteriorado e encardido pela
idade, as iniciais quase apagadas pelo tempo e pela constante fricção
contra as moedas no bolso d
o velho e o próprio tecido do bolso.
Agora, as iniciais sobressaíam no couro, vivas e nítidas novamente.
Tinham sido renovadas.
Como a mentira, no entanto, aquilo não tinha qualquer importância.
Sentado no interior da concha metálica da carroceria de Chris
tine, ele
concluiu decisivamente que aquela era a verdade.
Ele soube.
Sem a menor importância, tudo aquilo.
Girou a chave.
O starter gemeu
mas, durante bastante tempo, o motor
não pegou. Fiação molhada. Claro que tinha de ser aquilo.
—
Por favor
—
sussurro
u.
—
Está tudo bem, não se preocupe, tudo
está como antes.
O motor pegou e falhou. O
starter
ficou uivando sem parar. A neve
derretida pela chuva se colava fria sobre o vidro. Era seguro ali dentro,
seco e aquecido. Se o motor pegasse...
—
Vamos
—
sussurro
u Arnie.
—
Vamos, Christine. Vamos, meu
bem.
O motor pegou novamente, com firmeza agora. As luzes de
lembrete piscaram e apagaram. A luz DIN tornou a pulsar fracamente
enquanto o motor se esforçava para pegar, apagando
-
se depois de vez,
quando as pulsações
da máquina se uniformizaram para um firme
ronronar.
O aquecedor expeliu ar quente, suavemente, em torno de suas
pernas, negando a gelidez do exterior.
Ele tinha a impressão de que Leigh não podia entender certas coisas,
jamais as entenderia. Porque não es
tivera por ali antes. As espinhas. Os
gritos de
"Ei, Cara de Pizza!".
O querer falar, querer chegar às outras
pessoas e ser incapaz disso. A impotência. Parecia
-
lhe que ela não podia
compreender o simples fato de que, não fosse Christine, ele jamais teria
coragem de telefonar
-
lhe, mesmo que Leigh perambulasse com QUERO
SAIR COM ARNIE CUNNINGHAM tatuado na testa. Ela não podia
compreender que, às vezes, ele se sentia com trinta anos a mais do que sua
idade. Não, cinqüenta anos a mais! Não um adolescente, em
absoluto, mas
algum veterano terrivelmente vencido, retornando de uma guerra não
-
declarada.
Arnie acariciou o volante. Os verdes olhos
-
de
-
gato dos indicadores,
no painel de instrumentos, cintilaram confortavelmente para ele.
—
Tudo certo
—
disse ele.
Quase
suspirou. Puxou a mudança para o D maiúsculo e ligou o
rádio. Dee Dee Sharp cantando
"Mashed Potato Time"
—
tolice mística nas
ondas radiofônicas, brotando do escuro.
Partiu, planejando encaminhar
-
se para o aeroporto, onde
estacionaria o carro e pegaria o
ônibus que o traria de volta à cidade. Foi o
que fez, mas não em tempo de pegar o ônibus das 23 horas, como
pretendera. Em vez disso, apanhou o da meia
-
noite e, só quando já estava
na cama, recordando os beijos cálidos de Leigh, em vez de pensar na falha
do motor de Christine, ocorreu
-
lhe que naquela noite, após deixar a casa
dos Cabot e antes de chegar ao aeroporto, perdera uma hora. Era algo tão
óbvio, que ele se sentiu como o homem que, após revirar a casa de alto a
baixo, procurando uma peça vital de c
orrespondência, acaba descobrindo
que, o tempo todo, a tinha na outra mão. Óbvio... e um tanto assustador.
Onde estivera?
Tinha uma vaga noção de afastar
-
se do meio
-
fio, em frente à casa de
Leigh, e então apenas...
... apenas rodar.
Exatamente. Rodar. Era
tudo. Nada de importante.
Rodando por sobre a neve que se espessava, rodando por ruas
vazias e amortalhadas de branco, rodando sem pneus de neve (mas ainda
assim, por incrível que fosse, Christine rodava com segurança, parecia
descobrir a maneira mais segu
ra de ir em frente, como que por magia,
avançando com tal firmeza que dava a impressão de trafegar sobre trilhos),
rodando com o rádio ligado, ouvindo uma corrente constante de músicas
antigas, consistindo apenas em nomes de garotas: "Peggy Sue", "Carol",
"Barbara
-
Ann", "Susie Querida".
Arnie tinha a vaga idéia de que, a certa altura, ficara um tanto
amedrontado e apertara um dos botões cromados do transformador que
instalara, mas em vez de FM
-
104 e do
Block Party Weekend,
voltou a captar
a estação WDIL, só
que agora o
disc
-
jockey
tinha uma absurda semelhança
com Allan Fred, e a voz que se seguiu era a de Screamin' Jay Hawkins,
rouca e cantando:
"Lancei um feitiço em vocêêê... porque você é miiiiinha...".
Por fim, lá estava o aeroporto, com suas luzes do mau
tempo
pulsando seqüencialmente, como uma batida cardíaca visível. O que quer
que o rádio tocava, tornara
-
se inaudível numa confusão de estática, e ele o
desligou. Ao sair do carro, experimentou uma suada espécie de
incompreensível alívio.
Agora ele jazia
na cama, querendo dormir, mas incapaz de conciliar
o sono. O granizo engrossara, acumulando
-
se em pesadas camadas de
neve.
Aquilo não estava certo.
Algo havia sido iniciado e algo estava em andamento. Ele nem ao
menos podia mentir para si mesmo e dizer que
nada sabia a respeito. O
carro
—
Christine
—
recebera elogios de várias pessoas, todas dizendo
como havia sido espetacularmente restaurado. Arnie fora nele para a
escola e os colegas de Mecânica de Motores se comprimiram em torno,
espiaram debaixo do auto
móvel em deslizadores de rodas, querendo ver
os novos canos de escapamento, os novos amortecedores, a lanternagem.
Mergulharam até a cintura no compartimento do motor, verificando as
correias e o radiador (que se apresentava miraculosamente livre da
corros
ão e da massa esverdeada, resíduo de anos de anticongelante),
examinando o dínamo e os ajustados, cintilantes pistons encaixados em
seus cilindros. Até o filtro de ar era novo, com o número 318 pintado
através do topo, inclinado para trás para indicar velo
cidade.
Sim, ele se tornara uma espécie de herói para os colegas da aula de
motores, recebendo todos os comentários e cumprimentos apenas com um
sorriso de protesto. Contudo, mesmo então, não estivera ali a confusão,
em algum lugar bem no fundo? Claro!
Por
que ele não conseguia recordar o que tinha ou não feito de reparos em
Christine.
O tempo gasto trabalhando nela na Darnell's, agora não passava de
um borrão, como havia sido sua corrida para o aeroporto horas antes,
naquela noite. Podia recordar que começa
ra a lanternagem na traseira
enferrujada do carro, mas não se lembrava de havê
-
la terminado.
Recordava
-
se pintando o capô
—
cobrindo o pára
-
brisa e pára
-
lamas com
adesivo protetor e preparando o emassado branco, no galpão de pintura
dos fundos
—
, mas era i
mpossível lembrar quando trocara as molas. Nem
ao menos onde as conseguira. A única certeza, era a de que permanecera
atrás do volante por longos períodos, transbordando de felicidade...
sentindo o mesmo êxtase de quando Leigh sussurrara: "Amo você", antes
de desaparecer dentro de casa. Sentado lá, depois que a maioria dos
sujeitos que consertavam seus carros na Darnell's havia ido jantar em casa.
Sentado lá, e às vezes ligando o rádio, a fim de ouvir as melodias antigas
da WDIL.
O pior, talvez tivesse sido
o caso do pára
-
brisa.
Tinha certeza absoluta de que não comprara um pára
-
brisa novo
para Christine. Se tivesse comprado um daqueles novos tipos
panorâmicos, sua conta bancária estaria muito mais desfalcada. E,
evidentemente, haveria um recibo. Já o procur
ara no fichário de mesa,
marcado CARRO
-
CONTAS, que mantinha em seu quarto. Nada
encontrara, contudo. De fato, ele o procurara com certa ansiedade.
Dennis tinha dito algo
—
que o emaranhado das rachaduras parecia
menor, menos sério. Então, naquele dia em Hi
dden Hills, simplesmente...
desaparecera! O pára
-
brisa se mostrava cristalino, imaculado.
E quando é
que isso acontecera? Como acontecera?
Ele não sabia.
Adormeceu finalmente e teve sonhos desagradáveis, torcendo as
cobertas em uma bola, quando o vento emp
urrou as nuvens para longe e
as estrelas outonais brilharam friamente para a terra.
V
ISÃO À
N
OITE
Vou levá
-
la a passear em meu carro
-
carro,
Vou levá
-
la a passear em meu carro
-
carro.
Vou levá
-
la a passear,
Vou levá
-
la a passear,
Vou levá
-
la a passear em me
u carro
-
carro.
—
Woody Guthrie
Havia sido um sonho
—
até quase o próprio final, estava certa de
que havia sido um sonho.
No sonho, ela despertava de um sonho com Arnie. Estivera fazendo
amor com ele, não no carro, mas em um aposento azul muito frio, sem
o
utro mobiliário além de um fofo tapete azul
-
escuro e almofadas
espalhadas, cobertas de cetim azul
-
claro... e despertava deste sonho em
seu quarto, nas primeiras horas da madrugada de domingo.
Podia ouvir um carro lá fora. Chegou à janela e olhou para baixo
.
Christine estava junto ao meio
-
fio. Tinha o motor ligado
—
Leigh
podia ver os tufos de fumaça escapando dos canos de descarga
—
mas não
havia ninguém em seu interior. No sonho, ela pensava que Arnie pudesse
estar à porta de sua casa, embora ainda não tiv
esse batido. Tinha que
descer até lá, e depressa. Seu pai ficaria furioso, se acordasse e encontrasse
Arnie ali a tal hora da madrugada.
Leigh, contudo, não se moveu. Olhava para o carro e pensava no
quanto o odiava
—
e o temia.
E o carro também a odiava.
Rivais,
pensou, e o pensamento
—
naquele sonho
—
não era de
ciúme feroz e intenso, antes desesperado e temeroso. Lá estava o carro
diante do meio
-
fio, lá estava ele
—
ela estava
—
parada à frente de sua
casa, na trincheira escura da madrugada, esperando
-
a.
Esperando por
Leigh.
Venha cá para baixo, meu bem. Venha! Rodaremos por aí e conversaremos
sobre quem precisa mais dele, quem se preocupa mais com ele e quem será melhor
para ele, a longo prazo. Venha.. Não está com medo, está?
Leigh estava aterrorizada.
Não é justo, ela é mais velha, conhece os truques, saberá como engambelá
-
lo...
—
Vá embora!
—
sussurrou Leigh, ardentemente, no sonho.
Bateu de leve na vidraça com os nós dos dedos. O vidro era frio ao
seu toque, podia ver as pequeninas marcas em forma de
crescente
deixadas pelos nós dos dedos na superfície embaciada. Era espantoso
como certos sonhos podem ser tão reais.
No entanto,
tinha
que ser um sonho. Tinha que ser, porque o carro a
ouvira. As palavras mal haviam saído de sua boca, e os limpadores de
p
ára
-
brisa começaram a mover
-
se repentinamente, espalhando a neve
molhada aderida ao vidro. Então, ele
—
ela
—
se afastou maciamente do
meio
-
fio e seguiu rua abaixo.
Sem ninguém na direção.
Leigh tinha certeza disso... toda a certeza que se pode ter sobre
a
lguma coisa, em um sonho. A janela do passageiro estava polvilhada de
neve, mas não ficara opaca com isso. Leigh pudera ver o interior e não
havia ninguém ao volante. Portanto, é claro, tinha que ser um sonho.
Voltou para a cama (para a qual jamais levara
um amante; como
Arnie, nunca tivera um amante) pensando em um Natal de há muito
tempo
—
de uns doze, talvez mesmo quatorze anos atrás. Ela não devia
ter mais de quatro anos naquela época. Tinha ido com a mãe a uma das
grandes lojas de departamentos de Bost
on, talvez a Filene's...
Pousou a cabeça no travesseiro e adormeceu (no sonho) de olhos
abertos, contemplando a ligeira fímbria das primeiras luzes do alvorecer
na janela e então
—
nos sonhos tudo pode acontecer
—
viu o
departamento de brinquedos da Filene
's, no outro lado da janela: ouropéis,
brilhos, luzes.
Procuravam um brinquedo para Bruce, único sobrinho de seus pais.
Em alguma parte, um Papai Noel da loja de departamentos clamava em
um sistema de alto
-
falantes e o som amplificado não era apenas jovial
,
mas de certo modo terrível, como o riso de um maníaco que surgisse
dentro da noite, empunhando um facão de açougueiro, em vez de
presentes.
Leigh estendera a mão para um dos brinquedos em exibição e,
apontando, tinha dito para sua mãe que queria ganhar
a
quilo
de Papai
Noel.
Não, meu bem. Papai Noel não pode lhe dar isso. É um brinquedo para
meninos.
Mas eu quero!
Papai Noel lhe trará uma linda boneca, talvez até uma Barbie...
É este aqui que eu quero!
Só meninos é que pedem um brinquedo assim, Lee
-
Lee que
rida. Só os
meninos. Meninas boazinhas gostam mais de lindas bonecas...
Eu não quero uma BONECA! Não quero uma BARBIE! É... AQUILO...
que eu quero!
Se vai começar a fazer malcriação, Leigh, levo você já, já para casa. Estou
falando sério, levo agora mesmo!
Ela se conformara, então, e o Natal lhe trouxera não apenas a Barbie
Malibu, mas também o Ken Malibu. Leigh gostara de seus presentes
(esperava
-
se que gostasse), mas não esquecera o carro de corridas
vermelho, correndo sem ser puxado, naquela superfície d
e verdes
montanhas pintadas, ao longo de uma estrada tão perfeita que havia até
mesmo pequenas muretas de metal
—
uma estrada, cuja ilusão essencial
era desfeita apenas pela inevitável circularidade. Oh, mas como aquele
carro corria depressa
—
e seu vermel
ho cintilante seria mágico para seus
olhos e sua mente? Sem dúvida. Também era mágica, a ilusão essencial do
carro. Uma ilusão exercendo tanta atração que a conquistara por completo.
A ilusão, naturalmente, de que o carro dirigia a si mesmo. Em realidade,
Leigh sabia que um empregado da loja o controlava, de uma cabina à
direita, apertando botões em um dispositivo quadrado de controle remoto.
Sua mãe lhe explicara isso e assim devia ser, mas seus olhos negavam o
que ouvia.
Também seu coração negava.
Ficara
fascinada, as mãozinhas enluvadas sobre o gradil da área de
exibição, espiando o carro que corria e corria, movendo
-
se depressa,
rodando por si mesmo, até que a mãe a puxou dali suavemente.
E, acima de tudo aquilo, parecendo fazer vibrar o próprio fio de
o
uropéis pendurados junto ao teto, a risada sinistra do Papai Noel da loja
de departamentos.
Leigh dormiu mais profundamente. Sonhos e lembranças
esmaeceram
-
se lentamente e, lá fora, a luz do dia rastejava como leite frio,
iluminando uma rua vazia e silenc
iosa em sua manhã de domingo. A
primeira nevada do outono estava imaculada, exceto pela marca de pneus,
no meio
-
fio diante da residência dos Cabot. Marca que depois se alongava
suavemente, em direção à esquina, no final daquele quarteirão suburbano.
Ela só
se levantou quase às dez horas (sua mãe, que não acreditava
em dorminhocos, finalmente a chamara para descer e tomar seu café,
antes do almoço) e, a esta altura, o dia já esquentara, chegando a quase 16
graus
—
na parte oeste da Pensilvânia, o começo de n
ovembro é mais ou
menos tão caprichoso como o começo de abril. Assim, às dez da manhã, a
neve já se derretera. E as marcas haviam desaparecido.
B
UDDY
V
ISITA O
A
EROPORTO
Nós fazemos com que se calem e então os liquidamos.
—
Bruce Springsteen
Uma noite, ce
rca de dez dias depois, quando perus de cartolina e
cornucópias de papel começavam a aparecer nas janelas das escolas
primárias, um Camaro azul, de traseira tão levantada que o nariz quase
parecia roçar o chão, deslizou pela ala do estacionamento de longo
prazo
do aeroporto.
Sandy Galton debruçou
-
se nervosamente pela abertura de sua
cabine de vidro. No assento do Ford, ao lado do motorista, o rosto
sorridente e feliz de Buddy Repperton se ergueu para ele. Buddy tinha as
faces cobertas pela barba rala de uma
semana e seus olhos exibiam um
brilho maníaco, mais devido à cocaína do que à alegria no Dia de Ação de
Graças
—
ele e os rapazes tinham conseguido bom provimento aquela
noite. Em tudo e por tudo, Buddy assemelhava
-
se bastante a um
depravado Clint Eastwoo
d.
—
Como é que vão as coisas, Sandy?
—
perguntou Buddy.
Seu cumprimento foi devidamente acompanhado por risadas no
Camaro. Don Vandenberg, "Penetra" Welch e Richie Trelawney estavam
com Buddy e, com a coca e as seis garrafas de Texas Driver que Buddy
arra
njara para a ocasião, sentiam
-
se eufóricos e na mais perfeita forma.
Estavam chegando para um pequeno trabalhinho sujo, no Plymouth de
Arnie Cunningham.
—
Escutem aqui, caras, se vocês forem apanhados, eu perco o meu
emprego
—
disse Sandy, nervosamente.
Er
a o único sóbrio e lamentava ter mencionado que Cunningham
estacionava seu calhambeque ali. Felizmente, ainda não lhe ocorrera o
pensamento de que também podia ir parar na cadeia.
—
Se você ou qualquer membro de sua fodida Missão Impossível
forem apanhados
, o chefão negará qualquer envolvimento no negócio
—
declarou "Penetra", no banco traseiro.
Houve um coro de risos. Sandy olhou em torno, à procura de outros
carros
—
testemunhas
—
, porém faltava mais de hora para a chegada de
aviões e o pátio de estaciona
mento estava tão deserto como as montanhas
da lua. O tempo esfriara muito. Um vento cortante como lâmina de
barbear gemia pelas pistas do campo, uivando miseramente por entre as
fileiras de carros vazios. Acima dele e à esquerda, o cartaz com a sigla
"Apco
" batia furiosa e incessantemente de um lado para outro.
—
Riam à vontade, debilóides
—
disse Sandy.
—
A verdade é que
nunca vi vocês por aqui. Se forem apanhados, vou dizer que estava
cochilando.
—
Nossa, que gracinha!
—
exclamou Buddy. Pareceu triste.
—
Nunca pensei que fosse tão cagão, Sandy. Honestamente.
—
Au! Au!
—
latiu Richie, e houve novo coro de risos.
—
Role de
costas e finja
-
se de morto para o papai, Sandy!
Sandy enrubesceu.
—
Não estou me importando
—
disse
—
, mas tomem cuidado.
—
Tomaremos, ca
ra
—
disse Buddy, sinceramente. Havia reservado
uma sétima garrafa de Texas Driver e uma dose caprichada de coca.
Estendeu as duas coisas para Sandy:
—
Tome aí. Divirta
-
se.
Sandy sorriu a contragosto.
—
Está legal
—
disse, acrescentando, apenas para dar a
entender
que não era do contra:
—
Façam um bom trabalho.
O sorriso de Buddy endureceu
-
se, ficou metálico. A luz desapareceu
de seus olhos e eles ficaram opacos, mortiços e aterradores.
—
Oh, nós faremos
—
disse.
—
Se faremos!
O Camaro embicou para o pátio
de estacionamento. Por um
momento, Sandy pôde apreciar sua avançada, guiando
-
se pela luz dos
faróis traseiros, mas depois Buddy os apagou. O som do motor,
gorgolejando através de dois escapamentos, foi trazido
momentaneamente pelo vento, mas depois até iss
o cessou também.
Sandy ajeitou a coca sobre o balcão, junto de sua TV portátil, e a
aspirou através de uma nota enrolada de um dólar. Em seguida, passou
para o Texas Driver. Sabia que se o apanhassem embriagado no trabalho
teriam motivo para demiti
-
lo, mas
não se incomodou muito. Embebedar
-
se era muito melhor do que ficar sobressaltado e sempre olhando em
torno, para descobrir um dos dois carros cinzentos da Segurança do
Aeroporto.
O vento soprava a seu favor e ele pôde ouvir
—
ouvir demais.
Vidros quebrado
s se estilhaçando, risos sufocados, uma ruidosa
pancada metálica.
Mais vidros quebrados.
Uma pausa.
Vozes baixas chegando até ele, trazidas pelo vento. Não conseguiu
distinguir palavras individuais, estavam distorcidas.
De repente, uma perfeita fuzilaria d
e baques. Sandy pestanejou ao
ouvir o ruído. Mais barulho de vidros quebrados na escuridão e um
tilintar de metal caindo no piso
—
cromados ou alguma coisa assim, supôs
ele. Desejou que Buddy houvesse trazido mais coca. A coca era uma coisa
que dava alegri
a e, tinha certeza, naquele momento estava bem precisado
disso, porque tudo indicava que algo bastante feio estava acontecendo, no
extremo mais distante do pátio de estacionamento.
Então, uma voz mais alta, urgente e ordenando, sem dúvida a de
Buddy:
—
Ago
ra aqui!
Um protesto abafado. Novamente Buddy:
—
Não liguem para isso! No painel de instrumentos, estou
mandando! Outro murmúrio.
—
Estou pouco me lixando!
—
era a voz de Buddy de novo. Por
algum motivo, aquilo provocou um coro de risadas.
Agora suando, a
despeito do frio cortante, Sandy fechou
repentinamente a vidraça de sua janela e ligou a TV. Bebeu um grande
gole, careteando ante o sabor forte da mistura de uísque e vinho barato.
Sandy não ligava para o sabor porque Texas Driver era o que todos eles
beb
iam quando não havia cerveja. O que podia fazer? Imaginar
-
se melhor
do que eles? Aquilo o deixaria frito, cedo ou tarde. Buddy detestava
medrosos.
Bebeu e começou a sentir
-
se um pouco melhor
—
pelo menos,
ligeiramente bêbado. Quando um carro da Segurança d
o Aeroporto
passou,
ele nem mesmo se encolheu. O tira ergueu a mão para ele. Sandy retribuiu,
com a maior naturalidade possível.
Uns quinze minutos depois que o carro foi para os fundos do pátio,
o Camaro azul reapareceu, agora na alameda de saída. Buddy s
e sentava
tranqüilo e relaxado atrás do volante, tendo uma garrafa de Driver
acomodada junto às virilhas, com apenas um quarto de bebida. Sorria e,
inquieto, Sandy reparou como tinha os olhos estranhos, injetados de
sangue. Aquilo não era ocasionado apenas
pelo vinho, como tampouco
não era somente da coca. Ninguém devia fazer pouco de Buddy. Era o que
Cunningham descobriria, sem grande demora.
—
Tudo acertado, meu chapa
—
disse Buddy.
—
Ótimo
—
disse Sandy, forçando um sorriso.
Sentia
-
se um tanto indisposto
. Não tinha maiores amizades por
Cunningham e nem era uma pessoa particularmente imaginativa, mas
podia imaginar perfeitamente como se sentiria Arnie, quando visse o que
acontecera a todo o seu cuidadoso trabalho de restauração naquele
Plymouth vermelho e
branco. De qualquer modo, aquilo era da conta de
Buddy, não sua.
—
Ótimo
—
repetiu.
—
Segure
-
se nas cuecas, cara
—
disse Richie e riu.
—
Claro
—
respondeu Sandy.
Era bom eles estarem indo embora. Depois daquilo, talvez não
ficasse mais tanto tempo rondando
o posto de gasolina Happy Gas, de
Vandenberg. Depois daquilo, o mais provável é que nem quisesse ir lá.
Aquele negócio era merda fedorenta. Um negócio pesado demais,
certamente. Talvez até fosse preferível faltar umas duas noites ao curso
noturno. Possive
lmente acabaria tendo que abandonar aquele serviço, mas
isso não chegava a ser tão ruim
—
afinal, era um trabalho infernalmente
monótono.
Buddy ainda olhava para ele, com aquele seu sorriso cruel e
drogado. Sandy tomou um longo gole de Texas Driver. Quase
se
engasgou. Por um momento, pensou em cuspi
-
lo no rosto erguido de
Buddy, e sua inquietação beirou o terror.
—
Se os tiras derem com a coisa
—
disse Buddy
—
, você não sabe de
nada, não viu nada, sacou? Como você falou, estava tirando uma soneca,
por volta
de nove e meia.
—
Certo, Buddy.
—
Todos usamos luvas. Não deixamos nenhuma impressão digital.
—
Certo.
—
Fique calmo, Sandy
—
disse Buddy suavemente.
—
Está legal.
O Camaro começou a rodar novamente. Sandy levantou a barreira,
usando o botão manual. O car
ro avançou para a via de saída do aeroporto,
a uma velocidade moderada.
Alguém latiu "Au! Au!" e o som chegou até Sandy, trazido pelo
vento.
Perturbado, ele se acomodou para assistir televisão.
Pouco antes do fluxo de viajantes que chegavam no horário de d
ez e
quarenta, vindos de Cleveland, ele despejou o resto do Driver pela janela,
no chão fora da cabine. Não o queria mais.
C
HRISTINE
S
ACRIFICADA
Transfusão, transfusão,
Oh, nunca
-
nunca
-
nunca mais vou rodar em alta velocidade,
Passe o sangue para mim, chap
a.
—
"Nervous" Norvus
Depois das aulas do dia seguinte, Arnie e Leigh foram juntos ao
aeroporto, pegar Christine. Planejavam uma ida a Pittsburgh para as
primeiras compras de Natal e ansiavam fazê
-
las juntos
—
de certo modo,
isso parecia incrivelmente adu
lto.
Arnie estava com excelente disposição de ânimo no ônibus, fazendo
pequenos comentários fantasiosos sobre seus companheiros de viagem.
Isto provocava o riso de Leigh, embora ela estivesse menstruada, um
período que geralmente a deixava deprimida e que
quase sempre era
doloroso. A senhora gorda, calçando sapatos de homem, era uma freira
degenerada, dizia ele. O cara com chapéu de vaqueiro era um punguista.
E assim por diante. Era espantosa a maneira como ele saíra da concha... a
maneira como havia
desabr
ochado.
Na verdade, esta era e única palavra
para aquilo. Ela sentia a agradável e incrível satisfação de um garimpeiro
que suspeitara da presença de ouro através de certos indícios
—
e acertara
em suas suposições. Leigh o amava e estava certa em amá
-
lo.
S
aíram juntos do ônibus no ponto final e, de mãos dadas,
caminharam pela estrada de acesso ao pátio de estacionamento.
—
Nada mau
—
disse Leigh. Era a primeira vez que vinha apanhar
Christine com ele. Vinte e cinco minutos, da escola até aqui.
—
Certo, nada
mau
—
concordou ele.
—
Assim, é mantida a paz na
família, o que realmente importa. Posso garantir, naquela noite em que
mamãe chegou em casa e viu Christine na entrada para carros, ficou
completamente fora de si.
Leigh riu e o vento jogou seu cabelo para
trás. A temperatura ficara
mais moderada, após a friagem da noite anterior, mas ainda assim era fria.
Ela estava contente. Sem uma certa friagem no ar, não parecia haver
ambiente para compras natalinas. Ainda pior: as decorações em
Pittsburgh estariam inco
mpletas. De qualquer modo, isso não era ruim,
mas bom. E, de repente, ela ficou feliz com tudo, em especial por estar
viva. E amando.
Leigh havia refletido nisso, na maneira como o amava. Já tivera
"paixonites" antes e, certa vez, em Massachusetts, imagina
ra
-
se
verdadeiramente apaixonada, mas agora, com Arnie, não havia dúvidas.
Ele a perturbava algumas vezes
—
aquele interesse pelo carro parecia
quase obsessivo
—
, mas até mesmo uma inquietação ocasional que ela
experimentava tinha certo papel em seus senti
mentos, que eram mais
intensos do que tudo quanto já conhecera antes. Evidentemente, admitia
para si mesma que parte disso era egoísmo
—
em apenas semanas,
começara a estruturá
-
lo...
a completá
-
lo.
Cortaram atalhos por entre os carros, encaminhando
-
se para
a zona
do estacionamento mensal. Acima deles, um jato evoluía em sua
aproximação final, o trovejar dos motores despejando
-
se em grandes
ondas agudas de som. Arnie dizia algo, mas o barulho do avião sufocou
sua voz, logo após as palavras iniciais
—
qualque
r coisa sobre o
ajantarado do Dia de Ação de Graças
—
e Leigh se virou para fitá
-
lo,
secretamente divertida por sua boca que continuava a mover
-
se,
silenciosamente.
Então, de súbito, a boca de Arnie parou de mover
-
se. Ele também
parou de caminhar. Os olhos
se dilataram... e pareceram explodir. A boca
começou a
torcer
-
se
e a mão que segurava a dela de repente se contraiu
impiedosamente, esmagando
-
lhe dolorosamente os ossos dos dedos.
—
Arnie...
O ruído do jato diminuía, mas ele parecia não a ter ouvido. Os
p
unhos se crisparam com mais força. A boca se fechara e agora formava
uma horrenda careta de surpresa e terror. Leigh pensou:
Ele está tendo um
ataque do coração... um infarto... alguma coisa!
—
O que há de errado, Arnie?
—
gritou ela. E ele:
—
Ooowwwhoww,
como dói!
Por um insuportável momento, a pressão na mão que, até bem
pouco, ele segurara tão de leve e tão carinhosamente, intensificou
-
se de tal
maneira que os ossos poderiam estilhaçar
-
se e quebrar
-
se. A cor do rosto
dele desaparecera e sua pele adquirir
a a cor acinzentada de uma lousa
sepulcral.
Ele emitiu apenas uma palavra
—
"Christine!"
—
e, de repente,
soltou a mão de Leigh. Correu para diante, batendo com a perna no pára
-
choque de um Cadillac, desequilibrando
-
se, quase caindo, equilibrando
-
se
e reco
meçando a correr.
Por fim, Leigh percebeu que era algo relacionado ao carro
—
o carro,
o carro, sempre o maldito carro
—
e em seu peito surgiu uma fúria
amarga, total e desesperada. Pela primeira vez, perguntou
-
se se seria
possível amá
-
lo, se Arnie o permi
tiria.
Sua fúria terminou no instante em que olhou realmente... e viu.
Arnie correu para o que restava de seu carro, com os braços e as
mãos para cima, parando tão de repente diante do Plymouth que o gesto
pareceu uma aterrorizada forma de defesa: a clássi
ca pose cinematográfica
da vítima ao ser atropelada, um instante antes da colisão fatal.
Ele ficou assim por um momento, como se fosse parar o carro ou o
mundo inteiro. Então baixou os braços. Seu pomo
-
de
-
adão subiu e desceu
duas vezes, dando a impressão d
e que parecia forçar
-
se a engolir algo
—
um gemido ou um grito
—
para em seguida a garganta se endurecer, cada
músculo salientando
-
se, cada veia ressaltada, os tendões surgindo em
perfeito relevo. Era a garganta de um homem tentando erguer um piano.
Leigh
caminhou lentamente para ele. Sua mão ainda latejava, no dia
seguinte estaria inchada e praticamente inútil, mas no momento ela a
esquecera. Seu coração estendeu
-
se até ele e pareceu encontrá
-
lo. Leigh
experimentou e partilhou a angústia que ele sentia
—
o
u foi o que lhe
pareceu ter feito. Só mais tarde compreendeu o quanto Arnie a relegara
aquele dia, quanto sofrimento ele decidira ter para si apenas, e quanto de
seu ódio conseguiu ocultar.
—
Quem foi que fez isto. Arnie?
—
exclamou, em voz sentida e
sofre
ndo com ele.
Não, ela detestava aquele carro, mas ao vê
-
lo reduzido àquilo
compreendeu perfeitamente o que Arnie devia estar sentido e não odiou
mais o Plymouth
—
ou, pelo menos, assim julgou no momento.
Arnie não respondeu. Ficou olhando para Christine, c
om os olhos
ardentes, a cabeça ligeiramente abaixada.
O pára
-
brisa havia sido estilhaçado em dois lugares; punhados do
vidro fragmentado polvilhavam o estofamento dilacerado, como falsos
diamantes. Metade do pára
-
choque dianteiro tinha sido arrancada e ago
ra
pendia para o pavimento, perto de um emaranhado de fios negros, como
tentáculos de polvo.
Três das quatro janelas laterais também tinham sido quebradas.
Haviam furado a lataria em ambos os lados do carro, na altura da cintura,
formando linhas ziguezague
antes. Como se tivessem usado algum
instrumento pesado e perfurante
—
como a extremidade aguda de uma
alavanca para pneus. A porta do lado do passageiro estava escancarada e
Leigh viu que todos os vidros do painel de instrumentos haviam sido
quebrados. Tuf
os e rolos do recheio dos assentos espalhavam
-
se por toda
parte. A agulha do velocímetro jazia no piso, sobre o tapete, abaixo do
volante.
Arnie caminhou vagarosamente em torno do carro, observando
tudo aquilo. Leigh falou com ele duas vezes, mas não houve
resposta.
Agora, a cor plúmbea do rosto dele era interrompida por duas confusas e
ardentes manchas vermelhas nas faces. Arnie recolheu do chão a forma
tentacular que ali jazera, e Leigh percebeu que era o bujão do
distribuidor
—
seu pai lhe explicara isso
certa vez, quando estivera
mexendo em seu carro.
Arnie o contemplou por um instante, como quem examinaria algum
exótico espécime zoológico, para em seguida atirá
-
lo ao chão. O vidro
quebrado rangia sob os sapatos dos dois. Leigh tornou a falar com ele.
Nã
o ouvindo resposta, além de sentir uma pena terrível dele, começou
também a ficar com medo. Mais tarde, disse a Dennis Guilder que
parecia
—
pelo menos naqueles momentos
—
perfeitamente possível
Arnie ter perdido o juízo.
Ele chutou uma peça cromada para f
ora de seu caminho. A peça foi
bater no muro anticiclone, nos fundos do pátio de estacionamento, com
um leve som tilintante. As lanternas traseiras haviam sido quebradas,
mais gemas falsas, rubis desta vez, polvilhando o pavimento e não os
assentos do carr
o.
—
Arnie...
—
tentou ela, mais uma vez.
Ele parou. Olhava pelo buraco feito na vidraça do motorista. Um
horrível som rouco partiu de seu peito, um som selvagem. Olhando por
sobre o ombro dele, Leigh viu o que havia e, de repente, sentiu uma louca
necessi
dade de rir, de chorar e desmaiar, tudo ao mesmo tempo. Sobre o
painel de instrumentos... ela não percebera, de início. Em meio à
destruição geral, não percebera o que havia no painel. E se perguntou,
com o vômito subindo de repente em sua garganta, quem p
oderia ser tão
baixo, tão absolutamente ignóbil para fazer tal coisa, para...
—
Os bostas!
—
exclamou Arnie, e a voz não parecia a dele.
Quase gritara, com uma voz aguda e estridente, cheia de fúria. Leigh
se virou e vomitou, apoiando
-
se às cegas no carro
mais próximo de
Christine, vendo diante dos olhos pequeninos pontos brancos, que se
expandiam como arroz cozido. De maneira vaga, pensou na feira do
condado
—
a cada ano, faziam içar um carro imprestável para uma
plataforma, deixavam uma marreta ao lado e
cada um podia dar três
marretadas por 25 centavos. A idéia era acabar com o carro, mas não
fazer... fazer...
—
Seus bostas
malditos!
—
bradou Arnie.
—
Vou pegar vocês! Vou
pegar vocês, nem que seja a última coisa que faça! Nem que seja a
última
merda de co
isa que eu faça!
Leigh vomitou novamente e, por um terrível momento, chegou a
desejar nunca ter conhecido Arnie Cunningham.
A
RNIE E
R
EGINA
Quer dar uma volta
Em meu Buick 59?
Eu perguntei, quer dar uma volta
Em meu Buick 59?
Ele tem dois carburadores
E um
supercompressor de quebra.
—
The Medallions
Naquela noite, ele chegou em casa faltando quinze para meia
-
noite.
As roupas que estivera usando para a projetada viagem de compras em
Pittsburgh estavam manchadas de graxa e de suor. As mãos pareciam
ainda mai
s sujas e havia um feio corte ziguezagueante no dorso da
esquerda, como uma marca. O rosto tinha uma aparência abatida e
atordoada. Também estava com olheiras.
Sentada à mesa, sua mãe tinha um jogo de paciência disposto diante
dela. Estivera esperando que
Arnie chegasse e, ao mesmo tempo, temendo
aquele momento. A jovem
—
que dera a Regina a impressão de ser uma
boa moça, embora talvez não suficientemente boa para seu filho
—
parecia
ter chorado.
Alarmada, Regina desligara o mais depressa possível e ligara
para a
Garagem de Darnell. Leigh lhe contara que Arnie telefonara, chamando
um caminhão
-
reboque para lá e que partira nele, com o motorista.
Colocara
-
a em um táxi, sem ouvir seus protestos. O telefone havia tocado
duas vezes e então uma voz sibilante, desa
gradável, respondera.
—
Aqui é da Darnell's.
Regina desligara, pensando que seria um erro falar com Arnie
estando ele lá
—
e tudo indicava que ele e Mike já haviam cometido erros
suficientes, envolvendo Arnie e seu carro. Seria melhor esperar até que ele
v
oltasse para casa. Diria o que fosse preciso, mas frente a frente.
Foi o que disse agora.
—
Eu sinto muito, Arnie.
Teria sido melhor se Mike também estivesse ali. No entanto, ele
viajara para Kansas City, onde haveria um simpósio sobre o Mercado e
Início d
o Livre Empreendimento na Idade Média. Só chegaria no domingo,
a menos que o atual incidente o trouxesse mais cedo para casa. Regina
pensou que isso seria possível. Percebia
—
não sem algum
arrependimento
—
que talvez estivesse apenas despertando para a to
tal
gravidade daquela situação.
—
Sente muito
—
ecoou Arnie, em voz apática, inexpressiva.
—
Sim. Eu, isto é,
nós...
Regina não pôde continuar. Havia algo terrível, na imobilidade da
expressão dele. Os olhos estavam parados. Só conseguiu fitá
-
lo e sacudir
a
cabeça, com os olhos ardendo, o gosto odioso de lágrimas no nariz e na
garganta. Regina detestava chorar. Possuindo vontade forte, uma de duas
filhas de uma família católica composta de um pai severo que trabalhava
em construções, a mãe exaurida e sete i
rmãos, firmemente decidida a
cursar uma universidade, embora o pai acreditasse que lá as moças só
aprendiam como deixar de ser virgens e abandonar a igreja, ela tivera sua
razoável porção de lágrimas
—
e ainda mais. E, se a própria família, às
vezes, a jul
gava dura, era por não compreender que, quando se atravessa
o inferno, sai
-
se cozido pelo fogo. E que, se alguém precisa queimar
-
se
para abrir o próprio caminho, esse alguém sempre fará o que quer.
—
Sabe de alguma coisa?
—
perguntou Arnie.
Ela sacudiu a c
abeça, ainda sentindo a ardência quente e
desagradável das lágrimas sob as pálpebras.
—
Você me dá vontade de rir e eu riria mesmo, se não estivesse tão
cansado. Poderia ter estado lá, destruindo os pneus e esmagando tudo,
com os sujeitos que fizeram aquil
o. Talvez agora estivesse ainda mais
contente do que eles.
—
Arnie, não é justo!
—
É justo!
—
rugiu ele, os olhos repentinamente queimando com
um fogo terrível. Pela primeira vez na vida, Regina teve medo do filho.
—
Foi sua a idéia de tirar o carro da ent
rada da casa! Foi sua a idéia de levá
-
lo para o pátio de estacionamento do aeroporto! Quem acha você que
merece censuras aqui? Sim, quem você acha? Acredita que aquilo
aconteceria se o carro estivesse aqui? Hein?
Deu um passo para ela, os punhos crispados
ao longo do corpo.
Regina procurou esforçar
-
se para não recuar.
—
Será que não podemos conversar a respeito, Arnie?
—
perguntou.
—
Como dois seres humanos racionais?
—
Um deles jogou um punhado de merda no painel de meu carro
—
replicou Arnie friamente.
—
O que há nisso de racional, mamãe?
Ela acreditara, sinceramente, que conseguira controlar as lágrimas.
No entanto, aquela notícia
—
a notícia de uma fúria tão estúpida e
irracional
—
trouxe
-
as de volta. Então chorou. Chorou de angústia pelo
que seu filho t
inha visto. Baixando a cabeça, chorou de perplexidade, de
dor e de medo.
Em toda a sua vida como mãe, Regina se sentira secretamente
superior às que tinham filhos mais velhos do que Arnie. Quando ele
estava com um ano, aquelas outras mães lhe tinham dito,
sacudindo
lugubremente a cabeça, que esperasse até ele fazer cinco
—
era quando
começavam os problemas, quando eles tinham idade suficiente para dizer
"merda" diante dos avós e brincar com fósforos, ao se verem sozinhos.
Arnold, no entanto, um menino bom c
omo ouro quando tinha um ano,
assim permanecera aos cinco. Então, as outras mães reviravam os olhos e
diziam
-
lhe que esperasse até ele ter dez. Em seguida, até ele fazer quinze,
que era quando a situação perigava realmente, com aquela história de
drogas, c
oncertos de
rock
e garotas que tudo permitiam, além de
—
que
Deus nos perdoe
—
roubarem calotas de automóveis e pegarem aquelas...
bem, doenças.
Durante todo esse tempo, ela continuava sorrindo para si mesma,
porque tudo funcionava segundo o programado, tu
do marchava da
maneira como desejaria ter acontecido em sua própria infância. Seu filho
tinha pais amorosos, que o apoiavam e se preocupavam com ele, pais que
lhe davam tudo (dentro do razoável), que o enviariam com prazer para a
universidade que o filho e
scolhesse (desde que fosse adequada), desta
forma encerrando
-
se satisfatoriamente o jogo/negócio/vocação da
paternidade. Se alguém lhe sugerisse que Arnie tinha poucos amigos e
freqüentemente era objeto de menosprezo pelos outros, Regina apontaria
orgulhos
amente que
ela
freqüentara uma escola paroquial em uma
vizinhança rude, onde as calcinhas de algodão das meninas às vezes eram
rasgadas de brincadeira e depois queimadas com o fogo de isqueiros
Zippo, nos quais havia a figura gravada de Jesus crucificado.
E se
sugerissem que suas atitudes no tocante à criação do filho diferiam das do
pai odiado, apenas em termos de finalidades materiais, ela ficaria furiosa e
apontava para seu excelente filho, como derradeira justificativa.
No entanto, o filho excelente ago
ra estava diante dela, pálido,
exausto e sujo de graxa até os cotovelos, parecendo apresentar a mesma
espécie de raiva que havia sido a marca registrada do avô, até mesmo se
parecendo
com ele. Tudo dava a impressão de haver desmoronado.
—
Falaremos amanhã
cedo sobre o que pode ser feito sobre isso,
Arnie
—
disse ela, tentando recompor
-
se e conter as lágrimas.
—
Conversaremos de manhã.
—
Não, a menos que você levante bem cedo
—
respondeu ele,
parecendo perder o interesse.
—
Vou subir, dormir umas quatro hora
s e depois voltar à garagem.
—
Para quê?
Ele deixou escapar uma risada de louco e seus braços adejaram
abaixo dos tubos de luz fluorescente da cozinha, como se fosse voar.
—
O que você acha? Tenho um bocado de trabalho a fazer! Mais do
que poderia imaginar
.
—
Não... você tem aulas amanhã... Eu o proíbo, Arnie, está
absolutamente proi...
Ele se virou para fitá
-
la, estudou
-
a e Regina encolheu
-
se. Aquilo era
como algum horrendo pesadelo, que ia continuar para sempre.
—
Não faltarei às aulas
—
disse.
—
Vou leva
r um embrulho de
roupas limpas e até mesmo tomo uma ducha, para que meu cheiro não
incomode ninguém na sala. Então, quando as aulas terminarem, voltarei à
garagem. Há muito trabalho a fazer, mas eu o farei... Sei que posso...
mesmo comendo uma boa fatia de
minhas economias. Além disso, tenho
que prosseguir com o serviço que venho fazendo para Will.
—
Seus trabalhos de casa... seus estudos!
—
Oh, isso...
—
Arnie esboçou um sorriso frio, imóvel e estático
como uma peça de mecanismo de relógio.
—
Eles baixarão
de qualidade, é
lógico. Não se pode brincar com isso. Aliás, também não lhe prometo mais
uma nota média de noventa e três, mas posso chegar perto. Posso
conseguir um C. Talvez alguns B.
—
Não... Você precisa pensar na universidade!
Ele tornou a chegar per
to da mesa, mancando de novo, agora
acentuadamente. Plantou as mãos sobre a superfície, diante dela, depois
inclinando
-
se lentamente. Regina pensou:
Um estranho... meu filho é um
estranho para mim. Será realmente culpa minha? Será? Porque só quis o que fos
se
melhor para ele. Será possível? Oh, Deus, por favor, torne isto um pesadelo, faça
-
me acordar com o rosto molhado de lágrimas, por ter sido tão real!
—
Neste exato momento
—
disse ele com suavidade, os olhos fixos
nos dela
—
, as únicas coisas que me inte
ressam são Christine, Leigh e ficar
bem com Will Darnell, a fim de deixar novamente aquele carro como novo.
Não ligo uma merda para a universidade. E se você ficar insistindo, pulo
fora do colégio. Se nada mais der certo, acho que isto vai fazer você calar
a
boca de vez.
—
Você não pode
—
disse ela, sem afastar os olhos.
—
Precisa
compreender isto, Arnold. Talvez eu mereça sua... sua crueldade... mas
lutei contra esta sua tendência autodestrutiva com todas as forças.
Portanto, não me venha com essa de larga
r os estudos.
—
Pois é justamente o que vou fazer
—
respondeu ele.
—
Nem
brincando pense que não farei. Em fevereiro, completo dezoito anos e
poderei dirigir minha vida, se você não parar de se meter nisto, daqui por
diante. Acha que compreendeu?
—
Vá dorm
ir
—
disse ela, lacrimosa.
—
Vá dormir, você me parte o
coração.
—
É mesmo?
—
Ele riu, de maneira chocante.
—
Dói, não? Eu sei.
Ele se foi então, caminhando devagar, o corpo pendendo
ligeiramente para a esquerda, quando mancava. Pouco depois, Regina
ouvia
o ruído surdo e cansado dos sapatos dele nos degraus
—
um som
que também lhe recordava terrivelmente a infância, quando pensava
consigo mesma: O
bicho
-
papão uai dormir.
Ela teve novo acesso de lágrimas, levantou
-
se desajeitadamente e
saiu pela porta dos fu
ndos, a fim de chorar sozinha. Conseguiu controlar
-
se
—
breve conforto, mas melhor do que nada
—
e ergueu os olhos para a
lua em quarto crescente, que se quadruplicou através de suas lágrimas.
Tudo mudara e havia sido com a velocidade de um ciclone. O filh
o a
odiava; vira isso no rosto dele
—
não era uma malcriação. Não era uma
tempestade temporária, uma crise transitória da adolescência. Ele a
odiava,
e essa não era a maneira correta que se ajustava com seu bom menino, de
maneira alguma.
De maneira alguma.
Regina permaneceu na varanda e chorou até as lágrimas acabarem,
até os soluços se tornarem arquejos ocasionais. O frio envolveu
-
lhe os
tornozelos nus acima dos chinelos e a picou com vontade, através do
casaco caseiro. Foi para dentro e subiu ao andar de
cima. Parou ao lado da
porta do quarto de Arnie, indecisa, por quase um minuto, antes de entrar.
Arnie adormecera sobre a colcha. Ainda estava com as calças.
Parecia mais inconsciente do que adormecido, o rosto com uma aparência
terrivelmente envelhecida.
Um foco de luz, vindo do corredor e
penetrando no quarto acima de seu ombro, por um momento deu
-
lhe a
impressão de que o cabelo dele rareava, que a boca aberta no sono estava
desdentada. Um ligeiro guincho de horror manifestou
-
se através da mão
tapando a b
oca e ela se aproximou rapidamente do filho.
Sua sombra, que estivera sobre a cama, moveu
-
se com ela, e Regina
viu que era somente Arnie, a impressão de mais idade proveniente apenas
de uma ilusão de ótica, feita pela luz e por seu fatigado estado de
confu
são.
Olhou para o rádio
-
despertador e viu que fora marcado para
acordá
-
lo às 4:30 da manhã. Pensou em desligar o alarme, chegou mesmo
a estender o braço mas, finalmente, compreendeu que não podia fazer
aquilo.
Em vez disso, foi para seu quarto, sentou
-
se j
unto à mesinha do
telefone e pegou a caderneta de endereços. Segurou
-
a por um momento,
debatendo
-
se na dúvida. Se telefonasse para Mike, no meio da noite, ele
pensaria que...
Que algo terrível acontecera?
Regina deu uma risadinha sufocada. Bem, não acontec
era
mesmo?
Era claro que sim. E ainda estava acontecendo.
Discou o número do Ramada Inn, em Kansas City, onde seu marido
se hospedara, vagamente cônscia de que, pela primeira vez, desde que
deixara a suja e lúgubre casa de três andares em Rocksburg, trocan
do
-
a
pela universidade, vinte e sete anos antes, estava pedindo ajuda.
L
EIGH
F
AZ UMA
V
ISITA
Não quero causar confusão,
Mas posso comprar seu ônibus mágico?
Pouco importa quanto eu pague,
Vou nesse ônibus para junto do meu bem.
Eu o quero... Quero... Quero
...
(Tem que vendê
-
lo para mim...)
—
The Who
Ela se conduziu muito bem durante a maior parte da história,
sentada em uma das duas cadeiras para visitantes do quarto do hospital,
os joelhos firmemente unidos e os tornozelos cruzados, caprichosamente
vestid
a com uma suéter de lã em várias cores e uma saia marrom de brim.
Só no final é que começou a chorar e não conseguia encontrar um lenço.
Dennis Guilder estendeu
-
lhe a caixa de lenços de papel, que estava na
mesinha junto à cama.
—
Acalme
-
se, Leigh
—
disse
ele.
—
Eu não po
-
po
-
posso! Arnie não me procurou mais e... na escola
parece tão cansado... e você di
-
disse que ele não esteve aqui...
—
Ele virá, se precisar de mim
—
disse Dennis.
—
Vocês são tão cheios dessas bes
-
besteiras m
-
ma
-
ch
-
chis
-
tas!
—
soluçou ela
, e então pareceu comicamente admirada do que tinha dito.
As lágrimas haviam feito traços na pintura leve que usava. Ela e
Dennis entreolharam
-
se por um momento, depois riram. No entanto, foi
uma risada breve, nada de muito confortante.
—
Boca de motor o v
iu?
—
perguntou Dennis.
—
Quem?
—
Boca de motor. É como Lenny Barongg chama o Sr. Vickers. O
conselheiro para orientação.
—
Oh! Sim, acho que sim. Arnie foi chamado ao gabinete do
orientador anteontem, segunda
-
feira. Mas não comentou nada e não tive
corage
m de perguntar. Ele não se abre. Ficou tão estranho!
Dennis assentiu. Embora achando que Leigh não percebesse
—
estava mergulhada em seus próprios problemas e confusão
—
,
experimentava uma sensação de impotência e um terrível receio por Arnie.
A partir dos
relatos filtrados até seu quarto nos últimos dias, Arnie
parecia estar à beira de um colapso nervoso; o relato de Leigh era apenas o
mais recente e mais real. Dennis jamais desejaria estar tão
liquidado como
agora. Sem dúvida, poderia ligar para Vickers e
perguntar
-
lhe se havia
alguma coisa que pudesse fazer. Também podia ligar para Arnie... mas,
baseado nas palavras de Leigh, percebia que, agora, Arnie estava sempre
na escola, na garagem de Darnell ou dormindo. Seu pai abandonara uma
espécie de convenção
antecipadamente e havia voltado para casa. Lá,
houve outra briga, segundo Leigh lhe dissera. Embora Arnie nada lhe
houvesse dito, Leigh contou acreditar que ele estivesse a ponto de
abandonar a casa dos pais.
Dennis não queria falar com Arnie enquanto ele
estivesse na
Garagem de Darnell.
—
O que posso fazer?
—
perguntou ela.
—
O que você faria, se
estivesse em meu lugar?
—
Esperar
—
respondeu Dennis.
—
Não sei mais o que se pode
fazer.
—
Só que isso é o mais difícil
—
respondeu ela, em uma voz tão
baixa que
era quase inaudível. Suas mãos amassavam e desamassavam o
lenço de papel, esfrangalhando
-
o, pontihando sua saia marrom de
fragmentos.
—
Meus pais querem que eu pare de vê
-
lo... que o largue.
Eles receiam... que Repperton e aqueles outros rapazes façam mai
s alguma
coisa.
—
Parece muito certa de que foram Buddy e seus amigos, hein?
—
É claro. Todos têm certeza. O Sr. Cunningham chamou a polícia,
embora Arnie lhe pedisse para não fazer isso. Arnie falou que aceitaria as
coisas à sua maneira e isso deixou os d
ois amendrontados.
Também eu me amedronto. A polícia pegou Buddy Repperton e um
de seus amigos, que chamam de "Penetra"... sabe de quem estou falando?
—
Sei.
—
Pegaram ainda o rapaz que trabalha à noite no aeroporto, no
pátio de estacionamento. Parece que
se chama Galton...
—
Sandy. Sandy Galton.
—
Pensaram que ele também estivesse envolvido na coisa, que
talvez os tivesse deixado entrar.
—
Sim... Sandy anda com eles
—
disse Dennis
—
, mas não é tão
degenerado como os outros. Leigh, eu diria que... Bem, se A
rnie não
conversou com você, certamente alguém mais...
—
Claro. Primeiro foi a Sra. Cunningham, depois o pai dele. Acho
que um não sabia que o outro havia falado comigo. Eles estão...
—
Perturbados
—
sugeriu Dennis. Ela meneou a cabeça.
—
É mais do que ist
o. Os dois dão a impressão de terem sido...
agredidos ou coisa assim. Sinceramente, não consigo ter pena
dela,
parece
estar sempre querendo impor sua vontade, mas lamento pelo Sr.
Cunningham. Ele me pareceu tão... tão...
—
A voz dela se extinguiu,
depois t
ornou a ganhar volume.
—
Quando fui lá ontem de tarde, depois
das aulas, a Sra. Cunningham, ela me pediu para chamá
-
la de Regina, mas
não consigo...
Dennis sorriu.
—
Você consegue?
—
perguntou Leigh.
—
Bem, sim... mas tenho um bocado mais de prática. Leigh
sorriu,
pela primeira vez em sua visita.
—
Talvez
isso
fizesse diferença. De qualquer maneira, quando fui lá,
encontrei a Sra. Cunningham, mas seu marido ainda estava na escola... na
Universidade, quero dizer.
—
Entendo.
—
Ela tirou a semana de folga... o
que sobrou da semana. Comentou
que não se sentia em condições de retornar, inclusive nos três dias antes
da Ação de Graças.
—
Como ela estava?
—
Acabada
—
disse Leigh, e estendeu a mão para outro lenço de
papel, cujas pontas começou a esfarrapar.
—
Pareci
a mais velha dez anos,
comparando com a vez em que a conheci, cerca de um mês atrás.
—
E ele? Michael?
—
Mais velho, porém mais seguro
—
disse Leigh, hesitante.
—
Como se isto tudo, de algum modo... de algum modo o pusesse em
movimento.
Dennis ficou calado
. Conhecera Michael Cunningham durante treze
anos e nunca o vira em movimento. Era Regina que sempre tomava a
frente de tudo, com Michael trotando atrás, preparando os drinques nas
reuniões (em sua maioria, reuniões de membros da faculdade) oferecidas
pelo
s Cunningham. Ele tocava sua flauta, parecia melancólico... mas nem
com um esforço de imaginação Dennis poderia dizer que já o vira "em
movimento".
O
triunfo final,
dissera certa vez o pai de Dennis, junto à janela,
vendo Regina levar Arnie pela mão, camin
hando pela estrada da casa dos
Guilder ao encontro de Michael, que os esperava atrás do volante de seu
carro. Naquela época, Arnie e Dennis deviam andar pelos sete anos. O
maternalismo supremo. Eu me pergunto se ela não fará o pobre idiota esperar no
carro
, quando Arnie se casar. Ou talvez ela possa...
A mãe de Dennis lhe franzira o cenho e o fizera calar
-
se, indicando o
filho com os olhos, em um gesto de crianças
-
têm
-
orelhas
-
grandes. Dennis
nunca esquecera o gesto e nem o que seu pai comentara. Aos sete an
os,
não entendera bem aquilo, mas, mesmo nessa idade, sabia perfeitamente o
que significava "pobre idiota". E, mesmo aos sete, entendera vagamente
por que seu pai achava que Michael Cunningham fosse um. Sentira pena
de Michael... um sentimento que persisti
a, sempre e sempre, até o
presente.
—
Ele chegou quando ela terminava a
sua
história
—
prosseguiu
Leigh.
—
Convidaram
-
me a ficar para jantar, Arnie estava comendo na
Darnell's, mas eu disse que precisava voltar para casa. Assim, o Sr.
Cunningham me oferece
u uma carona e fiquei sabendo de sua versão, a
caminho de casa.
—
Os dois têm pontos de vista diferentes?
—
Não exatamente, mas... foi o Sr. Cunningham que chamou a
polícia, por exemplo. Arnie não queria, e a Sra. Cunningham... Regina não
se animava a fazê
-
lo.
Dennis perguntou cauteloso:
—
Ele está, realmente, tentando reconstruir o carro?
—
Está
—
sussurrou ela, para então soltar, agudamente:
—
Só que
isso não é tudo! Arnie está profundamente envolvido com aquele tal
Darnell, eu sei que está! Ontem, durant
e o período vago, ele me contou
que ia colocar uma traseira nova no carro esta tarde e esta noite. Então,
comentei que devia ser tremendamente caro, mas ele respondeu que não
me preocupasse, que seu crédito era bom e...
—
Acalme
-
se.
Ela estava chorando nov
amente.
—
Que seu crédito era bom, porque ele e alguém chamado Jimmy
Sykes iam fazer alguns favores para Will, na sexta e no sábado. Foi o que
ele disse. E... bem, não acredito que esses favores para aquele miserável
sejam legais!
—
O que ele disse à políc
ia, quando o interrogaram sobre Christine?
—
Falou que a encontrou... daquela maneira. Perguntaram se tinha
alguma idéia de quem fizera aquilo e Arnie disse que não. Perguntaram
-
lhe se não era verdade que tivera uma briga com Buddy Repperton, que
Repperton
o ameaçara com uma faca e fora expulso por causa disso. Arnie
contou que Repperton lhe arrancara da mão sua sacola do almoço e a
pisoteara, mas que então o Sr. Casey aparecera, acabando com a briga.
Perguntaram
-
lhe se Repperton não tinha dito que ele paga
ria por aquilo.
Arnie respondeu que talvez tivesse falado algo semelhante, mas que era
conversa fiada.
Dennis estava calado, olhando para o carregado céu de novembro
através de sua janela, considerando o que ouvia. Aquilo tudo era sinistro.
Se Leigh contav
a exatamente o que havia sido a entrevista com a polícia,
Arnie não contara uma só mentira... mas manejara os fatos, de maneira a
fazer parecer uma briguinha trivial, aquele incidente na área de fumar.
Sim, aquilo tudo era muito sinistro.
—
Imagina o que e
le poderia estar fazendo para esse Darnell?
—
perguntou Leigh.
—
Não
—
respondeu Dennis.
No entanto, tinha algumas suspeitas. Um pequeno gravador interno
se ligou e ele ouviu seu pai dizendo:
Ouvi algumas coisas... carros roubados...
cigarros e bebidas...
o contrabando é como um frenesi... ele vem tendo sorte por
muito tempo, Dennis.
Ele olhou para o rosto de Leigh, muito pálido, com a pintura
manchada pelas lágrimas. Ela ligava
-
se a Arnie o mais que podia. Talvez
estivesse aprendendo algo sobre ser forte,
algo que, com sua aparência,
não teria aprendido de outra forma, por mais dez anos. Entretanto, isso
não facilitava as coisas, não as endireitava necessariamente. De súbito,
ocorreu
-
lhe quase ao acaso que percebera a melhora da pele de Arnie mais
de um mês
antes de ele se ligar a Leigh... mas depois de ligar
-
se a
Christine.
—
Vou falar com ele
—
prometeu.
—
Está bem
—
disse ela. Levantou
-
se.
—
Eu... eu não quero que
tudo seja como era antes, Dennis. Sei que nunca mais será. No entanto,
ainda o amo e... Bem,
eu só queria que lhe dissesse isto.
—
Certo, eu direi.
Ficaram ambos constrangidos e nenhum dos dois conseguiu dizer
qualquer coisa, por um longo momento. Dennis pensava que devia ser
aquele o momento, em uma canção, em que surge o Melhor Amigo. Não
obsta
nte, uma parte sua, desprezível, baixa (e também lúbrica) era
contrária a isso. Totalmente. Continuava ainda sentindo uma fortíssima
atração por ela, mais do que sentira por qualquer outra garota, em muito
tempo. Talvez em toda a sua vida. Que Arnie levass
e bebida e
contrabando para Burlington, que se fodesse com seu carro! Nesse meio
tempo, ele e Leigh travariam um conhecimento mais íntimo. Um pouco de
ajuda e conforto. Todos sabem como é isso.
Teve a impressão de que levaria a melhor, precisamente naquele
momento de constrangimento, após ela declarar que amava Arnie; Leigh
estava vulnerável. Talvez estivesse aprendendo a ser forte, mas ela não
aprenderia isso em uma escola à qual se vai voluntariamente. Ele poderia
dizer alguma coisa
—
a coisa certa, talve
z apenas:
chegue aqui
—
e ela se
aproximaria, sentaria na beira da cama, eles conversariam mais um pouco,
talvez falassem sobre coisas mais agradáveis, possivelmente ele a beijaria.
Leigh tinha uma boca adorável e cheia, sensual, feita para beijar e ser
be
ijada. Uma vez para consolo. Duas por amizade. A terceira englobaria
tudo. Sim, um certo instinto, que só então lhe parecia seguro, dizia que
isso poderia ser feito.
Entretanto, Dennis não disse nenhuma das coisas que poderiam dar
nascimento ao que imagina
va, nem tampouco Leigh. Arnie estava entre
eles e, quase seguramente, estaria sempre. Arnie e sua dama. Se a coisa
não fosse tão ridiculamente chocante, ele teria achado graça.
—
Quando é que vão deixar você sair?
—
perguntou ela.
—
Sem que o público desco
nfie?
—
perguntou ele, começando a rir.
Após um momento, ela começou a rir também.
—
Algo mais ou menos assim
—
disse, tornando a rir.
—
Oh, sinto
muito
—
acrescentou.
—
Não se desculpe
—
disse Dennis.
—
Os outros riram de mim a
vida inteira. Já fiquei aco
stumado. Disseram que vão me prender aqui até
janeiro, mas vou enganá
-
los. Voltarei para casa no Natal. Tenho me
rebolado um bocado, na câmara de tortura.
—
Câmara de tortura?
—
A fisioterapia. Minhas costas já estão outra coisa. Os outros ossos
se emendam
ativamente... às vezes a coceira é insuportável. Tenho
devorado uma porção de botões de rosa. O Dr. Arroway diz que isso não
passa de conversa fiada, mas o treinador Puffer jura que fazem efeito e
confere as sobras, cada vez que me visita.
—
E ele vem sem
pre? O treinador?
—
Oh, sim, ele vem. Está quase me fazendo acreditar nessa história
de que botões de rosa fazem os ossos se soldarem mais depressa.
—
Dennis fez uma pausa.
—
Naturalmente, vou parar de jogar futebol.
Ficarei andando de muletas durante algu
m tempo e depois, com sorte,
posso me candidatar a uma bengala. O velho e jovial Dr. Arroway me
disse que vou mancar por uns dois anos. Talvez fique mancando para
sempre.
—
Sinto muito
—
disse ela, em voz baixa.
—
É pena que isso fosse
acontecer logo com u
m cara tão legal como você, Dennis, mas em parte
falo por egoísmo. Gostaria de saber se o resto de tudo isto, essa história
horrível que aconteceu com Arnie, aconteceria realmente se você estivesse
por perto.
—
Muito bem
—
disse Dennis, rolando os olhos dr
amaticamente.
—
Jogue a culpa em mim! Ela, entretanto, não sorriu.
—
Sabe que começo a duvidar da sanidade de Arnie? Isso é uma
coisa que não cheguei a comentar com meus pais nem com os dele. No
entanto, acho que a mãe dele... que ela talvez... Bem, não se
i o que Arnie
disse a ela naquela noite, depois que encontramos o carro destroçado,
mas... tenho a impressão de que os dois se engalfinharam.
Dennis assentiu.
—
De qualquer modo, tudo parece tão... louco! Os pais dele
quiseram comprar um bom carro usado pa
ra ele, para substituir Christine,
mas Arnie recusou. Quando me levava para casa, o Sr. Cunningham
contou que se prontificou a comprar um carro novo para Arnie... usaria
algumas ações que guarda desde 1955. Arnie recusou novamente, dizendo
que não poderia
aceitar um presente desses. O Sr. Cunningham
respondeu que compreendia, que o carro não tinha que ser um presente,
que Arnie lhe pagaria aos poucos, podia até incluir juros, se ele fizesse
questão... Você entende aonde quero chegar, Dennis?
—
Entendo
—
res
pondeu Dennis.
—
A questão é que não pode ser
outro carro. Tem que ser Christine.
—
Para mim, isso parece obsessivo. Arnie descobre uma coisa e se
fixa nela. Não é o que se chama uma obsessão? Tenho medo e, às vezes,
sinto ódio... mas não é dele que tenho
medo. Não é a ele que odeio. É tudo
por causa daquele ter... não, daquela
merda
de carro. A maldita Christine.
As faces de Leigh ficaram vermelhas. Ela apertou os olhos. Os
cantos de sua boca penderam. De repente, seu rosto deixara de ser bonito,
nem mesmo
era atraente. A expressão era cruel, modificando
-
se para algo
horrível, mas também magoado e compulsivo. Pela primeira vez, Dennis
percebeu por que davam a isso o nome de monstro
—
o monstro de olhos
verdes.
—
Sabe o que eu gostaria que acontecesse?
—
per
guntou Leigh.
—
Era que alguém, numa noite dessas, levasse sua preciosa e maldita
Christine por engano, para os ferros
-
velhos de Philly Plains.
—
Os olhos
dela cintilaram maldosamente.
—
E, no dia seguinte, que aquele guindaste
com o enorme imã redondo rec
olhesse o carro e o colocasse no compressor.
Depois, que alguém apertasse o botão e que então só sobrasse um cubinho
de metal amassado, medindo dez centímetros de lado. Então, tudo isso
teria terminado, não acha?
Dennis não respondeu e, após um momento, qu
ase pôde ver o
monstro girar, envolver
-
se em sua cauda escamosa e desaparecer do rosto
dela. Os ombros de Leigh encurvaram
-
se.
—
Bem, imagino que minhas palavras sejam horríveis, não? Seria
como dizer que desejaria que aqueles caras terminassem o trabalho.
—
Sei como você se sente, Leigh.
—
Sabe mesmo?
—
desafiou ela.
Dennis evocou a expressão de Arnie, quando esmurrara o painel do
carro. A espécie de luz maníaca que lhe surgia nos olhos, quando estava
perto de Christine. Pensou na vez em que sentara ao vol
ante, na garagem
de LeBay e no tipo de visão que tivera.
Por último, pensou em seu sonho: faróis apontando para ele, em
meio ao agudo grito feminino de pneus queimando.
—
Sei
—
respondeu.
—
Penso que sei.
Os dois entreolharam
-
se, no quarto do hospital.
D
I
A DE
A
ÇÃO DE
G
RAÇAS
Duas
-
três horas passaram por nós,
A altitude caiu para 505,
Havia menos consumo de combustível,
Vamos para casa, antes que acabe a gasolina.
Você não pode me alcançar...
Não, meu bem, não pode me alcançar...
Porque se chegar muito perto
,
Eu me transformo em uma briiiisa fresca.
—
Chuck Berry
No hospital, o almoço do Dia de Ação de Graças foi servido em
turnos, das onze da manhã até uma da tarde. Dennis recebeu o seu
faltando quinze para o meio
-
dia: três cautelosas fatias de carne branca
de
peito de peru, três cautelosas colheradas de molho de ferrugem, um bom
punhado de purê de batata, no formato e tamanho exato de uma bola de
futebol (faltando apenas as suturas vermelhas, pensou ele, com sarcástico
humor), uma pequena concha de abóbora
gelada, em arrogante e
fluorescente alaranjado, e um pequeno recipiente plástico contendo geléia
de uva
-
do
-
monte. Havia ainda sorvete, como sobremesa. Um pequeno
cartão azul repousava no canto de sua bandeja.
A esta altura, mais enfronhado no sistema hospi
talar
—
após ser
tratado da primeira erupção de úlceras de decúbito no traseiro, Dennis
surpreendera
-
se mais entendido nos sistemas do hospital do que gostaria
de estar
—
, ele perguntou, à atendente de uniforme listrado que veio levar
sua bandeja, o que os
cartões amarelo e vermelho reservavam para o
ajantarado de Ação de Graças. Ficou sabendo que os cartões amarelos
indicavam duas fatias de peru, nenhum molho, batatas, sem abóbora e
geléia artificial como sobremesa. Os cartões vermelhos indicavam uma
fatia
de carne branca, purê de batatas. Pouca comida, na maioria dos casos.
Para Dennis, tudo aquilo foi bastante deprimente. Era fácil imaginar
sua mãe trazendo um enorme e tostado peru para a sala da mesa de
refeições, por volta de quatro da tarde, seu pai af
iando a faca de trinchar,
sua irmã, corada pela pompa e excitamento, com uma fita vermelha de
veludo no cabelo, enchendo um bom copo de vinho tinto para cada um
deles. Era também fácil imaginar os deliciosos aromas e a alegria, quando
se sentavam para come
r.
Fácil de imaginar... mas provavelmente um erro.
De fato, aquele era o Dia da Ação de Graças mais deprimente de sua
vida. Dennis evadiu
-
se para uma desacostumada sesta no início da tarde
(nada de fisioterapia, por ser feriado) e teve um sonho perturbador
, no
qual várias atendentes de uniforme listrado percorriam a enfermaria de
Tratamento Intensivo aplicando decalques da figura de um peru nos
aparelhos de manutenção da vida e nos injetares intravenosos.
Sua mãe, o pai e a irmã tinham ido visitá
-
lo pela ma
nhã, durante
uma hora. Era a primeira vez que percebia em Ellie certa ansiedade para ir
embora dali. Tinham sido convidados pelos Callison para um
brunch
*
ligeiro de Ação de Graças; Lou Callison, um dos três filhos do casal, tinha
quatorze anos e era "leg
al". O irmão hospitalizado se tomara tedioso. Não
lhe haviam descoberto uma forma rara e trágica de câncer espalhando
-
se
pelos ossos. Ele tampouco ficaria paralítico para o resto da vida. Em
Dennis, nada havia de comparável ao filme da semana na tevê.
Tele
fonaram para ele da residência dos Callison, por volta de meio
-
dia e meia. Seu pai lhe parecera levemente embriagado
—
Dennis supôs
que estaria no segundo Bloody Mary e talvez recebendo alguns olhares
desaprovadores de mamãe. Pessoalmente, ele terminara po
uco antes seu
ajantarado de Ação de Graças
—
cartão azul, dieteticamente aprovado, o
único de semelhante data que já conseguira comer em quinze minutos
—
e
saiu
-
se bem, simulando alegria, não querendo estragar
-
lhes os bons
momentos. Ellie falou rapidamente
ao telefone, dando risadinhas e com
voz um tanto estridente. Talvez fosse a conversa com Ellie que o fatigara o
suficiente para precisar de uma soneca.
Dennis adormecera (e tivera aquele sonho perturbador) por volta de
duas da tarde. O hospital estava sin
gularmente quieto aquele dia, apenas
com o pessoal estritamente necessário. A costumeira tagarelice das TVs e
rádios transistorizados dos outros quartos emudecera. O uniforme
listrado que recolhera sua bandeja sorrira amplamente, dizendo esperar
que ele ti
vesse apreciado seu "ajantarado especial". Dennis garantiu
-
lhe
que o apreciara. Afinal de contas, era Dia de Ação de Graças também para
ela.
Então, aconteceu o sonho, um sonho que depois se interrompeu e foi
substituído por um sono profundo. Quando acordou
, eram quase cinco da
tarde e Arnie Cunningham estava sentado na mesma cadeira de plástico
duro que sua namorada ocupara ainda na véspera.
Não foi muita surpresa deparar com ele ali; Dennis imaginou,
simplesmente, que se tratava de um novo sonho.
—
Olá, Ar
nie
—
disse.
—
Como vão as coisas?
*
Mistura de
breakfast e lunch
—
ajanta
rado dominical. (N.T.).
—
Tudo legal
—
respondeu Arnie
—
, mas você parece ainda estar
dormindo, Dennis. Que tal uma pausa para o almoço? Isso o despertará.
Havia um saco de papel pardo no colo dele e a mente sonolenta de
Dennis pensou:
Afinal, e
le recuperou seu saco do almoço. Talvez Repperton não
o tivesse pisoteado tanto quanto pensei.
Tentou sentar
-
se na cama, porém as
costas doeram e usou o painel de controle, para deixá
-
la quase em posição
de sentar. O motor gemeu.
—
Céus, é você mesmo!
—
Es
perava Chidrah, o Monstro de Três Cabeças?
—
respondeu
Arnie amistosamente.
—
Eu estava dormindo. Devo ter pensado que ainda estava.
—
Dennis friccionou a testa com força, como para livrar
-
se do sono.
—
Feliz
Dia de Ação de Graças, Arnie.
—
Obrigado
—
diss
e Arnie.
—
O mesmo para você. Eles lhe deram
peru e tudo o mais para comer?
Dennis riu.
—
Ganhei algo parecido àquelas comidinhas de brinquedo, que
vieram com o Bar Horas Felizes, de Ellie, quando ela estava com uns sete
anos. Lembra
-
se?
Arnie colocou as m
ãos em concha ao redor da boca e fez ruídos
obscenos.
—
Claro que me lembro. Uma baixaria!
—
Foi bom você ter vindo
—
disse Dennis e, por um instante, esteve
perigosamente à beira das lágrimas.
Talvez não houvesse percebido inteiramente o quanto estava
dep
rimido. Sua decisão de estar em casa pelo Natal ganhou força
redobrada. Se ainda continuasse lá, certamente se suicidaria.
—
Seus velhos não vieram?
—
É lógico que vieram
—
disse Dennis
—
, e vão voltar à noite, pelo
menos, mamãe e papai, mas não é a mesma
coisa. Você sabe.
—
Hum
-
hum. Bem, eu lhe trouxe uma coisa. Disse à matrona lá
embaixo que era o seu roupão de banho.
Arnie deu uma risadinha contida.
—
O que
é isso?
—
perguntou Dennis, indicando o saco.
Podia ver que não era apenas um saco de papel para al
moço, mas
uma sacola de compras.
—
Oh, fiz uma vistoria na geladeira, depois que comemos o bicho
—
disse Arnie.
—
Os velhos saíram para visitar amigos da Universidade, é
costume de todo ano, na tarde do Dia da Ação de Graças. Só estarão de
volta lá pelas o
ito da noite.
Enquanto falava, foi tirando coisas da sacola. Dennis ficou olhando,
espantado. Dois castiçais de estanho. Duas velas. Arnie enfiou as velas nos
castiçais, acendeu
-
as usando uma caixinha de fósforos com propaganda
da Garagem de Darnell e desl
igou a luz da cabeceira. Em seguida, quatro
sanduíches, grosseiramente embrulhados em papel encerado.
—
Segundo me lembro
—
disse ele
—
, você sempre dizia que dois
sanduíches de peru, por volta de onze e meia da noite de sexta
-
feira, eram
melhores do que o
ajantarado de Ação de Graças. Porque a pressão já
terminara.
—
Isso mesmo
—
assentiu Dennis.
—
Sanduíches em frente da TV.
Carson ou algum filme antigo. Bem, mas... francamente, Arnie, você não
precisava...
—
Droga, faz umas três semanas que não ponho os
olhos em você.
Foi bom ter chegado enquanto você dormia, porque do contrário teria me
fuzilado.
—
Passou dois sanduíches para Dennis.
—
Seus favoritos, acho.
De carne branca, com maionese e Pão Maravilha.
Dennis deu uma risadinha, depois riu com vontade, e
ntão
gargalhou. Arnie percebia que aquele esforço lhe doía nas costas, mas ele
não conseguia parar de rir. Pão Maravilha havia sido um dos maiores
segredos comuns de Dennis e Arnie, quando crianças. As mães de ambos
eram muito severas no tocante ao pão; Re
gina comprava Torradas
Dietéticas, com ocasionais incursões ao Centeio Moído
-
Solo Pedregoso. A
mãe de Dennis preferia Farinha de Milho e pão de centeio. Arnie e Dennis
comiam o que lhes era dado
—
mas ambos eram secretos apreciadores do
Pão Maravilha e, po
r várias ocasiões, juntavam seu dinheiro para comprar
um Maravilha e um pote de Mostarda Francesa, em vez de doces e balas.
Então, enfiavam
-
se na garagem da casa de Arnie (ou na casa na árvore de
Dennis, lamentavelmente demolida por um vendaval quase nove
anos
antes) e lá ficavam comendo sanduíches de mostarda e lendo histórias em
quadrinhos de Ricardo Rico, até todo o pão terminar.
Arnie o acompanhou em suas risadas e, para Dennis, aquela foi a
melhor parte do Dia de Ação de Graças.
Dennis havia ficado com
companheiros de quarto por quase dez
dias, mas agora tinha sozinho o quarto semiparticular. Arnie fechou a
porta e tirou da sacola parda seis latas de cerveja.
—
As maravilhas continuam
—
disse Dennis e teve que rir
novamente, com o trocadilho involuntári
o.
—
Certo
—
disse Arnie.
—
Não creio que terminem.
—
Fez um
brinde acima das velas, com a lata de cerveja.
—
Prost?
—
Vida eterna!
—
respondeu Dennis.
Os dois beberam. Após terminarem os enormes sanduíches de peru,
Arnie retirou da sacola aparentemente se
m fundo dois recipientes
plásticos para torta e retirou as tampas. Em cada um, havia uma fatia de
torta de maçã caseira.
—
Não, cara, não posso
—
disse Dennis.
—
Vou explodir.
—
Coma!
—
ordenou Arnie.
—
É verdade, não posso
—
disse Dennis, pegando o recipi
ente e um
garfo de plástico. Terminou a fatia de torta em quatro grandes bocados e
depois arrotou. Esgotou o que sobrava de sua segunda cerveja e tornou a
arrotar.
—
Em Portugal, isto é um cumprimento ao cozinheiro
—
disse,
com a cabeça zumbindo agradavelm
ente, devido à cerveja.
—
Se você diz...
—
respondeu Arnie, com uma careta.
Levantou
-
se, ligou a luz fluorescente da cabeceira e apagou as velas.
No exterior, uma chuva forte começara a bater contra as janelas. O
ambiente esfriava. E, para Dennis, parte do
cálido espírito da amizade e
da verdadeira Ação de Graças parecera extinguir
-
se com as velas.
—
Vou odiar você amanhã
—
disse Dennis.
—
Aposto como vou
ficar uma hora sentado naquela privada. E isso me dói as costas.
—
Lembra
-
se daquela vez em que Elaine
deu os peidos?
—
perguntou Arnie, e os dois riram.
—
Implicamos com ela, até sua mãe
despejar o inferno em cima da gente.
—
Não fediam, mas foram um bocado barulhentos
—
disse Dennis,
sorrindo.
—
Como tiros de revólver
—
concordou Arnie.
Os dois riram um p
ouco
—
mas era uma espécie de riso triste, se é
que isso existe. Muita água passara debaixo da ponte. A idéia de que o
acesso de gases de Ellie acontecera sete anos atrás, de certa forma era mais
perturbadora do que divertida. Havia um hálito de mortalidad
e na
percepção de que sete anos podiam significar o passado, com a mais total
e calma facilidade.
A conversa morreu um pouco, ambos perdidos em seus
pensamentos. Por fim, Dennis disse:
—
Leigh esteve aqui ontem. Contou
-
me sobre Christine. Sinto muito
cara.
De verdade.
Arnie ergueu os olhos e seu ar de pensativa melancolia foi trocado
por um sorriso jovial, em que Dennis mal podia acreditar.
—
Sim
—
concordou Arnie.
—
Foi terrível, mas vou dar a volta por
cima.
—
É o melhor
—
respondeu Dennis, cônscio de que
estava
repentinamente vigilante, odiando
-
se por isso, mas não conseguindo agir
de outro modo.
A parte referente à amizade terminara. Era algo que estivera ali,
aquecendo e enchendo o quarto, mas que agora simplesmente se desfizera,
como a coisa delicada e
efêmera que era. Agora, os dois apenas se fitavam.
Os olhos joviais de Arnie estavam também opacos e
—
Dennis podia
jurar
—
também vigilantes.
—
Certo. Fiz a velha passar maus bocados. Leigh também, creio.
Acho que foi o choque de ver que tanto trabalho..
. todo o meu trabalho,
tinha ido por água abaixo.
—
Ele meneou a cabeça.
—
Uma catástrofe.
—
E você conseguirá fazer alguma coisa?
Arnie ficou imediatamente radiante
—
francamente radiante
naquele momento, Dennis pôde sentir.
—
Claro que sim! Aliás, já fiz
. Você nem acreditaria, Dennis, se
tivesse visto o estrago que fizeram, naquele pátio de estacionamento.
Antigamente eles faziam um carro para valer, não como agora, quando
tudo que parece metal é, na verdade, plástico reluzente. Aquele carro é
um maldito
tanque de guerra, cara. A parte dos vidros foi a pior. E
também os pneus, claro. Eles estraçalharam os pneus.
—
E quanto ao motor?
—
Nem chegaram perto
—
disse Arnie prontamente.
Foi sua primeira mentira. Quando ele e Leigh tinham visto Christine,
naquela
tarde, o bujão do distribuidor jazia no pavimento. Leigh o
reconhecera e falara com Dennis a respeito. E Dennis se perguntava o que
mais eles teriam feito debaixo do capô. O radiador? Se alguém se propõe a
usar uma alavanca de pneus para fazer buracos na l
ataria, não poderia
usá
-
la também para furar o radiador em alguns lugares? E quanto às velas?
Ao regulador de voltagem? O carburador?
Por que está mentindo para mim, Arnie?
—
O que está fazendo no carro agora?
—
perguntou Dennis.
—
Gastando dinheiro, o que
mais poderia ser?
—
respondeu Arnie,
e seu riso agora foi quase verdadeiro. Dennis poderia até aceitá
-
lo como
verdadeiro, se não tivesse ouvido o riso real uma ou duas vezes, durante o
banquete de Ação de Graças proporcionado pelo amigo. Novos pneus.
Vidr
os novos. Algum trabalho de lanternagem e então tudo ficará bom
como antes.
Bom como antes.
No entanto, Leigh lhe contara que haviam deparado
com algo que não passava de uma carcaça massacrada, o calhambeque de
feira, a ser liquidado na base das três
-
marte
ladas
-
por
-
um
-
quarto
-
de
-
dólar.
Por que est
á mentindo?
Durante um g
élido instante, ele se perguntou se Arnie talvez não
tivesse ficado um pouco maluco
—
mas, não, essa não era a impressão que ele dava. A impressão que
Arnie fornecia era de... furtividade. As
túcia. Então, pela primeira vez,
imaginou que Arnie talvez estivesse apenas mentindo pela metade,
procurando estabelecer um fundamento de plausibilidade para... para o
quê? Um caso de regeneração espontânea? Bem, isso era absolutamente
louco, não?
N
ão era?
Sem d
úvida, pensou Dennis, a menos que a gente testemunhasse
como um monte de rachaduras em um pára
-
brisa começa a encolher
-
se,
entre uma e outra visita.
Apenas uma ilus
ão de ótica, um truque provocado pela luz. Foi o
que você pensou naquela vez e tinha r
azão.
N
ão obstante, um truque provocado pela luz não explicaria a
singular maneira como Arnie reconstituíra Christine, aquela
excentricidade de partes novas misturadas a velhas. Não explicaria a
estranha sensação que se apoderara de Dennis ao sentar
-
se ao
volante de
Christine, na garagem de LeBay. Ou a sensação, após ter colocado o pneu
novo, quando estavam a caminho da Darnell's, de que ele olhava para o
retrato de um carro velho com uma foto do carro novo diretamente abaixo
dele
—
ou que havia sido recort
ado um buraco no quadro do carro velho,
no lugar onde estivera um dos seus pneus.
E nada explicaria a mentira de Arnie agora... ou a maneira astuta,
disfar
çada, como o observava, para ver se sua mentira seria aceita. Então,
ele sorriu... uma grande, tranqü
ila e aliviada careta.
—
Bem, isso é ótimo
—
falou.
A express
ão astuciosa e calculista de Arnie permaneceu por um
segundo mais. Depois ele sorriu, careteando, enquanto encolhia os ombros.
—
Tive sorte
—
disse.
—
Quando penso nas coisas que eles
poderiam te
r feito... Açúcar no tanque de gasolina, melado no carburador...
foram imbecis. Sorte minha.
—
Repperton e seu alegre bando?
—
perguntou Dennis, calmamente.
A express
ão de desconfiança, tão sombria e estranha a Arnie, tornou
a aparecer e desaparecer. Agora
, ele parecia taciturno. Taciturno e
vacilante. Deu a impressão de que ia falar, mas em vez disso suspirou.
—
Certo
—
assentiu.
—
Quem mais poderia ser?
—
No entanto, você não deu parte do fato.
—
Meu velho fez isso.
—
Foi o que Leigh me disse
—
O que mais
ela lhe contou?
—
perguntou Arnie, bruscamente.
—
Nada e nem perguntei
—
respondeu Dennis, estendendo a
mão.
—
O problema é seu, Arnie. Paz.
—
Claro.
—
Arnie riu um pouco e depois passou a mão pelo
rosto.
—
Ainda não consegui superar aquilo. Droga! Acho q
ue nunca irei
superar, Dennis. Chegar àquele pátio de estacionamento com Leigh,
sentindo
-
me o dono do mundo, para então ver...
—
Será que eles não repetirão a dose, depois que você consertar o
carro? O rosto de Arnie ficou hermético, gélido.
—
Eles não far
ão outra vez
—
disse.
Seus olhos cinzentos eram como o gelo de mar
ço e, de repente,
Dennis ficou satisfeito por não ser Buddy Repperton.
—
O que quer dizer com isso?
—
Estou dizendo que agora vou deixar o carro em casa
—
explicou e,
novamente, seu rosto mo
strou aquela ampla, jovial careta esquisita.
—
O
que mais pensou que fosse?
—
Não pensei nada
—
replicou Dennis. A imagem gelada
permanecia. Agora era uma sensação de gelo fino, estalando
inquietamente debaixo de seus pés. E, abaixo do gelo, água negra e f
ria.
—
Sei lá, Arnie. Você parece muito certo de que Buddy desistiu.
—
Espero que ele encare a coisa como um acerto de contas
—
declarou Arnie tranqüilo.
—
Nós provocamos sua expulsão do colégio...
—
Ele é que provocou a própria expulsão!
—
exclamou Dennis
,
acalorado.
—
Puxou uma faca... diabo, aquilo nem era faca, mas um
maldito facão de açougueiro!
—
Só estou imaginando o modo como ele verá a coisa
—
disse Arnie,
para então estender a mão e acrescentar, rindo:
—
Paz.
—
Ok, tudo bem.
—
Nós conseguimos sua
expulsão, ou, mais precisamente, eu a
consegui. Em troca, ele e sua turma fizeram o diabo com Christine. Agora
estamos quites. Fim.
—
Ainda bem, caso ele encare os fatos dessa maneira.
—
Acho que vai ser assim
—
disse Arnie.
—
Os tiras o interrogaram.
Tamb
ém interrogaram "Penetra" Welch e Richie Trelawney. Encheram os
três de medo. E suponho que quase fizeram Sandy Galton confessar.
—
Os
lábios de Arnie encurvaram
-
se desdenhosos.
—
Aquele babaca chorão!
Aquilo era t
ão inusitado em Arnie
—
no velho Arnie
—
q
ue Dennis
se sentou na cama sem pensar, pestanejou com a dor nas costas e tornou a
se deitar rapidamente.
—
Nossa, cara, e você não acha que eles tinham que ficar assustados
mesmo?
—
Estou pouco ligando para o que ele ou qualquer daqueles bostas
venham a f
azer
—
disse Arnie. Então, em voz estranhamente distante,
acrescentou:
—
Aliás, nada mais importa...
Dennis perguntou:
—
Você está bem, Arnie?
Por um instante, um olhar de desesperada tristeza cobriu o rosto de
Arnie
—
foi mais do que tristeza. Ele parecia
atormentado e perseguido.
Mais tarde (é muito fácil analisar tais coisas mais tarde, bem mais tarde),
Dennis decidiu que era a expressão de alguém tão desnorteado, envolvido
e cansado de lutar, que nem sabe mais direito o que faz.
Ent
ão, essa expressão, c
omo qualquer outra de escura suspeita,
terminou desaparecendo.
—
Claro
—
respondeu.
—
Estou ótimo. Exceto que você não é o
único com dor nas costas. Lembra
-
se de quando fiz aquele esforço, em
Philly Plains?
Dennis assentiu.
—
Pois dê uma olhada nisto.
Leva
ntando
-
se, Arnie puxou a camisa para fora das cal
ças. Algo
pareceu agitar
-
se em seu olhar. Algo inquieto, que depois mergulhou em
negras profundezas.
Ergueu a camisa. N
ão era uma coisa antiquada, como o de LeBay.
Também estava mais limpo
—
uma caprichada t
ira de Lycra, parecendo
contínua, com uns trinta centímetros de largura. Entretanto, pensou
Dennis, um colete era um colete. Para seu desconsolo, aproximava
-
se
demais do de LeBay.
—
Piorei as coisas, ao levar Christine de volta para a garagem
—
disse Arnie
.
—
Nem mesmo sei como foi, tão perturbado estava.
Ajudando a enganchá
-
la no guincho do carro
-
reboque, imagino, mas não
tenho certeza. A princípio não foi tão ruim, mas depois piorou. O Dr.
Mascia receitou... Dennis, você está legal?
Com o que sentiu ser u
m fant
ástico esforço, Dennis manteve a voz
controlada. Movimentou as feições, formando uma expressão que, pelo
menos fracamente, dava uma idéia de agradável interesse... mas ainda
continuava aquilo nos olhos de Arnie, dançando, dançando e dançando.
—
Você
vai sair dessa
—
falou Dennis.
—
Bem, acho que sim
—
respondeu Arnie, tornando a enfiar a
camisa dentro das calças, em torno do colete para as costas.
—
Apenas
preciso ficar atento na hora de levantar pesos, para que não torne a
acontecer.
Sorriu para Denn
is.
—
Se ainda houvesse recrutamento, isso me livraria do Exército
—
comentou.
De novo, Dennis evitou qualquer movimento que pudesse ser
interpretado como surpresa, mas colocou os bra
ços debaixo das cobertas.
Ao ver aquele colete para as costas, tão semelh
ante ao de LeBay, ficara
com ambos arrepiados.
E os olhos de Arnie! Eram como
águas escuras, por baixo do fino
gelo de março. Águas escuras e jubilosas, agitando
-
se muito fundo dentro
dele, como o corpo agitado e decomposto de um afogado.
—
Bem
—
disse Arn
ie, animadamente.
—
Tenho que ir andando.
Certamente não vai esperar que eu fique rondando em um lugar horrível
como este, a noite inteira.
—
E lá se vai você, sempre solicitado
—
disse Dennis.
—
Falando
sério, cara, obrigado. Você alegrou um dia sombrio.
Por um estranho instante, ele pensou que Arnie fosse chorar. Aquela
coisa dan
çante no fundo de seus olhos havia desaparecido e seu amigo
estava ali
—
realmente ali. Arnie sorriu sincero.
—
Lembre só uma coisa, Dennis: ninguém está sentindo sua falta.
Absol
utamente ninguém!
—
Vai tomar banho
—
disse Dennis, em tom solene. Arnie fez um
gesto obsceno com o dedo.
As formalidades agora estavam completas
—
Arnie podia ir embora.
Recolheu sua sacola parda
de compras, consideravelmente desinflada, casti
çais e latas
vazias de
cerveja, que tilintaram no interior.
Dennis teve uma s
úbita inspiração. Bateu com os nós dos dedos no
gesso em torno da perna.
—
Quer assinar aqui, Arnie?
—
Eu já assinei, não foi?
—
Sim, mas apagou. Assina outra vez? Arnie deu de ombros.
—
Tem
uma caneta?
Dennis entregou
-
lhe uma caneta que tirou da gaveta da mesa
-
de
-
cabeceira. Sorridente, Arnie inclinou
-
se para o gesso, erguido em
ângulo
acima da cama, através de uma série de pesos e polias, encontrou espaço
em branco no meio do emaranhado de no
mes e frases e garatujou:
(Para Dennis Guilder, o maior cacete do mundo.)
Deu um tapinha no gesso, ap
ós terminar, e devolveu a caneta.
—
Tudo certo?
—
Legal
—
disse Dennis.
—
Obrigado. Agora pode dar o fora, Arnie.
—
Certo, sabichão. Feliz Dia de Ação d
e Graças.
—
O mesmo pra você.
Arnie se foi. Mais tarde, chegaram os pais de Dennis.
Aparentemente exausta pela hilaridade do dia, Ellie tinha ido dormir. Ao
voltarem para casa, os Guilder comentaram o abatimento de Dennis.
—
Tinha que estar mesmo
—
disse G
uilder.
—
Feriados num
hospital nada têm de divertidos.
Quanto a Dennis, naquela noite ele passou um longo e meditativo
per
íodo examinando as duas assinaturas. De fato, Arnie já assinara seu
gesso, mas quando ele ainda estava com as duas pernas inteiramen
te
engessadas. Daquela primeira vez, ele assinara no molde sobre a perna
direita, a que estava suspensa no ar durante a visita de Arnie. Esta noite,
ele pusera sua assinatura na esquerda.
Dennis tocou a cigarra, chamando uma enfermeira, e usou todo o
seu p
oder de persuas
ão para que ela lhe baixasse a perna esquerda, a fim
de poder comparar as duas assinaturas, lado a lado. O gesso da perna
direita havia sido recortado e o retirariam em mais uma semana ou dez
dias. A assinatura de Arnie não se desfizera
—
es
sa tinha sido uma das
mentiras de Dennis
—
, mas quase se fora, quando recortaram o gesso.
Arnie n
ão escrevera uma mensagem na perna direita, apenas
assinara. Com algum esforço (e um pouco de dor), Dennis e a enfermeira
conseguiram manobrar
-
lhe as pernas, d
eixando
-
as aproximadas o
suficiente para que ele estudasse as duas assinaturas, lado a lado. Em uma
voz tão sem entonação e falha, que ele mal conseguiu identificar como sua,
ele perguntou à enfermeira:
—
Acha que são parecidas?
—
Não
—
disse ela.
—
Já ouv
i falar de cheques com assinaturas
falsificadas, mas nunca moldes de gesso. É alguma brincadeira?
—
Claro
—
Dennis sentiu algo gélido subir do estômago para o
peito.
—
É brincadeira.
Olhou para as assinaturas. Olhou para ambas, lado a lado, e sentiu
um jat
o gelado se espraiando por todo seu corpo, baixando sua
temperatura, deixando os cabelos da nuca eri
çados, espetando o ar:
As duas assinaturas n
ão tinham a menor semelhança.
Mais tarde, naquela noite do Dia de A
ção de Graças, levantou
-
se um
vento frio,
primeiro em lufadas, depois permanentemente. A clara lua
cheia espiava para baixo, do alto de um céu negro. As últimas folhas
murchas e queimadas do outono foram arrancadas das árvores e depois
atiradas pelas sarjetas. Emitiam um som parecido ao de ossos
rolando.
O inverno chegara a Libertyville.
"PENETRA"
WELCH
A noite estava escura, o c
éu estava azul,
e um carr
ão brilhante fugia no fundo do beco,
Uma porta se abriu com estrondo,
Algu
ém gritou,
Voc
ê precisava ouvir só o que eu vi
—
Bo Diddley
A quinta
-
f
eira depois da do Dia de A
ção de Graças foi o último dia
de novembro, a noite em que Jackson Browne tocou no Centro Cívico de
Pittsburgh, para uma platéia lotada. "Penetra" Welch foi até lá com Ricchie
Trelawney e Nickey Billingham mas separou
-
se deles ant
es de começar o
espetáculo. A grana estava curta e, fosse porque o eminente concerto de
Browne houvesse gerado algumas vibrações harmoniosas ou porque ele
estava adquirindo traços afetivos (sendo um romântico, "Penetra" gostava
de acreditar na última hipót
ese), ele tivera uma noite extraordinariamente
boa. Conseguira juntar quase trinta dólares em "trocados". Distribuíra as
moedas por todos os seus bolsos e tilintava como um cofre de criança.
Pedir carona para casa também fora incrivelmente fácil, com todo
o
tráfego formado a partir do Centro Cívico. O concerto terminara às onze e
quarenta da noite e ele estava de volta a Libertyville pouco depois de uma
e quinze da madrugada.
Sua
última carona havia sido com um rapaz que seguia de volta
para Prestonville, p
ela Rota 63. O cara o deixara na rampa da 376, da JFK
Drive. "Penetra" decidiu caminhar até o posto de gasolina Happy Gas, de
Vandenberg, para um papo com Buddy. Buddy tinha um carro e isto, para
"Penetra"
—
que morava longe, em Kingsfield Pike
—
significa
va que não
precisaria ir para casa andando. Era dureza conseguir uma carona quando
se está em zonas menos populosas
—
e Kingsfield Pike ficava no fim do
mundo. Desta maneira, ele só chegaria em casa bem depois do amanhecer
mas, em tempo frio, uma carona ga
rantida não é coisa que se despreze. E
Buddy podia ter uma garrafa.
"Penetra" j
á caminhara uns trezentos metros, a partir da rampa de
saída da 376, em meio a um frio intenso, suas botas ferradas crepitando
sobre a calçada deserta, a sombra diminuindo e se
desfazendo sob a
claridade fantasmagórica e alaranjada da luz dos postes, tendo ainda mais
de um quilômetro a percorrer, quando avistou o carro estacionado junto
ao meio
-
fio, pouco adiante. O escapamento turbilhonava para fora dos
dois canos de descarga e
pendia no ar perfeitamente imóvel, em forma de
nuvem, antes de se desmanchar preguiçosamente em camadas
superpostas. A grade do radiador, em reluzente cromado que se
acentuava com toques de luz laranja, olhava para ele como a boca
sorridente de um débil me
ntal. "Penetra" reconheceu o carro. Era um
Plymouth de duas cores. À luz das lâmpadas da rua, os dois tons
pareciam ser marfim e sangue seco. Era Christine.
"Penetra" estacou e uma esp
écie de estúpida admiração o
envolveu
—
não havia medo, pelo menos naque
le momento. Não podia
ser Christine, aquilo era impossível
—
eles tinham feito uma dúzia de
furos no radiador do carro do Cara de Cona, haviam despejado uma
garrafa de Texas Driver quase
cheia no carburador, e Buddy exibira um
saco de a
çúcar de três quilos
, que deixara escorregar para o tanque de
gasolina, através das mãos de "Penetra", formando um funil. E aquilo fora
apenas o começo. Buddy demonstrara um tipo de furiosa imaginação,
para destruir o carro do Cara de Cona. Aquilo deixara "Penetra" deliciado
e inquieto ao mesmo tempo. Tudo somado, aquele carro não conseguiria
mover
-
se por esforço próprio nem em seis meses, talvez nunca mais.
Portanto, não podia ser Christine o que estava ali. Devia ser outro Fury 58.
Exceto que era Christine. "Penetra" o conhe
cia.
Ficou im
óvel na calçada deserta daquela madrugada, as orelhas
entorpecias assomando por sob os cabelos compridos, a respiração
congelando
-
se no ar.
O carro estava junto ao meio
-
fio, de frente para ele, o motor
ronronando maciamente. Era imposs
ível diz
er quem estaria ao volante,
caso houvesse alguém. O carro estacionara diretamente abaixo da luz de
um poste, e o globo alaranjado brilhava através do pára
-
brisa imaculado,
como um jack
-
o'
-
lantern
*
à prova d'água, percebido bem no fundo de
águas escuras.
"
Penetra" come
çou a ficar com medo.
Deslizou a l
íngua sobre os lábios secos e olhou em torno. À sua
esquerda, ficava a JFK Drive, com seis faixas de trânsito e se
assemelhando ao leito seco de um rio, àquela hora morta da madrugada.
À esquerda, havia uma lo
ja fotográfica, com letras alaranjadas delineadas
em vermelho, soletrando KODAK, através da vitrine.
"Penetra" tornou a olhar para o carro. Ele permanecia l
á, parado.
Ele abriu a boca para falar, mas n
ão emitiu som algum.
Experimentou de novo e conseguiu u
m grasnido.
—
Olá, Cunningham!
O carro continuou parado, pregui
çosamente. A fumaça do
escapamento turbilhonava, morosa
mente farta, produzida pela gasolina
especial.
—
É você, Cunningham?
Deu mais um passo. Os pregos da bota ferrada retiniram no cimento.
S
eu cora
ção latejava no pescoço. Tornou a olhar em torno, para a rua;
certamente apareceria outro carro, a JFK Drive não podia estar
inteiramente deserta, mesmo à uma e vinte e cinco da madrugada, podia?
Entretanto, não havia carros, apenas o monótono clarã
o alaranjado dos
postes de luz.
"Penetra" pigarreou.
*
Lanterna feita com uma abóbora recortada com um rosto humano. (N.T.)
—
Você não está louco, está?
Os far
óis duplos dianteiros ganharam vida subitamente,
envolvendo
-
o em cintilante luz branca. O Fury disparou para ele, a toda
velocidade, os pneus deixando marcas negras de
borracha no pavimento.
Arremeteu com tal potência que a retaguarda pareceu afundar, como as
patas traseiras de um cão preparando
-
se para o salto
—
um cão ou uma
loba. As rodas junto ao meio
-
fio ergueram
-
se acima do pavimento e
correram para "Penetra" daque
la maneira
—
as rodas externas mais baixas,
as internas rodando sobre a calçada, em ângulo saliente. O chassi
arranhou e gemeu, despejando um jato de faíscas turbilhonantes.
"Penetra" gritou e tentou dar um passo de lado. A extremidade do
p
ára
-
choque de Ch
ristine mal lhe tocou a barriga da perna esquerda, mas
arrancou um pedaço de carne. Um líquido quente desceu por sua perna e
empoçou
-
se no sapato. O calor do próprio sangue o fez perceber, de modo
algo confuso, o quanto a noite estava fria.
Ele se chocou c
ontra a porta da loja de fotografias, batendo nela com
o quadril, escapando por pouco da vitrine. Mais trinta cent
ímetros para a
esquerda e afundaria através do vidro, aterrando sobre um amontoado de
Nikons e Polaroids.
Ouviu o motor do carro, aumentando s
ubitamente de rota
ção. E, de
novo, aquele alienado ranger do chassi contra o cimento. "Penetra" olhou
em redor, arfando penosamente. Christine dava marcha à ré na sarjeta e,
quando passou por ele, "Penetra" viu. Ele viu.
Não havia ninguém ao volante.
O pân
ico começou a latejar em sua cabeça. "Penetra" se firmou nos
calcanhares. Correu pela JFK Drive, procurando o lugar mais distante.
Havia um beco, entre um mercado e uma lavanderia. Estreito demais para
o carro. Se pudesse alcançá
-
lo...
As moedas tilintaram
loucamente em seus bolsos das calças e nos
cinco ou seis bolsos do casaco, excedente de equipamento militar do
Exército. Moedas de vinte e cinco, dez e cinco centavos. Um tilitante
carrilhão de prata. Os joelhos quase lhe chegaram ao queixo. As botas
ferr
adas de engenheiro tamborilaram sobre a calçada. Sua sombra o
perseguiu.
Em algum ponto mais atrás, o carro tornou a aumentar as rotações,
morreu, aumentou de novo, morreu, e então o motor começou a guinchar.
Os pneus uivaram e Christine disparou contra as
costas de "Penetra"
Welch, cruzando as faixas da JFK Drive em ângulo reto. "Penetra" gritou,
mas nem ouviu o próprio grito, porque o carro ainda queimava borracha,
ainda se esganiçava como uma mulher insanamente furiosa e homicida
—
e aquele guincho enche
u o mundo.
A sombra de "Penetra" não o perseguia mais. Agora estava à sua
frente e alongando
-
se. Na vitrine da lavanderia, ele viu o desabrochar de
enormes olhos amarelados.
Nem mesmo estava perto de lá.
No preciso e último instante, "Penetra" tentou ginga
r para a
esquerda, mas Christine imitou seu movimento, como se tivesse lido seu
final e desesperado pensamento. O Plymouth o atingiu em cheio, ainda
acelerando, quebrando
-
lhe as costelas e arrancando as botas de
engenheiro de seus pés. Ele foi atirado a do
ze metros, contra a parede
lateral de tijolos do pequeno mercado, novamente escapando por pouco
de um mergulho através da vitrine.
A força do impacto foi dura o bastante para fazê
-
lo ricochetear de
novo para a rua, deixando na parede uma mancha de sangue,
como em
um mata
-
borrão. Uma foto da mancha surgiria no dia seguinte, na
primeira página do
Keystone
de Libertyville.
Christine deu marcha à ré, guinchou quando de uma brusca e
deslizante parada, tornando a rugir ao avançar. "Penetra" jazia perto a
calçada,
tentando levantar
-
se. Não foi possível. Nada parecia funcionar.
Todos os sinais estavam confusos.
A intensa luz branca o lavou de alto a baixo.
—
Não
—
sussurrou, através da boca cheia de dentes quebrados.
—
N...
O carro rugiu para diante e sobre ele. Moe
das voaram para todos os
lados. "Penetra" foi puxado, rolando primeiro para um lado, depois para o
outro, quando Christine tornou a recuar para a rua. O carro ficou ali, o
motor acelerando e caindo para um zumbido preguiçoso, depois tornando
a acelerar. Fi
cou ali, como que cismando.
Então, voltou a atacá
-
lo. Atingiu
-
o, subiu na calçada, derrapou um
pouco e então recuou, sacolejando na marcha à ré.
Guinchou para diante.
Deu marcha à ré.
Investiu de novo.
Os faróis dianteiros cintilaram. Os canos de descarga
expeliram uma
quente fumaça azulada.
A coisa na rua não parecia mais um ser humano; agora tinha a
aparência de um monte de trapos espalhado.
O carro deu marcha à ré uma última vez, derrapou fazendo um
semicírculo e acelerou, rugindo para a trouxa sangrenta
na rua, em
seguida descendo a estrada a toda potência do motor, ainda acelerando ao
máximo, o ruído reverberando nas paredes dos prédios adormecidos mas
não inteiramente adormecidos agora. Havia luzes começando a brilhar,
pessoas que moravam sobre suas lo
jas chegavam às janelas, querendo ver
o que provocava toda aquela barulheira e se houvera algum acidente.
Um dos faróis de Christine ficara estilhaçado. O outro piscava sem
cessar, manchado com uma fina camada do sangue de "Penetra". A grade
do radiador es
tava amassada para dentro e as mossas feitas nela
aproximavam
-
se em tamanho e formato ao torso de "Penetra", com toda a
horrenda perfeição de uma máscara mortuária. Havia sangue espalhado
sobre o capô, um sangue que era uma mancha aumentando de tamanho, à
medida que aumentava a velocidade. A descarga apresentava um som
ruidoso, ensurdecedor; um dos dois silenciosos de Christine fora
destruído.
Dentro do carro, no painel de instrumentos, o odômetro continuava
girando ao contrário, como se, de algum modo, Chr
istine recuasse no
tempo, escapando não apenas do cenário do atropelamento e fuga, mas do
verdadeiro
fato
do atropelamento e fuga.
O silencioso foi a primeira coisa.
De repente, aquele som ruidoso, ensurdecedor, diminuiu e
normalizou
-
se.
Os leques de sangu
e sobre o capô começaram a recuar para a
dianteira do carro, a despeito do vento
—
como um filme, rodando ao
contrário.
O farol vacilante de súbito passou a brilhar com firmeza e, duzentos
metros além, o farol apagado voltou a brilhar também. Com um tilint
ar
insignificante
—
não mais do que o som do sapato de um garotinho
quebrando a fina camada de gelo formada sobre uma poça lamacenta
—
o
vidro se reestruturou do nada.
Houve um som cavo
—
punk! punk! punk!
—
brotando da dianteira
do carro, o som de metal am
assado, aquele som que ouvimos às vezes
quando apertamos uma lata de cerveja. Só que, em vez de amassar
-
se, a
grade dianteira de Christine estava se desamassando
—
um lanterneiro
veterano, com cinqüenta anos de experiência em seu trabalho, não o teria
feit
o com mais perícia e capricho.
Christine dobrou para Hampton Street, ainda antes de o primeiro
daqueles despertados pelo chiado de seus pneus alcançar os despojos de
"Penetra". O sangue desaparecera. Tinha chegado à frente do capô e ali
desaparecera. Os ar
ranhões não existiam mais. Quando o carro rodou
quietamente para a porta da garagem, com seu aviso BUZINE PARA
ENTRAR, houve um
punk!
final, e então a última amassadura
—
esta no
pára
-
lama dianteiro esquerdo, o local onde Christine colidira contra a
barrig
a da perna de "Penetra"
—
se desamassou e ficou perfeita.
Christine estava como nova.
O carro parou diante da grande porta da garagem, no meio do
edifício escuro e silencioso. Havia uma pequena caixa de plástico, presa à
viseira contra o sol, do lado do mo
torista. Era uma bugigangazinha que
Will Darnell dera a Arnie, quando ele começara a transportar cigarros e
bebida para o Estado de Nova York, por sua ordem
—
talvez fosse a
versão de Darnell sobre uma chave de ouro para o banheiro público.
No ar quieto, o
abridor de porta zumbiu brevemente e a porta da
garagem chocalhou obedientemente para cima. Outro circuito se formara
com o levantamento da porta e algumas luzes internas acenderam
-
se
dentro do prédio, brilhando francamente.
O botão dos faróis dianteiros
se moveu repentinamente no painel de
instrumentos e as luzes de Christine apagaram
-
se. O carro rodou para o
interior murmurando através do concreto manchado de óleo, em direção
ao boxe vinte. Atrás dele, a porta erguida que fora programada para uma
espera
de trinta segundos tornou a descer. O circuito das luzes se
interrompera e a garagem voltou à escuridão.
Na fenda da ignição de Christine, as chaves oscilando para baixo
giraram subitamente para a esquerda. O motor morreu. A etiqueta de
couro com as inicia
is RDL marcadas em sua superfície balançou de um
lado para outro, em arcos decrescentes... até finalmente ficar imóvel.
Christine ficou no escuro, e o único som na Garagem Faça
-
Você
-
Mesmo, de Darnell, era o lento palpitar de seu motor esfriando.
O
D
IA
S
EG
UINTE
Tenho um "Chevy" 69 com um 396,
Faróis Feully e um Hurst no piso,
Que me espera esta noite
No pátio de estacionamento
Junto à loja 7
-
11...
—
Bruce Springsteen
Arnie Cunningham não foi à aula no dia seguinte. Alegou ter quase
certeza de que ia ficar
gripado. Naquela noite, contudo, disse aos pais que
se sentia melhor, o bastante para ir até a Garagem de Darnell e trabalhar
um pouco em Christine.
Regina protestou
—
embora não se expressasse para dizer o que
sentia, pensou que Arnie tinha uma aparência
terrível. O rosto dele estava
agora inteiramente livre da acne e das equimoses, mas houve uma troca:
ficara muito pálido e havia círculos escuros em torno dos olhos, como se
não estivesse dormindo bem. Além disso, ainda mancava. Inquieta, ela se
perguntou
se o filho não estaria usando algum tipo de droga, se talvez não
houvesse machucado mais as costas do que dava a entender e começasse a
tomar pílulas para poder continuar trabalhando no amaldiçoado carro.
Então, rejeitou o pensamento. Por mais obcecado que
pudesse estar com o
carro, Arnie não seria idiota a tal ponto.
—
Eu estou ótimo, mamãe
—
disse ele.
—
Não me parece nada ótimo. E mal tocou em seu jantar.
—
Comerei alguma coisa mais tarde.
—
E suas costas, como estão? Será que não anda levantando coisas
muito pesadas para você?
—
Não, mamãe.
Era mentira. E suas costas tinham doído horrivelmente o dia inteiro.
Estava atravessando a pior fase, desde a lesão original, em Philly Plains.
(Oh, em verdade, como é que aquilo começara?
sussurrou sua mente.
Como
ha
via sido? Você tem certeza de alguma coisa?)
Havia tirado o colete por
instantes e as costas latejavam tanto, que mal pudera suportar. Colocara
-
o
novamente, após apenas quinze minutos, apertando
-
o mais do que nunca.
Agora, as costas estavam um pouquinho me
lhor. Ele sabia por quê. Era
porque ia vê
-
la, ver Christine. Era isso.
Regina olhou para ele, preocupada e desnorteada. Pela primeira vez
na vida, simplesmente não sabia como agir. Arnie agora estava fora de seu
controle. O conhecimento disto provocava um
desespero insano, que
algumas vezes a envolvia, rastejante, enchendo
-
lhe o cérebro de uma
horrível, vazia e infecta friagem. Nestas ocasiões era tão grande a
depressão que custava a crer na passagem furtiva daquela dúvida por sua
cabeça fazendo
-
a perguntar
-
se se era exatamente para isso que vivera
—
ver seu filho apaixonado por uma garota e por um carro, no mesmo
terrível outono. Teria sido? Para que pudesse ver, precisamente, o quanto
se tornara odiosa para ele, ao fitar seus olhos cinzentos? Teria sido? E
, em
realidade, aquilo tinha algo a ver com a garota? Não. Em sua mente, tudo
acabava retornando ao carro. Seu repouso passara a ser interrompido e
inquieto e, pela primeira vez desde seu parto, quase vinte anos antes,
começou a considerar uma consulta com
o Dr. Mascia, para ver se ele lhe
daria alguma pílula para a tensão, a depressão e a insônia resultante.
Pensava em Arnie, nas longas noites insones, nos erros que jamais
poderiam ser retificados; pensava em como o tempo conseguia deslocar
de seu eixo o e
quilíbrio do poder e em como a meia
-
idade às vezes
espionava através de um espelho de toucador, como a mão de um cadáver,
assomando através de uma terra erodida.
—
Vai voltar cedo?
—
perguntou.
Sabia ser este o último apoio dos pais verdadeiramente impoten
tes e
odiou
-
o, mas agora era incapaz de modificá
-
lo.
—
Claro
—
respondeu ele, mas Regina não acreditou muito, a julgar
pelo tom da resposta.
—
Arnie, eu gostaria que ficasse em casa. Sinceramente, você não me
parece com boa aparência.
—
Vou melhorar
—
diss
e ele.
—
Tenho que melhorar. Preciso levar
algumas peças de carro amanhã até Jamesburg, para Will.
—
Não poderá ir, se estiver doente
—
disse ela.
—
São quase
duzentos quilômetros.
—
Não se preocupe.
Ele lhe beijou a face
—
o beijo
-
na
-
face desapaixonado, d
os
conhecidos que se encontram em um coquetel. Arnie abria a porta da
cozinha para sair, quando Regina perguntou:
—
Você conhecia o rapaz que foi atropelado a noite passada, na
Rodovia Kennedy? Ele se virou para fitá
-
la, com rosto inexpressivo.
—
O quê?
—
O jornal disse que ele vinha para Libertyville.
—
Oh, aquele atropelamento com fuga... É disso que está falando?
-
É.
—
Éramos da mesma sala, quando eu era calouro
—
disse Arnie.
—
Pelo menos, acho que sim. Mas eu não o conhecia muito, mamãe.
—
Oh
—
assenti
u ela satisfeita.
—
Ainda bem. Segundo o jornal,
havia resíduos de droga em seu organismo. Você nunca tomou drogas,
não é, Arnie?
Arnie sorriu suavemente para o rosto pálido e perscrutador de sua
mãe.
—
Nunca, mamãe.
—
E se suas costas começarem a incomodá
-
lo... quero dizer, se
realmente
começarem a incomodá
-
lo... você irá ver o Dr. Mascia, está bem?
Não comprará nada de um... traficante de drogas, não é mesmo?
—
Não comprarei, mamãe
—
repetiu ele, e saiu.
Havia mais neve agora. Outro degelo derretera a ma
ior parte, mas
desta feita ela não desaparecera por completo, apenas recuando para as
sombras, onde formava uma orla branca debaixo das sebes, na base das
árvores, na cobertura da garagem. Não obstante, a despeito da neve em
torno das beiradas
—
ou talvez
por isso mesmo
—
o gramado da casa
parecia singularmente verde, quando Arnie saiu para o crepúsculo, seu
pai assemelhando
-
se a um estranho refugiado do verão, enquanto recolhia
as últimas folhas do outono com um ancinho.
Arnie ergueu a mão brevemente para
ele e deu a impressão de que
ia passar por Michael sem falar. Seu pai o chamou. Ele se aproximou com
relutância. Não queria atrasar
-
se para seu ônibus.
Seu pai também envelhecera com as tormentas que haviam
desabado sobre Christine, embora outras coisas ce
rtamente também
tivessem tido parte nisso. Candidatara
-
se à cátedra do Departamento de
História, em Horlicks, em fins do último verão e havia sido solenemente
rejeitado. Além do mais, durante seu
check
-
up
anual de outubro, o médico
apontara um problema inc
ipiente de flebite
—
flebite, que quase matara
Nixon; flebite, um problema de pais com certa idade. E, quando o outono
anterior dera vez a outro cinzento inverno do oeste da Pensilvânia,
Michael Cunningham parecia mais abatido do que nunca.
—
Oi, pai. Escu
te, tenho que me apressar, se quiser pegar o...
Michael ergueu os olhos da pequena pilha de congeladas folhas
castanhas que conseguira reunir. O pôr
-
do
-
sol banhou as partes planas de
seu rosto e pareceu fazê
-
las sangrar. Arnie recuou involuntariamente, um
tanto chocado. O rosto de seu pai era espectral.
—
Onde esteve a noite passada, Arnold?
—
perguntou ele.
—
Quê?
—
ofegou Arnie, depois fechando a boca lentamente.
—
Ora,
aqui. Aqui em casa, papai. Você sabe disso.
—
A noite inteira?
—
É claro! Fui para a c
ama às dez horas. Estava arriado. Por quê?
—
Porque hoje recebi um telefonema da polícia
—
disse Michael.
—
Sobre o rapaz que foi atropelado na JFK Drive, à noite passada.
—
"Penetra" Welch
—
disse Arnie.
Fitou o pai com olhos calmos, mas orlados de profun
das olheiras e
comprimidos nas órbitas. Se o filho ficara chocado com a aparência do pai,
também o pai ficara perplexo ante a do filho. Para Michael, as órbitas do
rapaz quase pareciam os buracos vazios de uma caveira, àquela claridade
esfumada do crepúscu
lo.
—
Sim, o sobrenome era Welch.
—
Era quase certo que ligariam. Bem, acho eu. Mamãe sabe... que ele
poderia ter sido um dos caras que demoliram Christine?
—
Não por mim.
—
Eu também nada lhe disse. Seria bom ela não ficar sabendo
—
declarou Arnie.
—
Ela
acabará descobrindo
—
disse Michael.
—
De fato, sua mãe
certamente deduzirá isso. É uma mulher tremendamente inteligente, caso
você nunca tenha notado. Entretanto, não ficará sabendo por mim.
Arnie assentiu, depois sorriu sem vontade.
—
Onde esteve a noite
passada? Sua confiança é tocante, papai.
Michael enrubesceu, mas não baixou os olhos.
—
Se você não estivesse fora de si nestes últimos dois meses
—
falou
—
, talvez compreendesse por que fiz a pergunta.
—
Bem, diabo, o que significa?
—
Você sabe perfeitam
ente. Nem mesmo adianta ficarmos
discutindo, porque vamos terminar sempre na mesma coisa, após rodeios
e mais rodeios. Toda a sua vida está se desintegrando e você ainda fica aí,
perguntando sobre o que estou falando!
Arnie riu. Era um som duro, insolente.
Michael pareceu encolher
-
se
um pouco, ao ouvi
-
lo.
—
Mamãe perguntou se eu tomava drogas. Talvez você também
queira testar isso.
—
Arnie fez um gesto de arregaçar as mangas do blusão
de frio.
—
Quer ver se tem marcas de picadas?
—
Não preciso perguntar se
toma drogas
—
disse Michael.
—
Você
já está tomando uma que conheço, e isso basta. E aquele maldito carro.
Arnie se virou como para ir embora, mas Michael o reteve.
—
Largue meu braço. Michael deixou a mão cair.
—
Só queria que ficasse sabendo de uma coisa
—
disse ele.
—
Acredito tanto que você mataria alguém, como acreditaria que fosse capaz
de caminhar através da piscina dos Symond. Entretanto, a polícia irá
interrogá
-
lo, Arnie, e as pessoas podem assustar
-
se, quando a polícia
surge de repente. Para eles,
susto ou surpresa podem assemelhar
-
se a
culpa.
—
Tudo isto porque algum bêbado atropelou aquele bosta do Welch?
—
A coisa não foi bem assim
—
disse Michael.
—
Fiquei sabendo
por esse tal Junkins, que ligou para mim. Quem quer que tenha liquidado
o rapaz W
elch, atropelou
-
o, depois deu marcha à ré, tornou a passar por
cima dele com o carro, recuou, passou sobre ele,
tornou a...
—
Pare com isso!
—
exclamou Arnie.
De repente, parecia sentir
-
se mal e amedrontado. Michael
experimentou a mesma sensação de Dennis,
no Dia de Ação de Graças: a
sensação de que, em sua fatigada infelicidade, o verdadeiro Arnie
subitamente se aproximara da superfície, talvez quase podendo ser
atingido.
—
Foi... incrivelmente brutal
—
comentou Michael.
—
Assim me
disse Junkins. Compreend
a, não pareceu realmente um acidente. Foi mais
um assassinato.
—
Assassinato
—
murmurou Arnie estonteado.
—
Não, eu nunca...
—
O quê?
—
perguntou Michael brusco. Tornou a agarrar o blusão
de Arnie.
—
O que ia dizer? Arnie olhou para o pai. Seu rosto ficara
novamente hermético.
—
Nunca pensei que pudesse ser isso
—
disse ele.
—
Era o que eu ia
dizer.
—
Quero apenas que saiba de uma coisa
—
explicou Michael.
—
Eles irão procurar alguém com um motivo, por menor que seja. Sabem o
que aconteceu com seu carro, co
mo sabem que esse Welch poderia estar
envolvido naquilo ou que você o
julgasse
envolvido. É bem possível que
Junkins vá procurá
-
lo.
—
Nada tenho a esconder.
—
Claro, eu sei disso
—
concordou Michael.
—
Ande, vai perder seu
ônibus!
—
Certo
—
disse Arnie.
—
Tenho que ir agora.
No entanto, ficou ali um pouco mais, fitando o pai. De súbito,
Michael se viu recordando o nono aniversário de Arnie. Ele e o filho
tinham ido ao pequeno zoológico em Philly Plains, almoçado juntos e
encerrado o dia jogando dezoito bura
cos no campo de golfe em miniatura,
perto da Estrada Basin, ao ar livre. O local havia pegado fogo em 1975.
Regina não pudera ir, ficara em casa, atacada de bronquite. Eles dois
tinham
-
se divertido muito. Para Michael, aquele fora o melhor aniversário
do f
ilho, o que simbolizara, em sua concepção, o melhor ponto da doce e
despreocupada infância de Arnie, como menino americano. Tinham ido
ao zoológico e voltado para casa sem grandes acontecimentos, exceto que
se haviam divertido
—
ele e o filho, um filho que
fora e continuava sendo
tão querido.
Michael passou a língua pelos lábios e disse:
—
Venda aquele carro, Arnie. Por que não o vende? Depois que o
reconstruir inteiramente, desfaça
-
se dele. Pode conseguir um bom
dinheiro. Uns dois... talvez até três mil dó
lares.
De novo, aquela assustadora e cansada expressão passou pelo rosto
de Arnie, mas Michael não podia afirmar com certeza. O sol poente se
transformara em acre linha alaranjada no horizonte ocidental e o pequeno
jardim ficara sombrio. Então a expressão
desaparecera, se é que existira.
—
Não, eu não poderia fazer isso, papai
—
disse Arnie docemente,
como se falasse a uma criança.
—
Agora, não. Já investi muito em
Christine. Demais.
Então ele se foi, cruzando o jardim até a calçada, fundindo
-
se a
outras so
mbras, deixando para trás apenas o som de suas pisadas, mas
que em breve desaparecia.
Investiu muito em Christine? É mesmo? O que, exatamente, Arnie? O que
investiu nesse carro?
Michael baixou os olhos para as folhas, depois observou seu jardim.
Por baixo
de sebe e na cobertura da garagem, a neve cintilava na
escuridão que ia chegando, lívida e teimosamente aguardando reforços. À
espera do inverno.
R
EGINA E
M
ICHAEL
Minha máquina é um barato, minha 409,
Minha 409, com "dual
-
quad".
—
The Beach Boys
Regina e
stava cansada
—
parecia cansar
-
se com mais facilidade,
naqueles dias
—
, de modo que foram para a cama às nove, muito antes de
Arnie chegar. Fizeram amor, um ato sem alegria e mais por obrigação
(ultimamente eles se amavam bastante, quase sempre como obriga
ção e
sem alegria, deixando Michael com a desagradável sensação de que a
esposa passara a usar seu pênis como uma pílula para dormir), depois do
que permaneceram em suas camas geminadas, quando então ele
perguntou, casualmente:
—
Dormiu bem a noite passada
?
—
Muito bem
—
respondeu ela, candidamente, e ele soube que
mentia.
—
Ótimo.
—
Levantei por volta das onze e Arnie parecia inquieto
—
disse
Michael, ainda mantendo o tom casual.
No momento, sentia
-
se profundamente apreensivo. Nesta noite,
percebera algo n
o rosto do filho, algo que não conseguira desvendar, por
causa das sombras do anoitecer. Talvez não fosse nada, absolutamente
nada, mas aquilo cintilava em sua mente como um maldito anúncio de
néon que não se desligava. Seu filho pareceria culpado ou assus
tado? Não
fora apenas um efeito da luz? A menos que resolvesse a charada, o sono
demoraria muito a chegar
—
e talvez nem chegasse.
—
Levantei
-
me lá pela uma da madrugada
—
disse Regina,
apressando
-
se a acrescentar:
—
Só para ir ao banheiro. Dei uma espiada
em Arnie.
—
Riu, um tanto melancólica.
—
Velhos hábitos custam a
morrer, não?
—
Sim, acho que custam
—
concordou Michael.
—
Então, ele dormia profundamente. Eu gostaria que ele passasse a
usar pijama, no tempo frio.
—
Estava de cuecas?
—
Estava.
Michael t
ranqüilizou
-
se, imensamente aliviado e bastante
envergonhado de si mesmo. Entretanto, era melhor ficar sabendo... ter
certeza. Fora muito bom ter dito a Arnie que o sabia tão capaz de cometer
um homicídio, quanto caminhar sobre a água. Não obstante, a ment
e,
aquele perverso demônio, tudo pode conceber e parece sentir uma
perversa alegria nisso. Entrelaçando as mãos atrás da cabeça e encarando
a escuridão, Michael pensou que talvez fosse justamente essa a maldita
peculiaridade do viver. Mentalmente, uma espo
sa pode atacar
alegremente seu melhor amigo, um grande amigo pode tramar contra nós
e planejar trair
-
nos, um filho pode assassinar alguém com um carro.
Era melhor ficar envergonhado e esquecer as idéias cretinas.
Arnie estava em casa à uma da madrugada. Er
a improvável que
Regina se enganasse com a hora, por causa do rádio
-
relógio digital sobre a
cômoda do quarto do casal
—
ele marcava as horas em números enormes,
azuis e indiscutíveis. Seu filho estava ali à uma hora, e o rapaz Welch
havia sido atropelado a
cinco quilômetros de distância, vinte e cinco
minutos depois. Era impossível crer que Arnie pudesse vestir
-
se, sair (sem
Regina perceber, pois certamente ficara acordada, atenta a ele), ir até a
Darnell's, retirar Christine e dirigi
-
la até o local em que
"Penetra" Welch
fora assassinado. Fisicamente impossível.
E, para começar, ele nunca acreditara nisso.
Suas idéias demoníacas estavam satisfeitas. Michael se virou para o
lado direito, dormiu e sonhou que jogava golfe com seu filho de nove anos,
em uma suc
essão de pequenos campos verdejantes, onde giravam
moinhos de vento e pequenos acidentes do terreno os esperavam...
Sonhou ainda que os dois estavam sozinhos, inteiramente sós no mundo,
porque a mãe de seu filho morrera de parto
—
algo muito triste. Todos
ainda recordavam como Michael ficara inconsolável
—
mas quando
voltassem para casa, ele e seu filho, a teriam apenas para os dois,
comeriam macarrão diretamente da panela como despreocupados
solteirões, e ao terminarem de lavar os pratos sentar
-
se
-
iam à me
sa da
cozinha, oculta sob jornais espalhados, e construiriam modelos de carros
com inofensivos motores plásticos.
Michael Cunningham sorria em seu sonho. Ao lado dele, na outra
cama, Regina não sorria. Permanecia acordada, esperando o ruído da
porta, denun
ciando que seu filho voltara do mundo lá de fora.
Quando ouvisse a porta sendo aberta e fechada... quando ouvisse os
passos dele nos degraus... então seria capaz de dormir.
Talvez.
J
UNKINS
Fique calma e venha motorar comigo, meu bem
O que foi que disse?
Q
ue me cale e não faça propostas?
Oh, meu bem, você é a minha proposta!
Uma excelente proposta, meu bem.
E adoro excelentes propostas!
Que carro estou dirigindo?
É um Cadillac 48,
Um Cadillac rabo
-
de
-
peixe,
Uma máquina e tanto, meu bem,
Vamos rodar, Josephi
ne, rodar...
—
Elias McDaniel
Junkins apareceu na Darnell's mais ou menos às oito e quarenta e
cinco daquela noite. Arnie tinha acabado de encerrar seu trabalho em
Christine por aquele dia. Substituíra por uma nova a antena de rádio que
Repperton e seu ba
ndo tinham arrancado e, durante os últimos quinze
minutos, ficara sentado ao volante, ouvindo
Cavalgada do Ouro de Sexta à
Noite
na estação WDIL.
Sua única idéia tinha sido a de ligar o rádio e mover o ponteiro no
mostrador, do começo ao fim, para certific
ar
-
se de que instalara a antena
devidamente e não havia estática. Entretanto, o ponteiro dera com o forte
sinal da WDIL e ele ficara quieto, olhando para diante através do pára
-
brisa, sentado ali com os olhos cinzentos cismadores e distantes. Enquanto
isso
, Bobby Fuller cantava
"I Fought the Law"
Frankie Lymon e os
Teenagers cantavam
"Why Do Fools Fall in Love",
Eddie Cochran cantava
"C'mon Everybody"
e Buddy Holly cantava
"Rave On"...
Não havia
comerciais na WDIL nas noites de sexta
-
feira, nem
disc
-
jockeys
.
Apenas os
sons, a música. Vinda da programação, não de nosso coração. De vez em
quando, uma suave voz feminina interrompia para dizer o que Arnie já
sabia
—
que estava ouvindo a WDIL
-
Pittsburgh, o som da Rádio Camurça
Azul.
Arnie permaneceu ao volante, s
onhador, as luzes vermelhas dos
marcadores fosforescendo no painel de instrumentos, tamborilando de
leve com os dedos. A antena estava ótima. Sim, tinha feito um bom
trabalho. Como Will dissera: ele possuía jeito para aquilo. Bastava olhar
para Christine,
ela era a prova. Parecia um monte de ferro
-
velho
descansando no gramado de LeBay, mas ele a ressuscitara. Mais tarde,
parecera outro monte de ferro
-
velho, no estacionamento do aeroporto, e
tornara a ressuscitá
-
la. Ele tinha...
Fique gamado... fique gamado
e me diga...
Me diga... para não ficar sozinho...
Ele tinha o quê?
Substituído a antena, claro. Podia recordar, também, que fizera
alguma lanternagem nos amassados. Entretanto, não encomendara
nenhum vidro de pára
-
brisa (embora ele houvesse sido trocado)
, não
encomendara nenhum encapamento novo para os assentos (mas também
haviam sido trocados), tendo
-
se limitado a olhar de perto o que havia
debaixo do capô, uma vez, antes de deixá
-
lo cair com estrondo,
horrorizado ante o estrago que tinham feito na fiaçã
o de Christine.
No entanto, agora o radiador estava intacto, o bloco do motor
perfeito e brilhando, os pistons movimentando
-
se livre e claramente. E
Christine ronronava como uma gata.
Entretanto, havia os sonhos.
Ele sonhara com LeBay ao volante de Christi
ne, LeBay vestindo um
uniforme do Exército, salpicado e sujo de manchas cinza
-
azuladas do
bolor da sepultura. A carne dele se retraíra e sumira. O osso branco e
reluzente assomava em alguns lugares. As órbitas onde outrora ficavam
os olhos de LeBay eram va
zias e escuras (mas havia algo cintilando lá no
fundo, sim, havia algo). E então, os faróis dianteiros de Christine haviam
sido acesos e projetados sobre alguém, espetando
-
o como se espetaria
uma tachinha em um quadrado de cartolina branca. Alguém familiar
.
"Penetra" Welch?
Talvez. No entanto, quando Christine arremetia de súbito para a
frente, com os pneus chiando, parecera a Arnie que o rosto aterrorizado lá
fora, na rua, se derretia como sebo, modificando
-
se a cada vez que o
Plymouth atacava: ora, era o
rosto de Repperton, depois o de Sandy
Galton ou a cara de lua cheia de Will Darnell.
Fosse quem fosse, saltara para um lado, mas LeBay fizera Christine
dar marcha à ré, manobrando a alavanca de mudança com negros dedos
em decomposição
—
uma aliança de casa
mento pendia de um deles, tão
frouxa como um laço atirado sobre o tronco de uma árvore morta
—
, e
então a fazia retornar à rua, enquanto a figura corria para um lugar mais
distante. Nessa nova arremetida de Christine, a figura virava a cabeça,
atirando um
olhar terrível para trás, e Arnie vira o rosto de sua mãe...
depois o de Dennis Guilder... o de Leigh, os olhos arregalados sob uma
nuvem flutuante de cabelos louro
-
escuros... e finalmente o seu próprio,
com a boca torcida, gritando:
Não! Não! Não!
Sobrepo
ndo
-
se a tudo, inclusive ao tremendo barulho do cano de
descarga (sem a menor dúvida, algo lá embaixo se danificara), havia a voz
pútrida e triunfante de LeBay, provindo de uma laringe deteriorada,
passando por lábios que já tinham sido repuxados sobre os
dentes e
tatuados com uma delicada fiação de bolor verde
-
escuro, a voz vitoriosa e
estridente de LeBay:
Mais um pouco, seu bosta! Prove só o gostinho!
Houve então o baque surdo e mortal do pára
-
lama de Christine
colidindo contra carne, o brilho dos óculos
que voavam para o alto, no ar
noturno, girando e girando... até Arnie acordar em seu quarto, enovelado
em uma bola trêmula, agarrado ao travesseiro. Faltavam quinze para as
duas da madrugada e sua primeira sensação havia sido de grande e
incrível alívio, o
alívio de estar vivo. Ele estava vivo, LeBay estava morto e
Christine estava salva. As únicas três coisas no mundo que importavam.
Oh, mas como foi que machucou suas costas Arnie?
Era uma voz interior, tímida e insinuante, fazendo uma pergunta
que ele tem
ia responder.
Machuquei
-
me em Philly Plains,
dizia a todos.
Uma peça de ferro
-
velho
começou a deslizar pela carroceria sem laterais do caminho de Will e a empurrei
para cima novamente
—
na hora não refleti nisso, apenas empurrei. Devo ter
sofrido alguma bo
a distensão.
Era o que tinha dito. Um ferro
-
velho
começara
a
escorregar e ele
o empurrara
para o alto. Entretanto, não havia sido assim
que machucara as costas, hein? Não, não havia.
Naquela noite, depois que ele e Leigh tinham deparado com
Christine demol
ida no pátio de estacionamento, assentada sobre quatro
pneus em tiras... naquela noite na Darnell's, depois que todos saíram... ele
sintonizara o rádio do escritório de Will para ouvir música antiga no
WDIL... Will agora confiava nele, não? Estava entregan
do cigarros em
Nova Iorque, cruzando a divisa estadual, entregando bebida em
Burlington e, por duas vezes, entregara algo embrulhado em pacotes de
papel pardo liso, em Wheeling, onde um cara novo, em um velho Dodge
Challenger, os trocara por outro pacote l
igeiramente maior, também
embrulhado em papel pardo. Arnie pensou que talvez fosse uma troca de
cocaína por dinheiro, mas não quis ter certeza.
Naquelas viagens, ele dirigia um automóvel, um carro particular de
Will, um Imperial 1966, tão negro como a meia
-
noite na Pérsia. O motor
era silencioso e o porta
-
mala tinha fundo falso. Não havia problema,
desde que mantivesse a velocidade limite. Por que haveria? O importante
é que agora ele tinha as chaves para a garagem. Podia entrar, depois que
todos tivessem i
do embora. Como havia feito nessa noite. Então,
sintonizara a WDIL... e tinha... tinha...
Machucado as costas de algum modo.
O que havia feito, para machucá
-
las?
Uma frase estranha lhe chegou em resposta, flutuando de seu
subconsciente:
É apenas um problem
inha singular.
Ele desejaria mesmo saber? Não. De fato, houve vezes em que nem
mesmo queria o carro. Houve vezes em que sentiu ser melhor apenas...
bem, vendê
-
lo ao ferro
-
velho. Não que fosse ou pudesse fazer isso. Era
tão
-
somente porque às vezes (como por
exemplo, após o suado e trêmulo
período em seguida ao sonho da noite passada) achava que livrando
-
se do
carro, poderia ser... mais feliz.
Subitamente, o rádio cuspiu um jato quase felino de estática.
—
Não se preocupe
—
sussurrou Arnie.
Deslizou a mão len
tamente pelo painel de instrumentos, adorando
aquele contato. Sim, o carro às vezes o amedrontava. Também supunha
que seu pai estivesse certo: Christine modificara sua vida em certo grau.
No entanto, destiná
-
la ao ferro
-
velho era tão impossível quanto suic
idar
-
se.
A estática sumiu. The Marvelettes cantavam
"Please Mr. Postman".
Então, uma voz disse em seu ouvido:
—
Arnold Cunningham?
Assustado, ele desligou o rádio. Virou
-
se. Um homenzinho baixote e
vivo debruçava
-
se na janela de Christine. Tinha olhos cast
anho
-
escuros e o
rosto corado
—
devido ao frio do exterior, supôs Arnie.
—
Sim?
—
Rudolph Junkins. Polícia Estadual, Divisão de Detetives.
Junkins enfiou a mão pela janela aberta. Arnie a observou por um
momento. Então, seu pai estava certo.
Ofereceu ao ho
mem seu mais encantador sorriso, apertou
-
lhe a mão
com firmeza e disse:
—
Não atire, seu guarda, estou desarmado.
Junkins devolveu
-
lhe o sorriso, mas Arnie percebeu que os olhos
dele permaneciam sérios, explorando o carro de uma maneira rápida e
minuciosa,
que não lhe agradou. Não agradou nem um pouco.
—
Caramba! A julgar pelo que ouvi da polícia local, fiquei com a
impressão de que os caras realmente tinham marcado seu carro, quando
fizeram o trabalhinho nele. Pois nem parece!
Arnie deu de ombros e saiu do
carro. As noites de sexta
-
feira eram
enfadonhas na garagem, o próprio Will raramente aparecia, e não estava
lá agora. Do outro lado, no boxe dez, um sujeito chamado Gabbs colocava
um pára
-
lama novo em seu antigo Valiant e, no canto mais distante da
garage
m, havia o "brrr" periódico de uma chave a ar comprimido,
enquanto um cara colocava pneus de neve em seu carro. Excetuando
-
se
aqueles dois, ele e Junkins tinham toda a garagem para si mesmos.
—
Não estava tão ruim quanto parecia
—
disse Arnie. Decidiu que
aquele homenzinho sorridente devia ser muito esperto. Como se em um
prolongamento natural do pensamento, pousou a mão com naturalidade
sobre o teto de Christine e imediatamente se sentiu melhor. Podia
enfrentar o cara, fosse ele inteligente ou não. Afinal,
nada havia que o
preocupasse.
—
Não houve dano estrutural.
—
É mesmo? Ouvi dizer que fizeram buracos na carroceria, usando
um instrumento perfurante.
—
Enquanto falava, Junkins olhava
atentamente para os flancos de Christine.
—
Pois eu juro que não vejo o
menor indício disso. Você deve ser um gênio na lanternagem, Arnie. Do
jeito como minha mulher dirige, talvez eu devesse contratar seus serviços.
Sorriu de modo tranqüilizador, mas seus olhos continuavam
examinando o carro, de alto a baixo. Pousavam por um
instante no rosto
de Arnie, e então voltavam de novo ao carro. Arnie cada vez estava
gostando menos daquilo.
—
Sei que sou bom nisso, mas nenhum Deus
—
disse Arnie.
—
Se
procurar com atenção, poderá descobrir onde foi feita a lanternagem.
—
Apontou para u
ma ligeira ondulação na coberta posterior.
—
Ali
também
—
apontou para outra ondulação.
—
Tive sorte de encontrar
algumas partes originais da carroceria Plymouth, no Ruggles. Troquei
toda a porta traseira deste lado. Reparou que a tinta não combina
perfeit
amente?
—
acrescentou, batendo na porta com os nós dos dedos.
—
De jeito nenhum
—
disse Junkins.
—
Com um microscópio talvez
eu visse a diferença. Assim, a tinta me parece absolutamente igual, Arnie.
Também bateu na porta com os nós dos dedos. Arnie franzi
u o
cenho.
—
Um trabalho dos diabos
—
comentou Junkins. Caminhou até a
frente do carro.
—
Sim, senhor, um trabalho dos
diabos,
Arnie. Merece
parabéns.
—
Obrigado.
—
Arnie observou Junkins, disfarçado em sincero
admirador, usando os perspicazes olhos castan
hos para descobrir
amassados suspeitos, falhas na pintura, talvez uma mancha de sangue ou
um punhado de cabelos emaranhados. Procurando sinais de "Penetra"
Welcher. De repente, Arnie teve certeza de ser justamente isso que o bosta
fazia.
—
O que posso, exa
tamente, fazer pelo senhor, detetive Junkins?
Junkins riu.
—
Rapaz, quanta formalidade! Não faça isso comigo! Me chame de
Rudy, está bem?
—
Claro
—
Arnie concordou sorrindo.
—
Em que posso ajudá
-
lo,
Rudy?
—
Compreenda, é curioso
—
disse Junkins, agachando
-
se para
espiar os faróis dianteiros do lado do motorista. Bateu pensativamente em
um deles com os nós dos dedos e então, com aparente alheamento,
deslizou o indicador pela metálica cobertura semicircular do farol. Seu
sobretudo pairou por um instante sobre
o piso cimentado manchado de
óleo, depois ele se ergueu.
—
Recebemos comunicação de algo desta
natureza... o quebra
-
quebra em seu carro, quero dizer...
—
Oh, na verdade eles não o reduziram a
cacos
—
disse Arnie.
Começava a sentir
-
se em uma espécie de cor
da bamba e voltou a tocar
Christine. A solidez do carro, sua
realidade,
tornaram a confortá
-
lo.
—
Eles
bem que tentaram, entenda, mas não fizeram um trabalho completo.
—
Ok.
Acho que não estou bem a par do jargão atual.
—
Junkins
riu.
—
De qualquer modo, q
uando o caso veio a mim, o que acha que
perguntei? "Onde estão as fotografias?" Foi o que perguntei. Imaginei que
fosse um descuido, entender? Então, telefonei para a Delegacia de Polícia
de Libertyville e me disseram que
não havia
fotografias.
—
Claro
—
r
espondeu Arnie.
—
Um cara da minha idade só
consegue seguro de responsabilidade e, mesmo assim, com dedução de
setecentos dólares. Se eu tivesse seguro contra danos, teria feito um
bocado de fotos. Então, como não tinha, para que as fotos? Francamente,
não
ia querer nenhuma para meu álbum de recordações.
—
Tem razão
—
disse Junkins e caminhou preguiçosamente até a
traseira do carro, os olhos perscrutando em busca de vidros quebrados,
arranhões, traços de culpa.
—
Sabe o que mais achei curioso? Você nem ao
m
enos deu parte do crime!
—
Ergueu os olhos escuros e questionadores
para Arnie, fitando
-
o de perto, e então esboçou um pequeno e falso sorriso
de perplexidade.
—
Nem ao menos deu parte! "Poxa", falei, "o filho da
mãe! E quem comunicou o fato?" O pai do car
a, eles me disseram.
—
Junkins meneou a cabeça.
—
Não entendi isso, Arnie, e sou franco em
dizer. Um sujeito se esgota, reformando um carro velho até que ele valha
uns dois, talvez cinco mil dólares, e então aparecem alguns caras e fazem
um baita de um est
rago no carro...
—
Eu já disse que...
Rudy Junkins ergueu a mão e sorriu tranqüilizadoramente. Por um
fantástico segundo, Arnie pensou que ele fosse dizer "Paz", como Dennis,
quando a situação às vezes ficava um pouco pesada.
—
Desculpe. Danificaram um pou
co o carro.
—
Certo
—
disse Arnie.
—
De qualquer modo, segundo o que disse sua namorada, um dos
perpetradores... bem, defecou no painel de instrumentos. Achei que você
devia ter ficado louco da vida com isso. Achei que deveria dar parte desse
fato.
O sorri
so se esfumou, e Junkins fitou Arnie com seriedade, inclusive,
consternação. Os olhos cinzentos e frios de Arnie se fixaram nos castanhos
de Junkins.
—
Merda pode ser lavada
—
declarou ele finalmente.
—
Quer saber
de uma coisa, Sr. Rudy? Posso lhe contar u
ma coisa?
—
Certo, filho.
—
Quando eu tinha um ano e meio, peguei um garfo e risquei uma
escrivaninha antiga que minha mãe comprara, depois de economizar
cinco anos para isso. Economizando de seu dinheiro para despesas
pessoais, foi o que me disse. Acho qu
e fiz o diabo na escrivaninha, em
bem pouco tempo. Naturalmente, não me lembro de nada, mas ela disse
que só conseguiu ficar parada, espiando para aquilo e chorando.
—
Arnie
sorriu de leve.
—
Até agora, nunca pude imaginar minha mãe agindo
dessa forma. Ago
ra, creio que posso. Talvez eu esteja amadurecendo um
pouco, não acha?
Junkins acendeu um cigarro.
—
Acho que não entendi aonde quer chegar, Arnie. Não percebi o
que quer dizer.
—
Minha mãe falou que preferia manter
-
me de fraldas até os três
anos, a ver
-
me
fazer aquilo. Porque, disse ela, merda se lava,
desaparece.
—
Arnie sorriu.
—
A gente dá descarga e ela vai embora.
—
Da maneira como "Penetra" Welch se foi?
—
perguntou Junkins.
—
Não sei de nada disso.
—
Não?
—
Não.
—
Palavra de escoteiro?
—
perguntou J
unkins.
A pergunta era humorística, mas não os olhos, que continuavam
sondando Arnie, em busca da menor falha, de um piscar crucial.
Mais abaixo, no corredor, o sujeito que colocava seus pneus de
inverno deixou uma ferramenta cair no concreto. Ela bateu co
ntra o chão e
emitiu um som musical. O sujeito praguejou, quase como em coro:
—
Vá à merda, sua puta!
Junkins e Arnie olharam ao mesmo tempo para lá, rapidamente, e o
momento se desfez.
—
Claro, palavra de escoteiro
—
respondeu Arnie.
—
Escute, acho
que o
senhor tem que fazer isto, é o seu trabalho...
—
Certo, é o meu trabalho
—
assentiu Junkins, suavemente.
—
O
rapaz foi atropelado três vezes, para a frente e para trás. Virou uma posta
de carne. Teve que ser recolhido com uma pá.
—
Por favor
—
disse Arnie,
sentindo
-
se mal. Seu estômago revirou
-
se lentamente.
—
Ora, por que não? Afinal, não é assim que se faz com merda?
Recolhê
-
la em uma pá?
—
Não tive nada a ver com aquilo!
—
gritou Arnie.
O homem do outro lado, o que estava às voltas com seu silencioso,
ol
hou para eles, sobressaltado. Arnie baixou a voz.
—
Sinto muito. Só queria que o senhor me deixasse em paz. Sabe
muito bem que nada tive a ver com aquilo. Já vistoriou o carro inteiro. Se
Christine tivesse atropelado esse cara, tantas vezes e com tanta
int
ensidade, estaria toda arrebentada. Já vi como é, na TV. E quando tinha
aulas de Mecânica de Automóveis, há dois anos, o Sr. Smolnack explicou
que, em sua opinião, os dois melhores meios para destruir a frente de um
carro seriam atropelar um alce ou uma pe
ssoa. Claro que era um tipo de
piada, mas ele não estava brincando... se entende o que quero dizer.
Arnie engoliu em seco e ouviu um "clique" em sua garganta, que
também estava seca.
—
Sem dúvida
—
disse Junkins.
—
Seu carro me parece
perfeitamente legal.
Você é que não está, filho. Parece um sonâmbulo.
Parece absolutamente fodido. Desculpe pelo termo.
—
Ele jogou o cigarro
fora.
—
Sabe de uma coisa, Arnie?
—
O quê?
—
Acho que você mente mais depressa do que um cavalo pode
trotar.
—
Junkins bateu no capô de
Christine.
—
Talvez eu devesse dizer,
mais depressa do que um Plymouth pode correr.
Arnie olhou para ele, a mão pousada no espelho externo, do lado do
passageiro. Não disse nada.
—
Não creio que esteja mentindo sobre matar o rapaz Welch, mas
acho que ment
e sobre o que eles fizeram com seu carro; sua namorada
disse que eles fizeram um estrago dos diabos e, raios, ela é muito mais
convincente do que você. Chorou, enquanto me contava. Disse que havia
vidros quebrados por todos os lados... Por falar nisto, ond
e comprou os
vidros de substituição?
—
No McConnell's
—
respondeu Arnie prontamente.
—
No Burg.
—
Ainda tem o recibo?
—
Joguei fora.
—
Bem, mas eles devem lembrar de você. Um pedido tão grande...
—
É possível
—
disse Arnie
—
, mas em seu lugar não contaria
muito
com isso, Rudy. Eles são os maiores especialistas em vidros para
automóveis, a oeste de Nova Iorque e leste de Chicago. Cobrem uma boa
área. Fazem um bocado de negócios, muitos deles relativos a carros velhos.
—
Ainda assim, devem ter um comprovante.
—
Paguei em dinheiro.
—
Bem, seu nome deve constar da remessa.
—
Não
—
respondeu Arnie e sorriu friamente.
—
A encomenda foi
despachada em nome da Garagem de Darnell. Desta forma, consigo um
desconto de dez por cento.
—
Você cobriu todas as brechas, não?
—
Tenente Junkins...
—
Está mentindo também sobre o vidro, embora... raios me partam,
eu não saiba por quê.
—
O senhor não sabe mesmo de nada
—
respondeu Arnie,
irritadamente.
—
Desde quando é crime comprar vidros de reposição, se
alguém quebra nossas jane
las? Ou pagar em dinheiro? Ou conseguir um
desconto?
—
Desde nunca
—
disse Junkins.
—
Pois então por que não acaba com isso?
—
O mais importante
—
disse Junkins
—
é que, para mim, você
mente quando diz que não sabe nada sobre o que aconteceu ao rapaz
Welch
. Você sabe de alguma coisa. E eu gostaria de descobrir o quê.
—
Não sei de nada
—
insistiu Arnie.
—
E quanto a...
—
Não tenho mais nada a lhe dizer
—
cortou Arnie.
—
Sinto muito.
—
Está bem
—
disse Junkins.
Ele desistiu tão rapidamente que Arnie ficou des
confiado em
seguida. O policial remexeu no paletó esporte que usava por baixo do
sobretudo e tirou a carteira. Arnie viu que ele usava uma arma em um
coldre de ombro e desconfiou de que Junkins pretendia fazê
-
lo ver a arma.
Pegou um cartão e o estendeu, di
zendo:
—
Posso ser encontrado em qualquer destes números, caso queira
falar comigo. Sobre alguma coisa. Qualquer coisa.
Arnie guardou o cartão no bolso da camisa.
Junkins deu mais uma lenta passada em torno de Christine.
—
Que diabo de trabalho de restaura
ção!
—
repetiu. Olhou
frontalmente para Arnie.
—
Por que você não deu parte?
Arnie deixou escapar um baixo e trêmulo suspiro.
—
Porque pensei que isso seria o fim
—
declarou.
—
Achei que eles
se dariam por satisfeitos.
—
Entendo
—
disse Junkins.
—
Imaginei
que pudesse ser isso. Boa
noite, filho.
—
Boa noite.
Junkins começou a afastar
-
se, depois se virou e voltou.
—
Pense no que lhe disse
—
falou.
—
Você está realmente com uma
aparência infernal, entende o que quero dizer? Tem uma bela garota. Ela
está preoc
upada com você, ficou abalada com o que aconteceu a seu carro.
Seu pai também está preocupado com você. Pude perceber isso ao telefone.
Reflita no que lhe falei e ligue para mim, filho. Dormirá melhor depois.
Arnie sentiu algo trêmulo por trás dos lábios,
algo diminuto e
lacrimoso, que doía. Os olhos castanhos de Junkins eram gentis. Ele abriu
a boca
—
só Deus sabe o que teria dito
—
, mas então uma monstruosa
pontada de dor o atingiu nas costas, fazendo
-
o retesar
-
se subitamente.
Teve também o efeito da bofe
tada em um histérico. Sentiu
-
se mais calmo,
de cabeça limpa novamente.
—
Boa noite
—
repetiu.
—
Boa noite, Rudy.
Junkins ficou olhando para ele por mais um momento, perturbado,
antes de ir embora.
Arnie começou a tremer de alto a baixo. O tremor começou em
suas
mãos, espraiou
-
se pelos braços até os cotovelos e, de repente, abrangia
todo seu corpo. Agarrou
-
se cegamente à maçaneta e deslizou para o
interior de Christine, para os reconfortantes cheiros de carro e de
estofamento novos. Ligou a chave, as luzes d
o painel acenderam
-
se e ele
tateou em busca do botão do rádio.
Ao fazer o movimento, seus olhos caíram na etiqueta oscilante de
couro, tendo impressas as letras RDL. Seu sonho lhe voltou à mente, com
uma terrível e súbita intensidade: o cadáver putrefato s
entado onde ele se
sentava agora, as órbitas vazias olhando pelo pára
-
brisa, os ossos dos
dedos aferrados ao volante, o riso vazio dos dentes da caveira, quando
Christine arremeteu contra "Penetra" Welch, enquanto o rádio,
sintonizado na WDIL, irradiava
"L
ast Kiss",
por J. Frank Wilson e os
Cavaliers.
De repente sentiu
-
se mal, nauseado outra vez, uma náusea que
flutuava entre seu estômago e o fundo da garganta. Arnie escorregou para
fora do carro e correu para o banheiro, as pisadas latejando loucamente
nos
ouvidos. Foi bem a tempo: vomitou e tornou a vomitar, até nada mais
sobrar dentro dele senão saliva amarga. Havia luzes dançando diante de
seus olhos. Os ouvidos zumbiam e os músculos abdominais latejavam
fatigadamente.
Olhou para seu rosto pálido e espec
tral no espelho manchado, para
os círculos escuros em torno dos olhos e a mecha solta de cabelo caída
sobre a testa. Junkins estava certo. Tinha uma aparência infernal.
Entretanto, todas as suas espinhas tinham desaparecido.
Ele riu como louco. Não desisti
ria de Christine, por nada do mundo.
Aí estava uma coisa que jamais faria. Ele...
De repente, ficou nauseado outra vez, mas nada havia para vomitar,
somente aquelas ondas secas que torturavam e comprimiam, aquele sabor
intenso de vômito na boca outra vez.
Precisava falar com Leigh. Subitamente, sentia necessidade de falar
com ela.
Entrou no escritório de Will, onde o único som provinha do relógio
pregado à parede, anunciando novos minutos. Discou o número dos
Cabot, que sabia de cor, mas precisou tentar dua
s vezes, tal o tremor de
seus dedos.
A própria Leigh atendeu, com voz sonolenta.
—
Arnie?
—
Preciso falar com você. Preciso vê
-
la, Leigh.
—
São quase dez da noite, Arnie. Acabei de sair do chuveiro e fui
para a cama... Estava quase dormindo...
—
Por favor
—
disse ele e fechou os olhos.
—
Amanhã
—
disse ela.
—
Não pode ser essa noite, meus pais não
me deixariam sair, já é muito tarde...
—
São apenas dez horas. E hoje é sexta
-
feira.
—
Para falar a verdade, eles não querem mais que eu saia com você,
Arnie. Gos
taram de você no início, meu pai ainda o aprecia... mas os dois
acham que você ficou meio esquisito.
—
Houve uma longa, longuíssima
pausa de parte de Leigh.
—
Eu também acho
—
completou ela, finalmente.
—
Isto significa que não quer mais me ver?
—
pergunto
u ele, em voz
sem inflexão. Seu estômago doía, as costas doíam, todo ele doía.
—
Não.
—
Agora, uma levíssima censura pontilhou a voz dela.
—
Eu estava começando a pensar que
você não
queria me ver... não na escola,
e à noite você está sempre na garagem. Tr
abalhando em seu carro.
—
Já está pronto.
—
disse ele. E então, com um monstruoso
esforço:
—
É que eu queria o carro para...
aiii, droga
!
Ele tocou as costas no lugar onde sentira outra intensa pontada de
dor, mas sua mão encontrou apenas um pedaço do cole
te ortopédico.
—
Arnie?
—
ela gritou alarmada.
—
Está tudo bem com você?
—
Sim, está. Senti uma pontada nas costas.
—
O que é que ia dizer?
—
Amanhã
—
disse ele.
—
Vamos tomar um sorvete no Baskin
-
Robbins. Podemos também fazer algumas compras de Natal e ja
ntar.
Depois, por volta das sete, levo você para casa. E não estarei esquisito.
Prometo.
Ela riu um pouco e Arnie sentiu um imenso alívio. Era como um
bálsamo.
—
Seu bobão!
—
Isto quer dizer que aceita?
—
Sim, quer dizer que aceito.
—
Leigh fez uma pausa,
depois
continuou suavemente:
—
Falei que meus pais não concordam em que
continue vendo você muitas vezes. Não disse que era essa a minha
vontade.
—
Obrigado
—
disse ele, lutando para manter a voz firme.
—
Obrigado por isso.
—
Sobre o que você queria falar
comigo?
Christine. Quero falar com você sobre ela
—
e sobre meus sonhos. E sobre
por que estou com uma aparência infernal E por que agora estou sempre querendo
ouvir a WDIL, sobre o que fiz naquela noite, depois que todos se foram... a noite
em que machuqu
ei minhas costas. Oh, Leigh, eu quero...
Outra pontada de dor nas costas, como garras de gato.
—
Acho que acabamos de resolver o assunto
—
respondeu.
—
Bem.
—
Uma ligeira e cálida pausa.
—
Ótimo.
—
Leigh?
—
Hum?
—
Agora teremos mais tempo. Prometo. Todo o
tempo que você
quiser.
Para si mesmo, ele disse:
Porque agora, com Dennis no hospital, você é
tudo que me resta, tudo que resta entre eu... eu e...
—
Está bem
—
disse Leigh.
—
Eu te amo.
—
Tchau, Arnie.
Diga o mesmo!,
ele quis gritar, de repente.
Diga o me
smo, preciso que
você também diga.'
Entretanto, em seu ouvido soou apenas o clique do telefone.
Ficou sentado à mesa de Will por muito tempo, de cabeça baixa,
procurando controlar
-
se. Leigh não precisava repetir que o amava, a cada
vez que ele lhe dizia is
so, precisava? Afinal, ele não estava tão necessitado
assim daquela segurança. Ou estaria?
Levantando
-
se, ele foi até a porta. O mais importante de tudo é que
Leigh ia sair com ele no dia seguinte. Fariam as compras de Natal que
haviam planejado, no dia em
que aqueles bostas tinham retalhado
Christine. Passeariam e conversariam. Ia ser muito bom. Leigh diria que o
amava.
—
Ela dirá
—
sussurrou Arnie, parado à porta.
Entretanto, um pouco além, no lado esquerdo da garagem, Christine
parecia uma muda e estúpid
a negação, com a grade do radiador
ressaltando
-
se para diante, como se caçasse alguma coisa.
Então, a voz sussurrou do fundo de sua consciência, a sombria e
questionadora voz:
Como foi que machucou as costas? Como foi que machucou
as costas? Como foi que m
achucou as costas, Arnie?
Era uma pergunta à qual se esquivava. Ele temia a resposta.
L
EIGH E
C
HRISTINE
Meu bem passou em um Cadillac zerinho,
Ela disse: "Ei, venha cá, paizinho,
Eu nunca vou voltar! "
Meu bem, meu bem, não ouve o meu pedido?
Volte, doçur
a, volte para mim!
Ela disse: "Bolas pra você, paizão,
Eu nunca vou voltar!"
—
The Clash
O dia era cinzento e ameaçava nevar, mas Arnie conseguira ambas
as coisas
—
os dois tinham se divertido e ele não estava esquisito. A Sra.
Cabot estava em casa, quand
o foi buscar Leigh, e a acolhida inicial foi fria.
Depois de bastante tempo
—
talvez uns vinte minutos
—
Leigh desceu,
usando uma suéter cor de caramelo que se ajustava adoravelmente ao
busto e calças novas cor de uva, que se ajustavam adoravelmente a seus
quadris. A inexplicável demora, em uma garota que quase sempre se
mostrara pontual, devia ter sido deliberada. Arnie a interrogou mais tarde
e Leigh negou, com uma inocência de olhos talvez um pouco arregalados
demais, porém, de qualquer modo, funcionando
a contento.
Arnie podia ser sedutor quando queria e, enquanto esperava por
Leigh, atirou
-
se à tarefa com vontade, envolvendo a Sra. Cabot. Antes que
Leigh finalmente aparecesse descendo a escada, o cabelo oscilando em um
rabo
-
de
-
cavalo, sua mãe já se rend
era. Tinha oferecido uma Pepsi
-
Cola a
Arnie e ouvia atentamente os casos que ele contava sobre o clube de
xadrez.
—
É a única atividade extracurricular realmente
civilizada
de que já
ouvi falar
—
disse ela a Leigh, sorrindo aprovadoramente para ele.
—
TEDI
OOOOSA!
—
trombeteou Leigh.
Passou um braço pela cintura de Arnie e o beijou sonoramente na
face.
—
Leigh
Cabot!
—
Desculpe, mamãe, mas ele fica interessante manchado de batom,
não acha? Um momento, Arnie, vou pegar um lenço de papel.
Não toque
o
lugar.
Re
mexeu em sua bolsa à procura do lenço. Arnie olhou para a Sra.
Cabot e revirou os olhos. Natalie Cabot levou a mão à boca e sorriu
sufocadamente. A
reconciliação
entre ela e Arnie era total.
Arnie e Leigh foram ao Baskin, onde finalmente se desfez um inici
al
constrangimento que restava da conversa telefônica da véspera. Arnie
tinha um vago receio de que Christine não se portasse à altura ou que, a
qualquer momento, Leigh encontrasse algo desagradável a dizer sobre o
carro. Ela jamais gostara de andar em seu
carro. As duas preocupações, no
entanto, foram desnecessárias. Christine funcionou como um fino relógio
suíço, e as únicas coisas que Leigh teve a dizer a respeito estavam
mescladas de alegria e admiração.
—
Eu jamais acreditaria
—
comentou, quando saíram
do pequeno
pátio de estacionamento da sorveteria e se juntaram ao fluxo do trânsito,
em direção ao Monroeville Mall.
—
Você deve ter trabalhado neste carro
como um escravo!
—
Acho que não foi tão difícil como imagina
—
disse Arnie.
—
Quer
ouvir música?
—
Por que não?
Arnie ligou o rádio
—
The Silhouettes
seguiam através de
"Get a job",
sonolenta e cadenciadamente. Leigh fez uma careta.
—
Hum... A DIL. Posso mudar?
—
À vontade.
Leigh sintonizou uma estação de
rock de
Pittsburg e pegou Billy Joel.
"Talvez vo
cê tenha razão", admitia Billy, jovialmente, "Eu devo estar
maluco". Em seguida, ele dizia a Virgínia, sua namorada, que as garotas
católicas começavam muito tarde
—
era o programa
Block Party Weekend.
Vai ser agora,
pensou Arnie.
Ela começará a ratear...
vai parar... qualquer coisa.
Christine, no entanto, limitou
-
se a continuar rodando.
A rua de pedestres estava congestionada por uma confusão de
compradores, mas todos mostravam boa disposição; a última, frenética e
por vezes desagradável corrida de Natal a
inda distava duas semanas. O
espírito natalino era recente o bastante para ser novidade, permitindo que
apreciassem os ouropéis em cordões estendidos através das amplas
alamedas do lugar, sem que ninguém se aborrecesse ou mostrasse
tendências a Ebenezer Sc
roogey. O insistente retinir dos sinos dos papais
-
noéis do Exército da Salvação, por enquanto, ainda não eram uma culposa
irritação; eles preferiam cantar as boas
-
novas e boa vontade, em vez de
enveredarem pela monótona e metálica cantoria de
Os pobres não
têm Natal,
os pobres não têm Natal, os pobres não têm Natal,
que Arnie tinha a impressão
de sempre ouvir, à medida que o dia estava mais próximo e que tanto as
balconistas como os papais
-
noéis do Exército da Salvação ficavam mais
apoquentados e de olhos m
ais fundos.
Caminharam de mãos dadas, até ficarem impossibilitados pelo
número crescente de embrulhos. Então Arnie se queixou, alegremente, de
que Leigh o transformara em seu burro de carga. Ao descerem para o
nível inferior, em direção ao B. Dalton, onde
Arnie queria comprar um
livro sobre fabricação de brinquedos, para o pai de Dennis Guilder, Leigh
percebeu que começara a nevar. Ficaram por um instante na escada,
contemplando a vidraça, observando tudo como crianças. Arnie lhe
tomou a mão e Leigh o fitou
, sorrindo. Ele podia sentir o perfume de sua
pele, limpa e com leve cheiro de sabonete; podia sentir a fragrância de
seus cabelos. Moveu a cabeça ligeiramente para diante; Leigh moveu a
dela um pouquinho, aproximando
-
se. Beijaram
-
se de leve e ele lhe
aper
tou a mão. Mais tarde, depois da visita à livraria, permaneceram
acima do rinque no centro da rua de pedestres, contemplando os
patinadores que deslizavam, evoluíam e faziam piruetas, ao som de
músicas natalinas.
Foi um dia excelente, até o momento em que
Leigh Cabot quase
morreu.
Ela teria morrido, sem a menor dúvida, se não fosse o carona. Então,
já rodavam de volta e um prematuro crepúsculo de dezembro há muito se
tornara escuro pela nevada. Firme sobre as rodas como sempre, Christine
ronronava com faci
lidade através dos dez centímetros de neve solta e
recém
-
caída.
Arnie fizera reserva para um jantar antecipado na British Lion Steak
House, realmente o único bom restaurante de Libertyville, mas o tempo
voara e os dois haviam concordado em uma refeição lig
eira, no
McDonald's da JFK Drive. Leigh prometera à mãe estar em casa às oito e
meia, porque os Cabots iam "receber amigos" e, quando deixaram a rua de
pedestres, já faltavam quinze para as oito.
—
Não faz mal
—
disse Arnie.
—
De qualquer modo, estou quase
falido mesmo.
Os faróis iluminaram o carona, de pé no cruzamento da Rota 17 com
a JFK Drive, faltando ainda oito quilômetros para Libertyville. Seus
cabelos negros batiam nos ombros, estavam salpicados de neve, e havia
uma mochila entre seus pés.
À medida
que se aproximavam, o carona ergueu um cartaz, pintado
em letras com tinta luminosa, que dizia: LIBERTYVILLE. PA. Quando
chegaram mais perto, ele virou o cartaz. Do outro lado estava escrito:
UNIVERSITÁRIO NÃO
-
PARANÓICO.
Leigh começou a rir.
—
Vamos dar u
ma carona a ele, Arnie.
—
Justamente quando eles se dão ao trabalho de anunciar sua
condição não
-
paranóica
—
disse Arnie
—
é que a gente deve ter mais
cuidado. Mas tudo bem, vá lá!
Desviou o carro para a beira da estrada. Naquela noite, ele daria a
lua a L
eigh, se ela pedisse.
Christine rodou maciamente para o acostamento, os pneus quase
não deslizando. No entanto, ao parar, a estática crepitou no rádio, que até
então vinha irradiando um rock pesado. Quando a estática diminuiu, os
Big Bopper cantavam
"Chant
illy Lace".
—
O que houve com o programa
Block Party Weekend?
—
perguntou
Leigh, quando o carona correu para eles.
—
Não sei
—
respondeu Arnie, embora soubesse.
Aquilo já acontecera antes. Às vezes, tudo quanto o rádio de
Christine captava era a estação WD
IL, pouco importando que botões
fossem apertados ou por mais que se manuseasse o convertor FM, sob o
painel de instrumentos; era a WDIL ou nada.
De repente, ele decidiu que fora um erro parar para o carona.
Agora, contudo, era tarde demais para recuar; o s
ujeito já abrira
uma das portas traseiras de Christine, atirava sua sacola para dentro e
entrava depois dela. Uma rajada de ar frio e de neve entraram com ele.
—
Poxa, cara, obrigado!
—
Ele suspirou.
—
Meus dedos das mãos e
dos pés já se mandaram pra Miami
Beach, faz uns vinte minutos. Para
algum lugar eles foram mesmo, e me deixaram aqui porque não os sinto
mais.
—
Agradeça à patroa
—
disse Arnie, lacônico.
—
Obrigado, madame
—
disse o carona, levando os dedos,
galantemente, à aba de um chapéu invisível.
—
Não foi nada
—
Leigh sorriu.
—
Feliz Natal.
—
O mesmo para vocês
—
disse o carona
—
, embora pareça que tal
coisa nem exista, quando se fica em pé lá fora, tentando pegar uma carona
numa noite assim. O pessoal dispara perto da gente e depois desaparece.
Vo
om
—
Ele olhou em torno apreciativamente.
—
Um belo carro, cara. Um
diabo de carro bonito!
—
Obrigado
—
respondeu Arnie.
—
Você mesmo o restaurou?
—
Eu mesmo.
Leigh olhava para Arnie, perplexa. Sua expansividade anterior fora
substituída por um laconismo q
ue não lhe era comum. No rádio, os Big
Bopper terminavam e entrava Richie Valens, com "La Bamba". O carona
sacudiu a cabeça e riu.
—
Primeiro os Big Bopper, depois Richie Valens. Deve ser a noite
dos mortos no rádio. A boa e velha WDIL!
—
O que quer dizer?
—
perguntou Leigh. Arnie desligou o rádio.
—
Eles morreram em um desastre de avião. Com Buddy Holly.
—
Oh!
—
exclamou Leigh, baixinho.
Talvez o carona também sentisse a mudança no ânimo de Arnie; o
rapaz permaneceu calado e meditativo no banco de trás. Lá
fora, a neve
começava a cair mais rapidamente e mais compacta. Era a primeira boa
tempestade da estação.
Por fim, os arcos dourados da lanchonete piscaram, em meio à neve.
—
Quer que eu vá até lá, Arnie?
—
perguntou Leigh.
Arnie mergulhara em uma quietude
quase pétrea, rejeitando a
insistência de Leigh em manter conversa, com meros grunhidos.
—
Eu vou
—
respondeu ele, manobrando o carro.
—
O que vai
querer?
—
Só um hambúrguer e batata frita, por favor.
Antes, ela tinha pensado na refeição completa
—
Big Ma
c, algo para
beber e até mesmo os biscoitos, mas seu apetite parecia ter
-
se reduzido a
zero.
Arnie estacionou. À luz amarelada que vinha do interior do prédio
baixo de tijolos, o rosto dele pareceu esverdeado, de certa forma até
doentio. Virou
-
se para trás
, o braço apoiando
-
se no encosto.
—
Quer que traga alguma coisa pra você?
—
perguntou ao carona.
—
Não, obrigado
—
disse o rapaz.
—
Os velhos me esperam para o
jantar. Não posso desapontar minha mãe. Ela mata um carneiro gordo
cada vez que venho em c...
A
batida da porta cortou sua palavra final. Arnie já se afastava,
encaminhando
-
se apressadamente para a porta marcada ENTRE, as botas
chutando pequeninos jatos de neve recém
-
caída.
—
Ele é sempre carrancudo assim?
—
perguntou o carona.
—
Ou só
fica esquisito
de vez em quando?
—
Ele é muito agradável
—
respondeu Leigh, com firmeza.
Ficara subitamente nervosa. Arnie desligara o motor e levara as
chaves, deixando
-
a sozinha com o estranho no banco traseiro. Podia vê
-
lo
pelo espelho retrovisor e, de repente, aquel
es compridos cabelos negros,
emaranhados pelo vento, o chumaço de barba e os olhos escuros deram
-
lhe uma aparência selvagem, como de algum membro do bando de
Manson.
—
Onde é que você estuda?
—
perguntou ela.
Seus dedos davam puxadelas nas calças e forçou
-
os a parar.
—
Pitt
—
disse o carona, e nada mais.
Seus olhos encontraram os dela no espelho e Leigh desviou
rapidamente os seus para o colo. Calças cor de uva. Usara
-
as porque, certa
vez, Arnie tinha dito que gostava delas
—
talvez por serem as mais
aperta
das que tinha, ainda mais justas do que suas Levi's. Subitamente ela
desejou estar usando outra coisa, algo que não pudesse ser considerado
provocante, nem por algum exagero da imaginação: um saco de cereais,
talvez. Tentou sorrir
—
era uma idéia engraçada
, sem dúvida, um saco de
cereais, dava vontade de rir, ha
-
ha
-
ho
-
ho, e bater nos joelhos
—
só que
nenhum sorriso lhe veio aos lábios. Não conseguia afastar aquela imagem
da mente: Arnie a deixara sozinha com o estranho (Por castigo? Tinha sido
idéia dela re
colhê
-
lo.) e agora estava assustada.
—
Vibrações negativas
—
disse o carona de repente, fazendo
-
a
conter a respiração.
As palavras dele eram decididas e conclusivas. Pelo vidro da janela,
Leigh podia ver Arnie de pé, o quinto ou sexto da fila. Ainda demora
ria
um pouco, até chegar ao balcão. Viu
-
se imaginando o carona enlaçando
subitamente sua garganta com as mãos. Claro que poderia alcançar a
buzina... mas a buzina soaria? Leigh duvidou disso, sem qualquer razão
lógica. Ficou pensando que poderia alcançar a
buzina e fazê
-
la soar
noventa e nove vezes, satisfatoriamente. Entretanto, na centésima, estaria
sendo estrangulada por aquele carona por quem intercedera
—
e a buzina
não soaria. Porque... porque Christine não gostava dela. De fato, achava
que Christine
a odiava. Simples assim. Uma loucura, mas algo bem
simples.
—
Co... como disse?
Olhou para trás, pelo espelho retrovisor. Seu alívio foi imenso, ao
perceber que o carona nem olhava para ela. Os olhos dele vistoriavam o
carro. Tocou o forro do banco com a p
alma da mão, depois esfregou de
leve a forração do teto com as pontas dos dedos.
—
Vibrações negativas
—
disse ele e meneou a cabeça.
—
Não sei
por que, mas estou captando vibrações negativas nesse carro.
—
É mesmo?
—
perguntou ela, esperando que a voz soa
sse neutra.
—
Hum
-
hum. Fiquei preso num elevador certa vez, quando ainda
criança. Desde então, tenho acessos de claustrofobia. Nunca tive nenhum
em carro antes mas, poxa, estou tendo um agora. Dos piores. Acho que
você poderia acender um fósforo na minha l
íngua, tão seca está minha
boca.
Ele deu uma risada, breve e constrangida.
—
Se já não fosse tão tarde, eu sairia daqui e caminharia. Sem ofensa
para você ou para o carro de seu cara
—
acrescentou depressa.
Quando Leigh olhou pelo retrovisor, os olhos dele
nada tinham de
selvagem, estavam apenas nervosos. Aparentemente, o carona não
brincava a respeito da claustrofobia e não o achava mais com qualquer
semelhança com Charlie Manson. Perguntou
-
se por que fora tão idiota...
só que agora sabia
—
como e por quê.
Sabia perfeitamente bem.
Era o carro. Estivera absolutamente bem o dia inteiro, rodando em
Christine, mas agora o nervosismo e antipatia anteriores haviam
retornado. Ela apenas transmitira tais sentimentos ao carona, porque...
bem, porque alguém pode fica
r assustado e nervoso por causa de algum
cara recém
-
recolhido na estrada, mas era loucura ter medo de um carro,
uma construção inanimada de aço, vidro, plástico e cromado. Aquilo não
era apenas um pouco excêntrico, era
loucura.
—
Não está sentindo um cheir
o?
—
perguntou ele, de repente.
—
Cheiro de quê?
—
Um cheiro ruim.
—
Não, não sinto cheiro nenhum.
—
Os dedos dela agora
beliscavam a barra da suéter, arrancando fiapos de lã. O coração batia
desagradavelmente no peito.
—
Deve ser parte do seu acesso de
cl
austrofobia.
—
Hum... acho que sim.
Só que ela
sentia
o cheiro. Por sob os novos e agradáveis cheiros de
couro e estofamento, havia um leve odor: algo assim como ovos podres.
Um leve... um vaguíssimo odor.
—
Você se importa se eu baixar a janela um pouquin
ho?
—
De modo nenhum.
Leigh precisou esforçar
-
se um pouco para manter a voz firme, com
naturalidade. De súbito, em sua mente surgiu a foto que estivera no jornal
da manhã anterior, uma foto de "Penetra" Welch, tirada do anuário escolar.
Na legenda, estava
escrito:
Peter Welch, vítima de fatal incidente de
atropelamento e fuga que, segundo a polícia, pode ter sido assassinato.
O carona baixou o vidro de sua janela uns sete centímetros e no
carro penetrou uma brusca rajada de ar frio, carregando o cheiro. No
interior do McDonald's, Arnie chegara ao balcão e fazia o pedido. Ao
olhar para ele, Leigh experimentou uma tão estranha onda de amor e
medo que a mistura a deixou nauseada
—
e, pela segunda ou terceira vez
ultimamente, desejou ter
-
se ligado a Dennis prime
iro, Dennis que parecia
tão seguro e sensato...
Leigh procurou pensar em outra coisa.
—
Diga apenas se o frio está incomodando
—
disse o carona, em
tom de desculpa.
—
Sei que sou meio esquisito.
—
Deu um suspiro.
—
Às
vezes acho que nunca devia ter desisti
do das drogas, entende?
Leigh sorriu.
Arnie caminhava para eles, segurando um saco branco de papel,
escorregou ligeiramente na neve e então entrou no carro.
—
Aqui dentro está frio como uma geladeira
—
grunhiu.
—
Desculpe, cara
—
disse o carona, tornando a
subir o vidro.
Leigh esperou, para ver se aquele cheiro voltaria, mas agora só
conseguia sentir o odor do couro, do estofamento dos bancos e o vago
perfume da loção de barba de Arnie.
—
Pegue o seu, Leigh.
Entregou
-
lhe um hambúrguer, batatas fritas e uma
Coca pequena.
Tinha comprado um Big Mac para si mesmo.
—
Queria agradecer a carona, cara
—
disse o rapaz, do banco
traseiro.
—
Vou ficar na esquina da JFK com Center.
—
Está bem
—
respondeu Arnie, lacônico, ligando o motor.
A neve agora caía mais pesadamen
te e o vento começara a ulular.
Pela primeira vez, Leigh sentiu Christine derrapar um pouco, ao dirigir
-
se
para o meio da rua, agora quase deserta. Estavam a menos de quinze
minutos de casa.
Afastado aquele cheiro, Leigh descobriu que seu apetite voltara.
Devorou metade do hambúrguer, bebeu um pouco de Coca e conteve um
arroto, com as costas da mão. A esquina de Center com a JFK, marcada
com um monumento sobre a guerra, surgiu à esquerda, e Arnie manobrou,
pisando levemente nos freios, para que Christine nã
o derrapasse.
—
Tenha um bom fim de semana
—
disse Arnie.
Sua voz agora soava mais com a naturalidade costumeira. Divertida,
Leigh concluiu que tudo quanto ele precisava era mesmo de comer
alguma coisa.
—
O mesmo para vocês dois
—
disse o carona.
—
E um Fe
liz Natal.
—
Para você também
—
disse Leigh.
Deu outra dentada no hambúrguer, mastigou, engoliu... e o sentiu
alojar
-
se a meio caminho, em sua garganta. De repente, não conseguia
mais respirar.
O carona estava saindo. O ruído da porta, ao abrir
-
se, era mui
to alto.
O som do clique do ferrolho foi como o tambor da fechadura de uma
caixa
-
forte, retornando ao lugar. O som do vento assemelhou
-
se ao apito
de uma fábrica.
(sei que isso é idiota, Arnie, mas não consigo respirar)
Estou sufocando!,
ela tentou dizer,
mas emitiu apenas um som
gorgolejante e vago que, tinha certeza, o vento havia coberto. Apertou a
mão em torno da garganta e a sentiu inchada, latejando contra os dedos.
Quis gritar. Nenhuma respiração para gritar, nenhuma respiração
(Eu não posso, Arnie)
afinal, e conseguia
sentir
a coisa ali, uma pelota quente de
hambúrguer e pão. Tentou tossir para expulsá
-
la, mas foi inútil. As luzes
do painel, circulares, de um verde brilhante
(gato, como os olhos de um gato, oh, Deus, não posso RESPIRAR)
vigiando
-
a...
(Meu Deus, não consigo RESPIRAR não consigo RESPIRAR não consigo)
Seu peito começou a latejar, buscando ar. Leigh tentou tossir
novamente para livrar
-
se da pelota de pão e hambúrguer, mal mastigada e
presa em sua garganta, mas era impossível. Agora, o ruí
do do vento era
maior do que o mundo, maior do que qualquer som que já ouvira antes e,
finalmente, os olhos de Arnie se desviavam do carona para ela; ele se
virava em câmara lenta, os olhos se arregalando quase comicamente. Até
mesmo sua voz parecia demasi
ado alta, como um trovão, a voz de Zeus
falando a algum pobre mortal, vinda de trás de um maciço de nuvens
carregadas:
—
LEIGH... VOCÊ ESTÁ... DIABO, O QUÊ?... ELA ESTÁ
ASFIXIADA! OH MEU DEUS, ELA ESTÁ...
Fez um gesto na direção dela, em câmara lenta, mas
então recuou as
mãos, imobilizado pelo pânico.
(Oh me ajude pelo amor de Deus faça alguma coisa estou morrendo oh
Deus vou morrer engasgada com um hambúrguer McDonald's Arnie porque você
não ME AJUDA?)
e, naturalmente, ela sabia por que, ele recuava porque
Christine não
queria
que ela tivesse qualquer socorro, era esta a maneira de Christine
livrar
-
se dela, a maneira de Christine livrar
-
se de qualquer outra mulher,
da concorrência, e agora os instrumentos do painel eram
realmente
olhos,
enormes olhos frios
que a espiavam engasgar
-
se até a morte, olhos que ela
só conseguia ver através de um.crescente emaranhado de pontos negros,
pontos que explodiam e se espalharam quando
(mamãe oh céus estou morrendo agora e ELA ME VÊ ELA ESTÁ VIVA
VIVA VIVA OH MEU DEUS DO C
ÉU CHRISTINE ESTÁ VIVA)
Arnie se moveu para ela outra vez. Agora ela começava a remexer
-
se no banco, seu peito se ondulava espasmodicamente, enquanto apertava
a garganta. Seus olhos se dilatavam. Os lábios começaram a azular. Arnie
lhe batia inutilmente na
s costas e gritava algo. Agarrou
-
a pelo ombro,
parecendo querer puxá
-
la para fora do carro, quando então, de repente,
pestanejou e enrijeceu o corpo, as mãos indo involuntariamente para o
final das próprias costas.
Leigh se contorceu e remexeu
-
se. O bloque
io em sua garganta
parecia imenso, quente e pulsante. Tentou tossir a pelota para fora, agora
mais fracamente. O volume continuou entalado. O ulular do vento
começava a diminuir, tudo começava a esfumar
-
se, mas sua necessidade
de ar não parecia tão urgente
. Talvez estivesse morrendo e, de súbito, isto
não parecia tão ruim. Nada era tão ruim, exceto aqueles olhos verdes que
a vigiavam, do painel de instrumentos. Não eram mais frios. Agora
cintilavam de ódio e triunfo.
(ó Deus eu me arrependo sinceramente de
ter
-
Vos ofendido eu me
arrependo de ofender
-
Vos este é meu ato meu ato de de)
Arnie se inclinara sobre ela. A porta de Leigh se abriu subitamente e
ela escorregou para fora, em meio a um vento brutal e cortante. O ar a
reviveu parcialmente, fez com que a l
uta pela respiração se tornasse de
novo importante, mas a obstrução persistia... não cedia.
De muito longe, a voz de Arnie trovejava consternada, era a voz de
Zeus: O
QUE ESTÁ FAZENDO? TIRE AS MÃOS DE CIMA DELA!
Braços
em torno dela. Braços fortes. O vento
em seu rosto. A neve turbilhonando
em seus olhos
(ó Deus ouça
-
me como pecadora este é meu ato de contrição eu me
arrependo sinceramente de ter
-
Vos ofendido OH! OUUU! o que você está
FAZENDO minhas costelas doem o que o que você)
e, de repente, havia braço
s em torno dela, apertando, e duas mãos
duras se juntavam em um nó, logo abaixo de seus seios, no plexo solar. E
também de repente um polegar se ergueu, o polegar de um carona
pedindo uma corrida, com a diferença de que o polegar se enfiou
dolorosamente co
ntra seu esterno, no meio do peito. Ao mesmo tempo, a
pressão dos braços aumentou brutalmente. Ela se sentiu agarrada.
(Ohhhhhhh você está quebrando minhas COSTELAS)
por um besouro gigantesco. Todo o seu diafragma pareceu
expandir
-
se e algo lhe voou para f
ora da boca, com a força de um projétil.
Algo que foi cair sobre a neve: uma pelota molhada, de pão e carne.
—
Largue
-
a!
—
gritava Arnie, enquanto saía de trás do volante e
dava a volta por trás de Christine, até onde o carona mantinha o corpo
flácido de L
eigh, como uma marionete em tamanho grande.
—
Largue
-
a,
você a está matando!
Leigh começou a respirar, em profundos e entrecortados haustos.
Sua garganta e os pulmões pareciam queimar em rios de fogo, a cada vez
que aspirava o frio, maravilhoso ar. Quase n
ão percebia que soluçava.
O rude besouro relaxou a pressão e as mãos a soltaram.
—
Você está bem, garota? Está...
Então Arnie passava por ela, avançando para o carona. O rapaz se
virou, seus compridos cabelos flutuando ao vento, e Arnie o esmurrou na
boca.
O carona foi atirado para trás, suas botas escorregaram na neve e ele
aterrissou de costas. A neve recente, fina e seca como açúcar, voejou em
torno dele.
Arnie avançou, de punhos fechados, olhos cerrados.
Ela tomou outra convulsiva respiração
—
oh, doía,
era como ser
espetada por facas
—
e gritou:
—
O
que está fazendo, Arnie? Pare com isso!
Arnie se virou para ela,
atônito.
—
O quê? Leigh?
—
Ele salvou minha vida, por que está batendo nele?
O esforço era demasiado e os pontos negros começaram novamente
a
espiralar
-
se diante de seus olhos. Ela poderia ter
-
se recostado contra o
carro, mas não queria chegar perto dele, não queria tocá
-
lo. O painel de
instrumentos. Acontecera qualquer coisa com o painel de instrumentos.
Algo.
(olhos que se transformavam em olh
os)
sobre o que não queria pensar.
Cambaleando, procurou um poste de iluminação e agarrou
-
se a ele
como bêbada, de cabeça baixa e arfando. Um braço macio e vacilante se
envolveu em sua cintura.
—
Leigh... minha querida, você está bem?
Virando ligeiramente
a cabeça, ela viu o rosto assustado e infeliz de
Arnie. Não se contendo mais, prorrompeu em lágrimas.
O carona aproximou
-
se deles com cautela, enxugando a boca
ensangüentada na manga do blusão
—
Obrigada
—
disse Leigh, entre respirações rápidas e arquejant
es.
A dor diminuía um pouquinho agora e o frio vento cortante refrescava seu
rosto esbraseado.
—
Eu estava sufocando. Acho que... Acho que teria
morrido, se você não tivesse...
Era esforço demais. Os pontos negros voltaram, todos os sons se
extinguiram no
interior de um fantástico túnel de vento. Baixando a
cabeça, ela esperou que aquilo passasse.
—
É a Manobra de Heimlich
—
explicou o carona.
—
Fazem a gente
aprendê
-
la, quando se trabalha em um café. Na escola. Fazem a gente
praticar em um boneco de borrac
ha. Daisy Mae é como o chamam. Eu
pratiquei, mas nunca se tem a menor idéia se a coisa... sabe como é, vai ou
não funcionar em uma pessoa de verdade.
—
A voz dele era trêmula,
passando do grave para o agudo e retornando ao grave, como a de um
garoto entran
do na puberdade. Uma voz que parecia querer rir ou chorar,
algo assim, e, mesmo à claridade incerta, em meio à neve que caía
fortemente, Leigh pôde ver o quanto o rosto dele estava pálido.
—
Nunca
pensei que um dia viesse a pôr em prática a Manobra de Heim
lich. E
funcionou que foi uma beleza. Viu como aquele maldito pedaço de carne
voou longe?
O carona enxugou a boca e olhou apaticamente para a fina camada
de sangue na palma da mão.
—
Sinto muito tê
-
lo esmurrado
—
disse Arnie. Parecia quase
chorando.
—
Eu e
stava apenas... apenas...
—
Certo, cara, eu entendo.
—
Ele bateu no ombro de Arnie.
—
Não
foi nada. Você está bem, garota?
—
Estou
—
disse Leigh.
Sua respiração se normalizava. As batidas do coração ficavam mais
ritmadas. Apenas as pernas estavam em mau es
tado, eram como de pura
borracha.
Meu Deus,
pensou ela.
Eu agora podia estar morta. Se não tivéssemos
dado carona a esse sujeito e se nós quase não...
Ocorreu
-
lhe que tinha sorte por estar viva. O clichê a envolveu
forçosamente, com um estúpido e inegável
poder que quase a fez
desmaiar. Leigh começou a chorar com mais intensidade. Quando Arnie a
guiou de volta ao carro, acompanhou
-
o, com a cabeça em seu ombro.
—
Bem
—
disse o carona, hesitante
—
, acho que vou indo.
—
Um momento
—
disse Leigh.
—
Como é seu n
ome? Você salvou
minha vida, eu gostaria de saber como se chama.
—
Barry Gottfried
—
respondeu.
—
Às suas ordens. Novamente, ele
levou os dedos à aba de um chapéu imaginário.
—
Leigh Cabot
—
disse ela.
—
Este é Arnie Cunningham. Obrigada
novamente.
—
Sem d
úvida, obrigado
—
acrescentou Arnie.
No entanto, Leigh não sentiu um agradecimento real em sua voz
—
apenas aquele tremor. Ele a fez entrar no carro e, subitamente, o cheiro a
envolveu, atacou
-
a: nada fraco desta vez, era muito mais do que um vago
odor sub
terrâneo. Era um cheiro de podre e decomposição, forte e
nauseante. Leigh sentiu um medo louco invadir
-
lhe o cérebro e pensou:
É
o cheiro da fúria dela...
O mundo girou diante dela. Inclinando
-
se para fora do carro, Leigh
vomitou.
Então, tudo à sua volta f
icou cinzento por um momento.
—
Tem certeza de que está bem?
—
perguntou Arnie, talvez pela
centésima vez.
Seria também uma das últimas, percebeu Leigh, com certo alívio.
Estava cansada, muito cansada. Havia um persistente e doloroso latejar
em seu peito,
outro nas têmporas.
—
Agora estou ótima.
—
Oh, ainda bem, ainda bem!
Arnie se movia indecisamente, como se quisesse ir, mas sem certeza
de que o momento era apropriado; talvez ainda não, pelo menos até que
repetisse a pergunta que agora parecia eterna. Es
tavam parados diante da
casa dos Cabot. Retângulos de luz amarelada se filtravam das janelas e
jaziam perfeitos sobre a neve recente e sem marcas. Christine fora
estacionada junto ao meio
-
fio, com as luzes de sinalização acesas.
—
Você me assustou, quando
desmaiou daquele jeito
—
disse Arnie.
—
Não desmaiei... Apenas fiquei tonta por alguns minutos.
—
Mesmo assim, fiquei assustado. Eu te amo, você sabe. Ela o fitou
com ar grave.
—
Ama mesmo?
—
É claro que amo! Leigh, você sabe que te amo!
Ela respirou fundo
. Estava fatigada, mas aquilo tinha que ser dito e
dito nesse momento. Porque, se não falasse agora, o que havia acontecido
pareceria absolutamente ridículo na manhã seguinte
—
talvez mais do que
ridículo
—
, a idéia teria um toque de pura loucura. Um fedor
que ia e
vinha, como o de um "bolor fétido" em uma história gótica de horror?
Instrumentos no painel que se transformavam em olhos? E, acima de tudo,
a insana sensação de que o carro realmente tentara matá
-
la?
Na manhã seguinte, até mesmo o fato de que qu
ase morrera
engasgada não passaria de uma vaga dor no peito e a convicção de que
aquilo não fora nada, realmente, que não oferecera perigo de vida.
Exceto que tudo era verdade, e Arnie sabia disso
—
sim, parte dele
sabia
—
e tinha que ser dito agora.
—
Sim
, acredito que me ame
—
disse ela, lentamente. Olhou para ele
com firmeza.
—
Só que não vou mais a parte alguma com você nesse carro.
E, se me ama de verdade, terá que se livrar dele.
A expressão de choque no rosto de Arnie foi tão intensa e repentina
como
se ela o tivesse esbofeteado.
—
De que... de que está falando, Leigh?
Aquela expressão de levar uma bofetada seria causada pelo choque?
Ou parte dela proviria de culpa?
—
Você ouviu o que eu disse. Não acredito que se livre do carro,
nem sei se isso seria
mais possível pra você, mas se quiser me levar a
algum lugar, Arnie, iremos de ônibus. Ou pegaremos carona. Ou
voaremos. O fato é que nunca mais andarei em seu carro. É uma
armadilha mortal.
Pronto. Tinha dito, saíra de sua boca.
Agora, o choque no rosto
dele transformava
-
se em raiva
—
a espécie
de raiva cega e obstinada que Leigh vira em seu rosto tantas vezes
ultimamente. Uma raiva não somente devido a coisas grandes, mas
também a pequenas: uma mulher atravessando a rua com o sinal de
trânsito amarelo, u
m guarda que detinha o tráfego pouco antes da vez de
ele passar. E a sensação que agora provocava em Leigh tinha o poder de
uma revelação
—
a de que a raiva de Arnie, corrosiva e tão inadequada ao
restante de sua personalidade, estava sempre associada ao c
arro. A
Christine.
—
Se você me ama, terá que se livrar dele
—
repetiu Arnie.
—
Sabe
com quem você se parece?
—
Não, Arnie.
—
Com minha mãe. Ela vive dizendo isso.
—
Sinto muito.
Ela não ia retirar o que dissera, e muito menos se defenderia com
palavras ou
encerraria aquilo, simplesmente entrando em casa. Talvez
fosse capaz disso, se não sentisse algo por ele. Suas impressões iniciais
—
de que por trás do quieto acanhamento de Arnie Cunningham ele era bom,
decente e delicado (talvez até mesmo
sexy)
—
não ha
viam mudado muito.
Era aquele carro, tudo se resumia nisso. Ali estava a mudança. Era como
testemunhar uma forte mente sendo lentamente suplantada pela
influência de alguma maligna e corrosiva droga de dependência.
Arnie passou as mãos através dos cabelos
polvilhados de neve, um
gesto característico de perplexidade e raiva.
—
Está bem, você quase morreu engasgada no carro. Posso
compreender que não se sinta muito bem com relação a ele. Entretanto, foi
o hambúrguer,
Leigh, isso é tudo. Ou, talvez, nem mesmo
isso. Podia ser
que você estivesse tentando falar enquanto mastigava ou respirasse
justamente no segundo errado, alguma coisa assim. Poderia até acusar
Ronald McDonald. As pessoas se engasgam com sua comida de vez em
quando, nada mais. Às vezes, morrem. Vo
cê não morreu. Graças a Deus
por não ter morrido. Mas quanto a responsabilizar meu carro...!
Sim, tudo soava perfeitamente plausível. E
era
plausível. Exceto que
havia algo, por trás dos olhos cinzentos de Arnie. Um algo frenético, que
não era precisamente
uma mentira, mas... racionalização? Um desvio
ansioso da verdade?
—
Arnie
—
disse ela
—
, estou cansada, meu peito dói e estou
morrendo de dor de cabeça. Creio que só tenho forças para dizer isso uma
vez apenas. Você quer ouvir?
—
Se for sobre Christine, e
stá gastando seu tempo
—
disse ele, e
aquela expressão obstinada, inflexível, estava novamente em seu rosto.
—
É loucura culpá
-
la e sabe bem disso.
—
Sim, eu sei que é loucura, como sei que estou gastando meu
tempo
—
replicou Leigh.
—
Mas mesmo assim, esto
u pedindo pra você
me ouvir.
—
Pois bem, estou ouvindo.
Ela respirou fundo, ignorando a tensão no peito. Olhou para
Christine, deixando escapar uma fita de vapor branco na neve espessa que
caía, depois desviou os olhos apressadamente. Agora, eram as luzes
de
sinalização que se assemelhavam a olhos: os olhos amarelos de um lince.
—
Quando me engasguei... quando estava sufocando... o painel de
instrumentos... as luzes dele mudaram. Elas
mudaram.
Eram... não, não
vou chegar a tanto, mas
pareciam olhos.
Ele riu
, um latido curto no ar frio. Na casa, uma cortina foi puxada
de lado, alguém espiou para fora e a cortina voltou ao lugar.
—
Se aquele carona... aquele tal Gottfried... se ele não estivesse lá, eu
teria morrido, Arnie. Eu teria
morrido.
—
Leigh perscrutou
os olhos dele e
decidiu
-
se.
Uma vez apenas,
disse para si mesma.
Só preciso dizer isto uma
vez.
—
Você me disse que trabalhou na cantina do ginásio de Libertyville,
durante três anos. Eu vi o pôster da Manobra Heimlich pregado à porta da
cozinha. Você tam
bém deve ter visto. No entanto, não o aplicou em mim,
Arnie. Estava muito disposto a bater nas minhas costas, mas isso não
funciona. Tive um emprego em um restaurante, em Massachusetts, e a
primeira coisa que nos ensinam, antes mesmo de ensinarem a Manobra
Heimlich, é que
bater nas costas de uma vítima engasgada não funciona.
—
De que está falando?
—
perguntou ele, em voz baixa, quase sem
fôlego.
Leigh não respondeu, apenas olhou para ele. Arnie sustentou
-
lhe o
olhar por somente um momento, porque então seu
s olhos
—
enfurecidos,
confusos, quase acossados
—
se desviaram dos dela.
—
A gente esquece coisas, Leigh. Tem razão, eu deveria ter aplicado
a Manobra. Entretanto, se também fez o curso, sabe que pode aplicá
-
la em
si mesma.
—
Ele entrelaçou as mãos, forma
ndo um todo, com um polegar
para fora, o qual pressionou no diafragma, como demonstração.
—
Apenas, na tensão do momento, a gente esquece...
—
Sim, a gente esquece. E você parece esquecer de muita coisa,
quando está nesse carro. Como, por exemplo, de ser A
rnie Cunningham.
Arnie meneava a cabeça.
—
Você precisa de tempo para refletir no que está dizendo, Leigh.
Precisa de...
—
Tempo é precisamente algo de que não preciso!
—
exclamou ela,
com um vigor, que chegara a duvidar que ainda possuía.
—
Nunca tive
uma
experiência sobrenatural na vida, nem mesmo
acreditava nessas coisas,
mas agora me pergunto apenas o que está acontecendo, o que há com você.
Aquelas luzes pareciam olhos,
Arnie. E mais tarde... depois de tudo... havia
um cheiro. Um cheiro horrível de pod
re.
Arnie encolheu
-
se.
—
Você sabe do que estou falando.
—
Não. Não faço a mínima idéia.
—
Pois você se encolheu de repente, como se o diabo tivesse puxado
sua orelha.
—
Está imaginando coisas, Leigh
—
disse ele caloroso.
—
Um
bocado de coisas.
—
Aquele ch
eiro estava lá. E há também outras coisas. Às vezes, seu
rádio só pega aquelas estações de músicas antigas...
Outra cintilação nos olhos dele e uma ligeira torção no canto
esquerdo da boca.
—
E algumas vezes, quando estamos nos entendendo bem, o rádio
só e
mite estática, como se não gostasse do que acontece.
Como se o carro
não gostasse, Arnie.
—
Você está perturbada
—
disse ele, com sinistra determinação.
—
Sim,
estou
perturbada
—
respondeu Leigh, começando a
chorar.
—
Você
não está?
—
As lágrimas lhe escor
reram lentamente pelas
faces.
—
Penso que isto é o fim para nós, Arnie; eu amei você, mas acho
que
acabou. Acredito realmente que tenha acabado, e isso me deixa tão triste, tão
magoada...
Seu relacionamento com seus pais transformou
-
se em um...
campo de ba
talha, com você viajando para Nova York e Vermont, Deus
sabe com que finalidade, a mando de Will Darnell, aquele porco gordo e
esse carro... esse carro...
Ela não conseguiu dizer mais. Sua voz extinguiu
-
se. Deixou os
embrulhos caírem e abaixou
-
se às cegas
para recolhê
-
los. Exausta e
chorando, só conseguiu espalhá
-
los ainda mais. Arnie abaixou
-
se para
ajudá
-
la e Leigh o empurrou com rudeza.
—
Deixe meus embrulhos em paz! Eu mesma apanho!
Ele se ergueu, com o rosto pálido e tenso. Tinha uma expressão de
pura
fúria, mas os olhos... oh, para Leigh, seus olhos pareciam perdidos.
—
Está bem
—
disse ele, a voz enrouquecida agora por suas
próprias lágrimas.
—
Muito bem! Junte
-
se a todos eles, se quiser. Pode
ficar com todos eles, os outros bostas. Quem se importa?
A
rnie deixou escapar uma respiração trêmula e um soluço solitário
lhe brotou da garganta, antes que pudesse fechar a boca brutalmente, com
a mão enluvada.
Começou a caminhar de volta ao carro; avançava cegamente para o
Plymouth, e Christine estava lá.
—
Fiq
ue com eles, porque você está louca! Fora de si! Então, vá e
façam seus jogos! Não preciso de vocês! Não preciso de
nenhum
de vocês!
Sua voz se elevou a um grito agudo, em diabólica harmonia com o
vento:
—
Não preciso de vocês, portanto, fodam
-
se!
Apressou
-
se para o lado do motorista, seus pés deslizaram e ele
estendeu a mão, buscando apoio em Christine. Ela estava lá e não o
deixou cair. Arnie entrou no carro, acelerou, os faróis dianteiros
acenderam
-
se em intenso clarão branco, e o Fury afastou
-
se do meio
-
fio,
os pneus traseiros derrapando em uma névoa de neve.
Agora, as lágrimas vinham rápidas e firmes, enquanto ela ficava
espiando as luzes traseiras se distanciarem, tornando
-
se pontos vermelhos
e piscando, quando o carro dobrou a esquina. Seus embrulhos
jaziam
espalhados no chão.
Então, de repente, sua mãe estava ali, absurdamente vestida em uma
capa de chuva aberta, com botas de borracha verdes e a camisola de
flanela azul.
—
O que há de errado, meu bem?
—
Nada
—
soluçou Leigh.
Quase morri engasgada, sen
ti o cheiro de algo que podia ter vindo de uma
sepultura recentemente aberta e acho que... sim, acho que, de certa forma, aquele
carro está vivo... mais vivo a cada dia. Acho que ele é como alguma espécie de
horrível vampiro, um vampiro que está se aliment
ando da mente de Arnie. De sua
mente e de seu espírito.
—
Nada, não houve nada de errado. Tive uma discussão com Arnie,
foi só. Quer me ajudar a pegar minhas coisas?
As duas recolheram os embrulhos de Leigh e entraram. A porta
fechou atrás delas e a noite
pertenceu ao vento, à neve que caía
rapidamente. Pela manhã, haveria uma camada de mais de vinte
centímetros.
Arnie ficou rodando em seu carro, até pouco depois da meia
-
noite.
Depois disso, não teve lembrança do que fez. A neve enchera as ruas,
agora dese
rtas e fantasmagóricas. Não era uma noite para o grande carro
americano. Não obstante, Christine se movia através da crescente
tempestade com surpreendente facilidade e firmeza, sem ao menos estar
com pneus para neve. De vez em quando, a sombra pré
-
históri
ca de um
removedor de neve surgia na bruma e logo desaparecia.
O rádio estava ligado. Só dava a WDIL, em todo o dial. Irradiava o
noticiário. Eisenhower predissera, na convenção AFL/CIO
*
, um futuro de
trabalho e administração marchando harmoniosamente par
a um porvir
conjunto. Dave Beck negara que o Sindicato dos Motoristas de Caminhão
fosse uma fachada para negócios escusos. Eddie Cochran, o cantor de
rock,
perdera a vida em um acidente automobilístico, quando seguia para o
Aeroporto Heatrow, de Londres; u
ma cirurgia de emergência durante três
horas, não conseguira salvar
-
lhe a vida. Os russos trombeteavam seus
ICBM, os mísseis balísticos intercontinentais. A estação WDIL tocava
músicas antigas durante toda a semana, mas eles se mostravam realmente
dedicado
s nos fins de semana. Poxa, noticiário dos anos 50! Aquilo era
(nunca ouvi nada igual antes)
realmente uma idéia e tanto. Era
(totalmente insano)
uma idéia e tanto, sim, senhor!
A meteorologia prometia mais neve.
Em seguida, música novamente: Bobby Darin c
antando "
Splish
-
Splash",
Ernie K
-
Doe cantando "
Mother in Law",
os gêmeos Kalin cantando
"When".
Os limpadores de pára
-
brisa marcavam o ritmo.
Arnie olhou para sua direita, e lá estava Roland D. LeBay, como
passageiro forçado.
Roland D. LeBay, com suas calç
as verdes e uma desbotada camisa
de sarja do Exército, espiando através das órbitas escuras. Um besouro,
ataviado, dentro de outro.
Você tem de fazê
-
los pagar,
disse Roland D. Lebay.
Tem de fazer esses
bostas pagarem, Cunningham. Cada um dos fodidos bostas
!
—
Certo
—
sussurrou Arnie. Christine cantarolava através da noite,
rompendo a neve com rodas firmes, seguras.
—
Tem razão.
E os limpadores de pára
-
brisa assentiram, para diante e para trás, de
um lado para outro.
*
* Federação Americana do Trabalho e Congresso das Organizações Industriais (N.T.)
A
GORA
,
E
STE
B
REVE
I
NTERLÚDIO
Rode para o
México naquele velho Chrysler, rapaz.
-
Z. Z. Top
No Gin
ásio de Libertyville, o treinador Puffer havia sido substituído
pelo treinador Jones e o futebol dera lugar ao basquete. Entretanto, nada
mudara realmente: os cestinhas não se saíam muito melhor do
que os
artilheiros de futebol do ginásio
—
o único que sobressaía era Lenny
Barongg, um craque em três esportes, sendo o basquete o principal deles.
Lenny persistia obstinadamente, conseguindo a marca vitoriosa que lhe
era necessária se quisesse obter a bo
lsa de estudos para atletismo em
Marquette pela qual vinha batalhando.
Sandy Galton sumiu da cidade de repente. Um dia estava l
á, no
outro sumira. Sua mãe, uma bêbada contumaz de quarenta e cinco anos,
que não parecia ter menos do que sessenta, não ficou m
uito preocupada.
O mesmo sucedeu ao irmão mais novo de Sandy, que tomava mais droga
do que qualquer outro garoto do Ginásio Gornick. No Ginásio de
Libertyville corria o romântico boato de que ele se mandara para o México.
Havia outro boato também, este men
os romântico: que Buddy Repperton
envolvera Sandy em alguma coisa, de maneira que ele decidira ser mais
seguro sair de circulação.
Os feriados do Natal aproximavam
-
se e o ambiente escolar ficou
mais inquieto e ruidoso, como sempre acontecia, antes de uma f
olga mais
demorada. A maior parte do corpo estudantil recebia seu costumeiro
diploma pr
é
-
natalino. Apreciações de livros eram entregues com atraso e,
freqüentemente, apresentando uma suspeita semelhança com o escrito na
sobrecapa dos mesmos (afinal, quanto
s estudantes veteranos de inglês
estarão aptos para avaliar O
Apanhador no Campo de Centeio,
"este candente
clássico da adolescência pós
-
guerra"?). Os projetos de aulas eram deixados
pela metade ou nem eram feitos, a porcentagem dos períodos de castigo
por
beijar e namorar nos corredores subia às alturas, enquanto as sessões
de maconha aumentavam, quando os alunos do Ginásio de Libertyville se
entregavam a uma leve diversãozinha pré
-
natalina. Assim, boa parte dos
estudantes estava alta; era alta a ausência
de professores, como também
estavam no alto as decorações de Natal pelos corredores e salas de aula.
Leigh Cabot n
ão estava por cima. Falhara em um exame pela
primeira vez, em sua carreira de ginasiana, recebendo um D em uma
prova de datilografia. Ela não
conseguia estudar, sua mente divagava até
Christine, vezes sem conta
—
até o verde painel de instrumentos que se
tornara odioso, até aqueles reluzentes olhos
-
de
-
gato que a viam morrer
sufocada.
De um modo geral, no entanto, a
última semana de aulas antes d
os
feriados de Natal era um período bem
-
humorado, quando eram
perdoadas infrações que mereciam punição em outra época, quan
do
professores durões às vezes até davam uma ajudazinha na prova em que
todos se tinham saído mal, quando garotas que haviam sido in
imigas
ferrenhas faziam as pazes e quando rapazes que repetidamente se
envolviam em brigas, por insultos reais ou imaginários, faziam o mesmo.
O mais indicativo da brandura do ambiente, no entanto, talvez fosse
simplesmente o fato de que a Srta. Saco
-
de
-
Ra
tos, a Medusa da Sala de
Estudos 23, fosse vista sorrindo... não apenas uma, porém várias vezes.
No hospital, Dennis Guilder estava moderadamente animado
—
trocara os gessos de tração que o prendiam ao leito por outros que lhe
permitiam caminhar. A fisiote
rapia não significava mais a tortura que
havia sido. Perambulava oscilante por corredores ostentando fieiras de
ouropel e enfeitados com figuras natalinas, as muletas fazendo ecoar um
ruído surdo ao longo da caminhada, às vezes em compasso com as alegres
c
anções de Natal, irradiadas pelos alto
-
falantes suspensos.
Era uma
caesura,
uma tr
égua de bonança, um interlúdio, um período
de calmaria. Durante seus aparentemente intermináveis passeios pelos
corredores, para baixo e para cima, Dennis refletia que as coi
sas podiam
ter sido piores
—
muito, muito piores.
E, em muito breve, elas o seriam.
B
UDDY E
C
HRISTINE
Bem, lá está ele na distância
E vem arremetendo contra mim
Não sei como resistir
E nada poderá livrar
-
me.
Até um homem cego de um olho poderia ver
Que al
go ruim acontecerá comigo...
The Inmates
Na ter
ça
-
feira, 12 de dezembro, os Terriers perderam de 54 a 48 para
os Bucaneiros, no ginásio de Libertyville. Em sua maioria, os torcedores
saíram para o imóvel negror da noite não muito decepcionados: cada
croni
sta esportivo da área de Pittsburg previra outra derrota para os
Terriers. O resultado mal poderia ser encarado como um transtorno. Além
disso, havia Lenny Barongg, para orgulho da torcida dos Terriers:
conseguira marcar, sozinho, 34 pontos fantásticos, es
tabelecendo um novo
recorde para a escola.
Buddy Repperton, contudo,
estava
decepcionado.
Por causa disto, Richie Trelawney tamb
ém fazia o possível para
demonstrar sua decepção. O mesmo acontecia a Bobby Stanton, no banco
traseiro.
Nos poucos meses ap
ós su
a expulsão do ginásio, Buddy parecia ter
envelhecido. Parte disso ficava por conta da barba. Ele agora se
assemelhava menos a Clint Eastwood e mais a algum inveterado bebedor
e jovem ator, uma versão do Capitão Ahab. Nas últimas semanas, Buddy
andara beben
do demais. E sonhava coisas tão terríveis, que mal podia
recordar. Despertava suado e trêmulo, com a sensação de ter escapado por
pouco de algo horrendo, algo sombrio, que se movia silenciosamente.
N
ão obstante, a bebida acabara com aquilo. Cortara os sonh
os
certeiramente, pelos malditos joelhos. Com infernal precisão. Tudo aquilo
acontecia porque trabalhava à noite e dormia de dia.
Ele baixou o vidro da janela de seu maltratado e amassado Camaro,
varando o ar frio, e jogou fora uma garrafa vazia. Virando
-
s
e por sobre o
ombro, disse:
—
Outro coquetel Molotov, cavalheiros.
—
É pra já, Buddy
—
disse Bobby Stanton respeitosamente,
passando outra garrafa de Texas Driver para a mão de Buddy.
Buddy os obsequiara com uma caixa da beberagem
—
suficiente
para paralis
ar toda a Marinha egípcia, dissera ele
—
depois do jogo. Ele
arrancou a tampa, dirigindo momentaneamente com os cotovelos, e em
seguida bebeu metade da garrafa. Estendeu
-
se a Richie, deixando escapar
um longo e sonoro arroto. Os faróis do Camaro iluminaram
a Rota 46, que
seguia para noroeste tão reta como um barbante, através da Pensilvânia
rural. Campos cobertos de neve jaziam sonhadoramente a cada lado da
estrada, cintilando em um bilhão de pontos de luz, que arremedavam as
estrelas no negro céu invernal.
Ele se encaminhava
—
de um modo um
tanto casual e meio bêbado
—
para as Squantic Hills. Nesse ínterim,
poderia escolher qualquer outro destino, mas não o fazendo, as
montanhas eram um lugar excelente e reservado para ficarem altos
tranqüilamente.
Richie d
evolveu a garrafa a Bobby, que tomou um bom gole, embora
detestasse o sabor de Texas Driver. Acreditava que, quando ficasse um
pouco mais embriagado, estaria pouco ligando para o gosto da beberagem.
Poderia ficar de ressaca e vomitar tudo no dia seguinte,
mas o amanh
ã
estava a mil anos de distância. Bobby ficava entusiasmado apenas por
estar na companhia deles; era somente um calouro, ao passo que Buddy
Repperton, com sua fama quase mística de arrogância e maldade, era uma
figura que ele encarava com uma mi
stura de medo e respeito.
—
Palhaços fodidos
—
disse Buddy com voz pastosa.
—
Que
cambada de palhaços fodidos! Vocês chamam àquilo de jogo de basquete?
—
São todos uma cambada de retardados
—
concordou Richie.
—
Menos o Barongg. Trinta e quatro pontos! Não
é para qualquer um!
—
Não vou com a cara daquele crioulo
—
disse Buddy, envolvendo
Richie em um longo e calculista olhar embriagado.
—
Está querendo se
juntar ao bando?
—
Claro que não, Buddy
—
disse Richie prontamente.
—
Ainda bem.
—
O que vai querer pri
meiro?
—
perguntou Bobby repentinamente,
no banco traseiro.
—
As boas ou as más notícias?
—
Primeiro as más
—
disse Buddy. Estava em sua terceira garrafa
de Driver e não sentia qualquer dor, somente uma raiva aflitiva. Havia
esquecido, pelo menos no moment
o, que tinha sido expulso do colégio.
Concentrava
-
se apenas no fato de que a velha equipe da escola, aquela
cambada de fodidos cretinos retardados o decepcionara.
—
Sempre as más
primeiro.
O Camaro rodava para noroeste a mais de cem por hora, na fita
asfal
tada de duas faixas, que era como um risco de tinta preta através de
um enladeirado piso branco. O terreno começava a elevar
-
se ligeiramente,
à medida que se aproximavam das Squantic Hills.
—
Bem, as más novas são que um milhão de marcianos acabaram de
ate
rrissar em Nova Iorque
—
disse Bobby.
—
Agora, quer ouvir as boas?
—
Não tem boas notícias
—
disse Buddy, em voz lenta e pesarosa.
Richie gostaria de dizer ao garoto que não devia tentar alegrar
Buddy, quando ele estava em semelhante estado de ânimo, porqu
e isso só
piorava a situação. O melhor a fazer era deixar que as coisas seguissem
seu curso natural.
Buddy andava assim desde que "Penetra" Welch, aquele imbecil
quatro
-
olhos caipira fora atropelado por algum psicopata, na Drive, JFK.
—
As boas notícias sã
o que eles comem negros e mijam gasolina
—
disse Bobby, explodindo em uma gargalhada.
Riu durante algum tempo, antes de perceber que ninguém lhe fazia
coro. Então, calou
-
se subitamente. Erguendo o rosto, viu os olhos
injetados de Buddy espiando
-
o, acima da
barba anelada. Aquele olhar
avermelhado e perscrutador, flutuando no espelho retrovisor, provocou
-
lhe um desagradável calafrio de medo. Ocorreu
-
lhe, então, que talvez se
tivesse calado um ou dois minutos atrasado.
Atrás deles, dois faróis piscavam a uma d
istância de uns cinco
quilômetros, parecendo insignificantes fagulhas amarelas na noite.
—
Acha isso engraçado?
—
perguntou Buddy.
—
Solta uma maldita
piada racista como essa e acha
engraçado?
Sabia que você é um babaca
preconceituoso?
Bobby ficou de boca
aberta.
—
Bem, mas você disse...
—
Eu disse que não topo
Barongg.
De um modo geral, acho que os
crioulos são tão bons quanto os brancos.
Buddy considerou a idéia.
—
Bem, quase tão bons.
—
Mas...
—
Vigie sua língua ou vai voltar andando para casa
—
grunhiu
Buddy.
—
Com uma fratura. Depois vai poder escrever EU ODEIO
NEGROS em seus fundilhos.
—
Oh!
—
sussurrou Bobby, com voz assustada. Era como estender o
braço para acender uma lâmpada e receber a chicotada de um choque
elétrico.
—
Sinto muito.
—
Me dê essa g
arrafa e feche a matraca.
Bobby estendeu
-
lhe alegremente a garrafa de Driver. Sua mão
tremia.
Buddy acabou com a bebida. Passaram por uma placa de sinalização:
PARQUE ESTADUAL SQUANTIC HILLS
—
5 KM. O lago do centro do
parque estadual era como uma zona de
praia muito procurada no verão,
mas o parque ficava fechado de novembro a abril. A estrada que
serpenteava através do parque até o Lago Squantic, no entanto, era
mantida em conservação por manobras periódicas da Guarda Nacional e
acampamentos dos Escoteiro
s Exploradores, mas Buddy descobrira uma
entrada lateral que contornava o portão principal e depois se unia à
estrada do parque. Ele gostava de penetrar no silencioso e invernoso
parque estadual, para rodar com seu carro e beber.
Atrás deles, as fagulhas g
êmeas na distância tinham aumentado
para círculos
—
dois faróis dianteiros, a uns dois quilômetros dali.
—
Mande outro coquetel Molotov, seu porco racista ordinário.
Bobby estendeu
-
lhe uma garrafa cheia e permaneceu
prudentemente calado. Buddy virou fundo,
arrotou e depois passou a
garrafa para Richie.
—
Não, obrigado, cara.
—
Vai beber ou pode se ver tomando um clister com ela.
—
Certo, cara
—
disse Richie, desejando ardentemente ter ficado em
casa naquela noite. Bebeu, enquanto o Camaro continuava corrend
o, seus
faróis varando a noite.
Buddy olhou pelo retrovisor e avistou o outro carro, que agora se
aproximava depressa. Uma espiada no velocímetro disse
-
lhe que estava a
cento e poucos. O carro mais atrás devia estar perto dos cento e dez.
Buddy sentiu algo
—
uma curiosa espécie de reviver os sonhos que não
conseguia recordar inteiramente. Um dedo gelado parecia pressionar seu
coração de leve.
À frente deles, a estrada se bifurcava, a Rota
46
seguindo para leste,
em direção a New Stanton, a outra estrada ind
o para o Parque Estadual
Squantic Hills. Um enorme aviso laranja alertava: FECHADA NOS
MESES DE INVERNO.
Quase sem diminuir a velocidade, ele guinchou para a esquerda e
disparou para o alto da montanha. A estrada que ia para o parque não
estava tão bem con
servada, e árvores frondosas tinham impedido que o
sol quente da tarde derretesse a neve que a cobria. O Camaro derrapou
ligeiramente, antes de ganhar a estrada de novo. No assento traseiro,
Bobby Stanton deixou escapar um som baixo e inquieto.
Buddy ergue
u os olhos para o retrovisor, esperando ver o outro
carro continuar pela 46
—
para a maioria dos motoristas, afinal, a estrada
para a qual ele se desviara era apenas um beco sem saída
—
mas, em vez
disso, o carro na traseira passou para o desvio ainda mais
depressa do que
ele e agora vinha não muito distante, a menos de cento e cinqüenta metros.
Seus faróis eram quatro cintilantes círculos brancos, que iluminavam em
cheio o interior do Camaro.
Bobby e Richie se viraram para olhar.
—
Quem será esse merda?
—
murmurou Richie.
Buddy sabia. De repente, ficou sabendo. Era o carro que atropelara
"Penetra". Oh, sim, era ele. O psicopata que abotoara "Penetra" estava
atrás do volante daquele carro
—
e agora estava atrás dele, Buddy.
Pisou fundo no acelerador e o Cama
ro começou a voar. A agulha do
velocímetro subiu para cento e dez, movendo
-
se gradualmente para perto
de cento e vinte e cinco. As árvores passavam por eles como borrões,
escuros garranchos na noite. As luzes atrás deles não se atrasaram; na
verdade, até g
anhavam em velocidade. Os faróis duplos se fundiram em
dois enormes olhos brancos.
—
Cara, quer diminuir um pouco?
—
pediu Richie. Estendeu a mão
para seu cinto de segurança, agora francamente amedrontado.
—
Se
continuarmos nessa velocidade...
Buddy não re
spondeu. Inclinou
-
se sobre o volante, alternando
olhares para a estrada à frente com outros para o espelho retrovisor, onde
aquelas luzes continuavam crescendo.
—
A estrada faz uma curva mais adiante
—
disse Bobby, em voz
rouca. E a curva se aproximou, os
guardrails
refletindo em cromados à luz
dos faróis do Camaro. Ele gritou:
—
Buddy! Olhe a curva! Olhe a curva!
Buddy diminuiu a marcha e o motor do Camaro roncou seu protesto.
A agulha do tacômetro marcou 6.000 rotações por minuto, dançou
brevemente na lin
ha vermelha de 7.000 e depois caiu para um nível mais
normal. Os canos retos de descarga do Camaro pipocaram como fogo de
metralhadora. Buddy girou o volante e o carro flutuou para a margem
escarpada. As rodas traseiras deslizaram pela superfície de neve d
ura. No
último instante possível, Buddy o desviou de volta, pisando firme no
acelerador e deixando o corpo balançar livremente, enquanto a roda
traseira esquerda do Camaro se chocava contra o banco de gelo, nele
escavando um buraco de neve revolvida do tam
anho de um caixão, antes
de saltar fora. O carro patinou para o outro lado. Buddy seguiu seu
movimento, em seguida tornando a pisar no acelerador. Por um instante,
pensou que o carro não responderia, que continuaria patinando e
simplesmente ficariam derrap
ando estrada acima, a cento e vinte por hora,
até chegarem a um trecho nu, onde capotariam.
O Camaro, no entanto, conseguiu equilibrar
-
se.
—
Deus do céu, diminua!
—
uivou Richie.
Buddy debruçou
-
se sobre o volante, careteando por entre a barba,
arregalados
os olhos injetados. A garrafa de Driver estava presa entre suas
pernas.
Vamos! Vamos, seu assassino louco filho da mãe! Vamos ver se consegue
fazer o mesmo, sem capotar!
Um momento mais tarde, os faróis reapareceram, mais perto do que
nunca. O riso caretea
do de Buddy vacilou e desapareceu. Pela primeira
vez, sentiu um doentio formigamento subindo pelas pernas até as virilhas.
Medo
—
medo de verdade
—
o envolveu por completo.
Bobby ficara olhando para trás, quando o carro atrás deles fazia a
curva, depois se
virou para diante, o rosto atônito, incrédulo.
—
Ele nem mesmo derrapou
—
disse.
—
É impossível! Isso é...
—
Quem será, Buddy?
—
perguntou Richie.
Estendeu o braço para tocar o cotovelo de Buddy, e sua mão foi
empurrada com tal força que os nós dos dedos
se chocaram contra sua
janela.
—
Não vai querer me tocar
—
sussurrou Buddy. A estrada se
desenrolava reta à frente dele, não de asfalto escuro, mas branca pela neve
compacta e traiçoeira. O Camaro rodava sobre tal superfície escorregadia
a uns cento e quar
enta por hora. Entre as margens que chegavam à altura
do peito, eram visíveis apenas seu teto e a bola alaranjada de pingue
-
pongue, espetada no topo da antena do rádio.
—
Não vai querer me tocar,
Richie. Não a esta velocidade!
—
Será que ele é...
—
a voz d
e Richie vacilou e ele não pôde
continuar.
Buddy concedeu
-
lhe um olhar. O terror de Richie lhe subiu à
garganta, quente e viscoso como óleo, ao ver o medo nos pequeninos
olhos avermelhados do companheiro.
—
Sim
—
respondeu Buddy.
—
Acho que é.
Ali em cima
não havia casas; já se achavam em propriedades do
Estado. Nada ali em cima, exceto as altas margens nevadas e o escuro
entrelaçamento das árvores.
—
Ele vai bater na gente!
—
guinchou Bobby, no assento traseiro.
Sua voz era estridente como a de uma velha.
Entre seus pés, as garrafas
remanescentes de Texas Driver chocalharam furiosamente em sua caixa de
papelão.
—
Buddy! Ele vai bater na gente!
O carro atrás deles chegara a uns dois metros do pára
-
choque
traseiro do Camaro; este era inundado pelos faróis alt
os do outro com
uma luz tão potente que seria possível ler
-
se as menores letras impressas
em um jornal. Pouco depois, houve um baque surdo.
O Camaro ziguezagueou na estrada, enquanto o outro carro ficava
ligeiramente para trás. Buddy teve a sensação de que
flutuavam
repentinamente e soube que estavam por um fio de uma terrível
derrapagem, a frente e a traseira deslizando com rapidez pela superfície,
até se chocarem contra algo e capotarem.
Uma gota de suor, quente e ardente como uma lágrima, resvalou
para d
entro de um olho.
Pouco a pouco, o Camaro voltou a equilibrar
-
se.
Quando sentiu que recuperara o controle, Buddy deixou o pé direito
comprimir maciamente o acelerador, até o fundo. Se era Cunningham,
naquela banheira enferrujada 58
—
Ah! Aquilo não fizera
parte dos
sonhos de que mal conseguia lembrar
-
se?
—
o Camaro o fecharia.
O motor agora trovejava. A agulha do tacômetro voltara a beirar a
linha vermelha, em 7.000 rotações por minuto. O velocímetro passara a
marca dos cento e sessenta e as margens geladas
e altas da estrada
desfilavam por eles em fantasmagórico silêncio. A estrada à frente
assemelhava
-
se à tomada de um filme em ponto de vista que fora
insanamente acelerado.
—
Oh, meu Deus
—
balbuciava Bobby
—
, oh, meu Deus, por favor,
não deixe que eu morr
a, oh, meu Deus, por favor...
Ele não estava lá na noite que arrebentamos o carro do Cara de Cona,
pensou Buddy.
Ele nem mesmo sabia o que estava acontecendo. Pobre filho da
mãe, sem sorte.
Ele não lamentava realmente por Bobby, mas se lhe fosse
possível t
er pena de alguém, seria daquele pobre calouro com merda na
cabeça. À sua direita, Richie Trelawney sentava
-
se rígido e pálido como
uma lousa de sepultura, os olhos ressaltando
-
se no rosto. Richie sabia bem
do que se tratava.
O carro murmurou atrás e para
eles, os faróis crescendo no espelho
retrovisor.
Ele não pode estar ganhando!,
gritou a mente de Buddy.
Não pode!
No
entanto, o carro atrás dele ganhava velocidade e Buddy pressentiu que se
preparava para o ato final. Sua mente correu como um rato engaiola
do, à
procura de uma saída, sem que houvesse alguma. A fenda na margem
esquerda, coberta de neve, marcando a pequena estrada lateral que ele
geralmente usava para ultrapassar o portão e entrar no parque estadual já
estava à vista. No entanto, Buddy estava
com o tempo, espaço e opções
esgotados.
Houve outro baque macio e, novamente, o Camaro ziguezagueou
—
agora a uma velocidade acima de cento e setenta e cinco.
Não há esperança,
cara,
pensou Buddy, fatalisticamente. Tirou as duas mãos do volante e
agarrou s
eu cinto de segurança. Pela primeira vez na vida, Buddy o
colocou em torno da cintura.
Ao mesmo tempo, no assento traseiro, Bobby Stanton gritava, em
um guincho do mais puro pânico:
—
O portão, cara! Oh, meu Deus, Buddy, a casinholaaaaaaa...
O Camaro tinha
arrostado uma final e íngreme subida. O lado mais
distante serpenteava para um ponto em que a estrada se bifurcava,
formando a entrada e saída do parque estadual. Entre as duas vias,
levantava
-
se uma pequena casinhola de porteiro em uma ilha de
concreto
—
na época do verão, uma senhora permanecia ali, em uma
cadeira de campanha, cobrando um dólar de cada carro que entrava no
parque.
Agora, a casinhola era inundada de espectral claridade, quando os
dois carros desceram para ela, o Camaro encaminhando
-
se fir
memente
para a passagem, quando a derrapagem piorava.
—
Foda
-
se, Cara de Cona!
—
gritou ele.
—
Fodam
-
se! Você e o cavalo que
está montando!
Buddy torceu todo o volante, girando
-
o pela maçaneta
auxiliar que exibia um oscilante vermelho tinto em álcool.
Bobb
y tornou a gritar. Richie Trelawney aferrou o rosto com as
mãos e seu último pensamento na terra foi uma constante repetição de
Cuidado com vidro quebrado cuidado com vidro quebrado cuidado com vidro
quebrado...
O Camaro deu uma volta completa sobre si mes
mo, e agora os faróis
do carro que o seguia fulguraram diretamente neles, e Buddy começou a
gritar, porque era realmente o carro de Cara de Cona, seria impossível
enganar
-
se quanto àquela grade do radiador, ela parecia ter pelo menos
um quilômetro de compr
imento,
só que não havia ninguém ao volante. O
carro estava absolutamente vazio.
Nos últimos dois segundos antes do impacto, os faróis de Christine
se desviaram para o que agora era a esquerda do carro de Buddy. O Fury
disparou para a via de entrada, tão f
irme e certeiramente como uma bala
disparada de um rifle. Chocou
-
se contra a barreira de madeira e a enviou
girando e girando pela noite escura, os redondos refletores amarelos
cintilando no negror noturno.
O Camaro de Buddy Repperton bateu de traseira na
ilha de concreto
em que se levantava a casinhola do porteiro. A beirada de concreto, com
vinte centímetros, arrancou tudo que encontrou debaixo do carro,
deixando os torcidos destroços de canos de descarga e do silencioso sobre
a neve, como alguma curiosa
escultura. A traseira do Camaro primeiro
ficou encolhida como uma sanfona, para então ser demolida. Bobby
Stanton foi demolido juntamente com ela. Buddy mal tomou consciência
de algo batendo em suas costas, como um balde de água tépida. Era o
sangue de Bob
by Stanton.
O Camaro rodopiou no ar, como um estropiado projétil, em uma
confusão de fragmentos voadores e pisos estilhaçados, um farol ainda
brilhando maniacamente. Desenhou um sessenta e três completo, para
então cair com um baque estrondoso de vidros fr
agmentados a rolar sobre
si mesmo. A parte lateral se soltou e o motor deslizou para trás, em um
ângulo que esmagou Richie Trelawney, da cintura para baixo. Houve uma
repentina explosão de fogo, que brotou do tanque de gasolina arrebentado,
quando o Camaro
finalmente pousou no chão.
Buddy Repperton estava vivo. Havia sido cortado em várias partes
por vidros esvoaçantes
—
uma orelha fora decepada com precisão
cirúrgica, deixando um buraco vermelho no lado esquerdo da cabeça
—
e
uma perna estava quebrada, mas
ele continuava vivo. Seu cinto de
segurança o salvara. Manuseou o fecho e ele cedeu. O crepitar do fogo
assemelhava
-
se a papel sendo amassado. Ele pôde sentir o ardente calor.
Tentou abrir a porta mas emperrara.
Ofegando roucamente, atirou
-
se pelo espaço
vazio onde estivera o
vidro da janela...
... e lá estava Christine.
O Plymouth parara a uns quarenta metros de distância,
enfrentando
-
o no final de uma longa e deslizante marca de derrapagem. O
ruído do motor era como o lento ofegar de algum gigantesco ani
mal.
Buddy passou a língua pelos lábios. Algo em seu lado esquerdo
repuxava e apunhalava a cada respiração. Ali estava qualquer coisa
desarranjada também. Costelas.
O motor de Christine acelerava e diminuía; acelerava e diminuía.
Fracamente, como algo prov
indo de um pesadelo de lunático, Buddy
pôde ouvir Elvis Presley cantando
"Jailhouse Rock ".
Pontos laranja
-
rosados de luz na neve. O súbito e crescente crepitar
do fogo. Aquilo ia explodir. Ia...
Explodiu.
O tanque de gasolina do Camaro explodiu, com estro
ndoso
ruído. Buddy sentiu uma rude mão empurrá
-
lo pelas costas e voou pelos
ares, aterrissando na neve sobre seu lado ferido. Estava com o blusão em
fogo. Grunhiu e rolou sobre a neve para apagá
-
lo. Depois tentou ficar
sobre os joelhos. Atrás dele, o Camar
o era uma pira ardente na noite.
O motor de Christine agora acelerava e diminuía, acelerava e
diminuía, mais depressa, com maior urgência.
Buddy finalmente conseguiu ficar de gatinhas. Espiou para o
Plymouth de Cunningham, através das mechas suadas de cabe
lo que lhe
caíam sobre os olhos. O capô ficara ondulado, quando o carro investira
contra a barreira e, do radiador, pingava uma mistura de água e
anticongelante, que fumegava sobre a neve como a recente pegada de um
animal.
Buddy tornou a passar a língua p
elos lábios. Sentiu
-
os como a pele
estorricada de um lagarto. Suas costas estavam quentes, como se
estivessem sido razoavelmente queimadas pelo sol; podia sentir o cheiro
de roupa chamuscada mas, na imensidão de seu choque, não percebia que
tanto o blusão
como as duas camisas por baixo dele não existiam mais.
—
Escute
—
disse, mal percebendo que falava.
—
Ei, escute...
O motor de Christine rugiu, ao avançar para ele, a traseira rabeando,
quando os pneus dançavam sobre a neve pulverizada. O capô ondulante
er
a como uma bocarra em um gélido rosnado.
Buddy esperou, apoiado nas mãos e joelhos, resistindo ao
incontrolável desejo de rolar e fugir imediatamente, resistindo
—
o mais
que podia
—
ao pânico selvagem que destruía seu autocontrole. Ninguém
no carro. Uma p
essoa mais fantasista do que ele talvez enlouquecesse.
No último segundo possível, ele rolou para a esquerda, gritando
quando as extremidades estilhaçadas do osso na perna quebrada bateram
no chão. Sentiu algo como uma bala passar por ele a centímetros de
distância, houve o calor e a fumaça da descarga, cuspida em seu rosto por
um momento, e então a neve ficou vermelha, quando as lanternas
traseiras de Christine piscaram.
O Plymouth manobrou, derrapando, para voltar à carga.
—
Não!
—
gritou Buddy. A dor era
dilacerante no peito.
—
Não!
Não! N...!
Saltou, com cegos reflexos assumindo o controle e, desta vez, a bala
passou mais perto, arrancando couro de um sapato e deixando seu pé
esquerdo instantaneamente entorpecido. Ele se virou alucinadamente
sobre as mão
s e os joelhos, como um bebê de pouca idade. O sangue agora
lhe escapava da boca, de mistura ao muco que escorria livremente do
nariz; uma das costelas partidas penetrara em um pulmão. O sangue
corria pela face, brotando do buraco na cabeça, onde estivera
a orelha. O
ar congelado saía em jatos pelo nariz. A respiração era feita entre
sibilantes soluços.
Christine fez uma pausa.
Seu cano de descarga expeliu vapor branco; o motor latejava e
ronronava. O pára
-
brisa era um espaço negro e opaco. Atrás de Buddy,
os
remanescentes do Camaro expeliam chamas oleosas para o céu. Um vento
afiado como navalha as sacudia e abanava. Sentado no inferno do banco
traseiro, Bobby Stanton tinha a cabeça de lado, uma careta endurecida na
face que escurecia.
Está brincando comigo
,
pensou Buddy.
Brincando comigo, eis o que esse
carro está fazendo. De gato e rato.
—
Por favor!
—
cacarejou ele. Os faróis dianteiros piscavam,
transformando o sangue que lhe escorria pelo rosto e dos lados da boca
em um negror próprio de isento.
—
Por f
avor... eu... vou dizer a ele que
sinto muito... Ficarei diante dele sobre meus malditos joelhos e mãos, se é
isso o que quer... mas, por favor... por fa...
O motor rugiu. Christine saltou para ele, como antiga predestinação
de sombria era. Buddy gritou e
tornou a girar de lado. Desta vez, o pára
-
choque bateu em sua carne, quebrou sua outra perna e o jogou para a
frente da ribanceira, no lado da estrada do parque. Ele se chocou contra
ela e esparramou
-
se, como um frouxo saco de cereal.
Christine rodou de vo
lta para ele, mas Buddy entrevira uma chance,
uma escassa oportunidade. Começou a subir penosamente a rampa,
cavando na neve, com mãos nuas que já não possuíam qualquer sensação,
escavando com os pés, ignorando as tremendas pontadas de dor nas
pernas fratu
radas. Agora, sua respiração vinha em pequenos gritos,
enquanto os faróis ficavam mais brilhantes e aumentava o rugido do
motor; cada punhado de neve atirava a própria sombra negra e
deformada
—
e Buddy podia senti
-
lo, podia senti
-
lo atrás de si, como
algu
m horrível tigre devorador de homens...
Houve um rangido e um som metálico. Buddy gritou, quando um
de seus pés foi enterrado na neve pelo pára
-
choque de Christine.
Arrancou
-
o da neve, mas deixando o sapato nas profundezas do buraco.
Rindo, balbuciando e c
horando, Buddy chegou ao topo da rampa,
amontoada ali por algum limpa
-
neves da Guarda Nacional, dias antes.
Vacilou no pináculo, girou os braços para manter o equilíbrio e escapou
por pouco de rolar pela ribanceira.
Virou
-
se para encarar Christine. O Plymo
uth manobrara na estrada
e agora arremeda de novo, os pneus traseiros patinando, escavando a
neve. Bateu contra a rampa, uns trinta centímetros abaixo do ponto em
que Buddy se empoleirara, fazendo
-
o balançar e provocando uma
pequena avalancha de neve. O ch
oque emperrou mais o pára
-
choque, mas
Buddy não foi tocado. Christine deu marcha à ré de novo, através de uma
névoa de neve espumante, o motor agora parecendo rugir de frustrada
cólera.
Buddy gritou em triunfo e fez um gesto obsceno para o carro,
espetando
o dedo médio no ar.
Foda
-
se! Foda
-
se! Foda
-
se! Um
spray de
sangue e saliva voou de seus lábios. A cada arquejante respiração, a dor
parecia mergulhar mais fundo em seu lado esquerdo, entorpecente e
paralisante.
Christine rugiu para diante e tornou a colid
ir com o monte de neve.
Desta feita, uma boa porção da rampa, afrouxada pela primeira
arremetida do carro, começou a deslizar para baixo, sepultando o franzido
e rosnante focinho de Christine. Buddy quase veio abaixo também.
Salvou
-
se apenas ao deslocar
-
se
rapidamente para trás, deslizando sobre a
barriga, puxando
-
se com mãos que se cravavam na neve como garras
sangrentas. As pernas agora eram um agonizante sofrimento e ele ficou de
lado, arquejando como um peixe na praia.
Christine atacou novamente.
—
Saia
daqui!
—
gritou Buddy.
—
Vá embora,
maldita FILHA DA
PUTA!
Ela tornou a colidir contra o monte de neve, agora com força
suficiente para ficar com o capô coberto até o pára
-
brisa. Os limpadores
entraram em ação, formando arcos para trás e para diante, expu
lsando
neve derretida.
Christine tornou a dar marcha à ré, e Buddy percebeu que uma nova
investida o faria cascatear para o capô do carro, juntamente com a neve
derrubada. Deixou
-
se cair para trás do monte e foi rolando até o lado mais
distante da rampa, g
ritando a cada vez que suas costelas quebradas
batiam contra o solo. Parou finalmente sobre neve solta, olhando para o
céu escuro, as estrelas frias. Seus dentes começaram a castanholar.
Estremecimentos percorreram
-
lhe todo o corpo.
Christine não atacou no
vamente, mas ele podia ouvir o murmúrio
macio de sua máquina. Não atacava, mas esperava.
Buddy olhou para o monte de neve, avolumando
-
se contra o céu.
Um pouco além, o clarão do Camaro incendiado começara a diminuir um
pouco. Quanto tempo se passara, desde
a colisão? Ele não sabia. Seria
possível alguém avistar o fogo e vir salvá
-
lo? Também não sabia
responder.
Ele percebeu duas coisas simultaneamente: o sangue fluía de sua
boca
—
fluía em uma quantidade assustadora
—
e estava sentindo muito
frio. Ficaria c
ongelado e morreria se não aparecesse alguém.
Tomado de medo, esforçou
-
se e, aos poucos, conseguiu ficar sentado.
Tentava decidir se rastejaria até a estrada para espiar o carro
—
era pior
ficar ali, sem vê
-
lo
—
quando olhou para o alto da ribanceira. Sua
respiração ficou entrecortada, depois suspensa.
Havia um homem parado ali.
Só que não era bem um homem, era um cadáver. Um cadáver em
decomposição, trajando calças verdes. Não tinha camisa, mas um colete
ortopédico para as costas, manchado de bolor cinzent
o que envolvia seu
torso escurecido. Ossos brancos reluziam através da pele repuxada do
rosto.
—
Você é um imbecil, seu bosta
—
sussurrou a aparição iluminada
pelas estrelas.
Buddy perdeu o que lhe restava de controle e começou a gritar
histericamente, os
olhos esbugalhados, os cabelos compridos parecendo
emaranhados em um grotesco capacete em tomo do rosto sangrento e sujo
de fuligem, quando as raízes de cada fio se enrijeceram e eriçaram. O
sangue lhe fluía da boca aos borbotões, encharcando o frangalho d
e gola
que sobrara do blusão; ele tentou deslizar para trás, agarrando
-
se outra
vez à neve com as mãos e escorregando de nádegas, quando a coisa veio
em sua direção. Uma coisa sem olhos. Os olhos haviam desaparecido,
comidos de sua face, só Deus sabia por
quais contorcidas coisas.
E ele podia
sentir o cheiro daquilo, oh, Deus, sentia o cheiro e era um fedor de tomates podres,
um fedor de morte.
O cadáver de Roland D. LeBay estendeu as mãos apodrecidas para
Buddy Repperton e sorriu.
Buddy gritou. Buddy urrou
. E de repente enrijeceu, seus lábios
formando um O decisivo, contraídos como se quisesse beijar o horror que
caminhava trôpego para ele. Suas mãos engalfinharam
-
se e arranharam o
lado esquerdo de um farrapo do blusão, acima do coração, que finalmente
fora
perfurado pelo toco afiado de uma costela quebrada. Caiu para trás,
os pés convulsos chutando montículos de neve, a última respiração
exalada em um longo jato branco da boca frouxa... como a descarga de um
automóvel.
Na ribanceira, a coisa que ele tinha v
isto piscou e desapareceu. Sem
deixar rastros.
No extremo oposto, o motor de Christine ganhou intensidade,
passando para um crepitante bramido do escapamento, como um berro de
triunfo que reverberou nas severas terras altas cobertas de neve das
Squantic Hi
lls e depois ecoou de volta.
Na margem extrema do Lago Squantic, a uns quinze quilômetros
dali, um jovem que saíra para uma corrida de esqui pelas montanhas, à
luz das estrelas, ouviu o som e parou de repente, as mãos imobilizadas
sobre os bastões e a cabe
ça de banda.
De repente, a pele de suas costas ficou inteiramente arrepiada, como
se uma locomotiva houvesse acabado de passar sobre sua sepultura. E
embora sabendo que aquilo era apenas um carro em alguma parte, na
outra margem
—
nas noites invernais, ali
o som era levado longe pelo
vento
—
, seu primeiro pensamento foi de que algo pré
-
histórico havia
despertado e perseguido a presa até o fim: um grande lobo
—
ou, talvez,
um tigre dentes
-
de
-
sabre.
O som não se repetiu, e ele seguiu seu caminho.
D
ARNELL
C
OG
ITA
Meu bem, deixe
-
me rodar em seu automóvel
Ei, benzinho, deixe
-
me ir em seu automóvel!
Diga para mim, meu benzinho,
Diga
-
me: como se sente?
—
Chester Burnett
Will Darnell ficou na garagem até depois de meia
-
noite, na noite em
que Buddy Repperton e seus
amigos encontraram
-
se com Christine, nas
Squantic Hills. Seu enfisema havia piorado nesse dia, e quando piorava
assim ele receava deitar
-
se, embora costumeiramente estivesse sempre
predisposto a dormir.
O médico lhe dissera não haver a menor probabilidade
de
sufocamento e morte durante o sono, mas com a idade chegando e o
enfisema lentamente aumentando a pressão em seus pulmões, o medo
de
Will ia crescendo. O fato de seu medo ser irracional, de nada adiantava.
Embora ele n
ão houvesse entrado em uma igreja d
e qualquer religião
desde os doze anos de idade
—
há quarenta e nove anos
—
, ele ficara
morbidamente interessado pelas circunstâncias que cercavam a morte do
Papa João Paulo I, dez semanas antes. João Paulo havia morrido na cama,
onde fora encontrado, pela
manhã. Já com o corpo enrijecendo,
provavelmente. Aquela era a parte que mais amedrontava Will:
já
enrijecendo, provavelmente.
Chegou
à garagem às nove e meia da noite, dirigindo seu Chrysler
Imperial 1966
—
o último carro que pretendia possuir. Mais ou m
enos a
essa mesma hora, Buddy Repperton percebia as fagulhas gêmeas de faróis
distantes, em seu espelho retrovisor.
Will devia estar valendo mais de dois milh
ões de dólares, porém o
dinheiro não lhe dava mais tanto prazer, se é que já dera. O dinheiro nem
ao menos continuava parecendo totalmente real. Nada parecia real, exceto
o enfisema. Aquilo era hediondamente real e Will acolhia, prazeroso,
qualquer coisa que lhe afastasse a mente do assunto.
No momento, era o problema de Arnie Cunningham
—
isso
afastar
a
sua mente do enfisema. Supôs que tal acontecesse porque deixara
Cunningham ficar por ali, quando todos os seus mais fortes instintos o
aconselhavam a expulsar o garoto da garagem porque, de certa forma, ele
era perigoso. Havia qualquer coisa acontecendo
com Cunningham e o seu
58 refeito. Algo bem singular.
O garoto n
ão estava ali nesta noite. Ele e todo o clube de xadrez do
Ginásio de Libertyville estavam em Filadélfia, onde ficariam durante os
três dias do Torneio de Outono dos Estados do Norte. Cunningh
am
achara graça naquilo: estava muito mudado, não era mais o garoto cheio
de espinhas e de olhos grandes que Buddy Repperton atacara, o garoto
que Will prontamente (e erradamente) classificara como um bebê chorão e
talvez um maldito veado.
Para s
ó citar um
a mudança, ele se tornara cínico.
Cunningham lhe dissera, na tarde da v
éspera, em seu escritório,
enquanto fumava charutos (o garoto aprendera a gostar deles e Will
duvidava que seus pais soubessem), que faltara a tantas reuniões do clube
de xadrez que, se
gundo o regulamento, não continuava como membro.
Slawson, o conselheiro estudantil, estava a par disso, mas fechava os olhos
por interesse, até o final do Torneio dos Estados do Norte.
—
Já perdi mais reuniões do que qualquer outro, mas também
acontece que
sou quem joga melhor, e o bosta sabe...
—
Arnie pestanejava
e levara as duas mãos à parte inferior das costas, por um momento.
—
Devia procurar um médico para uma olhada nisso
—
falou Will.
Arme piscou, de repente parecendo ter muito mais idade do que
qua
se dezoito anos,
—
Não preciso de mais nada além de uma boa trepada cristã, para
estirar as vértebras.
—
Quer dizer que você vai a Filadélfia?
Will ficara desapontado, muito embora estivesse se aproximando a
folga para Cunningham; isto significava que teri
a de utilizar Jimmy Sykes
nas pr
óximas duas noites
—
e Jimmy não distinguia seu traseiro de um
sorvete.
—
Claro. Não vou perder três dias de sucesso
—
disse Arnie.
Notando o rosto irritado de Will, sorriu.
—
Não se preocupe, cara. Isto
aqui fechará para o
Natal, todos os seus fregueses regulares estarão
comprando brinquedos para os filhos, em vez de jogos de velas e
carburadores. Este lugar vai virar um deserto até o ano que vem, e você
sabe disso.
Aquilo era verdade, sem d
úvida, mas Will não precisava que
nenhum garoto petulante viesse lhe dizer.
—
Quer ir a Albany para mim, depois que voltar?
—
perguntou.
Arnie o estudou cuidadosamente.
—
Quando?
—
Este fim de semana.
—
No sábado?
—
É.
—
O que vai ser?
—
Você levará meu Chrysler a Albany, aí está toda a ma
ldita coisa.
Henry Buck tem quatorze carros usados, limpos, e quer ver
-
se livre deles.
Henry diz que são limpos. Dê uma espiada neles. Eu
lhe darei um cheque
em branco. Se parecerem bons, fa
ça o negócio. Se parecerem fria, diga a
ele para ir trepar com uma
rosquinha.
—
E o que vou estar levando?
Will o fitou por um longo momento.
—
Está ficando com medo, Cunningham?
—
Não.
—
Arnie esmagou a metade do charuto no cinzeiro. Olhou,
para Will, defensivamente.
—
Talvez eu apenas ache que as coisas estão
indo mais
longe, a cada viagem que faço. É coca?
—
Mandarei Jimmy fazer o serviço
—
disse Will brusco.
—
Me diz apenas o que é.
—
Duzentas embalagens de Winstons.
—
Está legal.
—
Tem certeza? Tem mesmo? Arnie riu.
—
Será uma trégua do xadrez.
Will estacionou o Chr
ysler no boxe mais perto de seu gabinete, o
que tinha SR. DARNELL
—
NÃO BLOQUEIE! pintado dentro de seus
limites. Saiu e bateu a porta, arquejante, lutando para respirar. O enfisema
estava alojado em seu peito, e naquela noite parecia ter levado o irmão
ju
nto. Não, ele não se deitaria, pouco importando o que tivesse dito aquele
doutor de merda.
Jimmy Sykes varria apaticamente, com uma enorme vassoura. Era
alto e desengon
çado, com vinte e cinco anos. Seu ligeiro retardo mental o
fazia parecer uns oito anos m
ais novo. Começara a usar o cabelo no estilo
ducktail,
dos anos 50, imitando Cunningham, a quem idolatrava.
Excetuando
-
se os fracos
uissht, uissht,
das cerdas da vassoura no concreto
manchado de graxa, tudo ali dentro era silêncio. E solidão.
—
Isto aqui e
stá um bocado esquisito esta noite, não, Jimmy?
comentou Will, com voz arquejante. Jimmy olhou em torno.
—
Sim, Sr. Darnell. Ninguém apareceu, desde que o Sr. Hatch levou
seu Fairlane, e isso.foi há meia hora atrás.
—
Eu só estava brincando
—
disse Will, n
ovamente desejando que
Cunningham estivesse ali. Era impossível conversar com Jimmy, exceto
em um nível de Ivo
-
viu
-
a
-
uva. Ainda assim, talvez o convidasse para uma
xícara de café com Courvoisier para melhorar o sabor. Fariam um trio. Ele,
Jimmy e o enfisem
a. Ou então uma quadra, uma vez que o enfisema
trouxera o irmão aquela noite.
—
O que me diz de... de...
Interrompeu
-
se subitamente, notando que o boxe vinte estava vazio.
Christine se fora.
—
Arnie esteve aqui?
—
perguntou.
—
Arnie?
—
repetiu Jimmy, pisca
ndo idiotamente.
—
Arnie, Arnie Cunningham
—
disse Will impaciente.
—
Quantos
Arnies você conhece? O carro dele não está aqui.
Jimmy relanceou os olhos em torno, at
é o boxe vinte.
—
Oh, é mesmo. Will sorriu.
—
O herói foi desbancado no bendito torneio de x
adrez, hein?
—
Oh, foi?
—
perguntou Jimmy.
—
Poxa, isso é ruim, não?
Will conteve o
ímpeto de agarrar Jimmy, sacudi
-
lo e dar
-
lhe uns
tapas. Bem, não ia se aborrecer, aquilo só contribuía para dificultar
-
lhe a
respiração e acabaria tendo de encher os pulmõe
s com aquele coisa de
sabor horrível, de seu inalador.
—
Bem, o que foi que ele disse, Jimmy? O que ele disse quando você
o viu?
Will soube repentinamente, no entanto
—
com absoluta certeza
—
que Jimmy não tinha visto Arnie. Jimmy por fim entendeu o que Wi
ll
pretendia.
—
Oh, eu não vi o Arnie. Só vi Christine saindo pelo portão, se o
senhor me entende. Rapaz, ficou um carrão, né? Ele consertou tudo como
por encanto.
—
Exato
—
concordou Will.
—
Como por encanto.
—
A palavra já
lhe ocorrera antes, relacionada
a Christine. De repente, mudou de idéia
quanto a convidar Jimmy para um café com
brandy.
Ainda olhando para o
boxe vinte, falou:
—
Pode ir para casa agora, Jimmy.
—
Bem, Sr. Darnell, o senhor disse que eu ia trabalhar seis horas
essa noite. E as seis hora
s só terminam às dez.
—
Eu marco seu cartão às dez.
Os olhos estonteados de Jimmy iluminaram
-
se, ao ouvir aquela
inesperada, quase inaudita generosidade.
—
Fala sério?
—
Exatamente. Falo sério. Seja bonzinho e dê o fora, Jimmy.
Ok?
—
É pra já
—
disse Jimmy
, pensando que, pela primeira vez
naqueles cinco ou seis anos que trabalhava para Will (era difícil saber o
tempo correto, embora sua mãe estivesse a par de tudo, da mesma forma
como sempre sabia sobre todos os seus pagamentos de impostos), o velho
ogre se
impregnava do espírito natalino. Como naquele filme sobre os três
fantasmas. Acrescentando seu próprio espírito natalino, Jimmy
exclamou:
—
Puxa, são uns bons quatorze minutos, chefinho!
Will pestanejou e caminhou pesadamente para seu escrit
ório.
Contorno
u a máquina de café e sentou
-
se atrás de sua mesa, espiando
enquanto Jimmy guardava a vassoura, apagava a maioria das luzes
fluorescentes que pendiam do teto e vestia seu pesado capote.
Will inclinou
-
se para tr
ás e pensou.
Afinal de contas, seus miolos
é q
ue o tinham mantido vivo durante
todos aqueles anos, vivo e sempre um passo à frente; jamais fora atraente,
por toda a vida adulta foi gordo, com uma saúde sempre péssima. Em
certa primavera de sua infância, a um acesso de escarlatina seguiu
-
se um
caso bra
ndo de pólio, que o deixara com apenas uns setenta por cento da
capacidade do braço direito. Quando jovem, suportava uma praga de
furúnculos. Aos quarenta e três anos, seu médico descobrira uma grande
excrescência esponjosa debaixo de um braço. Não era mal
igna, mas a
remoção cirúrgica o mantivera na cama pela maior parte de um verão e,
como resultado, tivera úlceras de decúbito. Um ano mais tarde, uma
pneumonia dupla quase o matara. Agora, havia um diabetes incipiente e o
enfisema. Não obstante, seu cérebro
sempre permanecera excelente e
alerta, um cérebro que o deixara sempre um passo à frente.
Reclinado em sua cadeira, ele pensou em Arnie. Sup
ôs que uma das
coisas que o tinham impressionado favoravelmente em Cunningham,
após ele ter enfrentado Repperton na
quele dia, era uma certa similaridade
com o adolescente Will Darnell, de muitos anos antes. É lógico que
Cunningham nada tinha de doente, mas sofrera com as espinhas, era
hostilizado e solitário
—
três coisas que haviam sido reais, na vida do
jovem Will Da
rnell.
Cunningham tamb
ém tinha miolos.
Miolos e aquele carro. Aquele estranho carro.
—
Boa noite, Sr. Darnell
—
disse Jimmy. Ficou parado à porta por
um instante e então acrescentou, hesitante:
—
Feliz Natal.
Will ergueu a m
ão em um aceno de despedida. Jim
my saiu. Will
ergueu o corpo volumoso da cadeira, apanhou a garrafa de Courvoiser em
seu armário e a deixou perto da máquina de café. Depois tornou a sentar
-
se. Em sua mente desenrolava
-
se uma rudimentar cronologia.
Agosto:
Cunningham aparece com um desman
telado Plymouth 58 e
o deixa no boxe vinte. O carro parece familiar e, realmente,
é familiar.
Trata
-
se do Plymouth de LeBay. E Arnie não sabe
—
nem precisa saber
—
que, certa vez, Rollie LeBay também havia feito viagens ocasionais a
Albany, Burlington ou P
ortsmouth para Will Darnell... com a diferença de
que, naquela época remota, Will possuía um Cadillac 54. Carros diferentes
para transporte e o mesmo porta
-
mala de fundo falso, com compartimento
secreto destinado aos "fogos de artifício", cigarros, bebidas
e maconha.
Naquele tempo, Will nunca ouvira falar em cocaína. Supunha que apenas
os músicos de
jazz de
Nova Iorque a tivessem.
Fins de agosto:
Repperton e Cunningham entram em choque e
Darnell expulsa Repperton. Est
á farto dele, de sua permanente
fanfarro
nice, de estar sempre querendo bancar o galo do terreiro.
Repperton tem infringido as normas e, embora fazendo para Nova Iorque
e Nova Inglaterra todas as viagens que Will deseja, anda descuidado, e o
descuido é perigoso. Ele mostra também tendência a corr
er demais,
passando do limite legal, já tendo recebido multas por excesso de
velocidade. Basta apenas um tira
curioso e ir
ão todos parar nos tribunais.
Darnell não tem medo de ser preso
—
não em Libertyville
—
, mas isso o
deixaria mal. Houve uma época em q
ue pouco ligava para as aparências,
mas agora está mais velho.
Will levantou
-
se, serviu
-
se de caf
é e misturou uma dose de
brandy.
Fez uma pausa, refletiu no assunto e mediu uma segunda dose, com a
tampa da garrafa. Sentou
-
se, tirou um charuto do bolso da c
amisa,
contemplou
-
o e o acendeu. Foda
-
se, enfisema. Fique com isto.
A fragrante fuma
ça elevou
-
se em torno dele, e com o bom café
quente com
brandy à
sua frente Darnell olhou para sua sombria e
silenciosa garagem, cismando mais um pouco.
Setembro:
O garoto
pede que ele consiga um adesivo de inspe
ção e
empreste uma chapa de matrícula de concessionário, para que possa levar
a namorada a um jogo de futebol. Darnell concorda
—
diabo, houve uma
época em que ele
vendia
um adesivo de inspeção por sete dólares e nem
mesmo dava uma olhada no carro que o usaria. Além do mais, o carro do
garoto está parecendo em condições. Um pouco precário, talvez, e
também fazendo um bocado de barulho, mas afora isso dá uma excelente
impressão. Cunningham tem feito um formidável traba
lho de restauração
no Plymouth.
E isso
é francamente estranho, considerando
-
se que
ninguém o viu
trabalhando realmente no carro.
Bem,
é verdade que ele fez pequenos reparos. Trocou lâmpadas de
faroletes. Mudou pneus. O garoto nada tem de idiota quanto a ca
rros:
sentado nesta mesma cadeira, Will certo dia o viu trocar a forração do
assento traseiro. Entretanto, ninguém o viu trabalhando no sistema de
escapamento do carro, que era uma ruína total, quando ele chegou aqui
com o 58, pela primeira vez, em fins do
verão passado. Tampouco alguém
o viu fazendo lanternagem, embora a lataria do Fury já apresentasse um
caso avançado de câncer, quando o garoto o trouxe para a garagem. E,
agora, ela está como que nova em folha.
Darnell sabia o que Jimmy Sykes pensava, por
que o interrogara uma
vez. Jimmy achava que Arnie fazia o trabalho mais dif
ícil à noite, depois
que todos iam embora.
—
É muita mão
-
de
-
obra, para um maldito trabalho noturno
—
comentou Darnell, em voz alta.
De repente, sentiu um calafrio que nem mesmo o ca
f
é com
brandy
conseguiu dissipar. Sim, era muita mão
-
de
-
obra noturna. Devia ter sido.
Porque, durante o dia, o garoto parecia apenas ficar ouvindo a música
melosa da WDIL. Isso e muita andança sem rumo ali dentro, indo de um
lado para outro.
"Acho que ele
faz o servi
ço sério à noite", tinha dito Jimmy, com a
mesma ingênua confiança da criança explicando como Papai Noel desce
pela chaminé ou como a fada
-
da
-
dentição coloca a moeda de vinte e cinco
centavos debaixo de seu travesseiro. Will não acreditava em Pa
pai Noel
nem na fada
-
da
-
dentição, como tampouco acreditava que Arnie fizesse os
reparos de Christine à noite.
Dois outros fatos inc
ômodos rolaram por sua mente, como bolas de
bilhar procurando uma caçapa para repousarem.
Uma das coisas, era seu conheciment
o de que Arnie andara
dirigindo o carro na parte dos fundos, muitas vezes, antes que fosse
licenciado para o tr
ânsito. Ficava apenas rodando lentamente, indo e
vindo pelas estreitas alamedas entre os milhares de carros destroçados nos
fundos da garagem do
comprimento de um quarteirão. Rodando a dez
quilômetros por hora, indo e vindo, indo e vindo, após o anoitecer, depois
que todos tinham ido para casa, contornando o grande guindaste com o
ímã redondo e a grande caixa do compressor de sucata. Rodando. Quand
o
Darnell o interrogara a respeito, Arnie respondera que esteve checando
uma trepidação na direção. A mentira, contudo, não convencia. Ninguém
jamais checou trepidação na direção rodando a dez por hora.
Era aquilo que Cunningham fazia, quando todos tinham
sa
ído. Era
aquele o seu trabalho noturno. Rodando nos fundos da garagem, abrindo
caminho por entre o ferro
-
velho, os faróis piscando vacilantes, em seus
encaixes comidos pela ferrugem.
Depois, havia o caso do od
ômetro. Girava para trás. Cunningham
lhe apon
tara aquilo, com um leve sorriso acanhado. Rodava ao contrário e
a uma velocidade extremamente rápida. Arnie lhe dissera imaginar que o
odômetro recuava cerca de dez quilômetros para cada quilômetro
realmente rodado. Will ficara francamente espantado. Já o
uvira falar na
regulagem recuada de odômetros, no negócio de carros usados, tendo ele
próprio feito um bocado disso (além de encher transmissões com
serragem para sufocar gemidos fatais e despejar caixas de aveia em
radiadores nas últimas, a fim de obstrui
r temporariamente os vazamentos),
mas nunca vira um odômetro rodar para trás espontaneamente. Julgava
tal coisa imposs
ível. Arnie se limitara a dar um breve e curioso sorriso,
dizendo que devia ser algum defeito mecânico.
Era um defeito, claro, pensava Wil
l. Um diabo de defeito!
Os dois pensamentos se entrechocaram indolentemente e rolaram
em dire
ções diferentes.
Rapaz, ficou um carr
ão, né? Ele consertou tudo como por encanto.
Will n
ão acreditava em Papai Noel nem na fada
-
da
-
dentição, mas
estava pronto a ad
mitir que havia coisas bem estranhas no mundo. Um
homem prático podia admiti
-
lo e até lançar mão disso, se pudesse. Um
amigo seu, residindo em Los Angeles, alegara ter visto o fantasma da
esposa, antes do grande terremoto de 67, e Will não tinha nenhum mot
ivo
em particular para duvidar da alegação (embora duvidasse
completamente, se o amigo tivesse algo a ganhar com o ocorrido). Quent
Youngerman, outro amigo, alegara ter visto o pai morto há muito tempo,
parado ao pé de seu leito de hospital, depois que ele
, Quent, um operário
especializado em chapas de aço, sofrera uma terrível queda do quarto
andar de um prédio em construção, na Wood Street.
Will passara a vida inteira ouvindo hist
órias semelhantes, como sem
dúvida acontecia com quase todas as pessoas. E c
omo provavelmente
fazia a maioria dos racionais, ele as guardara em uma espécie de arquivo
aberto, não acreditando nem desacreditando, a menos que o contador da
história fosse um evidente lunático. Ele as punha naquele arquivo aberto
porque ninguém sabia d
e onde a gente vinha, quando nascia, e ninguém
sabia para onde a gente ia, quando morria. Nenhum ministro unitarista
e .nenhum daqueles que bradavam o segundo nascimento de Jesus,
nenhum papa ou cientista do mundo o convenceria do contrário. Só
porque algu
mas pessoas eram fanáticas nesse assunto não queria dizer
que soubessem alguma coisa. Fatos assim, ele deixava naquele arquivo
aberto, porque jamais lhe sucedera algo realmente inexplicável.
Exceto, talvez, algo como o que acontecia agora.
Novembro:
Repper
ton e seus amigos do peito fazem mis
érias com o
carro de Cunningham, no aeroporto. Quando o Plymouth chega no
caminhão
-
reboque, dá a impressão de que ficou inteiramente arruinado.
Ao olhar para ele, Darnell pensa:
Ele nunca mais tornará a rodar. Ponto fina
l;
nunca mais rodará dez centímetros.
No fim do mês, o rapaz Welch é morto na
estrada JFK.
Dezembro:
Um detetive da Pol
ícia Estadual começa a rondar por ali.
Junkins. Fica rondando e, certo dia, fala com Cunningham. Depois,
aparece outro dia, quando Cunnin
gham não está lá, e quer saber se o
garoto mente sobre a extensão do dano causado por Repperton e seus
chapas (dos quais o falecido e não
-
pranteado Peter "Penetra" Welch era
um) em seu Plymouth.
Porque vem me perguntar,
inquiriu Darnell
arquejando e tossin
do, através de uma nuvem de fumaça do charuto.
Fale
com ele, o maldito Plymouth é dele, não meu. Eu apenas dirijo este lugar para que
trabalhadores mantenham seus carros rodando e continuem botando comida na
mesa de suas famílias.
Junkins ouve o discurso p
acientemente. Sabe que Darnell faz um
bocado mais, al
ém de dirigir uma garagem tipo faça
-
você
-
mesmo e um
ferro
-
velho de automóveis. Entretanto, Darnell
sabe
que ele sabe, de modo
que fica tudo bem.
Junkins acende um cigarro e diz:
Vim perguntar a voc
ê, por
que já falei
com o garoto e ele não me contou. Por um instante, enquanto falava com ele,
pensei que queria me dizer; tive a impressão de que está verde de medo por causa
de alguma coisa. Então, pareceu mudar de idéia e ficou de boca fechada.
Darnell diz:
S
e est
á pensando que Arnie fez o serviço naquele rapaz, por
que não diz logo?
Junkins responde:
N
ão é o que estou pensando. Os pais dele disseram que
o garoto estava em casa, dormindo. Não me pareceu que fosse uma mentira para
protegê
-
lo. No entanto, Welch
foi um dos caras que arrebentaram seu carro, temos
absoluta certeza disso, como estou certo de que ele mente sobre a extensão do dano.
Não sei por que ele mente, e é isso que está me deixando louco.
É uma pena,
respondeu Darnell, sem senti
-
la em absoluto.
Junkins pergunta:
Qual foi a extens
ão do dano, Sr. Darnell? Quero a sua
opinião.
Darnell ent
ão diz sua primeira e única mentira, durante a entrevista
com Junkins:
Sequer saber, eu não reparei.
É claro que reparou, e ele sabe por que Arnie mente, tentando
m
inimizar o fato. Aliás, este tira também saberia por que, se não fosse tão
evidente que procurava pressionar, em vez de tentar ver as coisas.
Cunningham mente porque o dano foi
horrível,
o dano foi muito pior do
que este tira estadual
possa imaginar. Aquel
es bandidos n
ão apenas
arrebentaram o 58 de Cunningham,
acabaram
com ele. Cunningham mente
porque, embora ninguém o visse trabalhando muito, durante a semana
após o caminhão
-
reboque trazer Christine de volta ao boxe vinte,
o carro
estava praticamente como
novo
—
ainda melhor do que estivera antes.
Cunningham mentiu para o tira, porque a verdade era inacredit
ável.
—
Inacreditável
—
repetiu Darnell em voz alta, e bebeu o resto de
seu café.
Olhou para o telefone, estendeu o bra
ço para ele, mas depois
desistiu.
Tinha uma ligação a fazer, mas era melhor terminar a análise
daquilo primeiro
—
ter todos os seus patos enfileirados.
Ele pr
óprio era o único (além de Cunningham, é claro) que poderia
avaliar como era incrível o que tinha acontecido: a completa e total
re
generação do carro! Jimmy tinha o miolo mole e os outros sujeitos iam e
vinham, nenhum deles sendo um freguês regular. Houve, porém,
comentários sobre o trabalho espetacular que Cunningham havia feito;
vários caras que tinham feito reparos em seus veículos
, naquela semana
de novembro, tinham usado a palavra incrível. Vários deles também
pareciam inquietos. Johnny Pomberton, que comprava e vendia
caminhões usados, naquela semana estivera tentando colocar em
condições de rodar uma velharia que adquirira. John
ny entendia de
automóveis e caminhões melhor do que qualquer um em Libertyville,
talvez em toda a Pensilvânia. Comentara com Will, franca e abertamente,
que não podia acreditar naquilo.
É como vodu,
tinha dito Johnny
Pomberton, dando em seguida uma risada
sem graça. Will se limitara a
ficar quieto, parecendo polidamente interessado. Após um ou dois
segundos, o velho meneou a cabeça e afastou
-
se.
Sentado em seu escrit
ório e contemplando a garagem,
espectralmente silenciosa, no fraco período anual das semanas
anteriores
ao Natal, Will refletiu (não pela primeira vez) que quase todas as pessoas
aceitariam qualquer coisa que viesse acontecer debaixo dos próprios olhos.
Em um sentido bastante real, nada havia de sobrenatural ou anormal: o
que acontecera, acontece
ra, e ponto final.
Jimmy Sykes:
Como por encanto.
Junkins:
Ele
mente a respeito, mas raios me partam se eu sei por qu
ê.
Will puxou a gaveta de sua mesa, comprimindo sua volumosa
barriga, e encontrou a agenda para 1978. Folheou
-
a at
é achar o lembrete,
em s
ua própria caligrafia garatujada:
Cunningham. Torneio de xadrez. Philly
Sheraton 11
-
13 dez.
Ligou para a telefonista de aux
ílio, conseguiu o número do hotel e
fez a chamada. Não ficou muito surpreso, ao sentir as pulsações cardíacas
aumentarem de ritmo qua
ndo o telefone tocou e o atendente da recepção
o atendeu.
Como por encanto.
—
Alô? Filadélfia Sheraton.
—
Alô
—
disse Will.
—
Parece que vocês estão realizando um
torneio de xadrez aí, e...
—
Torneio dos Estados do Norte, senhor
—
interrompeu o
atendente.
Parecia ativo e quase insuportavelmente jovem.
—
Estou ligando de Libertyville, Pensilvânia
—
disse Will.
—
Suponho que aí se hospeda um estudante do ginásio daqui, chamado
Arnold Cunningham. É um dos rapazes do torneio de xadrez. Gostaria de
falar com ele
, se for possível.
—
Um momento, senhor, enquanto verifico.
Clunk.
Will teria que esperar. Recostou
-
se em sua cadeira de molas e
ficou assim pelo que lhe pareceu muito tempo, embora o ponteiro
vermelho de segundos no rel
ógio do escritório só tivesse feito
uma volta.
Ele não vai estar lá e, se estiver, como a minha...
—
Alô?
A voz era jovem, um tanto curiosa e indiscutivelmente de
Cunningham. Will Darnell sentiu uma reviravolta peculiar na barriga,
mas nada se revelou em sua voz, era velho demais para isso.
—
Oi, Cunningham
—
disse.
—
É Darnell.
—
Will?
—
Hã
-
hã.
—
O que deseja, Will?
—
Como está se saindo, garoto?
—
Ganhei ontem e perdi hoje. Um jogo bobo, mas não conseguia
ficar atento a ele. O que há?
Sim, era Cunningham
—
ele mesmo, sem sombra de dúvida.
W
ill jamais ligaria para alguém sem um bom motivo ou um pretexto
para proteger
-
se, a fim de não ser apanhado desprevenido. Disse
tranqüilamente:
—
Tem um lápis aí, garoto?
—
Claro.
—
Há uma firma na North Broad Street, United Auto Parts. Será que
poderia ir
até lá e ver o que eles têm, em matéria de pneus?
—
Recauchutados?
—
perguntou Arnie.
—
De primeira mão.
—
Tudo bem, darei uma passada. Estarei livre amanhã, do meio
-
dia
às três da tarde.
—
Ótimo. Pergunte por Roy Mustungerra e diga meu nome.
—
Soletre is
so.
Will soletrou o nome.
—
É tudo?
—
Sim, tudo... ah, faço votos para que vá a forra.
—
Há uma boa chance
—
disse Cunningham, e riu.
Will despediu
-
se e desligou. Era Cunningham, não havia a menor
sombra de dúvida quanto a isso. Cunningham estava em Filadé
lfia esta
noite
—
e Filadélfia ficava a quase quinhentos quilômetros de distância.
A quem ele teria fornecido chaves extras do carro?
O garoto Guilder.
Claro! Só que o garoto Guilder estava no hospital.
Sua namorada.
Bem, ela não tinha carteira de motorist
a, nem mesmo permissão
para dirigir. Arnie lhe contara.
Alguém mais.
Não havia mais
ninguém.
Ninguém mais era íntimo de Cunningham,
além do próprio Will
—
e Will sabia muito bem que ele nunca lhe dera
uma duplicata das chaves.
Como por encanto.
Merda!
Will
reclinou
-
se novamente em sua cadeira e acendeu outro charuto.
Enquanto fumava, com a ponta caprichosamente cortada pouco antes
caída no cinzeiro, ele ergueu os olhos para a fumaça flutuante, e
mergulhou em profundas cogitações. Não conseguia entender.
Cun
ningham estava em Filadélfia e seguira para lá no ônibus da escola,
mas seu carro sumira da garagem. Jimmy Sykes o vira saindo, mas sem
ver quem o dirigia. Francamente, o que significava tudo aquilo? O que
acrescentaria aos fatos?
Aos poucos, sua mente se
foi desviando para outros canais. Will
recordou os próprios dias escolares, quando tivera o papel principal na
peça encenada pelos veteranos do ginásio. Will fazia o sacerdote que é
levado ao suicídio pela luxúria que sentia por Sadie Thompson, a jovem
que
pretendia salvar. Sua representação foi delirantemente aplaudida.
Aquele havia sido seu único momento de glória, em uma vida ginasiana
desprovida de vitórias esportivas ou acadêmicas, talvez até mesmo o
ponto alto de sua juventude. O pai de Will era um bê
bado, sua mãe uma
criada, o único irmão um vagabundo, cujo momento de glória acontecera
em algum ponto da Alemanha, seu único aplauso o firme martelar do
fogo dos canhões alemães.
Will pensou em sua única namorada, uma pálida loura chamada
Wanda Haskins, c
ujas bochechas alvas eram pontilhadas de sardas,
dolorosamente profusas ao sol de agosto. Era quase certo que se teriam
casado
—
Wanda fora uma entre as quatro jovens com quem Will Darnell
trepara (ele excluía as prostitutas da contagem). Sem dúvida, era a
única
que chegara a amar (sempre supondo que isso existisse
—
e, como em
relação aos eventos sobrenaturais de que ouvia falar às vezes, que, porém,
jamais testemunhara, podia duvidar de sua existência, não podia refutá
-
la), mas o pai dela era do Exército
e Wanda havia sido uma cria do
Exército. Aos quinze anos
—
talvez faltando apenas um para a mística
divisão de equilíbrio do poder, das mãos dos velhos para as dos novos
—
ela e a família se mudaram para Wichita, o que significou o fim do
romance.
Havia um
certo batom que ela usava e, naquele tão distante verão de
1934, tivera um sabor de framboesas frescas para Will Darnell, então ainda
um jovem bastante esguio, ambicioso e de olhos límpidos. Tinha sido um
sabor que fizera a mão esquerda avançar para a ere
ta e entusiástica base
do pênis no meio da noite... e, mesmo antes de Wanda Haskins consentir,
os dois haviam dançado aquela doce e especial melodia nos sonhos de
Will Darnell. Sim, haviam dançado na cama estreita de rapazinho,
demasiado pequena para suas
pernas em crescimento.
E agora pensando naquela dança, Will parou de cogitar e começou a
sonhar. Então, cessando dê sonhar, começou a dançar novamente.
Despertou de um sono que não chegara de fato a ser profundo,
umas três horas mais tarde; foi acordado p
elo ruído da enorme porta da
garagem subindo barulhentamente e também pela claridade da luz
interna acima da porta
—
não fluorescente, mas uma lâmpada fortíssima
de 200 velas
—
que se acendera.
Will fez a cadeira voltar rapidamente à posição normal. Seus s
apatos
bateram contra o tapete embaixo da escrivaninha (com o nome
BARDAHL escrito nele, em letras salientes de borracha) e foi mais o
choque de agulhadas e alfinetadas nos pés, acima de qualquer outra coisa,
que o despertou completamente.
Christine se mov
ia lentamente, cruzando a garagem em direção ao
boxe vinte, para o qual se esgueirou.
Naquele momento, ainda não de todo convencido de que despertara,
Will a observou com curiosa falta de excitamento, algo que talvez só
aconteça àqueles convocados diretame
nte de seus sonhos. Sentou
-
se ereto
atrás da mesa, os braços semelhantes a presuntos, plantados sobre seu
sujo e rabiscado mata
-
borrão
—
e ficou espiando.
O motor acelerou uma, duas vezes. O novo e reluzente cano de
descarga expeliu fumaça azul.
Então, o m
otor parou.
Will continuou sentado, sem se mover.
Sua porta estava trancada, mas havia um intercomunicador, sempre
ligado, entre o escritório e a comprida área da garagem, semelhante a um
celeiro. Por aquele mesmo intercomunicador, ele ouvira o início da l
uta
entre Cunningham e Repperton, disputando o título, no agosto passado. E
pelo intercomunicador ele agora ouvia o tiquetaquear metálico do motor
esfriando. Nada mais ouviu.
Ninguém saiu do Christine, porque não havia ninguém para sair.
Ele colocava coisa
s assim em um arquivo aberto, porque jamais lhe sucedera
algo realmente inexplicável... exceto, talvez, algo como o que acontecia agora.
Will vira Christine cruzar o piso de cimento até o boxe vinte, a porta
automática chocalhando ao fechar
-
se contra a fri
a noite de dezembro do
exterior. Examinando o caso mais tarde, peritos poderiam dizer: A
testemunha admite que cochilou e depois adormeceu, admite que estava
sonhando... o que alega ter visto, evidentemente nada mais era do que uma
extensão de seu sonho, u
m estímulo externo provocando uma faixa subjetiva de
imagens provenientes do sonho...
Sim, eles poderiam dizer isso, da mesma forma como Will poderia
sonhar que dançava com Wanda Haskins, uma jovem de quinze anos...
mas na realidade era um homem de cabeça
firme, com sessenta e um anos,
um homem que, havia muito, se alijara de quaisquer atitudes românticas.
E ele tinha
visto
o 58 de Cunningham deslizar através da garagem
vazia, o volante movendo
-
se sozinho, quando o carro se dirigiu para seu
boxe costumeiro.
Ele tinha
visto
os faróis se apagarem e ouvira o motor de
8 cilindros, quando morrera.
Agora, sentindo
-
se estranhamente sem ossos, Will Darnell levantou
-
se, vacilou, foi até a porta do escritório, tornou a vacilar, para depois abri
-
la. Saiu e caminhou à f
rente das filas de carros estacionados obliquamente,
até o boxe vinte. Suas pisadas ecoavam atrás dele e depois extinguiam
-
se
em mistério.
Ficou parado ao lado do carro, com sua carroceria pintada em dois
tons vivos, vermelho e branco. O trabalho de pintur
a era cuidadoso, limpo
e perfeito, sem a menor mácula de um diminuto defeito ou o mais leve
toque de ferrugem. O vidro estava imaculado e intacto, não havendo nele
uma só ligeiríssima arranhadura, causada por um fragmento de pedra que
voasse ao acaso.
O ún
ico som ouvido agora era o lento gotejar da neve derretida,
pingando dos pára
-
choques traseiro e dianteiro.
Will tocou o capô. Estava quente.
Experimentou a porta ao lado do motorista e ela se abriu sem
dificuldade. O cheiro que veio do interior foi um agr
adável odor de couro
novo, plástico novo e novos cromados
—
exceto que parecia haver um
outro cheiro, mais desagradável, por sob aquele. Um cheiro de terra. Will
aspirou fundo, mas não conseguiu classificá
-
lo. Pensou brevemente em
nabos velhos, nos depósit
os para vegetais que seu pai tinha no porão, e
seu nariz se franziu.
Inclinou
-
se. Não havia chaves na ignição. O odômetro marcava
52.107,8.
De repente, a fenda vazia da ignição, incrustada no painel de
instrumento, começou a girar. Por si mesma, a fenda ne
gra passou de
ACC para START. O motor aquecido pegou imediatamente e funcionou
com firmeza, repleto de alegre potência de alta octanagem.
O coração de Will titubeou em seu peito. A respiração ficou presa.
Ofegando e tossindo ruidosamente em busca de ar, ap
ressou
-
se a voltar ao
escritório, a fim de usar o inalador sobressalente, que tinha em uma
gaveta da mesa. Insuficiente e impotente, sua respiração soava como
vento de inverno, passando por baixo da fresta de uma porta. Seu rosto
adquirira um tom de vela a
ntiga. Os dedos aferraram a carne mole da
garganta e a puxaram incessantemente.
O motor de Christine parou novamente.
Não houve mais nenhum som, além do tiquetaquear do metal
esfriando.
Will encontrou o inalador, enfiou
-
o fundo na garganta, apertou o
dispa
rador e aspirou. Pouco a pouco, a sensação de que havia sobre seu
peito um carrinho de mão carregado de blocos de cimento dissipou
-
se.
Sentando
-
se em sua cadeira giratória, ele ouviu agradecido o saudável e
esperado rangido de protesto das molas. Cobriu o
rosto
momentaneamente com as mãos gordas.
Nada realmente inexplicável... até agora.
Ele vira.
Ninguém estivera dirigindo aquele carro. Ele chegara à garagem vazio,
cheirando a algo parecido com nabos apodrecendo.
Ainda assim, a despeito de seu terror, a me
nte de Will começou a
trabalhar e ele se perguntou como poderia usar o que sabia, em seu
próprio benefício.
D
ESFAZENDO
C
ONEXÕES
Bem, mister, quero um conversível amarelo.
Um DeVille quatro portas,
Com rodas raiadas cromadas
E um estepe Continental.
Com po
tente direção,
E freios também potentes;
Quero um motor poderoso,
Com decolagem a jato...
Quero um rádio de ondas
-
curtas,
Quero TV e telefone,
Entenda, é pra falar com meu bem
Quando eu rodar por aí.
—
Chuck Berry
Os restos carbonizados do Camaro de Buddy
Repperton foram
encontrados no final da tarde da quarta
-
feira, por um guarda do parque.
Uma senhora idosa, que morava com o marido na cidadezinha de Upper
Squantic, telefonara para o posto dos guardas, na margem do lago que
dava para o parque.
Segundo ela
, sofria demais de artrite e, às vezes, não conseguia
dormir. Na noite anterior, julgara ter visto chamas partindo das
proximidades do portão sul do parque. A que horas? Ela admitiu ter sido
por volta de quinze para as dez, porque estivera vendo o Filme da
Noite
de Terça
-
feira, na CBS, e o filme ainda não passara da metade.
Na quinta
-
feira, uma foto do carro queimado apareceu na primeira
página do
Keystone
de Libertyville, abaixo de uma manchete que dizia:
TRÊS MORTOS EM ACIDENTE DE AUTOMÓVEL NO PARQUE
ESTA
DUAL DAS SQUANTIC HILLS. Era mencionada uma fonte da
Polícia Estadual como tendo dito que: "A bebida provavelmente fora um
fator"
—
uma forma oficialmente opaca de dizer que os remanescentes
estilhaçados de mais de meia dúzia de garrafas contendo uma mistu
ra de
uísque e vinho, vendida sob o nome de Texas Driver, haviam sido
encontrados no local do acidente.
A notícia foi um impacto particularmente rude no Ginásio de
Libertyville; os jovens sempre sentem a maior dificuldade em aceitar
informações desagradáve
is sobre a própria mortalidade. E a temporada de
férias talvez tornasse o golpe ainda mais duro.
Arnie Cunningham ficou terrivelmente deprimido com o fato.
Deprimido e amedrontado. Primeiro, "Penetra"; agora, Buddy, Richie
Trelawney e Bobby Stanton. Bobby
Stanton, um infeliz calouro do qual
nunca ouvira falar
—
o que um novato como esse tinha de estar fazendo
em companhia de sujeitos como Buddy Repperton e Richie Trelawney?
Não saberia que estava se aventurando em um cova de tigres, sem maior
proteção além
de uma pistolinha de esguichar água? Achou
inexplicavelmente difícil aceitar a versão transmitida pelos boatos,
segundo a qual Buddy e seus amigos tinham apenas ficado muito
desiludidos com o jogo de basquete e haviam saído de carro, rodando e
bebendo, até
encontrarem o amargo fim.
Arnie não conseguia livrar
-
se da sensação de que, de certa forma,
estava envolvido naquilo.
Leigh parara de falar com ele desde a discussão. Ele não lhe
telefonara
—
parte por orgulho, parte por vergonha e também esperando
que el
a ligasse primeiro, que tudo voltasse a ser como era... antes.
Antes de quê?,
sussurrava sua mente.
Bem, antes de ela quase ter
morrido sufocada em seu carro, para início de conversa. Antes de você tentar
agredir o cara que salvara a vida de Leigh.
Entreta
nto, Leigh queria que ele vendesse Christine. Algo
simplesmente impossível... não era? Como podia fazer isso, depois de ter
investido naquilo tanto tempo, esforço e sangue
—
sim, era verdade,
inclusive lágrimas?
Era uma velha cantilena e não queria mais pe
nsar nisso. O sinal
encerrando as aulas daquela quinta
-
feira, que parecia interminável, soou
finalmente, e ele saiu para o pátio de estacionamento dos estudantes
—
praticamente correu para lá
—
e quase mergulhou em Christine.
Ficou quieto, sentado ao volan
te, e soltou uma longa, trêmula
respiração, espiando os primeiros flocos de neve de uma tarde perturbada
caírem e rolarem através do capô reluzente. Procurou suas chaves, tirou
-
as do bolso e ligou Christine. O motor zumbiu confiantemente e ele
começou a ro
dar, os pneus girando e esmagando a neve em camadas.
Pensou que, eventualmente, precisaria colocar pneus para neve, mas a
verdade é que Christine não parecia precisar deles. Ela possuía a melhor
tração de todos os carros que já dirigira.
Arnie estendeu a m
ão para o botão do rádio e sintonizou a WDIL.
Sheb Wooley cantava "O Púrpura Comedor de Gente". Aquilo conseguiu
finalmente trazer um sorriso a seu rosto.
Apenas ficar ao volante de Christine, no controle, já fazia com que
tudo parecesse melhor. Fazia com
que tudo parecesse manobrável. A
notícia de Repperton, Trelawney e o bostinha, morrendo daquele jeito,
havia sido um terrível choque, sem dúvida. Após os ressentimentos do
verão passado e daquele outono, era natural que ele se sentisse um tanto
culpado. En
tretanto, a verdade pura e simples é que estivera em Filadélfia.
Nada tinha a ver com aquilo; era impossível.
De fato, vinha apenas se sentindo deprimido por coisas gerais.
Dennis estava no hospital. Leigh se portava idiotamente
—
como se seu
carro ficasse
dotado de mãos e lhe empurrasse aquele pedaço de
hambúrguer garganta abaixo, pelo amor de Deus! Além do mais, hoje
tivera que deixar o clube de xadrez.
A pior parte disso, talvez houvesse sido a maneira como o Sr.
Slawson, o conselheiro estudantil, aceita
ra sua decisão sem ao menos
tentar dissuadi
-
lo. Arnie fornecera um punhado de desculpas sobre sua
falta de tempo naquela época e como seria forçado a cortar algumas de
suas atividades; o Sr. Slawson se limitara a concordar, dizendo: Ok,
Arnie,
continuaremo
s aqui, na Sala 30, caso você mude de idéia.
O Sr. Slawson o fitara
com seus olhos azuis desbotados, aumentados pelas lentes espessas dos
óculos ao tamanho de repulsivos ovos cozidos, e neles havia algo
—
seria
censura?
Talvez sim. Entretanto, o sujeito ne
m mesmo
tentara
persuadi
-
lo a
ficar. Devia, pelo menos,
tentar,
porque Arnie era o melhor que o clube de
xadrez do Ginásio de Libertyville tinha a oferecer, e Slawson sabia disso.
Se houvesse tentado, talvez o fizesse mudar de idéia. A verdade é que
agora
tinha um pouco mais de tempo, já que Christine estava... estava...
O
quê?
...
bem, reconstituída de novo. Se o Sr. Slawson tivesse dito algo
como:
Ei, Arnie, não seja precipitado, vamos refletir um pouco, nós podemos usá
-
lo realmente.
Se o Sr. Slawson tive
sse dito qualquer coisa assim, claro, ele
poderia reconsiderar. Só que não Slawson. Apenas nós continuaremos
aqui, na Sala 30, caso mude de idéia... e blablablá e quac
-
quac
-
quac,
aquele merda filho da mãe, um bosta igual aos outros. Não era sua a culpa,
se
o Ginásio de Libertyville fora derrotado nas semifinais. Ele ganhara
quatro jogos antes disso e venceria nas finais, se tivesse tido uma chance.
Barry Qualson e Mike Hicks, esses dois bostas é que tinham deitado tudo
a perder; os dois jogavam xadrez como
se talvez pensassem que Ruy
Lopez era alguma nova marca de refrigerante ou coisa assim...
Ele rasgou a embalagem e o papel interno de uma goma de mascar,
dobrou a goma dentro da boca, fez uma bolinha com o envoltório e a
jogou com precisa pontaria no saqui
nho para lixo, pendurado ao cinzeiro
de Christine. "Bem no traseiro do vagabundinho", murmurou e então
sorriu. Era um sorriso duro, sem saliva. Mais acima, seus olhos se
moveram incansavelmente de um lado para outro, observando com
desconfiança um mundo ch
eio de motoristas loucos, pedestres idiotas e
imbecilidade generalizada.
Arnie rodou sem rumo por Libertyville, os pensamentos
continuando a fluir nessa suave paranóia, de modo amargamente
confortador. O rádio transmitiu um fluxo sistemático de velhas melo
dias e,
hoje, todas pareciam ser instrumentais
—
"Rebel Rouser", "Wild Weekend",
"Telstar", o selvagem ritmo de Sandy Nelson em "Teen Beat", e "Rumble",
por Linc Wray, o maior de todos eles. Suas costas o incomodavam, mas
não muito. O tom sombrio da tarde
intensificou
-
se brevemente para uma
nuvem de neve cinza
-
escura. Ele acendeu os faróis e, com a mesma
rapidez, a neve afinou
-
se e as nuvens se romperam, espalhando
-
se através
de faixas ao sol invemal, distante e gelidamente belo do fim da tarde.
Arnie rodou
em seu carro.
Ele despertou de seus pensamentos
—
agora sobre Repperton, que
talvez chegara a um final perfeitamente justificável
—
e ficou chocado ao
perceber que era quase seis e quinze, e escurecera. O Gino's Pizza
aproximava
-
se pela esquerda, com seus
pequenos trevos de néon verde
cintilando no escuro. Arnie manobrou para junto do meio
-
fio e saiu.
Começou a atravessar a rua, mas então percebeu que deixara as chaves de
Christine na ignição.
Inclinou
-
se para apanhá
-
las... e, subitamente, o cheiro o assal
tou, o
cheiro sobre o qual Leigh lhe falara, o mesmo que ele negara.
Estava ali agora, como se houvesse saído quando ele deixara o
carro
—
um cheiro forte de carne apodrecida, que levou água a seus olhos
e lhe fechou a garganta. Arrancou as chaves e recuou
, trêmulo, olhando
para Christine com algo semelhante a horror.
Havia um cheiro, Arnie. Um cheiro horrível de podre... Você sabe do que
estou falando.
Não, não faço a mínima idéia... está imaginando coisas, Leigh
Bem, se Leigh imaginava coisas, ele também.
Arnie se virou de repente e cruzou a rua até o Gino's, como se o
demônio o perseguisse.
Lá dentro, ele pediu uma pizza que realmente não queria, trocou
algumas moedas de vinte e cinco centavos por outras de dez e esgueirou
-
se para a cabine telefônica, ao
lado da vitrola automática. A vitrola tocava
uma barulhenta música do momento, que Arnie nunca ouvira antes.
Ligou primeiro para casa. Seu pai atendeu, em uma voz
estranhamente apática
—
Arnie nunca ouvira Michael falar daquele
jeito
—
, e sua inquietação
aumentou. Seu pai parecia o Sr. Slawson.
Aquela tarde e o começo de noite da quinta
-
feira começavam a ganhar
tons marrons de pesadelo. Além das paredes envidraçadas da cabine,
rostos estranhos passavam sonhadoramente à deriva, como balões soltos,
nos quais
alguém desenhara cruelmente rostos humanos. Deus
trabalhando com um lápis mágico.
Bostas,
pensou, desconexamente.
Todos uma cambada de bostas!
—
Olá, papai
—
disse vacilante.
—
Escute, eu... bem, acho que perdi
a noção do tempo. Sinto muito.
—
Está tudo b
em
—
respondeu Michael. Sua voz era quase um
zumbido e Arnie sentiu a própria inquietação aprofundar
-
se para algo
semelhante ao medo.
—
Onde está você, na garagem?
—
Não... bem, no Gino's. Gino's Pizza. Papai, você está bem? Parece
um tanto esquisito.
—
Es
tou ótimo
—
respondeu Michael.
—
Acabei de jogar seu jantar
no triturador de lixo, sua mãe está chorando lá em cima e você comendo
uma pizza. Estou ótimo. Aproveitando seu carro, Arnie?
A garganta de Arnie movimentou
-
se, mas não emitiu som algum.
—
Papai
—
conseguiu dizer finalmente.
—
Acho que não está sendo
muito justo.
—
Creio que não estou mais muito interessado no que você
considera justo ou não
—
disse Michael.
—
A princípio, talvez tivesse
alguma justificativa para o seu comportamento. No último mês,
entretanto,
você se tornou alguém que não compreendo em absoluto, e está
acontecendo algo que compreendo ainda menos. Sua mãe também não
compreende, mas percebe, e isso a tem magoado profundamente. Sei que
ela guarda para si mesma parte dessa mágoa, mas d
uvido que isso
modifique a intensidade do sofrimento.
—
Papai, eu apenas perdi a noção das horas!
—
exclamou Arnie.
—
Pare de fazer um drama de uma coisa tão insignificante!
—
Esteve rodando por aí?
—
Estive, mas...
—
Já percebi que então é isso que costum
a acontecer
—
disse
Michael.
—
Virá para casa esta noite?
—
Sim, vou mais cedo
—
disse Arnie. Passou a língua pelos
lábios.
—
Vou apenas dar uma passada na garagem, porque tenho uma
informação que Will me pediu para conseguir, quando estive em
Filadélfia e
...
—
Desculpe, mas também não estou muito interessado nisso
—
respondeu Michael, em voz ainda polida, ferinamente apática.
—
Oh
—
murmurou Arnie.
Estava muito assustado agora, quase tremendo.
—
Arnie?
—
Diga
—
sussurrou Arnie.
—
O que está acontecendo?
—
Não sei o que quer dizer.
—
Tenha dó! Aquele detetive foi procurar
-
me em meu gabinete.
Andou procurando Regina também. Deixou
-
a muito perturbada. Não
creio que tivesse tal intenção, mas...
—
O que foi dessa vez?
—
perguntou Arnie enfurecido.
—
Aquele
filho
da mãe, o que foi dessa vez? Eu vou...
—
Vai o quê?
—
Nada.
—
Arnie engoliu algo que tinha o sabor de um bolo de
poeira.
—
O que foi dessa vez?
—
Repperton
—
disse seu pai.
—
Repperton e aqueles outros dois
rapazes. O que pensava que fosse? A situação geo
política no Brasil?
—
O que aconteceu a Repperton foi um
acidente
—
disse Arnie.
—
Pelo amor de Deus, por que ele queria falar com você e mamãe, sobre uma
coisa que foi um
acidente?
—
Eu não sei.
—
Michael Cunningham fez uma pausa.
—
Você sabe?
—
Como iria
saber?
—
gritou Arnie.
—
Eu estava em Filadélfia,
como poderia saber de algo a respeito? Estava jogando xadrez, não... não...
não fazendo outra coisa
—
terminou ele, em tom queixoso.
—
Uma vez mais, Arnie
—
disse Michael Cunningham.
—
Está
acontecendo alg
uma coisa? Arnie pensou no cheiro, naquele fedor intenso
de podre. Leigh se sufocando, apertando a garganta,
ficando azulada. Ele lhe dera pancadas nas costas, porque é o que se
faz, quando alguém se engasga, não havia isso de Manobra Heimlich,
porque aind
a não tinha sido inventada e, por outro lado, era como deveria
terminar, só que não dentro do carro... na beira da estrada... em seus
braços... Ele fechou os olhos e o mundo inteiro pareceu agitar
-
se, girar
doentiamente.
—
Arnie?
—
Sim, está acontecendo al
go
—
disse ele, através dos dentes fechados,
sem abrir os olhos.
—
Nada mais do que um bando de pessoas me
pressionando, porque finalmente consegui algo para mim, e consegui
sozinho.
—
Muito bem
—
disse seu pai, aquela voz sem brilho de novo
recordando ter
rivelmente a do Sr. Slawson.
—
Estarei aqui, se quiser falar
sobre isso. Sempre estive, embora talvez não desse a entendê
-
lo tão
claramente como deveria. Não esqueça de beijar sua mãe quando voltar,
Arnie.
—
Claro, claro. Escute, pap...
Clique.
Arnie ficou
imóvel na cabine, ouvindo estupidamente o som do
nada absoluto. Seu pai desligara. Não houve nem mesmo o som para
discar, porque aquela era uma muda... fodida... cabine telefônica. Enfiou a
mão no bolso e espalhou as moedas sobre a pequena prateleira metá
lica,
onde poderia vê
-
las. Escolheu uma de dez centavos, quase a deixou cair e
por fim a introduziu na fenda. Sentia
-
se nauseado e com calor. Tinha a
sensação de que havia sido eficientemente repudiado.
Discou de cor o número de Leigh.
A Sra. Cabot atendeu
, reconhecendo sua voz imediatamente. Sua
agradável e um tanto
sexy
voz de venha
-
cá
-
seu
-
fascinante
-
estranho, em
seguida se tornou dura ao telefone. Aquela voz lhe dizia que ele tivera sua
última chance com
ela
e a deixara escapar.
—
Leigh não quer falar co
m você e nem vê
-
lo
—
disse ela.
—
Por favor, Sra. Cabot, se eu pudesse, ao menos...
—
Creio que já fez o suficiente
—
respondeu friamente a mãe de
Leigh.
—
Ela voltou para casa chorando, aquela noite, e tem chorado
desde então. Passou por uma espécie de...
experiência com você, da última
vez que saíram juntos, e só peço a Deus que não tenha sido o que imaginei.
Eu...
Arnie sentiu um riso histérico borbulhando dentro dele. Leigh quase
morrera sufocada com um hambúrguer... e sua mãe receava que ele
houvesse t
entado violentá
-
la.
—
Eu tenho que falar com ela, Sra. Cabot!
—
Será melhor desistir.
Arnie procurou imaginar algo mais para dizer, algum meio de
passar pelo dragão de guarda na entrada. Sentiu
-
se como um vendedor de
escovas e vassouras tentando entrar e f
alar com a dona da casa. Sua língua
não se moveu. Ele daria um péssimo vendedor. Logo ouviria aquele clique
brusco e depois o silêncio imperturbável novamente.
Então, percebeu que o telefone mudava de mãos. A Sra. Cabot disse
algo, em ríspido protesto, ao
que Leigh respondeu de volta; as palavras
eram demasiado baixas para que ele as captasse. Em seguida, a voz de
Leigh.
—
Arnie?
—
Oi
—
disse ele.
—
Leigh, eu só queria telefonar para dizer
-
lhe
quanto lamentei o...
—
Está bem
—
disse Leigh.
—
Acredito e acei
to suas desculpas,
Arnie. Só que não quero... não posso mais sair com você. A menos que as
coisas mudem.
—
Peça
-
me algo fácil
—
sussurrou ele.
—
É tudo quanto eu...
—
A voz dela ficou brusca, afastando
-
se
ligeiramente do telefone.
—
Por favor, mamãe, pare
de me dizer o que
devo fazer!
—
A mãe dela disse algo que demonstrou seu
descontentamento, houve uma pausa e novamente a voz de Leigh,
baixa.
—
É tudo quanto posso dizer Arnie. Por mais estranho que possa
parecer, continuo pensando que seu carro tentou me
matar aquela noite.
Não sei como isto poderia acontecer, mas por mais que pense no caso, não
consigo mudar de idéia. Sei que foi como digo. Você entende, não?
—
Desculpe falar assim, Leigh, mas nunca ouvi nada tão babaca.
Christine é um
carro!
Pode soletra
r isso? C
-
A
-
R
-
R
-
0,
carro! Não
é nada...
—
Sim
—
respondeu ela, a voz agora tremulando em direção às
lágrimas.
—
Esse carro o capturou, ela o pegou e acho que ninguém mais
pode libertá
-
lo, senão você mesmo.
As costas dele pareceram despertar subitamente e c
omeçaram a
latejar, enviando a dor em uma lancinante radiação que parecia ecoar e
amplificar
-
se em sua cabeça.
—
Não é verdade, Arnie?
Ele não respondeu, não podia responder.
—
Livre
-
se desse carro
—
disse Leigh.
—
Por favor. Li o que
aconteceu àquele Repp
erton, no jornal dessa manhã, e...
—
O que eu tenho a ver com aquilo?
—
perguntou Arnie, em uma
voz que parecia um grasnido. E, pela segunda vez:
—
Aquilo foi
um
acidente!
—
Não sei o que foi. Talvez eu não
queira saber.
Enfim, não é mais
conosco que estou
preocupada. É com
você,
Arnie. Receio por
você.
Devia...
não, você tem que se livrar desse carro.
Arnie sussurrou:
—
Diga apenas que não vai me deixar, Leigh.
Ok?
Agora, ela estava ainda mais perto das lágrimas
—
talvez até já
estivesse chorando.
—
Quero
que me prometa, Arnie. Tem que prometer e depois
cumprir. Então, nós... nós nos veremos. Prometa que vai se desfazer desse
carro. É tudo o que quero de você, nada mais.
Ele fechou os olhos e viu Leigh caminhando para casa, de volta da
escola. E, um quartei
rão abaixo, estava Christine, indolentemente, junto ao
meio
-
fio. Esperando por ela.
Abriu os olhos rapidamente, como se tivesse visto o demônio em
um quarto escuro.
—
Não posso fazer isso
—
respondeu.
—
Então parece que não temos muito a conversar, concord
a?
—
Não! Não, ainda temos muito que falar. Nós...
—
Adeus, Arnie. Vejo você na escola.
—
Espere, Leigh!
Clique.
E o mortal silêncio absoluto.
Um momento de fúria quase insana passou sobre ele. Teve um
súbito e incontido impulso de girar o fone negro pelo
fio, dando voltas e
mais voltas acima da cabeça, como o
laço
de um gaúcho, estilhaçando os
vidros da maldita câmara de tortura da cabine telefônica. Eles o
abandonavam, todos eles. Os ratos desertando do navio que naufragava.
Você precisa estar decidido a
ajudar
-
se, antes que alguém mais possa fazê
-
lo.
Mentira cretina! Eram ratos abandonando um navio que afundava.
Nenhum deles, desde o bosta do Slawon, com seus grossos óculos de aros de chifre
e seus esquisitos olhos de ovo cozido, àquele merda nojento do s
eu velho que estava
tão saturado de trepar que devia dar uma navalha à puta com quem se casara e
convidá
-
la a cortar fora a cona e àquela cadela barata em sua casa elegante com as
pernas cruzadas porque talvez estivesse menstruada e por isso se engasgara c
om o
maldito hambúrguer e àqueles bostas com seus malditos carros de luxo e os porta
-
malas cheios de tacos de golfe àqueles malditos funcionários que eu gostaria de
entortar neste torno mecânico eu jogaria golfe com eles e encontraria o buraco
certo para e
nfiar aquelas bolinhas brancas em você pode apostar seu traseiro nisto
mas quando eu der o fora daqui ninguém vai me dizer o que fazer e tudo será à
minha maneira minha minha minha minha minha MINHA...
Arnie caiu em si, repentinamente, assustado e de olhos
arregalados,
respirando com força. O que tinha acontecido com ele? Era como se
alguém mais estivesse ali naquele momento, alguém com uma raiva louca
da humanidade em geral.
Não apenas alguém mais. Era LeBay.
Não! Não é verdade, de maneira nenhuma!
A voz d
e Leigh:
Não é verdade, Arnie?
De súbito, algo muito semelhante a uma visão surgiu em sua mente
cansada e confusa. Estava ouvindo a voz de um sacerdote:
Arnie, aceita esta
mulher como sua..
Entretanto, não era em uma igreja; era um depósito de carros usado
s,
com vividas e multicoloridas flâmulas de plástico agitadas por uma brisa
persistente. Havia cadeiras de campanha dispostas no local. Era o
depósito de Will Darnell, e Will estava a seu lado, na condição de
padrinho. Não havia nenhuma garota a seu lado.
Christine estacionara
junto dele, cintilando em um sol de primavera, até mesmo seus flancos
brancos pareciam reluzir.
A voz de seu pai:
Está acontecendo alguma coisa?
A voz do pastor:
Quem entrega esta mulher a este homem?
Roland D. LeBay se levantou de um
a das cadeiras de campanha,
como o esqueleto da proa de um navio fantasma, vindo do Hades.
Sorria
—
e, pela primeira vez, Arnie viu quem estivera sentado ao lado
dele: Buddy Repperton, Richie Trelawney, "Penetra" Welch. Richie
Trelawney estava enegrecido e
estorricado, faltando
-
lhe a maior parte dos
cabelos. O sangue havia escorrido pelo queixo de Buddy Repperton e se
coagulara em sua camisa, como hediondo vômito. O pior, no entanto, era
"Penetra" Welch: fora estripado como uma sacola de lavanderia. Sorriam
.
Todos eles sorriam.
Eu, grasnou Roland D. LeBay. Sorriu, e uma língua, coberta do limo
da sepultura, pendeu do buraco fedorento de sua boca.
Eu a entrego, e ele
tem o recibo como prova. Ela é toda dele. A cadela é o ás de espadas... e é toda dele.
Arnie
percebeu que estava gemendo na cabine telefônica, com o
fone aferrado ao peito. Fazendo um tremendo esforço, conseguiu evadir
-
se por completo da alucinação
—
visão, fosse lá o que fosse
—
e dominou
-
se.
Desta vez, quando quis recolher as moedas da prateleir
a, deixou
metade delas cair ao chão. Enfiou dez centavos na fenda e folheou
apressadamente o catálogo telefônico, até encontrar o número do hospital.
Dennis. Dennis estaria lá, Dennis sempre estivera. Dennis não o
abandonaria. Dennis o ajudaria.
A moça da
mesa telefônica atendeu e ele pediu:
—
Quarto 42, por favor.
A ligação foi feita. O telefone começou a tocar. Tocou... e tocou... e
tocou. Quando ele já ia desistir, uma suave voz feminina perguntou:
—
Segundo andar, ala C, com quem deseja falar?
—
Guilder
—
disse Arnie.
—
Dennis Guilder.
—
O Sr. Guilder se encontra na Fisioterapia neste momento
—
informou a voz feminina.
—
Poderá falar com ele às oito horas.
Arnie pensou em dizer
-
lhe que era importante
—
muito
importante
—
mas, de repente, sentiu uma insup
ortável necessidade de
sair da cabine telefônica. A claustrofobia era como uma gigantesca mão
pressionando seu peito. Ele podia sentir o cheiro do próprio suor. Um
cheiro acre, amargo.
—
Senhor?
—
Tudo bem. Ligarei mais tarde
—
disse Arnie.
Desligou e quas
e pulou para fora da cabine, deixando suas moedas
espalhadas na prateleira e no chão. Algumas pessoas se viraram para
olhá
-
lo, pouco interessadas, depois voltando a atenção para o que comiam.
—
A pizza está pronta
—
disse o atendente do balcão.
Arnie olhou
para o relógio e viu que ficara quase vinte minutos na
cabine. Havia suor por todo o seu rosto. As axilas estavam como uma
selva. Tinha as pernas trêmulas
—
os músculos das coxas estavam a ponto
de deixá
-
lo cair ao chão.
Pagou a pizza, quase deixando a ca
rteira cair, quando enfiou nela os
três dólares de troco.
—
Tudo bem com você?
—
perguntou o atendente.
—
Parece um
pouco pálido.
—
Estou ótimo
—
disse Arnie.
Agora tinha a sensação de que ia vomitar. Pegou rapidamente a
pizza em sua caixa branca, com a pa
lavra GINO'S impressa no topo e
fugiu para a fria e cortante claridade da noite. As últimas nuvens tinham
desaparecido e as estrelas piscavam como diamantes lapidados. Ele parou
na calçada por um momento, primeiro contemplando as estrelas, depois
Christine
, estacionada no outro lado da rua, esperando fielmente.
Ela nunca discutiria nem se queixaria, pensou Arnie. Nunca faria
exigências. Pensou também que poderia entrar nela a qualquer hora e
repousar no estofamento macio, descansar em seu calor. Ela nunca s
e
recusaria. Ela... ela...
Ela o amava.
Sim, ele sentia que isso era verdade. Da mesma forma como, às
vezes, intuía que LeBay não a teria vendido a mais ninguém, fosse por
duzentos e cinqüenta ou dois mil dólares. Ela estivera lá, quieta,
aguardando o comp
rador certo. Um comprador que...
Um comprador que a amaria do jeito como ela era,
sussurrou a voz
interior.
Sim, era isso. Era exatamente isso.
Arnie ficou imóvel, com a pizza esquecida entre as mãos, uma
fumacinha branca levantando
-
se preguiçosamente da c
aixa gordurosa.
Olhou para Christine e foi envolvido por tal confuso turbilhão de emoções
que era como se houvesse um ciclone em seu corpo, reordenando tudo
que ele simplesmente não destruíra. Oh, ele a amava e odiava, odiava
-
a e
a acarinhava, necessitava
e precisava fugir dela. Ela era sua, ele era dela e
(Eu os declaro marido e mulher, juntos e unidos a partir deste dia, para
todo o sempre, até que a morte os separe)
contudo, pior era o horror, o terrível e paralisante horror, a
percepção de que... de que
...
(como foi que machucou as costas aquela noite, Arnie? Depois que
Repperton
—
o falecido Clarence "Buddy " Repperton
—
e seus cupinchas
acabaram com ela? Como foi que machucou as costas, para agora ter que usar esse
fedorento colete ortopédico o tempo t
odo? Como foi que machucou as costas?)
A resposta surgiu
—
e Arnie começou a correr, tentando deixar para
trás a revelação, chegar a Christine antes que visse a coisa nitidamente e
ficasse maluco.
Disparou para Christine, em uma corrida a pé, movida por su
as
confusas emoções e alguma terrível e recente conscientização; correu para
ela, como correria o viciado para sua droga, quando fica trêmulo e os
tremores pioram tanto, que não o deixam pensar em mais nada além do
alívio; correu, como correria o maldito p
ara a provação a ele destinada;
correu, como corre o noivo para onde a noiva o espera.
Correu, porque dentro de Christine nada daquelas coisas
importava
—
nem sua mãe, seu pai, Leigh, Dennis ou o que quer que ele
próprio houvesse feito com suas costas naqu
ela noite depois que todos
haviam saído, naquela noite em que retirara seu Plymouth do aeroporto,
quase inteiramente destruído, e o levara de volta à Garagem de Darnell
onde, já sem ninguém lá dentro, pusera a transmissão de Christine em
ponto morto e a em
purrara, empurrara
-
a, até que começasse a rodar sobre
os pneus murchos, empurrara
-
a, até que passasse pela porta e ele ouvisse
o vento de novembro sibilando rispidamente em torno das carcaças e
carros abandonados no ferro
-
velho, com seus vidros trincados e
tanques
de gasolina furados; empurrara
-
a, até o suor lhe escorrer em regatos, até o
coração disparar em seu peito como um cavalo fugitivo, até suas costas
clamarem por socorro; empurrara Christine, o coração bombeando como
se devido a algum infernal gasto
de combustível; empurrara
-
a e, no
interior do carro, o odômetro começara a girar lentamente em sentido
contrário, empurrara até uns quinze metros além da porta, até suas costas
começarem francamente a latejar, mas continuou empurrando até as
costas gritar
em em protesto, e empurrou ainda, forçando os músculos,
juntamente com os pneus vazios e dilacerados, as mãos ficando
entorpecidas e as costas gritando, gritando, gritando. E então...
Alcançou Christine e atirou
-
se dentro dela, tremendo e ofegando.
Sua piz
za caiu no chão. Apanhou
-
a e a colocou sobre o assento, agora
sentindo a calma que o invadia lentamente, como um bálsamo
tranqüilizante. Tocou a roda do volante, deixou as mãos deslizarem sobre
ele, traçando sua curva deliciosa. Tirou uma das luvas e apalp
ou o bolso,
em busca das chaves. As chaves de LeBay.
Ainda podia recordar o sucedido naquela noite, mas isso agora já
não lhe parecia tão terrível; agora, sentado ao volante de Christine, até
parecia maravilhoso.
Tinha sido um milagre.
Recordava como, de r
epente, ficara mais fácil empurrar o carro,
porque os pneus se inflavam como por magia, no ângulo perfeito, sem
uma só perfuração, inflando e inflando. Os vidros quebrados haviam
começado a recuperar
-
se do nada, entretecendo
-
se de baixo para cima,
com dimi
nutos sons rogaçantes e cristalinos. Os amassados começaram a
inflar
-
se e estufar, recuperando a forma antiga da lataria.
Arnie simplesmente empurrara o carro até ele ficar apto para rodar,
e então o dirigira, cruzando por entre as filas de carros velhos,
até o
odômetro recuar além do que Repperton e seus amigos haviam feito.
Então, Christine ficou ok.
O que podia haver nisso de tão terrível?
"Nada", disse uma voz.
Arnie olhou em torno. Roland D. LeBay estava sentado no banco do
passageiro, usando um terno
negro de frente trespassada, camisa branca e
gravata azul. Havia uma fileira de medalhas, pendendo em ângulo de
uma lapela do paletó
—
era o terno com que havia sido sepultado, Arnie
adivinhou isso, mesmo sem ter chegado a vê
-
lo realmente. Apenas, LeBay
pa
recia mais jovem e decidido. Um homem que não admitia brincadeiras.
—
Dê partida
—
disse LeBay.
—
Ligue o aquecimento e vamos
motorar.
—
Certo
—
disse Arnie, e girou a chave.
Christine começou a rodar, os pneus rangendo sobre a neve
acumulada. Naquela noit
e, ele dirigira o carro até quase todo o dano ter
sido reparado. Não, não reparado
—
negado.
Negado era a palavra certa
para o que havia ocorrido. Então, ele o recolocara no boxe vinte, deixando
o restante para ser feito manualmente.
—
Vamos ouvir um pouco
de música
—
disse a voz a seu lado.
Arnie ligou o rádio. Dion cantava "Donna, a Prima Donna".
—
Vai comer
essa pizza, ou não?
A voz parecia ter
-
se modificado ligeiramente.
—
Claro
—
respondeu Arnie.
—
Quer um pedaço? Um olhar de
soslaio:
—
Nunca digo não
a um pedaço de alguma coisa.
Arnie abriu a caixa da pizza com uma das mãos e tirou um pedaço.
—
Aqui est...
Ele arregalou os olhos. A fatia de pizza começou a tremer, com os
longos filetes de queijo pendendo, agitando
-
se como os de uma teia de
aranha, dila
cerada pelo vento.
Quem estava sentado ali não era mais LeBay. Era
ele.
Era Arnie Cunningham, por volta dos cinqüenta anos, não tão velho
quanto LeBay, naquele dia de agosto em que ele e Dennis o tinham
conhecido, não tão velho, mas caminhando para lá, ami
gos e vizinhos,
caminhando para lá. Seu eu mais idoso usava uma camiseta levemente
amarelecida e calças
jeans
sujas, manchadas de óleo. Os óculos eram de
chifre, unidos em uma das curvaturas por fita isolante. O cabelo era curto,
começando a recuar.
Os
olh
os cinzentos estavam foscos e injetados de
sangue. A boca mostrava todos os indícios de uma acre solidão. Porque
aquilo
—
aquela coisa, aparição, fosse lá o que fosse
—
era solitário. Arnie
podia senti
-
lo.
Solitário, exceto por Christine.
A versão dele pró
prio e de Roland D. LeBay poderia ter sido
traduzida como pai e filho: a semelhança era enorme.
—
Vai dirigir? Ou vai ficar olhando para mim?
—
perguntou a coisa.
De repente, a figura começou a envelhecer, diante dos olhos pasmos
de Arnie. Os cabelos cor d
e chumbo embranqueceram, a camiseta se
gastou e rasgou, o corpo sob ela encurvou
-
se com a idade. As rugas
percorreram a face, afundando
-
se como linhas cortadas pelo ácido. Os
olhos recuaram nas órbitas e as córneas amareleceram. Agora, somente o
nariz se p
rojetava para diante e aquele era o rosto de um velho corvo
carniceiro, mas continuava sendo o
seu
rosto, oh, sim, ainda o seu rosto.
—
Viu algo esquisito?
—
crocitou aquele sept... não, octogenário
Arnie Cunningham, enquanto seu corpo se torcia, enrugava
e
encarquilhava, no assento vermelho de Christine.
—
Viu algo esquisito?
Viu algo esquisito? Viu algo...
A voz se esganiçou e ganhou estridência, em um agudo ganido senil.
A pele se rompeu em úlceras e tumores de superfície, enquanto por trás
dos óculos ca
taratas leitosas cobriam os dois olhos, como anteparos sendo
puxados para baixo. A coisa se decompunha diante dos próprios olhos de
Arnie, desprendendo aquele mesmo cheiro que já sentira antes em
Christine, o mesmo que Leigh sentira, só que agora era pior,
era o cheiro
forte, estonteante, sufocante da decomposição em alta velocidade, o cheiro
de sua própria morte. Arnie começou a uivar como Little Richard no rádio,
cantando "Tutti Frutti", e agora os cabelos da coisa caíam em punhados de
fiapos alvos, as cl
avículas salientaram
-
se através da pele reluzente e
estirada, acima da frouxa gola redonda da camiseta, salientaram
-
se
através dela como grotescos lápis brancos. Os lábios encolhiam,
afastando
-
se dos últimos dentes remanescentes que jaziam em seu
caminho e
assemelhavam
-
se a lousas de sepulturas, aquilo era ele, aquilo
estava morto, no entanto, vivia
—
como Christine, aquilo vivia.
—
Viu algo esquisito?
—
balbuciou aquilo, de modo incoerente.
—
Viu
algo esquisito?
Arnie começou a gritar.
J
UNKINS
O
UTRA
V
EZ
Os
pára
-
lamas raspavam os postes da amurada,
Os caras a meu lado eram lívidos Fantasmas.
Um deles disse: "Diminua, eu vejo manchas,
E as linhas na estrada me parecem pontos. "
—
Charlie Ryan
Arnie chegou à Garagem de Darnell cerca de uma hora mais tarde.
Se
u carona
—
se realmente
houver
algum carona
—
há muito desaparecera.
O cheiro também se dissipara; sem dúvida, tinha sido apenas impressão.
Quando se anda muito tempo perto dos bostas, raciocinou ele,
tudo
começa a ter cheiro de merda. E isso os torna feli
zes, naturalmente.
Will estava sentado diante da escrivaninha, em seu gabinete
envidraçado, comendo um
hoagie.
*
Acenou com a mão gordurosa, porém
não saiu de lá. Arnie buzinou, depois estacionou.
Tudo tinha sido uma espécie de sonho. Nada mais simples. Al
guma
louca espécie de sonho. Telefonar para casa, telefonar para Leigh, tentar
*
Grande sanduíche com pão de crosta dura, cortado no sentido do comprimento
e
contendo várias espécies de carnes frias e também às vezes pimentão e tomate. (N.T.)
ligar para Dennis e ouvir aquela enfermeira informando que ele estava na
Fisioterapia
—
era como ser negado três vezes, antes de o galo cantar, ou
algo semelhante. Uma ligeira a
lucinação. E por que não, após toda a
maldita tempestade de provações que vinha atravessando desde agosto?
Afinal de contas, tudo consistia em uma questão de perspectiva, não?
Durante toda a vida, ele tinha sido uma coisa para as pessoas, mas agora
começav
a a sair da concha, transformava
-
se em um ser normal, com
preocupações normais e corriqueiras. Não era de admirar que as outras
pessoas se ressentissem com isso, porque quando alguém se modifica
(para o melhor ou para o pior, para riqueza ou para pobreza)
é natural que os demais se portem um pouco esquisitos quanto a
isso. A mudança lhes transtorna as perspectivas.
Leigh falara como se o julgasse louco e aquilo não passava de uma
idiotice da pior espécie. Ele estivera sob tensão, é claro, mas tensão era
uma
parte natural da vida. Se a Srta. Importante
-
Oh
-
Tão
-
Convencida
Leigh Cabot pensasse o contrário, estava caminhando diretamente para
uma trepada abismai, nas mãos do campeão permanente de violação que
é a Vida. Provavelmente, ela terminaria tomando Dexedri
na, para
começar a manhã com toda força e Nembutal ou Quaalude, para diminuir
a pressão à noite.
Oh, mas ele a desejava
—
ainda agora, pensando nela, sentia um
enorme, incontido e indizível desejo envolvê
-
lo como vento frio, fazendo
-
o apertar firmemente o
volante de Christine entre as mãos. Era um desejo
forte, grande e elementar demais para ter nome. Tinha sua própria força.
Não obstante, ele agora estava bem. Tinha a sensação de... haver
cruzado a última ponte, ou coisa assim.
Voltara a si, parado no meio
de uma estreita via de acesso, além do
mais distante extremo do pátio de estacionamento do Monroeville Mall
—
isto significando que se encontrava, aproximadamente, a meio caminho
para a Califórnia. Ao sair e espiar atrás do carro, tinha visto um buraco
fe
ito através de um banco de neve
—
e havia neve derretida espalhada
sobre o capô de Christine. Aparentemente, perdera o controle, começara a
derrapar através do pátio de estacionamento (o qual, embora com a
temporada natalina de compras estivesse em pleno m
ovimento,
permanecia misericordiosamente vazio naquela parte remota) e colidira
com o banco de neve. Era muita sorte não ter sofrido um acidente. Uma
bruta
sorte.
Ficou parado ali por um momento, ouvindo o rádio e olhando pelo
pára
-
brisa para a meia
-
lua qu
e flutuava acima. Bobby Helms estivera
cantando "Jingle Bell Rock", um som da temporada, como diziam os
disc
jockeys,
e ele sorrira um pouco, sentindo
-
se melhor. Não conseguia
recordar exatamente o que tinha visto (ou julgara ver) e, na verdade, nem
queria
. Fosse lá o que fosse, havia sido a primeira e última vez. Tinha
certeza disso. Os outros o deixavam irritado, imaginando coisas.
Provavelmente ficariam deliciados, se soubessem... só que não lhes daria
essa satisfação.
Tudo ia melhorar. Voltaria às boas
em casa
—
de fato, poderia
começar já nessa noite, vendo um pouco de TV com os pais, justo como
nos velhos tempos. E reconquistaria Leigh. Se ela não gostava do carro,
pouco importando quão estranhos fossem seus motivos, tudo bem. Talvez,
dentro em breve,
ele até comprasse outro carro e lhe diria que negociara
Christine. Poderia manter Christine ali, em estacionamento pago. O que
Leigh ignorasse, não a magoaria. E Will. No próximo fim de semana faria
a última viagem para Will. Aquela história já estava pass
ando dos limites,
podia perceber isso. Que Will o considerasse um covarde, se assim
quisesse. Uma acusação de crime por transporte interestadual de cigarros
e álcool sem licença não pareceria tão pesada em seu programa para
cursar uma faculdade, pareceria?
Uma acusação de crime
federal.
Não.
Não era tão fria assim.
Ele riu um pouco.
Sentia
-
se
melhor. Purgado. A caminho da garagem,
comeu a pizza, embora estivesse fria. Estava faminto. Achou curioso que
faltasse um pedaço da pizza
—
de fato, aquilo o deixou a
lgo inquieto
—
,
mas logo se acalmou. Sem dúvida, ele o comera durante aquele estranho
período em branco, talvez até o tivesse jogado fora pela janela. Poxa,
aquilo tinha sido esquisito! Agora, acabara
-
se toda essa merda. Ele tornou
a rir, um pouco menos tr
êmulo.
Na garagem, saiu do carro, bateu a porta e começou a caminhar para
o escritório de Will, a fim de informar
-
se sobre o que queria que ele fizesse,
aquela noite. De repente, ocorreu
-
lhe que o dia seguinte era o último em
que teria aulas, antes das fér
ias de Natal, o que lhe deu mais vivacidade ao
passo.
Foi quando se abriu a porta lateral da garagem, a que ficava ao lado
da maior, para entrada de carros, e surgiu um homem. Era Junkins. Outra
vez.
Viu Arnie olhando para ele e ergueu a mão.
—
Oi, Arnie.
Arnie olhou para Will. Através do vidro, Will deu de ombros e
continuou comendo seu sanduíche.
—
Olá
—
disse Arnie.
—
O que posso fazer pelo senhor?
—
Bem, eu não sei
—
respondeu Junkins. Sorriu e então seus olhos
deslizaram para além de Arnie, observando
Christine, avaliando,
procurando algum dano.
—
Quer fazer algo por mim?
—
Não quero fazer merda nenhuma
—
disse Arnie.
Podia sentir a cabeça começando a latejar de raiva novamente. Rudy
Junkins sorriu, aparentemente sem se ofender.
—
Só passei por aqui. Co
mo está?
Estendeu a mão. Arnie apenas olhou para ela. Sem ficar nem um
pouco constrangido, Junkins deixou a mão cair, caminhou até Christine e
recomeçou a examiná
-
la. Arnie o espiou, apertando tanto os lábios que
ficaram lívidos. Sentia um acesso de puro ó
dio, a cada vez que Junkins
tocava Christine com uma das mãos.
—
Ei, talvez devesse comprar um bilhete para a temporada ou coisa
parecida
—
disse Arnie.
—
Como para os jogos dos Steelers.
Junkins se virou e o fitou inquisitivamente.
—
Deixa pra lá
—
Arnie
falou carrancudo. Junkins prosseguiu com
seu exame.
—
Sabe
—
disse
—
, foi uma coisa infernalmente estranha o que
aconteceu com Buddy Repperton e com aqueles dois rapazes, não?
Foda
-
se,
pensou Arnie.
Não vou dar papo a esse bosta.
—
Estive em Filadélfia. Tor
neio de xadrez.
—
Eu sei
—
respondeu Junkins.
—
Céus!
Esteve realmente verificando o que eu. fazia!
Junkins tornou a caminhar até ele. Agora não havia sorriso em seus
lábios.
—
Exatamente
—
disse.
—
Andei checando seus movimentos. Três
dos rapazes que, seg
undo creio, estiveram envolvidos na destruição de
seu carro, agora estão mortos, juntamente com um quarto que,
aparentemente, apenas tomava parte no passeio da noite de terça
-
feira. É
muita coincidência. Grande demais para mim. Pode ter certeza de que o
es
tive checando.
Arnie olhou para ele, a surpresa suplantando a raiva, hesitante.
—
Pensei que tivesse sido um acidente... que eles tinham bebido
demais, estavam em alta velocidade e...
—
Houve outro carro envolvido
—
cortou Junkins.
—
Como é que sabe disso?
—
Em primeiro lugar, havia marcas de pneus na neve. Infelizmente,
o vento as tinha deformado o suficiente para que não pudéssemos ter uma
foto decente. Entretanto, uma das barreiras do Parque Estadual das
Squantic Hills foi quebrada e encontramos nela tra
ços de tinta vermelha.
O Camaro de Buddy não era vermelho. Era azul.
Junkins avaliou Arnie com os olhos.
—
Também encontramos traços de tinta vermelha engastados na
pele de "Penetra" Welch, Arnie. Pode explicar isso?
Engastados. Sabe
com
que força um carro
tem de atingir um sujeito para que
engaste tinta em sua
pele?
—
Pois eu acho que o senhor deveria ir lá para fora e começar a
contar carros vermelhos
—
replicou Arnie friamente.
—
Passaria de vinte,
antes de chegar a Bassin Drive, posso garantir.
—
Sem dú
vida
—
retrucou Junkins
—
, mas enviamos nossas
amostras ao laboratório do FBI, em Washington, onde possuem amostras
de cada tonalidade de tinta já usada em Detroit. Recebemos a resposta
hoje. Tem alguma idéia de qual seria? Quer adivinhar?
O coração de Arn
ie batia loucamente em seu peito, e nas têmporas
soavam batidas correspondentes.
—
Uma vez que veio até aqui, imagino que a tonalidade fosse
vermelho
-
outono. É a cor de Christine.
—
Acertou em cheio, rapaz. Merece um prêmio
—
disse Junkins.
Acendeu um ciga
rro e contemplou Arnie através da fumaça. Junkins
abandonara qualquer simulação de bom humor e seu olhar era frio.
Arnie levou as mãos à cabeça, em um exagerado gesto de cólera.
—
Vermelho
-
outono, e daí? Christine foi pintada por especificação
do comprador
, mas houve Fords de 1959 a 1963 pintados em vermelho
-
outono, bem como Thunderbirds. A Chevrolet ofereceu a mesma
tonalidade de 1962 a 1964 e, durante algum tempo, em meados dos anos
50, era possível conseguir
-
se um Rambler vermelho
-
outono. Há meio ano
ten
ho estado trabalhando em meu 58 e consegui livros sobre carros. Não
se pode fazer um trabalho de restauração sem esses livros, ou estamos
fodidos, antes mesmo do começo. Vermelho
-
outono era uma escolha
bastante popular. Eu sei disso
—
olhou fixamente para
Junkins
—
e o
senhor também. Não é?
Junkins nada disse. Limitou
-
se a ficar olhando para Arnie, daquela
maneira fixa, grave e inquietante. Ninguém jamais olhara assim para
Arnie, em toda a sua vida, mas ele identificou o olhar. Supôs que qualquer
um o ident
ificaria. Era um olhar de franca e forte suspeita. Deixou
-
o
assustado. Alguns meses antes
—
talvez até mesmo semanas
—
provavelmente ficaria apenas assustado, mas agora estava também
enfurecido.
—
Está realmente me impressionando. Afinal, que diabo tem con
tra
mim, Sr. Junkins? Por que não sai do meu traseiro?
Junkins riu e caminhou em largo semicírculo. O lugar estava
completamente vazio, exceto por eles dois e Will em seu escritório,
terminando o sanduíche, lambendo o azeite que lhe escorrera para as
mãos
e observando
-
os detidamente.
—
O que tenho contra você?
—
exclamou ele.
—
O que acha de
assassinato em primeiro grau, Arnie? Não acha um pouco forte?
Arnie ficou muito quieto.
—
Não se preocupe
—
disse Junkins, sem parar de andar.
—
Nada
de cenas de tira d
urão por aqui. Nada de ameaças sobre ir até a cidade,
exceto que, no caso presente, a cidade seria Harrisburg. Nada de ler
-
lhe os
seus direitos. Tudo ainda está ótimo para o nosso herói, Arnold
Cunningham.
—
Não compreendo nada do que está...
—
Você., comp
reende.. MUITO BEM!
—
Junkins
rugiu para ele. Havia
parado perto do gigantesco volume amarelo de um caminhão, outro dos
trabalhos de Johnny Pomberton, em andamento. Olhou fixamente para
Arnie.
—
Três dos rapazes que arrebentaram seu carro estão mortos. Em
ambas as cenas do crime, foram recolhidas amostras de tinta vermelho
-
outono, levando
-
nos a crer que o veículo usado pelo perpetrador nos dois
casos era, pelo menos em parte, pintado de vermelho
-
outono. E, poxa,
acontece apenas que o carro depredado por aqu
eles rapazes era quase
todo vermelho
-
outono! No entanto, você fica aí, empurrando os óculos
para cima do nariz e declara que não compreende o que estou falando.
—
Eu estava em Filadélfia, quando aquilo aconteceu
—
respondeu
Arnie, com calma.
—
Será que não
pensou nisso? Não pensou mesmo
nisso?
—
Filho
—
disse Junkins, jogando fora o cigarro.
—
Aí está a pior
parte da coisa. A parte que realmente fede.
—
Pois eu gostaria que o senhor fosse embora daqui, que me
prendesse ou fizesse alguma coisa. Porque tenho
de assinar o ponto e
trabalhar um pouco.
—
Por enquanto
—
disse Junkins
—
, tudo que posso fazer é falar. Da
primeira vez, quando Welch foi morto, presumia
-
se que você estivesse em
casa, dormindo.
—
Uma desculpa fraca, eu sei
—
disse Arnie.
—
Acredite, se
s
oubesse que esta merda ia me cair na cabeça, contrataria um amigo
doente para me fazer companhia.
—
Oh, não! A justificativa foi
boa
—
respondeu Junkins.
—
Seus pais
não tinham motivos para duvidar de sua história. Posso afirmá
-
lo, depois
que falei com ele
s. E álibis, os verdadeiros, em geral têm mais furos do
que um terno do Exército da Salvação. Quando começam a parecer
armaduras é que me deixam nervoso.
—
Meu Deus do céu!
—
exclamou Arnie, quase gritando.
—
Eu
estive em um maldito campeonato de
xadrez! J
á faz
quatro anos
que
pertenço ao clube de xadrez!
—
Até o dia de hoje
—
disse Junkins, e Arnie tornou a ficar imóvel.
Junkins assentiu.
—
Oh, sim, estive falando com o conselheiro do clube.
Herbert Slawson. Ele disse que você nunca perdeu uma reunião nos
primeiros três anos, inclusive esteve presente em uma dupla, mesmo com
um resfriado. Você era seu melhor jogador. Então, este ano, começou a
faltar desde o começo e...
—
Eu tinha que trabalhar em meu carro... e arranjei uma garota...
—
Ele me disse que voc
ê perdeu os primeiros três torneios e que
ficou muito surpreso ao ver seu nome na folha dos que viajariam para o
encontro dos Estados do Norte. Supunha que houvesse perdido qualquer
interesse pelo clube.
—
Já lhe disse...
—
Sim, você disse. Muito ocupado.
Carros e garotas, justamente as
duas coisas que mais ocupam o tempo dos rapazes. Entretanto, você
recuperou o interesse por tempo suficiente para ir a Fila... e então
abandonou o clube. Isto me soa muito estranho.
—
Não vejo nada de estranho nisso
—
replic
ou Arnie, mas sua voz
parecia distante, quase perdida no turbulento latejar do sangue em seus
ouvidos.
—
Tolice. É como se você soubesse o que estava para acontecer e se
protegesse com um álibi, incontestável.
O estrondo em sua cabeça agora parecia as bati
das firmes das ondas,
cada uma delas acompanhada por uma fosca pontada de dor. Estava
começando a ficar com dor de cabeça
—
por que aquele indivíduo
monstruoso, com seus perscrutadores olhos castanhos, não ia embora de
uma vez? Nada daquilo era verdade, na
da. Não precisava armar coisa
alguma, nenhum álibi, nada. Ficara tão surpreso como qualquer pessoa,
ao ler no jornal o que havia acontecido. É claro que ficara. Nada de
estranho estava acontecendo, a menos que fosse esta paranóia de lunático
e
(afinal, com
o foi que machucou suas costas, Arnie? E, por falar nisso, viu
algo esquisito? Viu)
fechou os olhos e, por um momento, o mundo pareceu cambalear
em sua órbita e ele viu aquele rosto esverdeado, sorridente e flutuando à
sua frente, dizendo:
Dê partida. Ligu
e a calefação e vamos motorar. E enquanto
estamos nisto, vamos pegar os bostas que arrebentaram nosso carro. Vamos untar
os Cabecinhas de pica, filho, o que me diz? Vamos dar neles com tanta força que o
retalhador de defuntos no hospital da cidade terá de
usar pinças para retirar os
fragmentos de tinta de suas carcaças. O que me diz? Encontre alguma música dos
velhos tempos no rádio e vamos rodar. Vamos...
Arnie tateou às suas costas, tocou Christine
—
sua dura, fria e
tranqüilizadora superfície
—
e as cois
as voltaram a encaixar
-
se no lugar.
Ele abriu os olhos.
—
De fato, existe mais um detalhe
—
falou Junkins
—
, porém muito
subjetivo. Nada que se pudesse colocar em um relatório. Você está
diferente desta vez, Arnie. Mais duro, de certa forma. Quase como se
tivesse envelhecido vinte anos.
Arnie riu e ficou aliviado ao ouvir seu riso soando com naturalidade
suficiente.
—
Acho que está com um parafuso frouxo, Sr. Junkins. Junkins não
se juntou a ele na risada.
—
Hum
-
hum. Eu sei disso. A coisa inteira está froux
a, mais frouxa
do que tudo que já investiguei, em meus dez anos de detetive. Da última
vez, pensei que poderia chegar até você, Arnie. Senti que você estava... Sei
lá! Parecia perdido, infeliz, olhando em tomo à procura de uma saída.
Agora não sinto mais n
ada disso. É quase como se estivesse falando com
uma pessoa inteiramente desconhecida. E uma pessoa não muito
agradável.
—
Já estou cheio de falar com o senhor
—
disse Arnie, e começou a
caminhar para o gabinete de Will.
—
Quero saber o que aconteceu
—
dis
se Junkins, atrás dele.
—
E
vou descobrir, pode acreditar!
—
Faça
-
me um favor e fique longe daqui
—
disse Arnie.
—
O senhor
está louco.
Entrou no escritório, fechou a porta e percebeu que suas mãos não
apresentavam o menor tremor. O aposento estava impregn
ado dos cheiros
de charuto, azeite e alho. Passou diante de Will sem falar, pegou seu
cartão de ponto no escaninho e o marcou no relógio:
ka
-
thud!
Então espiou
pela parte envidraçada da sala e viu Junkins parado lá fora, olhando para
Christine. Will nada d
isse. Arnie podia ouvir o ruidoso resfolegar da
respiração do homenzarrão. Uns dois minutos mais tarde, Junkins foi
embora.
—
Tira
—
disse Will, e deu um longo arroto, que soou como uma
serra de cadeia.
—
Certo.
—
Repperton?
—
Hum
-
hum. Ele acha que tive al
go a ver com aquilo.
—
Mesmo você estando em Fila? Arnie meneou a cabeça.
—
Ele parece nem se preocupar com o detalhe.
Então é um tira esperto,
pensou Will.
Sabe que os fatos estão errados, e
sua intuição lhe diz que há algo ainda mais errado do que isso.
Então, irá mais
fundo no assunto do que iria qualquer outro tira, mas poderá levar um milhão de
anos e nunca se aproximar da verdade.
Will recordou o carro vazio, rodando
sozinho para o boxe vinte, como um estranho brinquedo movido a corda.
A fenda vazia d
a ignição, girando para START. O motor acelerando por
uma vez, como um rosnado de aviso, para não morrer.
E
—
ao rememorar aquelas coisas, Will não se sentiu com confiança
suficiente para encarar Arnie, embora tivesse quase uma vida inteira de
experiências
nas mentiras de rotina.
—
Se os tiras estão de olho em você, não vou mandá
-
lo a Albany.
—
Pouco importa se você me mande ou não a Albany, mas não
precisa se preocupar com o cara. É o único tira que já me procurou e está
louco. Interessa
-
se apenas por dois
casos de atropelamento e fuga.
Os olhos de Will agora se fixaram nos de Arnie, cinzentos e distantes.
Os de Will mostravam uma desbotada falta de cor, as córneas eram
levemente amareladas: os olhos de um gato idoso, que já vira milhares de
camundongos est
ripados.
—
Ele está interessado em você
—
disse.
—
Será melhor eu mandar
Jimmy.
—
Você gosta da maneira como Jimmy dirige?
Will olhou para Arnie por um momento e depois suspirou.
—
Está bem
—
disse.
—
No entanto, se vir esse tira, caia fora. E se
for apanh
ado segurando uma sacola, Cunningham, é a sua sacola.
Entendeu bem?
—
Claro
—
respondeu Arnie.
—
Vai querer que eu faça algum
trabalho esta noite?
—
Há um Buick 77 no boxe quarenta e nove. Verifiquei o acionador
de arranque. Cheque o solenóide. Se tudo par
ecer bem, cheque isso
também.
Arnie assentiu e saiu. Os olhos atentos de Will desviaram
-
se dele,
não o viram caminhar para Christine. Sabia que não haveria problema,
quanto a enviá
-
lo a Albany aquele fim de semana. O garoto também sabia
disso e iria em fre
nte, de qualquer jeito. Tinha dito que faria o trabalho e,
por Deus, ele o faria mesmo. E se acontecesse alguma coisa o garoto se
viraria sozinho. Will tinha certeza disso. Já se fora o tempo em que Arnie
não suportaria a carga, mas esse tempo, agora, era
passado.
Will ouvira tudo pelo intercomunicador.
Junkins estava certo.
O garoto agora estava mais duro.
Will começou a olhar novamente para o 58 de Arnie. Arnie iria a
Nova Iorque no Chrysler de Will. E
—
enquanto ele estivesse ausente
—
Will vigiaria Chri
stine. Vigiaria Christine para ver o que acontecia.
A
RNIE EM
A
PUROS
Com assentos de Naugahyde separados
Dianteiros e traseiros,
Tudo cromado, cara, até o macaco,
Piso na gasosa e ela dispara
Waaaaahhhk...
Vou deixar você olhar,
Mas não toque em minha máqu
ina,
Feita de encomenda.
—
The Beach Boys
Na tarde seguinte, Rudolph Junkins e Rick Mercer, da divisão de
detetives da Polícia Estadual da Pensilvânia, tomavam café em um
sombrio e pequeno gabinete, onde a tinta das paredes descascava. No
exterior caía um
a mistura de chuva e neve.
—
Tenho certeza de que será neste fim de semana
—
disse
Junkins.
—
Nos últimos oito meses, aquele Chrysler tem rodado a cada
quatro ou cinco semanas.
—
Procure apenas compreender que agarrar Darnell e essa idéia fixa
em sua cacho
la sobre o garoto são duas coisas diferentes.
—
Pois para mim, são a mesma coisa
—
replicou Junkins.
—
O
garoto sabe de algo. Se o deixar assustado, posso descobrir o que seja.
—
Acha que ele teria algum cúmplice? Alguém que usou seu carro e
matou aqueles
rapazes, enquanto ele estava no torneio de xadrez?
Junkins abanou a cabeça.
—
Não, infelizmente. Ele só tem um amigo íntimo, que está
hospitalizado. Não sei o que pensar, exceto que o carro esteve envolvido...
e ele também.
Junkins largou sua xícara de plá
stico com o café e apontou para o
homem sentado do outro lado da mesa.
—
Assim que conseguirmos fechar aquela garagem, vou querer seis
técnicos do laboratório vasculhando tudo, de popa à proa, por dentro e
por fora. Vou querer aquele carro em um elevador,
sendo checado em
busca de amassados, mossas, pintura nova e... sangue. Eis aí o que
realmente quero, Rick. Apenas uma gota de sangue.
—
Você não vai muito com o garoto, hein?
—
comentou Rick.
Junkins deu uma risadinha desnorteante.
—
Sabe? Cheguei a gostar
dele, quando o vi pela primeira vez... Sim,
gostei dele e tive pena. Dava a impressão de querer proteger alguém que
lhe tivesse feito algo. Desta vez, no entanto, não gostei dele em absoluto.
Junkins ficou pensativo.
—
Também não gostei daquele carro. E d
a maneira como ele o toca,
sempre que eu o julgava encurralado. Era muito esquisito.
Rick respondeu:
—
Lembre
-
se apenas de que quem queremos agarrar é Darnell.
Ninguém em Harrisburg tem o menor interesse em seu garoto.
—
Eu me lembrarei
—
disse Junkins. To
rnou a pegar sua xícara e
olhou para Rick com ar grave.
—
Porque ele é um meio para chegar ao
meu objetivo.
—
Vou pegar quem matou aqueles rapazes, nem que seja a
última coisa que faça!
—
Talvez nem seja neste fim de semana
—
disse Rick. Mas foi.
Dois poli
ciais à paisana, do Esquadrão de Crimes do Estado da
Pensilvânia, permaneceram na cabine de uma
pickup
Datsun, de quatro
anos antes, na manhã do sábado, 16 de dezembro, vigiando quando o
Chrysler preto de Will Darnell passou pela grande porta da garagem e
ganhou a rua. Caía uma gelada chuvinha, mas não o bastante para nevar.
Era um daqueles dias nevoentos, quando é impossível apontar
-
se onde
terminam as nuvens mais baixas e começa a verdadeira neblina. O
Chrysler exibia adequadamente suas luzes de estaciona
mento. Arnie
Cunningham era um motorista seguro.
Um dos policiais levou um
walkie
-
talkie à
boca e falou
—
Ele acabou de sair no carro de Darnell
—
disse.
—
Vocês aí,
fiquem em seus calcanhares. Seguiram o Chrysler até a I
-
76. Quando
viram Arnie tomar a ram
pa leste, sinalizando para
Harrisburg, manobraram para a rampa oeste, na direção de Chio e
relataram o fato. Deixariam a I
-
76 pela faixa de saída e retomariam à sua
posição original, perto da Garagem de Darnell.
—
Ok
—
respondeu a voz de Junkins
—
, vamos f
azer uma omelete.
Vinte minutos mais tarde, quando Arnie rodava para leste a uma
velocidade tranqüila e legal de 80 quilômetros, três policiais, com a
papelada adequada em punho, bateram à porta de William Upshaw, que
morava no sofisticado e requintado su
búrbio de Sewickley. Upshaw
atendeu à porta em seu roupão de banho. De trás dele, chegaram os
gemidos do desenho animado das manhãs de sábado na TV.
—
Quem é, meu bem?
—
perguntou sua esposa, da cozinha.
Upshaw olhou para os papéis, documentos do Tribunal
de Justiça, e
teve a impressão de que ia desmaiar. Um deles determinava a apreensão
de todos os registros de impostos de Upshaw relacionados a Will Darnell
(pessoa física) e Will Darnell (pessoa jurídica). Os documentos tinham a
assinatura do procurador
-
ge
ral da Pensilvânia e de um juiz do Supremo
Tribunal.
—
Quem é, bem?
—
tornou a perguntar sua esposa.
Um filho de Upshaw veio espiar, de olhos arregalados. Upshaw
tentou falar, mas de sua boca saiu apenas um grasnido rouco. Acontecera.
Ele sonhara com aquil
o e, finalmente, acontecera. A casa em Sewickley
não o protegera disso; a mulher que ele mantinha a prudente distância, no
reinado da Prússia, não o protegera disso. Estava ali: podia lê
-
lo no rosto
liso daqueles tiras em seus ternos Anderson
-
Little, adqui
ridos em
liquidações. Pior do que tudo, um dos homens era agente federal
—
Álcool, Tabaco e Armas de Fogo. Este lhe exibiu uma segunda
identificação que o proclamava como agente de algo denominado Força
-
Tarefa Federal do Controle de Drogas.
—
Segundo nossa
s informações, o senhor mantém um escritório em
sua casa
—
disse o tira federal.
Aparentava
—
o quê? Vinte e seis? Trinta anos? Teria espremido os
miolos algum dia, tentando descobrir o que fazer, quando se tem três
filhos e uma esposa com gosto algo exage
rado por coisas finas? Bill
Upshaw duvidava muito. Quando se tem tais preocupações, o rosto não
fica tão liso. Um rosto só permanece assim quando podemos nos dar ao
luxo de nobres pensamentos: lei e ordem, certo e errado, bons e maus
sujeitos.
Abriu a boca
para responder ao tira federal, mas emitiu apenas
outro grasnido rouco.
—
A informação é correta?
—
perguntou pacientemente o federal.
—
Sim, é
—
crocitou Bill Upshaw.
—
E outro escritório no número 100 de Frankstown Road, em
Monroeville?
—
Sim.
—
Bem, o
que é?
—
perguntou Amber, e surgiu no corredor.
Ao ver os três homens de pé na entrada, ela fechou mais a gola do
roupão caseiro. Os desenhos animados retumbaram.
Upshaw pensou, de repente e com certo alívio: É
o fim de tudo.
O garoto que viera ver quem ch
egava para visitá
-
los tão cedo, em
uma manhã de sábado, de súbito prorrompeu em lágrimas e correu para a
segurança dos
Superamigos,
no Canal 4.
Quando Junkins recebeu a notícia de que Upshaw havia sido
intimado e apreendidos todos os documentos pertinente
s a Darnell, tanto
na residência dele como em seu escritório de Monroeville, partiu
chefiando meia dúzia de tiras no que, supunha, seria chamada uma
batida,
nos velhos tempos. Mesmo durante o temporada de férias, a garagem
mantinha uma moderada atividade n
o sábado (embora não se
transformasse, de modo algum, no lugar fervilhante dos fins de semana
do verão), de forma que, quando Junkins levou até a boca um alto
-
falante
movido a pilhas e começou a usá
-
lo, talvez umas vinte e quatro cabeças se
viraram para ve
r o que era. Vinte e quatro cabeças, que teriam motivos de
sobra para conversas a respeito, até o Ano
-
Novo.
—
Aqui é a Polícia Estadual da Pensilvânia!
—
anunciou Junkins, pelo
alto
-
falante.
As palavras ecoaram e reverberaram. Mesmo em tal momento, ele
per
cebeu que tinha os olhos fixos no Plymouth vermelho e branco,
estacionado vazio no boxe 20. Durante seu trabalho, já tocara em meia
dúzia de armas assassinas, algumas vezes no local do crime, porém mais
freqüentemente no banco das testemunhas, mas só olhar
para aquele carro
já lhe dava calafrios.
Gitney, o homem do Imposto de Renda que o acompanhava naquela
particular incursão, franziu a testa, incitando
-
o a prosseguir.
Nenhum de
vocês sabe o que isto significa. Nenhum de vocês.
Entretanto, tornou a erguer
o
alto
-
falante até a boca.
—
Esta firma está fechada! Eu repito, esta firma está fechada! Vocês podem
retirar seus veículos, se estiverem em condições de rodar... do contrário, por favor,
saiam daí, rápida e calmamente! Esta firma está fechada!
O alto
-
fala
nte emitiu um
clique
amplificado, ao ser desligado.
Junkins olhou para o escritório e viu que Will Darnell falava ao
telefone, com um charuto apagado na boca. Jimmy Sykes estava em pé
junto à máquina automática de Coca e seu rosto abobado era um retrato
de
confusa perplexidade
—
não parecia muito diferente do filho de Bill
Upshaw, no momento antes de se debulhar em lágrimas.
—
Entende os seus direitos, segundo acabei de ler?
O policial encarregado era Rick Mercer. Atrás dele, a garagem
estava vazia, exceto
por quatro tiras uniformizados que faziam o trabalho
burocrático a respeito dos carros apreendidos, quando a garagem fora
fechada.
—
Certo
—
disse Will.
Seu rosto estava composto; o único sinal de perturbação era a
respiração mais sibilante, a rápida subi
da e descida do peito enorme sob a
camisa branca de gola aberta: e a maneira como segurava constantemente
seu inalador em uma das mãos.
—
Tem algo a dizer
-
nos neste momento?
—
perguntou Mercer.
—
Não, até que meu advogado esteja aqui.
—
Seu advogado pode j
untar
-
se a nós em Harrisburg
—
disse
Junkins.
Will olhou iradamente para ele e nada disse. Lá fora, mais policiais
uniformizados tinham terminado de afixar selos em todas as portas e
janelas da garagem, exceto sobre a pequena porta lateral. Enquanto não
ce
ssasse o embargo, todas as entradas e saídas seriam efetuadas por ali.
—
Nunca ouvi falar em nada mais louco
—
disse Will Darnell, por
fim.
—
Vai ficar ainda mais louco
—
disse Marcer, sorrindo
sinceramente.
—
Você ficará fora de circulação por bastante te
mpo, Will.
Um dia, talvez seja incumbido de dirigir a oficina mecânica da prisão.
—
Sei quem é você
—
disse Will, olhando para ele.
—
Seu nome é
Mercer. Conheci bem seu pai. Foi o tira mais desonesto que já existiu no
Condado de King.
O sangue fugiu do ros
to de Rick Mercer e ele ergueu a mão.
—
Pare com isso, Rick
—
disse Junkins.
—
Tudo certo
—
disse Will.
—
Divirtam
-
se à vontade, caras. Façam
suas piadas sobre a oficina mecânica da prisão. Em duas semanas, estarei
aqui de novo, trabalhando. E se não sabem
disso, são ainda mais imbecis
do que parecem.
Olhou em torno, fitando
-
os com seus olhos inteligentes, sardônicos...
e encurralado. De repente, levou o inalador à boca e aspirou fundo.
—
Tirem este saco de merda daqui
—
disse Mercer. Ainda estava
pálido.
—
Você está bem?
—
perguntou Junkins.
Estavam sentados dentro de um Ford do Estado, com chapa fria,
uma hora mais tarde. O sol resolvera mostrar
-
se e brilhava de maneira
ofuscante, dissolvendo a neve e encharcando as ruas. A Garagem de
Darnell permanecia s
ilenciosa. Os registros da firma
—
e o Plymouth
restaurado de Cunningham
—
estavam seguramente encerrados lá dentro.
—
Aquilo que ele disse sobre meu pai...
—
disse Mercer, em voz
espessa.
—
Meu pai se matou, Rudy. Um tiro na cabeça. E eu sempre
pensei...
lá no colégio...
—
Ele deu de ombros.
—
Muitos tiras fazem isso.
Melvin Purvir fez também, você sabe. Foi ele quem pegou Dillinger. No
entanto, a gente se pergunta...
Mercer acendeu um cigarro e expulsou a fumaça para baixo, em um
longo e trêmulo jato.
—
E
le não sabia de nada
—
disse Junkins.
—
Uma ova, que não sabia
—
disse Mercer. Desceu o vidro de sua
janela e jogou o cigarro fora. Depois pegou o microfone sob o painel.
—
Central, aqui é Móbile Dois.
—
Dez
-
quatro, Móbile Dois.
—
O que está acontecendo co
m nosso pombo
-
correio?
—
Está na Interestadual 84, aproximando
-
se de Port Jervis.
Port Jervis era o ponto de cruzamento entre a Pensilvânia e Nova
Iorque.
—
Tudo pronto em Nova Iorque?
—
Afirmativo.
—
Diga a eles novamente que eu o quero a nordeste de Midd
letown,
antes de o pegarem, e que seu bilhete de pedágio seja apreendido como
evidência.
—
Dez
-
quatro.
Merter recolocou o microfone no lugar e sorriu de leve.
—
Assim que ele passar para Nova Iorque, nada no mundo
impedirá que isto seja um caso federal...
mas ainda faltam alguns retoques.
Não é uma beleza?
Junkins não respondeu. Não achava beleza nenhuma naquilo desde
Darnell, com seu inalador, ao pai de Mercer dando um tiro na cabeça.
Junkins experimentava uma estranha sensação de inevitabilidade, uma
impr
essão de que as coisas terríveis ainda não haviam terminado
—
estavam apenas começando a acontecer. Sentia
-
se a meio caminho através
de uma história sombria, cujo final talvez se revelasse demasiado terrível.
Exceto que precisava chegar àquele final agora,
não? Sem dúvida.
Persistia a horrenda sensação, a terrível imagem: da primeira vez
que falara com Arnie Cunningham, falava a um homem que se afogava, e
da segunda vez que falara com ele o afogado emergira
—
e Junkins falava
com um cadáver.
O céu encobert
o a oeste de Nova Iorque começava a clarear, e o
ânimo de Arnie ficou melhor. Era sempre bom afastar
-
se de Libertyville,
afastar
-
se de... de tudo. Nem mesmo o fato de saber sobre o contrabando
no porta
-
mala., era capaz de diminuir aquela euforia. E, pelo m
enos, não
havia drogas desta vez. Lá no fundo de sua mente
—
quase indistinguível,
mas estava lá
—
assentava
-
se a vaga especulação sobre como as coisas
seriam diferentes e como sua vida mudaria, se apenas se livrasse dos
cigarros e seguisse em frente. Se a
o menos pudesse deixar para trás aquela
deprimente embrulhada.
Só que, evidentemente, não faria nada disso. Claro que era
impossível abandonar Christine, depois de ter investido tanto nela.
Arnie ligou o rádio e cantarolou junto com uma melodia atual. O so
l,
enfraquecido por ser dezembro, mas ainda tentando ser rigoroso, libertou
-
se inteiramente das nuvens, e ele sorriu.
Ainda sorria quando o carro da Polícia Estadual de Nova Iorque
emparelhou com o dele, na faixa lateral, e o acompanhou. Do alto
-
falante
do
teto do carro começou a ecoar:
Aqui é para o Chrysler! Encoste, Chrysler!
Encoste, Chrysler!
Arnie olhou para o lado, o sorriso desaparecendo de seus lábios. Viu
os óculos escuros. Óculos de tira! O terror que se apoderou dele era mais
forte do que poderi
a imaginar, quanto a qualquer emoção
—
e não estava
aterrorizado por si mesmo. Sua boca ficou inteiramente seca. A mente
disparou a funcionar de maneira confusa. Viu
-
se pisando no acelerador e
voando dali, talvez o tivesse feito, se dirigisse Christine...
mas não estava
em seu carro. Viu Will Darnell avisando que, se fosse apanhado levando
um saco, o saco era
seu.
E, acima de tudo, viu Junkins, Junkins com
aqueles argutos olhos castanhos
—
e soube que aquilo era obra dele.
Desejou que Rudolph Junkins estive
sse morto.
—
Encoste, Chrysler! Não estou falando apenas para ouvir a minha voz!
Encoste imediatamente!
Não posso dizer nada, pensou Arnie,
incoerentemente, enquanto manobrava para o acostamento.
Seus colhões formigavam, o estômago se revolvia furiosamente
.
Podia ver os próprios olhos no retrovisor, aterrorizados por trás da
muralha dos óculos
—
aterrorizados, mas não por ele. Não por ele.
Christine. Arnie temia por Christine. O que eles poderiam fazer a
Christine.
Sua mente agoniada pelo pânico girou em um
caleidoscópio de
imagens superpostas. Formulários de solicitação para a universidade, com
o veredicto: REJEITADO
—
CONDENADO POR CRIME estampado sobre
eles. Grades de prisão, aço azulado. Um juiz inclinando
-
se de uma alta
bancada, o rosto branco e acusado
r. Chefões homossexuais em um pátio
de prisão, ansiosos por carne fresca. Christine seguindo no transportador,
até o compressor de carros, no ferro
-
velho atrás da garagem.
E então, quando freou o Chrysler e o estacionou, o carro da Polícia
Estadual parando
logo atrás dele (e mais outro, surgindo como por
mágica, parando à sua frente), do nada irrompeu um pensamento
impregnado de desalentado consolo:
Christine pode cuidar de si.
Houve outro pensamento, quando os tiras saíram e caminharam
para ele, um seguran
do na mão um mandado de busca. Este outro
também pareceu nascer de lugar nenhum, mas reverberou com os tons
ásperos de Roland D. LeBay, o som da voz de um velho:
E ela cuidará de você, rapaz. Tudo quanto tem afazer é continuar
acreditando nela e ela cuidar
á de você.
Arnie abriu a porta do carro e saiu, um momento antes que algum
dos tiras pudesse abri
-
la.
—
Arnold Richard Cunningham?
—
perguntou um dos tiras.
—
Sim, sou eu
—
respondeu Arnie, calmamente.
—
Estava indo
muito depressa?
—
Não, filho
—
disse out
ro tira
—
, mas vivemos em um mundo de
sofrimento e dá tudo no mesmo.
O primeiro tira deu um passo em frente, tão formal quanto um
oficial do Exército.
—
Tenho comigo um documento legal permitindo a revista deste
Chrysler Imperial 1966, em nome do povo do E
stado de Nova Iorque, da
Comunidade da Pensilvânia e dos Estados Unidos da América. Além
disso...
—
Bem, isso cobre inteiramente toda a maldita linha de frente, não é
mesmo?
—
disse Arnie. Suas costas latejavam dolorosamente e ele
comprimia o lugar com as
duas mãos. Os olhos do
policial arregalaram
-
se ligeiramente quando ele ouviu a voz idosa
saindo da boca daquele rapazinho, mas prosseguiu.
—
Além disso, tenho permissão para apreender qualquer
contrabando encontrado no decorrer desta revista, em nome do po
vo do
Estado de Nova Iorque, da Comunidade da Pensilvânia e dos Estados
Unidos da América.
—
Ótimo
—
disse Arnie.
Nada daquilo parecia real. Luzes azuis cintilaram em confusão.
Pessoas passando em seus carros se viravam para espiar, mas ele não
sentiu nenh
uma vontade de desviar
-
se, de esconder o rosto
—
e aquilo era
algo como que um alívio.
—
Dê
-
me as chaves, garoto
—
disse um dos tiras.
—
Por que você mesmo não as pega, seu bosta?
—
disse Arnie.
—
Não está se ajudando muito, garoto
—
disse o tira.
No entan
to, também ele o fitou com certa surpresa e um leve temor,
pelo mesmo motivo; por um instante, a voz do rapazinho parecera
quarenta anos mais velha, a voz de um sujeito muito mais duro, em nada
semelhante ao garoto magricela à sua frente.
O tira inclinou
-
s
e, pegou as chaves e três companheiros seus
encaminharam
-
se prontamente para o porta
-
mala.
Eles sabem,
pensou
Arnie, resignado. Enfim, aquilo nada tinha a ver com a obsessão de
Junkins, envolvendo
-
o com Buddy Repperton, "Penetra" Welch e os outros
(pelo me
nos, não diretamente, emendou com cautela). Aquilo dava a
impressão de uma operação bem planejada e bem coordenada contra o
contrabando de Will, desde Libertyville a Nova Iorque e Nova Inglaterra.
—
Garoto
—
disse um dos tiras
—
, gostaria de responder a al
gumas
perguntas ou prestar uma declaração? Se pretende, eu lerei agora os seus
direitos.
—
Não
—
replicou Arnie tranqüilo.
—
Não há nada a dizer.
—
A situação poderia ficar bem mais fácil para você.
—
Isto é coação
—
disse Arnie, sorrindo de leve.
—
Veja b
em o que
diz ou terminará fazendo um belo furo em sua própria ficha.
O tira ficou vermelho.
—
Se quer bancar o idiota, é com você.
O porta
-
mala do Chrysler foi aberto. Eles haviam tirado o pneu
sobressalente, o macaco e várias caixas de peças pequenas
—
pa
rafusos,
porcas, molas, coisas assim. Um dos tiras estava quase inteiramente
dentro do porta
-
mala, ficando para fora apenas suas pernas envoltas em
tecido cinza
-
azulado. Por um momento, Arnie esperou vagamente que
não encontrassem o compartimento secreto,
mas logo rejeitou a idéia
—
provinha apenas de sua parte infantil, a parte que agora desejava destruir,
porque ultimamente toda essa parte lhe causava sofrimento. Eles o
encontrariam. Quanto mais depressa o encontrassem, mais depressa
terminaria aquele imb
ecil espetáculo de beira de estrada.
Como se algum deus ouvisse seu desejo e decidisse concedê
-
lo
rapidamente, o tira no porta
-
mala exclamou, triunfante:
—
Cigarros!
—
Muito bem
—
disse o tira que havia lido o mandado de busca.
—
Feche o porta
-
mala.
—
Viro
u
-
se para Arnie e fez a leitura do aviso sobre
seus direitos.
—
Entendeu bem os seus direitos, conforme os li?
—
Entendi
—
disse Arnie.
—
Quer prestar algum esclarecimento?
—
Não.
—
Entre no carro, filho. Você está preso.
Estou preso,
pensou Arnie e quase
explodiu em uma gargalhada, de
tão tolo o pensamento. Aquilo era um sonho, do qual logo despertaria.
Preso.
Sendo encaminhado para um carro da Polícia Estadual. As pessoas
olhavam para ele...
Lágrimas desesperadas e infantis, salgadas e quentes, aninharam
-
se
em sua garganta e a fecharam.
O peito coçou
—
uma, duas vezes.
O tira que lera seus direitos tocou
-
lhe o ombro, e Arnie o encolheu,
com uma espécie de desespero. Sentiu que se pudesse mergulhar
profundamente e rapidamente dentro de si, ficaria
bem
—
mas
a
compreensão o deixava fora de si.
—
Não me toque!
—
Será como você quer, filho
—
disse o tira, afastando a mão. Abriu
a porta traseira do carro policial e convidou Arnie a entrar.
A gente chora em sonhos?
Claro que sim
—
ele já não lera sobre
pessoas de
spertando de sonhos tristes com lágrimas no rosto? Entretanto,
fosse ou não sonho o que sucedia agora, ele não ia chorar.
Em vez disso, pensaria em Christine. Não em sua mãe ou seu pai,
não em Leigh ou Will Darnell, não em Slawson
—
todos os miseráveis
bos
tas que o haviam traído.
Pensaria em Christine.
Arnie fechou os olhos e inclinou o rosto pálido, espectral, em
direção às mãos, assim permanecendo. E, como sempre, pensar em
Christine fazia tudo melhorar. Após um momento, conseguiu endireitar o
corpo, cont
emplar a paisagem que desfilava às margens da estrada e
refletir em sua situação.
Michael Cunningham recolocou lentamente o fone no gancho com
infinito cuidado
—
, como se menos cautela o fizesse explodir e ele,
Michael, fosse atirado para o alto, em seu e
stúdio no andar de cima,
crivado de fragmentos de granada negra.
Recostou
-
se à cadeira giratória atrás de sua mesa, sobre a qual
estavam sua máquina de escrever IBM
-
Corretora Selectric II, um cinzeiro
com os dizeres UNIVERSIDADE HORLICKS em azul e ouro, qu
ase
ilegíveis no fundo sujo, e o manuscrito de seu terceiro livro, um estudo
sobre os encouraçados
Monitor e Merrimac.
Estava no meio de uma página
quando o telefone tocara. Agora, apertando a alavanca de liberação do
lado direito da máquina de escrever, p
uxou a folha solta de sob o rolo,
observando clinicamente sua ligeira curvatura. Colocou
-
a sobre o
manuscrito, no momento pouco mais de uma selva de correções a lápis.
Lá fora, o vento gemia em torno da casa. A manhã cálida e nublada
dera lugar a uma frígi
da e límpida noite de dezembro. O degelo inicial
estacara de imediato e seu filho estava preso em Albany, acusado de
contrabando:
Não, Sr. Cunningham, não se trata de maconha, são duzentos
pacotes de cigarros Winston, sem selagem de impostos.
Do andar de b
aixo, ele podia ouvir o zumbido da máquina de
costura de Regina. Agora teria que se levantar, ir até a porta, abri
-
la,
caminhar corredor abaixo até a escada, descer os degraus, passar pela sala
de refeições e chegar à salinha cheia de plantas, outrora lava
nderia, mas
agora uma sala de costura e ficar parado enquanto Regina erguia os olhos
para ele (estaria usando seus óculos para vista cansada) e então anunciar:
Regina, Arnie foi preso pela Polícia Estadual de Nova Iorque.
Michael tentou iniciar o processo,
levantando
-
se da cadeira, mas
esta pareceu senti
-
lo temporariamente fora de guarda. Girou e inclinou
-
se
muito para trás sobre seus rodízios, no mesmo instante, e Michael
precisou aferrar
-
se à borda da mesa para não cair. Tornou a deslizar
pesadamente para
a cadeira, o coração batendo com dolorosa rapidez em
seu peito.
De repente, foi envolvido por tão complexa onda de desespero e
pesar que gemeu em voz alta e agarrou a testa comprimindo as têmporas.
Os antigos pensamentos retornaram, tão previsíveis como o
s mosquitos
de verão, e também tão enlouquecidos. Seis meses antes, tudo estava bem.
Agora, seu filho estava na cela de uma prisão, em algum lugar. Quais
teriam sido os momentos da ruptura? Como poderia ele, Michael, ter
mudado as coisas? E, exatamente, qu
al a história dessas coisas? Onde a
enfermidade começara a penetrar?
—
Meu Deus...
Comprimiu mais forte, ouvindo o gemido do inverno fora de suas
janelas. Ele e Arnie haviam colocado as janelas extras para inverno, ainda
no mês anterior. Havia sido um bom
dia, não? Primeiro, Arnie segurando
a escada e olhando para cima; depois que descera, Arnie subira, e ele
ficara gritando para o filho tomar cuidado, com o vento agitando seus
cabelos e as folhas mortas, acastanhadas, atiradas em seus sapatos
desbotados. C
erto, tinha sido um bom dia. Mesmo depois da chegada
daquele carro infernal, parecendo ensombrecer tudo na vida do filho,
como uma moléstia fatal, houve bons dias. Não houve?
—
Meu Deus...
—
repetiu, em uma voz fraca e lacrimosa, que
desprezou.
Imagens esp
ontâneas surgiram em seus olhos. Colegas observando
-
o de soslaio, talvez sussurrando no clube da faculdade. Discussões em
coquetéis, com seu nome agitado inquietamente, subindo e descendo,
como um corpo afogado. Arnie só faria dezoito anos dentro de dois m
eses
e, supunha, não poderia ter o nome impresso nos jornais, mas todos
acabariam sabendo. A notícia se espalharia.
De repente loucamente, viu Arnie aos quatro anos, encarapitado em
um triciclo vermelho, adquirido por ele e Regina em um bazar de caridade
(
aos quatro anos, Arnie os chamava "Babá de calidade da mamãe"). A tinta
vermelha do triciclo era pontilhada de escamas de ferrugem, as rodas
estavam com as borrachas gastas, mas Arnie o adorara e, se pudesse, até o
teria levado para a cama. Michael fechou
os olhos e o viu andando no
triciclo, subindo e descendo a calçada, em seu macacão de sarja azul, o
cabelo caindo nos olhos. Então, seu olho mental pestanejou, vacilou ou fez
qualquer coisa, e o enferrujado triciclo do bazar de caridade era Christine,
a ti
nta vermelha cheia de ferrugem, os vidros das janelas branco
-
leitosos
pela idade.
Ele rangeu os dentes. Alguém que o observasse poderia pensar que
estava sorrindo loucamente. Esperou até controlar
-
se um pouco e então se
levantou e desceu para o andar térre
o, a fim de contar o sucedido a Regina.
Ele lhe contaria, e ela refletiria no que deviam fazer, como sempre
acontecera. Regina lhe roubaria a iniciativa, com isto roubando qualquer
bálsamo que, atualmente,
fazer
as coisas proporcionava, deixando
-
o
apenas c
om um doentio pesar e a certeza de que, agora, seu filho era
alguém importante.
A
C
HEGADA DA
T
EMPESTADE
Ela pegou as chaves de meu Cadillac,
Saltou para o meu gatinho e o levou para longe.
—
Bob Seger
Naquele inverno, a primeira das grandes tempestades d
o nordeste
chegou a Libertyville na véspera do Natal, abrindo caminho através do
terço superior dos E.U.A. e deixando para trás uma ampla e facilmente
previsível trilha da tormenta. O dia começou com um sol brilhante, a
temperatura a dois graus centígrados
, mas os locutores matinais já haviam
previsto alegremente sombras e tristezas, apressando os que ainda não
haviam encerrado as compras de última hora a aproveitarem até o meio
da tarde. Os que planejavam viagens ao velho lar, para um Natal à moda
antiga,
eram aconselhados a um novo planejamento, caso a viagem não
fosse feita em quatro a seis horas.
—
Se vocês não pretendem passar o Dia de Natal na faixa de
acostamento da I
-
76, em algum ponto entre Bedford e Carlisle, fariam
melhor saindo de casa bem cedo o
u não saindo, em absoluto
—
aconselhou o locutor da FM
-
104 a seus ouvintes (uma boa parte dos quais
estava demasiado embriagada, para chegar a pensar em ir a qualquer
lugar), e então reiniciou o Programa de Natal, com
"Santa Claus is Corning
to Town",
na v
ersão de Springsteen.
Por volta de 11 da manhã, quando Dennis Guilder finalmente
deixou o Hospital Comunitário de Libertyville (segundo as normas
hospitalares, ele só teria permissão de usar as muletas quando realmente
fora do prédio; até então, teria que
ser empurrado em uma cadeira de
rodas por Elaine), o céu começara a espumar de nuvens e havia um feérico,
fantasmagórico anel em torno do sol. Dennis atravessou cautelosamente o
pátio de estacionamento em suas muletas, o pai e a mãe amparando
-
o de
cada lad
o, nervosos, a despeito de o pátio haver sido escrupulosamente
limpo do menor traço de neve e gelo. Fez uma pausa ao lado do carro da
família e ergueu ligeiramente o rosto, na brisa refrescante. Estar fora do
hospital era como uma ressurreição. Dennis acha
va que poderia ficar ali
por horas e ainda não se dar por satisfeito.
Era aproximadamente uma daquela tarde quando a camioneta da
família Cunningham chegou aos arredores de Ligonier, cento e quarenta e
quatro quilômetros a leste de Libertyville. A esta al
tura, o céu adquirira
um tom uniforme e sugestivo cinza
-
ardósia e a temperatura caíra seis
graus.
Havia sido idéia de Arnie que eles não cancelassem a tradicional
visita de véspera do Natal a tia Vickey e tio Steve, respectivamente, irmã e
cunhado de Regin
a. As duas famílias haviam criado um pouco o informal
ritual de revezamento no correr dos anos, com Vicky e Steve indo à casa
dos Cunningham em alguns anos e os Cunningham indo a Ligonier em
outros. A viagem deste ano fora combinada em inícios de dezembro.
Havia sido cancelada após o que Regina teimosamente chamava "o
problema de Arnie", mas no início da semana anterior Arnie começara a
insistir incessantemente sobre a viagem.
Por fim, após uma longa conversa telefônica com sua irmã na
quarta
-
feira, Regina
concordara com a vontade de Arnie
—
em especial
porque Vicky parecera calma e compreensiva, sem a menor curiosidade
sobre o que tinha acontecido. Aquilo era importante para Regina, mais
importante, talvez, do que ela consentisse em admitir. Nos últimos oit
o
dias, desde que Arnie havia sido preso em Nova Iorque, ela tivera que
enfrentar um fluxo aparentemente interminável de mórbida curiosidade,
mascarada como simpatia. Conversando com Vicky ao telefone, ela
finalmente se descontrolara e havia chorado. Tinha
sido a primeira e única
vez, desde a prisão de Arnie, que ela se entregava a tão amargo luxo.
Arnie estava na cama, dormindo. Michael, que vinha bebendo demais e,
como pretexto, apelava para o "espírito da
época",
tinha ido ao O'Malley's
para uma ou duas
cervejas com Paul Strickland, outro rejeitado de fábrica,
no jogo político da faculdade. Provavelmente, aquilo terminaria chegando
a seis cervejas, talvez umas oito ou dez. E se mais tarde ela fosse ao
estúdio no andar de cima, iria encontrá
-
lo ereto em su
a cadeira atrás da
mesa, olhando o escuro, com os olhos secos, mas injetados de sangue. Se
tentasse falar com ele, a conversa de Michael seria terrivelmente confusa,
centralizando
-
se demais no passado. Ela supunha que o marido vinha
tendo um muito brando c
olapso mental. Não permitiria a si mesma luxo
idêntico (algo em que já pensara, em seu furioso e sofrido estado
emocional) e, todas as noites, sua mente martelava a arquitetar planos e
esquemas, até as três ou quatro da madrugada. Todos aqueles esquemas e
pensamentos orientavam
-
se em uma direção: "Superamos isto". As duas
únicas opções que permitia à sua mente eram deliberadamente vagas.
Regina pensava no "problema de Arnie" e em "Superarmos isto".
Entretanto, ao falar com a irmã por telefone, dias após a p
risão do
filho, seu férreo controle fraquejara brevemente. Ela chorava no ombro de
Vicky, pelo interurbano, e a irmã a confortara com naturalidade, fazendo
-
a odiar
-
se por todas as suas alfinetadas baratas contra ela, no correr dos
anos. Vicky, cuja única f
ilha largara os estudos antes de terminar o ginásio,
para casar e ser dona de casa, cujo filho único se contentara com uma
escola técnica profissionalizante (jamais uma coisa semelhante para o
seu
filho!
—
pensara Regina, com secreto júbilo); Vicky, cujo m
arido vendia...
seguros de vida, entre tantas outras coisas estranhas. E Vicky (Oh,
também tão esquisito!) vendia cerâmica e louça. No entanto, havia sido
para Vicky que tivera coragem de chorar, com Vicky é que expressara,
pelo menos em parte, sua tortura
da desilusão, sua mágoa e seu terror; sim,
e também o terrível
constrangimento, ao
saber que os outros comentavam e
que, durante anos, eles haviam desejado vê
-
la entregar os pontos
—
e
agora estavam satisfeitos. Havia sido Vicky, talvez sempre houvesse sid
o
Vicky. Regina decidiu então que, se afinal haveria um Natal para eles,
naquele ano infeliz, seria na casa de Vicky e Steve, uma residência
suburbana e comum, em estilo de rancho, no alegre subúrbio classe média
de Ligonier, onde a maioria das pessoas ain
da possuía carros americanos
e chamava de "comer fora" uma ida ao McDonad's.
Mike, é claro, concordaria sem discutir com sua decisão. Ela não
esperava e nem suportava mais do que isso.
Para Regina Cunningham, os três dias seguintes à notícia de que
Arnie e
stava "em apuros" haviam sido um exercício permanente para
manter o controle, uma longa luta pela sobrevivência. Sua sobrevivência, a
sobrevivência da família, sobrevivência de Arnie
—
ele podia não
acreditar nisso, mas ela descobrira que não tinha tempo p
ara preocupar
-
se.
O sofrimento de Mike jamais entrara em suas equações; o pensamento de
que um poderia confortar o outro, jamais lhe passara pela mente, nem
como especulação. Regina cobriu calmamente a máquina de costura, após
Mike ter descido para comunic
ar o ocorrido. Fez isso e, em seguida, foi ao
telefone, começando a agir. As lágrimas que mais tarde derramaria,
conversando com a irmã, ainda estavam a mil anos de distância. Passara
ao lado de Michael como se ele fosse uma peça do mobiliário. Ele a
segui
ra em passo incerto, como havia feito durante todos os anos de seu
casamento.
Regina telefonou para Tom Sprague, advogado da família. Ao saber
que o problema era criminal, Sprague prontamente indicou
-
lhe um colega,
Jim Warberg. Ela ligou para Warberg e foi
atendida por um serviço de
recados telefônicos, que não revelaria o número da residência do
advogado. Regina ficou junto ao telefone por um instante, tamborilando
os dedos levemente contra os lábios, e depois tornou a ligar para o
advogado da família. Spr
ague não queria fornecer o número do colega,
mas acabou cedendo. Quando Regina finalmente desligou, Sprague
sentiu
-
se zonzo, quase chocado. Ela geralmente causava tal reação,
quando crivava o interlocutor de perguntas.
Telefonou para Warberg e este respond
eu que não podia cuidar do
caso, em absoluto. Regina baixou novamente sua lâmina de
bulldozer.
No
fim, além de aceitar o caso, Warberg terminou concordando em partir
imediatamente para Albany, onde Arnie permanecia detido, a fim de ver o
que se podia fazer
. Falando com a voz franca e espantada do homem que
se encheu de Novocaína e depois foi atropelado por um trator, o
advogado informou conhecer um profissional perfeitamente à altura em
Albany, capaz de resolver tudo. Regina foi inflexível. Warberg partiu p
ara
lá, em um avião particular, e deu notícias quatro horas mais tarde.
Comunicou que Arnie estava sendo mantido em Albany por uma
acusação em aberto. Seria extraditado para a Pensilvânia no dia seguinte.
A ação policial havia sido coordenada pela Pensilvâ
nia e por Nova Iorque,
juntamente com três agências federais: a Força
-
Tarefa Federal do Controle
de Drogas, a Divisão do Imposto de Renda e o Departamento do Álcool,
Tabaco e Armas de Fogo. O alvo principal não era Arnie, peixinho miúdo,
mas Will Darnell e
quem quer mais com quem Darnell estivesse
negociando. Tais indivíduos, segundo informou Warberg, com seus
suspeitos laços de envolvimento com o crime organizado e o
desorganizado contrabando de drogas no novo Sul, eram os peixes
graúdos.
—
É ilegal deter
alguém por uma acusação em aberto!
—
replicara
Regina prontamente, valendo
-
se de profusa reserva de informações
fornecida pelos programas criminais de TV.
Warberg não se sentia precisamente eufórico por estar onde se
encontrava, já que havia planejado uma
noite tranqüila no lar, lendo um
livro. Replicou bruscamente:
—
Em seu lugar, eu estaria de joelhos, agradecendo a Deus pelo que
eles estão fazendo! O garoto foi apanhado com a mala do carro entulhada
de cigarros sem selagem e, se eu os pressionar muito, f
icarão felizes em
acusá
-
lo, Sra. Cunningham. Se quer um conselho, a senhora e seu marido
devem ir a Albany. Rapidamente.
—
Se não me engano, disse que ele seria extraditado amanhã...
—
Oh, sim, ficou tudo arranjado. Se vamos jogar duro com esses
sujeitos,
devemos nos dar por satisfeitos se o jogo for aqui, em nosso
Tribunal. No caso presente, extradição não é problema.
—
O que é então?
—
Aquela gente quer brincar de derrubar todas as peças do dominó.
Eles querem jogar seu filho contra Will Darnell. Arnold n
ão está falando.
Quero que os dois sigam para lá, e o convençam de que falar só irá
beneficiá
-
lo.
—
Irá mesmo?
—
perguntou ela, hesitante.
—
Diabo, é claro!
—
vociferou Warberg, ao telefone.
—
Eles não
querem botar seu filho na cadeia. Arnold é menor, filh
o de uma família de
bem, sem qualquer ficha criminal anterior, nem mesmo um registro
escolar de problemas disciplinares. Ele pode sair disto sem nem mesmo
enfrentar um juiz. No entanto, vai ter que falar.
Assim, eles partiram para Albany. Regina foi conduz
ida por um
curto e estreito corredor de ladrilhos brancos, iluminado por fortes
lâmpadas enfiadas em pequenas cavidades no teto e cobertas por uma
grade de arame. O lugar cheirava vagamente a Lysol e urina. Regina
procurou convencer
-
se de que seu
filho
est
ava preso ali, seu
filho, mas
admitir isso foi bastante difícil. Aquilo não parecia real. Tinha muito mais
semelhança com uma possível alucinação.
Quando viu Arnie, tal possibilidade desapareceu rapidamente.. O
anteparo protetor contra choques também desap
areceu e ela sentiu um
medo frio e avassalador. Foi nesse momento que primeiro agarrou
-
se à
idéia de "Superarmos isto", da mesma maneira como um afogado se aferra
ao salva
-
vidas. Aquele era Arnie, era o seu filho, não em uma cela de
prisão (foi a única coi
sa que a pouparam de ver, mas ela ficava grata por,
inclusive, favores insignificantes), porém em um pequeno aposento
quadrangular, cujo único mobiliário eram duas cadeiras e uma mesa
marcada por queimaduras de cigarros.
Arnie a encarara fixamente e seu ro
sto parecia terrivelmente lívido,
tinha uma aparência de caveira. Ele tinha ido ao barbeiro apenas uma
semana antes e cortara o cabelo surpreendentemente curto (após anos,
usando
-
o comprido imitando Dennis), mas agora a luz do teto brilhava
com crueza sobr
e o que sobrara, fazendo
-
o parecer momentaneamente
calvo, como se lhe tivessem raspado a cabeça para abrir
-
lhe a boca.
—
Arnie!
—
disse Regina, e caminhou para ele.
Chegou até meio caminho. Arnie desviou os olhos, comprimindo os
lábios, e ela parou. Uma mu
lher mais fraca ter
-
se
-
ia desfeito em lágrimas,
porém Regina era de outra cepa. Deixou que a frieza voltasse, que a
envolvesse novamente. Frieza era tudo o que poderia ajudar agora.
Em vez de abraçá
-
lo
—
evidentemente algo que Arnie não
desejava
—
, sentou
-
se e disse a ele o que tinha de ser feito. Arnie recusou
-
se. Regina lhe ordenou que abrisse o bico com a polícia. Ele tornou a
recusar. Ela argumentou. Arnie recusou
-
se. Ela fez um discurso
bombástico. Ele se recusou. Ela suplicou. Ele se recusou. Finalmen
te, ela se
limitou a ficar ali sentada apática, com uma dor de cabeça latejando nas
têmporas. Perguntou a ele por que preferia ficar calado. Arnie recusou
-
se
a explicar.
—
Pensei que você fosse esperto!
—
bradou ela, finalmente. Estava
quase louca de frust
ração. O que odiava, acima de tudo, era não conseguir
o que queria, quando sentia uma necessidade absoluta de ter a vontade
satisfeita,
precisava
tê
-
la. De fato, tal coisa nunca lhe acontecera, desde que
saíra de casa. Até o momento presente. Era insultant
e ser derrotada tão
calma e despreocupadamente por aquele menino que, um dia, mamara
em seus seios.
—
Pensei que você fosse esperto, mas vejo que é um burro!
Você... seu idiota! Eles o porão em uma cela! Quer ir para cadeia, no lugar
desse Darnell? É isto
o que deseja? Ele rirá de você.
Rirá
de você!
Regina não podia imaginar nada pior, e o aparente desinteresse do
filho quanto a alguém rir ou não dele a deixou ainda mais enfurecida.
Levantou
-
se da cadeira e afastou os cabelos de sobre a testa e os olhos, n
o
gesto inconsciente da pessoa se dispondo a lutar. Respirava rapidamente e
tinha o rosto corado. Para Arnie, ela tanto pareceu mais jovem quanto
mais velha como jamais a vira.
—
Não estou fazendo isso por Darnell
—
disse ele tranqüilo
—
e
também não vou p
ara a prisão.
—
Quem é você, Oliver Wendell Holmes?
—
replicou ela,
ferozmente, embora houvesse certa dose de alívio em sua fúria. Pelo
menos, Arnie dizia
algo.
—
Eles o pegaram com o carro dele, lotado de
cigarros no porta
-
mala! Cigarros ilegais!
Arnie re
spondeu, com a mesma tranqüilidade:
—
Os cigarros não estavam no porta
-
mala. Estavam em um
compartimento debaixo do porta
-
mala. Um compartimento secreto. E
aquele era o carro de Will. Will me disse que pegasse seu carro.
Regina olhou para ele.
—
Está dizen
do que não sabia da existência dos cigarros?
Arnie a fitou com uma expressão que, simplesmente, ela não
conseguia aceitar, tão estranha nele a achou. Era desprezo, desacato. Bom
como ouro o meu menino, bom como ouro,
pensou ela, alucinadamente.
—
Eu sabia
e Will também, mas eles têm que provar, não têm? Ela
conseguiu apenas fitá
-
lo, admirada.
—
Se eles me acusarem disso, de algum modo
—
disse Arnie
—
minha sentença será suspensa.
—
Arnie!
—
exclamou ela, por fim.
—
Você não está raciocinando
direito. Talvez
seu pai...
—
Meu raciocínio está perfeito
—
cortou Arnie.
—
Não sei o que
você está fazendo, mas estou raciocinando direito.
Ao falar, Arnie a encarou, e seus olhos cinzentos eram tão
horrivelmente apáticos que Regina não suportou mais, e levantando
-
se
sa
iu dali. Na pequena sala verde da recepção, passou às cegas perto do
marido, sentado em um banco com Warberg.
—
Vá você
—
disse a ele.
—
Veja se o faz voltar à razão!
Regina continuou andando sem esperar resposta e só parou no
exterior do prédio, com o fri
o ar de dezembro pondo cor em suas faces
quentes.
Michael entrou na outra sala para falar com o filho, porém não teve
melhor sorte; quando saiu, tinha apenas a garganta seca e um rosto
parecendo dez anos mais velho do que ao entrar.
No motel, Regina contou
a Warberg o que Arnie tinha dito, e
perguntou
-
lhe se havia alguma possibilidade de ele estar certo.
Warberg refletiu na pergunta.
—
Sim, é uma defesa possível
—
afirmou
—
, mas seria muito mais
viável se Arnie fosse o primeiro dominó da fila. E ele não é.
Há um
negociante de carros usados, aqui em Albany, chamado Henry Buck. Era o
receptor. Também foi agarrado.
—
E o que disse ele?
—
perguntou Michael.
—
Não tenho meios de saber. Quando tentei falar com seu advogado,
ele se recusou. Acho isso um mau sinal.
Se Buck falar, acusará Arnie.
Aposto tudo o que possuo como Buck pode testemunhar que seu filho
sabia da existência daquele compartimento secreto... e isso é mau.
Warberg olhou fixamente para eles.
—
Compreendam, o que seu filho disse é, em realidade, apen
as uma
meia esperteza, Sra. Cunningham. Falarei com ele amanhã, antes de o
transferirem para a Pensilvânia. Espero fazê
-
lo ver que, nisto tudo, há
uma possibilidade do caso não recair em seus ombros.
Os primeiros flocos de neve começaram a cair do céu car
regado em
torvelinhos, quando eles dobraram para a rua de Steve e Vicky.
Será que
ainda está nevando em Libertyville?,
perguntou
-
se Arnie, e tocou as chaves
em sua etiqueta de couro, dentro do bolso. Provavelmente estava.
Christine continuava na Garagem de
Darnell, apreendida. Aquilo
era bom. Pelo menos, estava resguardada do mau tempo. Ele a recolheria
de novo. Com calma.
A semana anterior parecia um confuso pesadelo. Seus pais,
argumentando com ele na saleta branca, pareciam possuir os desconexos
rostos d
e estranhos: eram cabeças falando em língua estrangeira. O
advogado que haviam contratado, Warley, Warmly ou qualquer coisa,
ficara insistindo sobre algo que denominavam a teoria do dominó, bem
como sobre a necessidade de cair fora do "maldito prédio, ante
s que tudo
caia sobre sua cabeça, garoto
—
há dois Estados e três agências federais
movimentando as bolas da demolição".
Arnie, no entanto, estava mais preocupado com Christine.
Parecia
-
lhe cada vez mais claro que Roland D. LeBay estava com ele
ou pairando
em algum lugar próximo
—
talvez se estivesse aglutinando
dentro dele. A idéia não o atemorizou, ela o confortou. Entretanto, era
preciso ser cuidadoso. Não sobre Junkins, Arnie sentia que Junkins tinha
apenas suspeitas, e todas se orientando para direções
erradas, irradiando
-
se a partir de Christine, em vez de convergirem para ela.
Com Darnell, porém... podia haver problemas com Will. Sim,
verdadeiros problemas.
Naquela primeira noite em Albany, depois que seus pais haviam
retornado ao motel, Arnie fora le
vado para uma cela, onde adormecera
com surpreendente facilidade e rapidez. Então, tivera um sonho
—
não
realmente um pesadelo, mas algo que parecia muito inquietante. Acordou
cautelosamente no meio da noite, com o corpo banhado de suor.
Havia sonhado que
Christine fora reduzida, em escala, a um
pequenino Plymouth 58, não maior do que a mão de um homem. Estava
na alameda de um depósito de carros velhos, circundada por um cenário
em escala, espantosamente perfeito
—
havia uma rua de plástico que
podia ser Ba
sin Drive e uma outra que podia ser a JFK, onde "Penetra"
Welch havia sido morto. Um pequeno prédio, que parecia exatamente o
Ginásio de Libertyville. E casas de plástico, árvores de papel...
...mais um gigantesco, imenso Will Darnell, que estava nos contr
oles,
os quais indicavam quão rápida ou lentamente o pequenino Fury rodava
por tudo aquilo. Sua respiração sibilava, entrando e saindo dos pulmões
lesados, com um som de vendaval.
Você não quer abrir a boca, guri,
disse Will. Inclinava
-
se para aquele
mundo
em escala reduzida, como o Descomunal Admirável Homem.
Você
não quer abrir a boca para assustar
-
me, porque estou nos comandos. Eu posso
fazer isto...
E, lentamente, Will começava a girar o botão de controle, em direção
à palavra RÁPIDO.
Não!
Arnie tentou
gritar.
Não, não faça isso, por favor! Eu a amo! Por
favor, você a mataria!
Nos trilhos da alameda, a diminuta Christine corria pela Libertyville
em miniatura, cada vez mais depressa, a traseira rabeando nas curvas,
enquanto ela chiava no ponto mais extrem
o da força centrífuga, aquele
mistério de forma côncava. Agora, ela se tornara apenas um borrão de
branco
-
sobre
-
vermelho, o motor emitindo um agudo e furioso zumbido
Por favor!,
gritou Arnie.
Por favooooor!
Afinal, Will começara a girar o controle para trá
s, parecendo
soturnamente satisfeito. O carrinho ia diminuindo a velocidade.
Se começar a acalentar idéias, basta recordar onde está seu carro, guri.
Fique de bico calado, e ambos viveremos para ver outro dia. Já estive em apuros
piores do que este...
Arni
e estendera o braço para apanhar o carrinho, libertá
-
lo daquela
pista de corrida. O Will do sonho empurrara sua mão.
De quem é o saco, guri?
Will, por favor...
Quero ouvir o que vai dizer.
O saco é meu.
Não se esqueça disso, guri.
Arnie despertara com isso
nos ouvidos. Naquela noite, não houve
mais sono para ele.
Seria tão improvável assim que Will soubesse... bem. que soubesse
de algo sobre Christine? Não. Ele via muita coisa por aquela parede
envidraçada, mas sabia como ficar de boca fechada
—
pelo menos
até a
hora certa de abri
-
la. Podia saber o que Junkins ignorava, que a
regeneração de Christine em novembro não havia sido apenas estranha,
como totalmente impossível. Ele adivinhava que muitos reparos jamais
haviam sido feitos, pelo menos não por Arnie.
O
que mais Will saberia?
Com uma rastejante friagem que subiu de suas pernas para a raiz do
estômago, Arnie finalmente percebeu que Will poderia ter estado na
garagem, na noite em que Repperton e os outros haviam morrido. De fato,
isso era mais do que possí
vel.
Era provável. Jimmy
Sykes não regulava bem
da cabeça e Will não confiaria nele sozinho na garagem.
Você não quer abrir sua boca. Você não quer assustar
-
me, porque eu posso
fazer isto...
Entretanto, mesmo supondo que Will soubesse, quem iria acreditar
nele? Era muito tarde para agora querer iludir
-
se, e Arnie não conseguia
mais libertar
-
se da inconcebível idéia... e nem mesmo queria. Quem daria
crédito a Will, se ele resolvesse contar a alguém que, às vezes, Christine
manobrava a si mesma? Que ela deixa
ra a garagem por si mesma, na noite
em que "Penetra" Welch fora morto, e na outra em que acidentara e
matara aqueles bandidos? A polícia acreditaria nisso? Eles dariam boas
gargalhadas, isso sim. E Junkins? Estava esquentando, mas Arnie não
acreditava que
ele fosse capaz de aceitar tal história, mesmo querendo.
Arnie lhe vira os olhos. Portanto, se Will soubesse, de que lhe adiantaria
tal conhecimento?
Então, com crescente horror, Arnie compreendeu que não importava.
Will estaria fora da prisão, sob fiança,
no dia seguinte ou no outro. Então,
Christine seria sua refém. Ele poderia incendiá
-
la
—
já incendiara
inúmeros carros nos velhos tempos, como Arnie bem sabia, ao ficar
sentado no escritório dele, ouvindo
-
o recordar
—
e depois de incendiada,
ao se tornar
uma carcaça carbonizada e inútil, havia o aparelho
compressor, nos fundos, atrás da garagem. A massa queimada de
Christine seguiria pela esteira rolante e se transformaria em um
comprimido cubo de metal.
Os tiras haviam lacrado a garagem.
Bem, isso não adi
antava muito. Will Darnell era raposa bem velha,
estaria preparado para qualquer contingência. Se quisesse entrar lá e
incendiar Christine, ele o faria... embora fosse muito mais provável, Arnie
pensou, que contratasse um especialista em seguros para fazer
o
serviço
—
um sujeito que atiraria montes de mechas incendiárias dentro
do carro e, em seguida, acenderia um fósforo.
Mentalmente, Arnie podia ver as chamas surgindo. Podia sentir o
cheiro do estofamento chamuscado.
Ficou deitado no beliche da cela, com
a boca seca e o coração
batendo descompassadamente no peito.
Você não quer abrir a boca. Você não quer assustar
-
me...
Claro, se Will tentasse algo e se descuidasse
—
se sua concentração
falhasse, por apenas um momento
—
, Christine o pegaria. De certa forma
,
no entanto, Arnie não achava que Will se descuidaria.
No dia seguinte, ele havia sido levado de volta à Pensilvânia,
acusado e depois afiançado por uma soma nominal. Haveria uma
audiência preliminar em janeiro e já se falava em um júri principal. O caso
do contrabando era matéria de primeira página em todo o Estado, embora
Arnie fosse identificado apenas como "um jovem" cujo nome "era mantido
em sigilo pelo Estado e pelas autoridades federais, em vista de sua
condição como menor".
De qualquer modo, o nom
e de Arnie era do conhecimento geral em
Libertyville. A despeito de seu recente e exuberante crescimento em
drive
-
ins,
cadeias de lanchonetes e boliches, Libertyville continuava sendo uma
cidade universitária, onde todos sabiam da vida de todos. Aquelas
pe
ssoas, em sua maioria associadas à Universidade Horlicks, sabiam
quem andara dirigindo para Will Darnell e quem havia sido preso após a
divisa com o Estado de Nova Iorque em um carro com o porta
-
mala
entulhado de cigarros contrabandeados. Era este o pesade
lo de Regina.
Arnie foi para casa sob a custódia dos pais
—
e fiança de mil
dólares
—
, após uma breve permanência na prisão. Em verdade, aquilo
não passava de um grande e fedido jogo de Monopólio. Seus pais tinham
vindo com o cartão de Saia da Cadeia. Como
se esperava.
—
Por que está sorrindo, Arnie?
—
perguntou Regina.
Michael dirigia a camionete a uma velocidade que poderia ser
acompanhada por alguém a pé, procurando a casa de campo de Steve e
Vicky, através dos redemoinhos da neve.
—
Eu sorria?
—
Sim
—
disse ela, e tocou
-
lhe o cabelo.
—
Sinceramente, não me lembro
—
respondeu ele, de forma tão
apática que Regina afastou a mão.
Tinham vindo para casa no domingo e seus pais o deixaram a sós,
fosse por não quererem conversar com ele ou porque estavam
profu
ndamente desgostosos com o filho... podendo ainda haver uma
combinação de ambas as coisas. Arnie pouco estava ligando para aquilo,
eis a verdade. Sentia
-
se desgastado e exausto, um espectro do que era
antes. Sua mãe fora para a cama e dormira a tarde intei
ra, após tirar o
telefone do gancho. Seu pai encerrava
-
se sem necessidade no gabinete de
trabalho, usava a máquina elétrica por algum tempo e depois a
abandonava.
Arnie ficou na sala de estar, vendo uma partida de futebol de
desempate, sem saber quem estav
a jogando e nem se importando,
satisfeito em ver os jogadores correndo de um lado para outro, primeiro
ao brilhante calor do sol californiano, mais tarde em uma mistura de
chuva e neve, que transformara o campo em poças de lama e apagara as
linhas.
Por vol
ta de seis da tarde, ele cochilou.
E sonhou.
Tornou a sonhar, nessa noite e na seguinte, na cama em que dormia
desde pequeno, o olmo lá de fora jogando para o quarto sua sombra
familiar (um esqueleto a cada inverno, que ganhava nova e miraculosa
roupagem a
cada maio). Não eram sonhos como aquele do gigantesco Will,
inclinando
-
se para a alameda entre os carros velhos do pátio. Só conseguia
recordá
-
los por alguns momentos, depois de acordar. Talvez fossem
apenas isso. Uma figura à margem da estrada; um dedo d
escarnado,
tamborilando em uma palma putrefata, como uma lunática paródia de
instruções; uma inquietante sensação de liberdade e... fuga? Sim, fuga.
Nada mais, exceto...
Sim, ele fugia daqueles sonhos e retornava à realidade, com uma
imagem repetitiva: est
ava ao volante de Christine, dirigindo lentamente,
através de terrível nevasca. A neve era tão espessa que literalmente não
enxergava nada além do capô. O vento não ululava, seu som era mais
grave e sinistro, um rugido baixo. Então, a imagem mudava. A neve
deixava de ser neve, era papel picado caindo. O rugido do vento era o
rugido de enorme multidão comprimida nas calçadas da 59 Avenida.
Todos o aplaudiam. Aplaudiam Christine. Aplaudiam, porque ele e
Christine tinham... tinham...
Escapado.
A cada vez que e
ste confuso sonho recuava, ele pensava:
Quando isto
terminar, eu vou embora. Vou embora, com toda a certeza. Vou rodar até o
México.
E o México, quando ele imaginava seu sol inalterável e sua
quietude rural, parecia mais real do que os sonhos.
Pouco depois
de acordar do último de tais sonhos, acudira
-
lhe a
idéia de passar o Natal com tia Vicky e tio Steve, exatamente como nos
velhos tempos. Acordara com essa idéia e ela se firmara em sua cabeça
com peculiar persistência. Parecia uma idéia excelente, importa
ntíssima.
Sair de Libertyville, antes...
Bem, antes do Natal. O que mais poderia ser?
Assim, começou a falar nisso com os pais, sendo mais
particularmente insistente com Regina. Na quarta
-
feira, ela entregou os
pontos repentinamente e concordou. Arnie sabi
a que ela falara com a irmã,
e Vicky não assumira atitudes de mandona, portanto estava tudo certo.
Agora, na véspera do Natal, Arnie sentia que
tudo
em breve estaria
absolutamente perfeito.
—
Lá está, Mike
—
disse Regina
—
, e você vai entrar direitinho po
r
ela, como sempre faz, cada vez que viemos aqui.
Michael soltou um grunhido e manobrou para a entrada de carros.
—
Eu já tinha visto
—
respondeu, no tom perpetuamente defensivo
que sempre parecia usar com a esposa.
Ele é um burro,
pensou Arnie.
Ela fala c
om ele como a um burro, o
comanda como a um burro e ele zurra como um burro.
—
Você está sorrindo de novo
—
disse Regina.
—
Estava pensando no quanto amo vocês dois
—
respondeu Arnie.
Michael olhou para ele, surpreso e comovido; nos olhos de sua mãe
surgiu
um brilho suave, que poderia ter sido provocado por lágrimas. Eles
realmente acreditavam. Os bostas.
Eram umas três da tarde daquela véspera de Natal e a neve
permanecia caindo em rajadas esporádicas, embora tais rajadas
começassem a soldar
-
se, uma as ou
tras. Segundo os meteorologistas, o
atraso na chegada da tempestade nada prenunciava de bom. Ela se tinha
compactado, o que tornava as coisas ainda piores. Havia previsões de
possíveis acúmulos, variando de trinta a quarenta e cinco centímetros,
com fortes
desvios dos ventos mais fortes.
Leigh Cabot estava na sala de visitas de sua casa, diante de uma
pequena árvore de Natal natural em que já começavam a despontar as
agulhas (em sua casa, ela era a voz do tradicionalismo e, durante quatro
anos, havia vencid
o a vontade do pai, que preferia uma árvore artificial,
bem como a da mãe, que optava por um ganso ou galinha assada na época
dos feriados, em vez do peru tradicional do Dia de Ação de Graças). Leigh
estava sozinha em casa. Seus pais tinham ido à residênci
a dos Stewarts,
para os drinques de véspera de Natal. O Sr. Stewart era o novo chefe de
seu pai e os dois davam
-
se bem. A Sra. Cabot esforçava
-
se em promover
aquela amizade. Nos últimos dez anos, os Cabots se haviam mudado seis
vezes, começando tudo de nov
o e, dentre todos os lugares onde tinham
morado, sua mãe gostara mais de Libertyville. Queria continuar ali, e a
amizade do marido com o novo chefe poderia contribuir bastante para
realizar esse seu desejo.
Absolutamente só, e ainda virgem,
pensou ela. Era
uma idéia
totalmente idiota mas de qualquer modo, Leigh se levantou de repente,
como se tivesse sido espetada. Foi à cozinha, demasiado consciente dos
pequeninos ruídos do país das maravilhas em fórmica: relógio elétrico, o
forno onde estava sendo assado
um presunto
(virá
-
lo às seis, se eles ainda
não tiverem voltado,
recordou
-
se), um baque seco do congelador da
Frigidaire, indicando a fabricação de mais um cubo de gelo.
Abriu a geladeira, viu uma embalagem de seis Cocas, ao lado da
cerveja de seu pai e pe
nsou:
Afaste
-
se de mim, Satanás!
Mesmo assim, ela
apanhou uma lata. Pouco importava, se lhe estragasse a pele. Agora não ia
mais sair com ninguém. E daí, se lhe nascessem espinhas?
A casa vazia a deixava inquieta. Isso jamais acontecera antes; Leigh
sempre
se sentira satisfeita e absurdamente competente quando seus pais
a deixavam só
—
sem dúvida, uma reminiscência da infância. A casa
sempre lhe parecera confortadora, mas agora os sons da cozinha, o uivo
do vento aumentando lá fora, até mesmo o rumor de seu
s chinelos no
linóleo
—
tais sons pareciam sinistros, até amedrontadores. Se tudo
tivesse ocorrido de maneira diferente, Arnie poderia estar ali, com ela.
Seus pais, especialmente sua mãe, tinham gostado dele. A princípio.
Agora, naturalmente, depois do su
cedido, sem dúvida sua mãe até lhe
lavaria a boca com sabão, se soubesse que estivera pensando nele. No
entanto, ela
pensava
nele. Pensava nele quase o tempo todo. Perguntando
-
se por que Arnie mudara. Perguntando
-
se como ele estaria aceitando o
sucedido. P
erguntando
-
se se ele estaria legal.
O vento aumentou de tom até uivar, em seguida diminuindo um
pouco, recordando
-
lhe
—
sem qualquer motivo, naturalmente
—
o motor
de um carro, acelerando e depois desacelerando.
Sem retorno da Curva do Homem Morto,
sussurr
ou sua mente, de
modo estranho. Então, sem o menor motivo (lógico) ela foi até a pia e
despejou a Coca no ralo, perguntando
-
se se iria chorar, vomitar ou o quê.
Leigh percebeu, com uma surpresa crescente, seu estado de quase
terror.
Sem o menor motivo.
Lóg
ico.
Afinal, seus pais haviam deixado o carro na garagem (carros, estava
com carros no cérebro). Não gostava de pensar no pai tentando voltar
para casa, ao sair da residência dos Stewarts, dirigindo um tanto zonzo
devido a três ou quatro martínis (exceto q
ue eles sempre o chamavam
martunis, em típica atitude gozadora de adultos). Eram apenas três
quarteirões de distância e eles dois haviam saído bem agasalhados e
risonhos, como duas crianças grandes, preparando
-
se para fazer um
boneco de neve. A caminhada d
e volta os tornaria sóbrios. Seria bom para
ambos. Seria bom se...
O vento tornou a intensificar
-
se
—
zumbindo em torno das calhas e
depois murmurejando
—
e, de súbito, Leigh viu seus pais embriagados
caminhando pela rua, entre nuvens de neve solta, um amp
arando o outro
para que nenhum caísse sobre o traseiro, rindo muito. Papai talvez
beliscasse mamãe, através de suas calças para a neve. A maneira como ele
às vezes a beliscava, quando ficava um pouco tonto de bebida, era algo
que sempre deixara Leigh irrit
ada, porque parecia um ato demasiado
juvenil, para ser praticado por um adulto formado. Naturalmente, é claro,
ela os amava. Seu amor era uma parte da irritação, e sua exasperação
ocasional com eles constituía uma grande parte do amor que lhes
dedicava.
Os
dois estariam caminhando juntos, através de uma neve tão
espessa como fumaça, e então dois enormes olhos verdes se abriam na
brancura atrás deles, parecendo flutuar... olhos que se assemelhavam
terrivelmente aos círculos dos instrumentos do painel de um c
arro, os
mesmos que vira, quando quase morrera sufocada... e aqueles olhos iam
crescendo... perseguindo seus indefesos, risonhos e empilecados pais.
Leigh respirou bruscamente e voltou à sala. Chegou até o telefone,
quase o tocou, mas então afastou
-
se e re
tornou à janela, de onde ficou
olhando para a brancura, os cotovelos apoiados nas palmas em concha.
O que lhe competia fazer? Telefonar para eles? Dizer
-
lhes que estava
sozinha em casa, que ficara pensando no carro velho e algo sorrateiro de
Arnie, sua nam
orada de aço chamada Christine e, por isso, queria que eles
voltassem para casa, por temer pelos dois e por si mesma? O que devia
fazer?
Seja esperta, Leigh. Esperta.
A superfície negra da rua, após ter sido limpa, desaparecia
novamente sob neve recente, m
as devagar. Só agora tinha começado a
nevar com mais intensidade e o vento tentava limpar a rua
periodicamente com fortes rajadas, as quais enviavam membranas de
neve pulverizada, que subia e se fundia ao céu cinza
-
alvacento da tarde
borrascosa, como fanta
smas de fumaça que se contorciam lentamente...
Oh, mas o terror estava ali, era real
—
e ia acontecer alguma coisa.
Ela sabia. Ficara abalada, ao saber que Arnie fora detido por contrabando,
mas essa reação nada significava, diante do choque, do medo doent
io que
sentira ao abrir o jornal dias antes e ver o que acontecera a Buddy
Repperton e aqueles outros dois rapazes
—
um dia em que seu primeiro,
louco, terrível e, de certa forma, exato pensamento, havia
sido: Christine.
E agora pendia fortemente sobre ela
a premonição de mais uma
negra ameaça, não conseguia libertar
-
se daquilo, era ridículo, Arnie
estivera na Filadélfia, como membro de um torneio de xadrez, ela fizera
perguntas a respeito do dia certo
—
e uma coisa nada tinha a ver com a
outra, e não ia ma
is pensar naquilo, ligaria todos os rádio e a televisão,
para encher a casa de sons e impedi
-
la de pensar naquele carro que fedia
como uma sepultura, naquele carro que tentara liquidá
-
la, assassiná
-
la...
—
Oh, que droga!
—
sussurrou.
—
Por que não
paro
com
isso?
Seus braços enrijeceram com os arrepios.
Voltou bruscamente para junto do telefone, encontrou o catálogo e,
como fizera Arnie certa noite, duas semanas antes, Leigh ligou para o
Hospital Comunitário de Libertyville. A voz agradável de uma
recepcioni
sta informou que o Sr. Guilder recebera alta naquela manhã.
Leigh agradeceu e desligou.
Ela ficou pensativa na sala de visitas, olhando para a pequena
árvore de Natal, os presentes, a manjedoura a um canto. Em seguida,
procurou o número dos Guilders no cat
álogo e discou.
—
Leigh!
—
exclamou Dennis, agradavelmente surpreso. O fone na
mão dela estava frio.
—
Posso ir aí falar com você, Dennis?
—
Hoje?
—
perguntou ele, sem entender.
Pensamentos confusos passaram pela mente de Leigh. O presunto
no forno. Tinha
que desligar o forno às cinco horas. Seus pais estariam em
casa. Era véspera de Natal. A neve. E... e ela não pensou se seria seguro
sair aquela noite. Caminhar pelas calçadas, quando alguma coisa podia
estar espreitando, dentro da neve. Qualquer coisa. Nã
o podia,
principalmente nessa noite, e isso era o pior. Ela não pensou se seria
seguro estar fora de casa nessa noite.
—
Leigh?
—
Não, esta noite, não
—
respondeu.
—
Estou tomando conta da
casa para meus pais. Os dois foram a um coquetel.
—
Certo, os meus
também
—
disse Dennis alegre.
—
Eu e minha
irmã estamos jogando Parcheesi. Ela está roubando.
Uma voz soou fracamente:
—
Não estou roubando coisa nenhuma.
Em outra época, aquilo seria engraçado. Não agora.
—
Depois do Natal. Na terça
-
feira, talvez. Dia vin
te e seis. Está bem
assim?
—
Claro
—
respondeu ele.
—
É sobre Arnie, Leigh?
—
Não
—
disse ela, apertando o telefone com tanta força que sua
mão ficou entorpecida. Precisou esforçar
-
se para controlar a voz.
—
Não...
Não se trata de Arnie. Quero conversar co
m você sobre Christine.
D
ESABA A
T
EMPESTADE
Minha máquina é envenenada, com tração nas quatro rodas,
Tem um motor Roadrunner, em um Ford 32,
Sim, e noite alta, quando estou sem fazer nada,
Juro que penso em seu rostinho, quando a deixo rodar.
Bem, olhe lá
longe, vê aquelas luzes da cidade?
Vamos, queridinha, venha motorar esta noite.
—
Bruce Springsteen
Pelas cinco horas daquela tarde, a tempestade havia embranquecido
a Pensilvânia, varando o Estado de uma fronteira à outra, uivando, com a
goela ululante
cheia de neve. Não houve nenhuma correria final de
compras às vésperas do Natal. Em sua maioria, os exaustos e abatidos
balconistas e todos os que lidavam com vendas agradeceram o imprevisto
à Mãe Natureza, embora perdessem as horas extras de trabalho.
Sab
oreando drinques diante do agradável fogo de lareiras acesas pouco
antes, eles comentavam que já teriam serviço de sobra na terça
-
feira,
quando começassem as devoluções.
A Mãe Natureza não parecia tão maternal assim naquela tarde,
quando um prematuro crepú
sculo foi substituído por absoluta escuridão e
depois por uma noite de nevasca. Naquela noite, ela foi uma terrível
feiticeira pagã, uma megera comandando o vento, e o Natal não
significava nada para ela; arrancou todos os ouropéis da Câmara do
Comércio e
os enviou piruetando para o alto do céu escuro, soprou a
grande cena de natividade à frente do posto policial, atirando
-
a para um
monte de neve, onde as ovelhas, as cabras, a Mãe de Deus e o Menino só
seriam encontrados no próximo janeiro, que os revelaria
. E, como
cusparada final no olho da temporada dos feriados, arrancou a árvore de
doze metros à frente do Edifício Municipal de Libertyville, enviando
-
a
através de uma enorme janela para dentro do gabinete do Avaliador de
Impostos da cidade. Muitos dissera
m mais tarde que o lugar fora bem
escolhido.
Às sete da noite, os limpa
-
neve não davam mais conta do recado. Às
sete e quinze, um ônibus abriu caminho laboriosamente pela Main Street,
tendo mais atrás uma fila de carros seguindo sua traseira prateada, como
filhotes acompanhando a mãe. Então a rua ficou vazia, exceto por uns
poucos carros estacionados obliquamente, que já haviam ficado
enterrados até os pára
-
choques, após a passagem dos veículos limpa
-
neve.
De manhã, a maioria deles estaria sepultada por com
pleto. No
cruzamento de Main Street e Basin Drive, um sinal de trânsito, cuja luz
não dirigia ninguém em absoluto, foi torcido pelo vento e dançou
suspenso em seu cabo. Houve um súbito e crepitante som elétrico e a luz
apagou. Dois ou três passageiros do ú
ltimo ônibus da cidade
atravessavam a rua nesse momento; olharam para cima e andaram mais
depressa.
Lá pelas oito da noite, quando os Cabots finalmente chegaram em
casa (para Leigh um imenso mas não falado alívio), as estações locais de
rádio transmitiam u
m pedido da Polícia Estadual da Pensilvânia, para que
todos se mantivessem afastados das ruas e estradas.
Às nove horas, quando Michael, Regina e Arnie Cunningham,
munidos de ponche quente com rum (reconhecidamente uma
Especialidade da Temporada, obra de t
io Steve), estavam em torno da
televisão com tio Steve e tia Vicky, para verem Alastair Sim em
Uma
canção de Natal,
uma extensão de sessenta e cinco quilômetros da auto
-
estrada de pedágio da Pensilvânia havia sido fechada pela neve impelida
e amontoada pel
o vento. Por volta de meia
-
noite, toda ela estaria
intransitável.
Às nove e meia, quando os faróis dianteiros de Christine se
acenderam subitamente na solitária garagem de Will Darnell, colocando
um brilhante arco na escuridão interior, Libertyville estava
com todas as
ruas impedidas, exceto pela passagem ocasional de algum veículo limpa
-
neve.
Na garagem silenciosa, p motor de Christine disparou e morreu.
Disparou e morreu.
No assento dianteiro vazio, a alavanca de mudança baixou para
DRIVE.
Christine começ
ou a mover
-
se.
O dispositivo eletrônico, preso no pára
-
brisa, zumbiu brevemente.
Seu som sussurrante se perdeu no ulular do vento, mas a porta o ouviu;
chocalhou obedientemente para cima em seus trilhos. A neve foi soprada
para o interior e rodopiou como p
oeira na garagem.
Christine partiu para o exterior, espectral dentro da neve. Dobrou à
direita e desceu a rua, seus pneus cortando fundo a neve, com firmeza e
precisão, sem patinar, derrapar ou vacilar.
Um sinal se acendeu
—
um olho âmbar e pestanejante na
neve. Ela
dobrou para a esquerda, em direção à estrada JFK.
Don Vandenberg sentava
-
se atrás da mesa, no escritório do posto de
gasolina de seu pai. Seus pés e seu pênis estavam erguidos. Ele lia um dos
livros pornográficos do pai, um volume altamente mor
daz e provocante,
intitulado
As Trepadas de Pammie.
Pammie já havia trepado com todo
mundo, excetuando
-
se o leiteiro e o cachorro. O leiteiro vinha subindo a
rua e o cachorro jazia aos pés dela. quando a sineta tocou, indicando um
freguês.
Don ergueu os ol
hos, impaciente. Telefonara para seu pai às seis
horas, quatro horas atrás, perguntando se não seria melhor fechar o
posto
—
não haveria aquela noite movimento suficiente que pagasse a
eletricidade consumida pelo letreiro. Já em casa, aquecido, com bebida
nas
tripas e seguramente abrigado, ele respondera para mantê
-
lo aberto até
meia
-
noite. Se jamais houvesse um Scrooge, pensara Don ressentido, ao
bater com o telefone no gancho, esse era seu velho.
O simples fato era que Don não gostava mais de ficar ali so
zinho,
durante a noite. Tempos atrás
—
e não fazia muito
—
ele teria companhia
à vontade. Buddy estaria lá, e Buddy era como um ímã, atraindo os outros
com sua bebida, sua coca ocasional, mas acima de tudo pela simples força
de sua personalidade. Agora, no
entanto, todos se tinham ido. Todos eles.
Havia vezes, no entanto, que Don imaginava o contrário. Por vezes
(quando estava sozinho, como naquela noite), tinha a impressão de que
poderia erguer os olhos e vê
-
los sentados ali
—
Richie Trelawney de um
lado,
"Penetra" Welch do outro e Buddy entre eles, com uma garrafa de
Texas Driver na mão e um baseado atrás da orelha. Horrivelmente pálidos,
todos três parecendo vampiros, tinham olhos vidrados, como os de um
peixe morto. Então, Buddy erguia a garrafa e sussur
rava:
Tome um gole, seu
filho da mãe
—
logo estará morto, como nós.
Algumas vezes tais fantasias eram tão reais que o deixavam com a
boca seca e as mãos trêmulas.
E Don estava perfeitamente a par dos motivos. Eles nunca deveriam
ter arrebentado o carro do C
ara de Cona aquela noite. Cada um dos que
haviam tomado parte na brincadeira tivera morte horrível. Todos eles,
quer dizer, exceto ele próprio e Sandy Galton. Sandy se enfiara em seu
velho e estropiado Mustang, no qual desaparecera para qualquer lugar.
Dur
ante aqueles longos turnos da noite, Don freqüentemente pensava que
gostaria de fazer o mesmo.
Lá fora, o freguês tocou a buzina.
Don bateu com o livro em cima da mesa, perto da máquina de
cartões de crédito, suja de graxa. Depois lutou para enfiar sua jaq
ueta
esforçando
-
se para ver o carro e perguntando
-
se quem seria louco o
bastante para aventurar
-
se na rua, debaixo de semelhante tempestade.
Devido à neve que o vento fazia esvoaçar, era impossível deduzir algo
sobre o carro ou o motorista; Don não consegu
iu ter certeza de nada,
excetuando
-
se os faróis e o formato da carroceria, que era comprida
demais para um carro novo.
Algum dia, pensou ele, enfiando as luvas e dando um relutante
adeus à sua ereção, seu pai instalaria bombas automáticas e toda aquela
mer
da teria fim. Se havia pessoas birutas o suficiente para saírem de casa
em noites iguais àquela, que bombeassem sua própria gasolina.
A porta quase foi arrancada de sua mão. Precisou segurá
-
la com
todas as forças, para que não escapasse e batesse de volta
na lateral de
concreto do prédio e talvez estilhaçasse a vidraça. Esforçou
-
se tanto que
quase caiu sentado sobre o traseiro. A despeito do uivo persistente do
vento (que estivera tentando não ouvir), havia subestimado inteiramente a
potência da tempestade.
A própria profundidade da neve
—
além de vinte
centímetros
—
o ajudou a manter
-
se de pé.
Esse carro fodido deve estar com
pneus para neve,
pensou ressentido.
Se o cara me vier com cartão de crédito sou
bem capaz de quebrar a espinha dele.
Abriu caminho pe
nosamente na neve, aproximando
-
se do primeiro
conjunto de ilhas. O filho da mãe estacionara no conjunto mais distante.
Naturalmente. Don tentou erguer, os olhos uma vez, mas o vento lhe
jogou neve no rosto, em uma lambada fedorenta, e ele baixou a cabeça
d
epressa, deixando que o topo do capuz da jaqueta recebesse o impacto
maior.
Cruzou pela frente do carro, banhado por um momento pela luz
brilhante, mas fria, dos faróis dianteiros duplos. Caminhando com
dificuldade, chegou ao lado do motorista. As luzes fl
uorescentes da ilha
em que ficava a bomba transformavam o carro em uma espalhafatosa
mancha borgonha de branco
-
sobre
-
púrpura. As bochechas de Don já
estavam entorpecidas.
Se o cara quiser um dólar de gasolina e me pedir para
checar o óleo, vou dizer pra el
e enfiar no rabo,
pensou, e levantou a cabeça
para as ferroadas da neve, quando o vidro da janela foi descido.
—
Em que posso a...
—
começou ele, e a palavra
ajudá
-
lo
se tornou
um grito alto, sibilante e impotente:
—
aaaaaaahhhhhhh..!
Inclinando
-
se para fo
ra da janela, a menos de quinze centímetros de
seu próprio rosto, estava um cadáver putrefato. Seus olhos eram enormes
órbitas vazias, os lábios mumificados tinham sido repuxados para trás,
sobre alguns poucos dentes amarelados. Uma das mãos, alvacenta, ja
zia
sobre o volante. A outra, estalando horrivelmente, adiantava
-
se para tocá
-
lo.
Don chapinhou para trás, seu coração uma máquina desembestada
no peito, seu terror uma monstruosa rocha quente na garganta. A coisa
morta acenou para ele, sorrindo, enquanto
o motor do carro roncava
subitamente, ao ser acelerado.
—
Encha o tanque
—
sussurrou o cadáver. A despeito de seu choque
e seu horror, Don viu que ele usava os esfarrapados remanescentes de um
uniforme do Exército, manchado de bolor.
—
Encha, seu bosta!
Os
dentes da caveira sorriram, iluminados pela luz fluorescente.
Mais no fundo daquela boca, cintilou um pedacinho de ouro.
—
Tome um gole, filho da mãe
—
sussurrou outra voz roucamente, e
Buddy Repperton inclinou
-
se para diante no assento traseiro, estendend
o
uma garrafa de Texas Driver para Don. Vermes afloraram e se torceram
em seu sorriso. Besouros rastejaram no que lhe restava de cabelo.
—
Acho
que está precisando.
Don gritou agudamente, o som esganiçando
-
se ao partir de sua
garganta. Girou sobre si mesmo
e correu através da neve, em grandes
saltos como um desenho animado; tornou a guinchar, quando o motor do
carro clamou toda a potência de seus cilindros. Olhando por sobre o
ombro, ele viu que era Christine, o automóvel parado perto das bombas, a
Christin
e de Arnie, que agora se movia, soltando neve em jatos com seus
pneus traseiros. As coisas que ele vira haviam desaparecido
—
o que, de
certa forma, ainda era pior. As coisas tinham sumido. O carro se movia
sozinho.
Don virou
-
se para a rua e agora escalava
o monte de neve formado
pelos limpa
-
neve que passavam. Desceu pelo outro lado. Ali, o vento
havia varrido o pavimento, deixando
-
o limpo de tudo, exceto de um
ocasional montículo de neve. Don escorregou em um deles. Seu pé
escapuliu e ele caiu de costas, c
om um baque surdo.
Um momento depois, a rua era inundada por luz branca. Don rolou
sobre si e ergueu o rosto, os olhos apertados loucamente nas órbitas, em
tempo de ver os imensos círculos brancos dos faróis de Christine, quando
ela irrompeu através do mon
te de neve e arremeteu sobre ele, como uma
locomotiva.
À semelhança da Gália, todo o setor de Libertyville Heights era
dividido em três partes. O semicírculo mais próximo da cidade, sobre os
baixios das montanhas, tinha sido conhecido como Liberty Lookout
—
até
meados do século XIX (uma Placa do Bicentenário, na esquina das Ruas
Rogers e Tacklin, recordava o fato)
—
e era a única área realmente pobre
da cidade. Tratava
-
se de uma zona superlotada de edifícios e construções
com estruturas de madeira. Varais
de roupas enfileiravam
-
se
desordenadamente pelos quintais que, em estações mais temperadas,
pululavam de crianças e brinquedos baratos
—
na maioria dos casos, tanto
as crianças como os brinquedos estavam em péssimas condições. Essa
vizinhança, que outrora
pertencera à classe média, fora cada vez mais
negligenciada desde que, em 1945, cessaram os empregos de guerra. O
declínio instalou
-
se lentamente a princípio, depois ganhando velocidade
nos anos 60 e início dos 70. Agora chegava o pior, embora ninguém se
a
venturasse a afirmá
-
lo, pelo menos em público, quando o declarante
poderia ser citado. Os negros se mudavam para lá. O fato era comentado,
em particular nas melhores partes da cidade, entre churrascos e drinques:
os negros, que Deus nos ajude, os negros es
tão descobrindo Libertyville. A
área, inclusive, até já ganhara um nome
—
não era mais Liberty Lookout,
mas Low Heights, isto é, o lado inferior de Heights. Era um nome que
para muitos tinha um sabor arrepiante de gueto. O editor do
Keystone
tinha sido dis
cretamente informado, por vários de seus anunciantes de
peso, que o uso impresso de tal frase, que assim ficaria legitimada, os
deixaria muito aborrecidos. E o editor, cuja mãe nunca criara idiotas,
jamais a imprimiu.
Heights Avenue partia de Basin Drive,
em Libertyville propriamente
dita, para então começar a subir. A avenida seguia destramente por entre
Low Heights, deixava esta zona para trás e então embrenhava
-
se por um
cinturão verde, penetrando a seguir em uma área residencial. Esta parte
da cidade er
a conhecida simplesmente como Heights. Tudo isto talvez
pareça um tanto confuso
—
Heights
-
isto e Heights
-
aquilo
—
, mas os
moradores de Libertyville sabiam do que estavam falando. Mencionar
Low Heights significava pobreza, gentalha e coisas assim. Abandonad
o o
adjetivo "Low", significava a direção contrária à pobreza. Era ali que se
situavam as belas e antigas residências, em sua maioria elegantemente
distanciadas da rua e, algumas das mais refinadas, erguidas atrás de
espessas sebes de seixos. Os impulsiona
dores de Libertyville e os
endinheirados residiam nesse setor
—
o dono do jornal, quatro médicos, a
rica e amalucada neta do homem que inventara o sistema ejetor disparo
-
rápido, para pistolas automáticas. Em sua maioria, os demais residentes
eram advogados
.
Além desta área dos poderosos da cidadezinha respeitável, Heights
Avenue passava através de uma zona de bosques, em realidade
demasiado densa para ser chamada de cinturão verde. No ponto mais alto
de Heights, a Stanson Road se ramificava para a esquerda
e ia morrer no
Embankment,
um terrapleno acima da cidade e do
drive
-
in
de Libertyville.
No outro lado desta montanha baixa (mas também conhecida como
Heights) situava
-
se uma vizinhança razoavelmente antiga da classe média,
onde casas de quarenta e cinqüent
a anos envelheciam lentamente.
Quando esta área começava a transformar
-
se em zona rural, Heights
Avenue passava a ser County Road Nº 2.
Às dez e meia daquela véspera de Natal, um Plymouth 1958,
pintado em duas cores, começou a subir pela Heights Avenue, su
as luzes
abrindo caminho através da densa escuridão entupida de neve. Os
residentes veteranos de Heights diriam que nada
—
exceto, talvez, um
veículo com tração nas quatro rodas
—
conseguiria subir a Heights
Avenue aquela noite, mas o fato é que Christine
seguiu em frente,
desenvolvendo uns constantes cinqüenta quilômetros por hora, os faróis
dianteiros sondando o terreno, seus limpadores de pára
-
brisa movendo
-
se
ritmicamente para um lado e para outro, totalmente vazia no interior. As
marcas frescas de seus
pneus eram as únicas, em lugares que chegavam
quase a trinta centímetros de profundidade. O vento persistente as enchia
com rapidez. De vez em quando, seu pára
-
choque dianteiro e o capô
explodiam através da crista de um monte de neve acumulada pelo vento,
focinhando a neve pulverizada para os lados, sem nenhuma dificuldade.
Christine passou pela ramificação da Stanson Road e seguiu até a
terraplenagem do
Embankment,
onde Arnie e Leigh haviam tido um
encontro certa vez. Chegou ao alto de Libertyville Height
s e começou a
descer para o extremo mais distante, a princípio através de bosques
escuros, cortados apenas pela fita branca que assinalava a estrada, depois
pelas casas suburbanas, com suas aconchegantes luzes na sala de estar e,
em alguns casos, exibindo
alegres guirlandas de luzes natalinas. Em uma
daquelas casas, um homem jovem que acabara de desempenhar o papel
de Papai Noel e que tomava um drinque de comemoração com a esposa,
olhou casualmente para fora e viu os faróis que iam passando. Apontou
-
os para
ela.
—
Se aquele sujeito subiu até Heights esta noite
—
comentou, com
um sorriso
—
, deve ter vindo empurrado pelo demônio.
—
Esqueça
—
respondeu ela.
—
E agora que as crianças já tiveram a
sua parte, o que eu vou ganhar de Papai Noel?
Ele tornou a sorrir.
—
Daremos um jeito nisso
—
respondeu.
Num lugar mais distante da rua, quase onde os Heights deixavam
de ser os Heights, Will Darnell estava sentado na sala da casa simples de
dois pavimentos, que lhe pertencera por trinta anos. Usava um surrado e
desbota
do roupão azul por cima da calça do pijama, a enorme barriga
projetando
-
se como uma lua intumescida. Assistia à conversão final de
Ebenezer Scrooge, junto à Bondade e à Generosidade, mas em realidade
nada via. Sua mente seguia mais uma vez à deriva, atravé
s das peças de
um quebra
-
cabeça que se tornava cada vez mais fascinante: Arnie, Welch,
Repperton, Christine. Will envelhecera uma década naquela semana ou
pouco mais, após a incursão policial. Tinha dito àquele tira Mercer que
estaria de volta aos negócios
, no mesmo lugar, dentro de duas semanas.
No entanto, tinha suas dúvidas. Parecia
-
lhe que, ultimamente, sua
garganta vivia viscosa, devido ao sabor do maldito inalador.
Arnie, Welch, Repperton... Christine.
"
—
Rapaz!"
—
chamou Scrooge, de sua janela, como
uma caricatura
do Espírito do Natal, em sua camisola e touca de dormir.
—
"Aquele belo
peru continua exposto na vitrine do açougueiro?"
"
—
Qual?"
—
perguntou o garoto.
—
"Aquele do meu tamanho?"
"
—
Sim, sim"
—
respondeu Scrooge, rindo sufocadamente,
selvag
emente. Era como se os três espíritos, em vez de salvá
-
lo, o tivessem
enlouquecido.
—
"Aquele do seu tamanho!"
Arnie, Welch, Repperton... LeBay?
Por vezes, ele achava que não fora a ação policial que o deixara tão
prostrado, que o fazia sentir
-
se exausto e
amedrontado o tempo todo.
Tampouco era o fato de haverem atuado contra seu contador favorito ou
porque o pessoal dos impostos federais estivesse metido naquilo e, desta
feita, para valer. Os homens dos impostos não eram o motivo por ter
começado a esquadr
inhar a rua, antes de sair de casa pela manhã; o
Gabinete do Procurador
-
geral do Estado nada tinha a ver com os súbitos
olhares que passara a deitar para trás, sobre o ombro, quando vinha de
carro para casa à noite, voltando da garagem.
Já analisara infini
tamente o que tinha visto aquela noite
—
ou o que
julgava ter visto. Vezes e vezes sem conta, tentando convencer
-
se de que
aquilo não tinha sido real em absoluto... ou que era absolutamente real.
Pela primeira vez, em anos, via
-
se duvidando dos próprios se
ntidos. E, à
medida que o evento recuava no passado, ficava mais fácil acreditar que
tinha adormecido e sonhara tudo aquilo.
Will não tinha visto Arnie desde a ação policial e nem tentara
telefonar para ele. A princípio, havia pensado em usar seu conhecime
nto
sobre Christine como arma para manter fechada a boca de Arnie, caso ele
enfraquecesse e quisesse falar
—
Deus sabia que o garoto podia ir longe, a
fim de enviá
-
lo para a prisão, se cooperasse com os tiras. Somente depois
que a polícia agiu por toda par
te, Will percebeu o quanto o garoto sabia, o
que lhe valeu alguns amedrontados momentos de auto
-
avaliação (algo
mais se tornaria perturbador, sendo tão estranho à sua natureza): teriam
todos
eles sabido tanto? Repperton e todos os bandidos clones de
Repper
ton, estendendo
-
se no correr dos anos? Poderia ele, realmente, ter
sido tão estúpido?
Não, acabou decidindo. Era apenas Cunningham. Porque
Cunningham era diferente. Parecia captar as coisas quase intuitivamente.
Não costumava contar vantagens, beber ou men
tir. De uma forma
singular, Will se sentia quase paternal em relação a ele
—
não que
vacilasse em colocar o garoto em seu devido lugar, caso ele tivesse a mais
remota idéia de virar o barco.
E tampouco vacilaria agora,
garantiu a si
mesmo.
Na TV, um mal
-
ac
abado Scrooge em preto e branco estava em
companhia dos Cratchit. O filme chegava ao fim. Aquele bando, todos eles,
pareciam amalucados, eis a verdade, mas Scrooge era, sem a menor
dúvida, o pior. A expressão de louca alegria em seu olhar não diferia
muito
da de um homem que Will conhecera vinte anos antes, um sujeito
chamado Everett Dingle, que saíra da garagem para casa, certa tarde, e
assassinara toda a família.
Will acendeu um charuto. Qualquer coisa valia a pena, para tirar o
sabor do inalador de sua b
oca, aquele gosto infecto. Ultimamente, respirar
parecia mais difícil do que nunca. Os malditos charutos ainda pioravam a
situação, mas ele estava velho demais para mudar.
O garoto não tinha falado
—
pelo menos, ainda não. Eles tinham
apanhado Henry Buck,
Will ficara sabendo por seu advogado. Henry, com
sessenta e três anos, avô, negaria Cristo três vezes, se lhe prometessem
liberação ou suspensão da pena, em troca de suas declarações. O velho
Henry Buck estava vomitando tudo quanto sabia o que, felizmente,
não
era grande coisa. Estava a par dos "fogos
-
de
-
artifício" e cigarros, mas isso
constituía apenas dois elos do que, certa vez, havia sido urna cadeia de
seis ou sete elos, abrangendo bebida, carros roubados, armas de fogo com
abatimento (incluindo
-
se alg
umas metralhadoras, vendidas a fanáticos
por armas e caçadores homicidas, que queriam ver se elas "realmente
dilaceram um alce, como me contaram"), e antigüidades roubadas da
Nova Inglaterra. E, nos últimos dois anos, cocaína. Este último havia sido
um eng
ano; Will agora sabia disso. Aqueles colombianos lá de Miami
eram tão loucos como ratos em uma casa de drogas. Por falar nisto, eles
eram
os ratos da casa de drogas. Graças a
Deus,
Arnie não fora agarrado
levando meio quilo de coca.
Bem, os tiras iam feri
-
lo desta vez
—
a que ponto, muito ou pouco,
dependia bastante daquele especial garoto de dezessete anos e, talvez, de
seu também especial carro. As coisas estavam tão delicadamente
equilibradas como um castelo de cartas
—
e Will hesitava entre fazer ou
diz
er alguma coisa, temendo que a situação mudasse para pior. E sempre
havia a possibilidade de que Cunningham lhe risse na cara e o chamasse
de louco.
Will levantou
-
se, com o charuto preso entre os maxilares, e desligou
o aparelho de televisão. Devia ir para
cama, porém seria bom tomar um
brandy
primeiro. Ele agora vivia cansado, mas o sono custava a chegar.
Virou
-
se na direção da cozinha... e foi quando a buzina começou a
soar fora da casa. O som chegou até ele acima do uivo do vento, em
buzinadas curtas e i
mperativas.
Will parou de repente na porta da cozinha e apertou com firmeza o
roupão em torno da barriga volumosa. Seu rosto ficou atento, concentrado
e vivo, subitamente o rosto de um homem muito mais novo. Ficou ali por
um momento mais.
Três outras buzin
adas bruscas e breves.
Deu meia
-
volta, tirando o charuto da boca, e caminhou lentamente
pela sala de estar. Um quase sonhador senso de
déjà vu
passou sobre ele
como água tépida. Misturado a uma impressão de fatalismo.
Sabia que era Christine lá fora, antes
mesmo de erguer a cortina e
espiar. Viera buscá
-
lo, e pensou que já parecia saber disso.
O carro estava no início da alameda que vinha até a garagem, pouco
mais do que um fantasma, nas membranas da neve que soprava. A
claridade dos faróis brilhava em cone
s que se alargavam e por fim
desapareciam dentro da tempestade. Por um momento, Will teve a
impressão de haver alguém ao volante, mas piscou de novo e viu que o
carro estava vazio. Tão vazio como quando retornara à garagem, naquela
noite.
Fom! Fom! Fom
-
fom
!
Quase como se estivesse falando.
O coração de Will bateu pesadamente em seu peito. Virou
-
se
bruscamente para o telefone. Chegara, afinal, o momento de telefonar
para Cunningham. Ligar para ele, e dizer
-
lhe que acorrentasse seu
demônio de estimação.
Estav
a a meio caminho quando ouviu o motor do carro gritar. Era
um som semelhante ao brado estridente de uma mulher, farejando traição.
Um momento depois, houve um forte rangido. Will retornou à janela, a
tempo de ver o carro dando marcha à ré, do enorme monte
de neve que
fechava o final de sua entrada para a garagem. O capô de Christine estava
pulverizado de neve e ligeiramente ondulado. O motor tornou a acelerar.
As rodas traseiras giravam sobre a neve pulverizada e então aderiram ao
solo. O Plymouth saltou at
ravés da rua nevada e arremeteu novamente
contra o monte de neve. Mais neve foi atirada para o alto, desgarrando
-
se
ao vento como fumaça de charuto, jogada diante de um ventilador.
Jamais conseguirá,
pensou Will.
E mesmo que consiga invadir a entrada
da ga
ragem... e daí? Está pensando que vou sair e fazer seu jogo?
Com a respiração sibilando mais agudamente do que nunca, ele
voltou para junto do telefone, verificou o número da casa de Cunningham
e começou a discá
-
lo. Seus dedos ficaram nervosos, errou os nú
meros,
praguejou, atingiu o dispositivo de desligar, começou outra vez.
Lá fora, o motor de Christine acelerou. Um instante depois houve
um rangido, quando ela atingiu o monte de neve pela terceira vez. O
vento uivou, e a neve atingiu a grande janela envid
raçada, como areia seca.
Will passou a língua pelos lábios e tentou respirar mais devagar. No
entanto, sua garganta se comprimia, podia senti
-
lo.
O telefone começou a tocar no outro extremo. Três vezes. Quatro.
O motor de Christine gritou. Depois o baque f
orte, quando atingiu
os montes de neve que os limpa
-
neve de passagem haviam empilhado nas
duas extremidades da entrada para carros semicircular.
Seis toques. Sete. Ninguém em casa.
—
Merda!
—
sussurrou Will, e bateu com o telefone no gancho.
Seu rosto esta
va pálido, as narinas tremulavam, dilatadas, como as
de um animal farejando o fogo a favor do vento. Seu charuto se apagara.
Atirou
-
o ao tapete e tateou no bolso do roupão de banho, enquanto quase
corria para a janela. Sua mão encontrou a forma confortador
a do inalador
e os dedos se fecharam em torno do dispositivo que o fazia funcionar.
As luzes dos faróis brilharam momentaneamente em seu rosto,
quase o cegando, e ele ergueu a mão livre para proteger os olhos.
Christine colidiu de novo contra o banco de ne
ve. Pouco a pouco ia
abrindo caminho para a entrada de carros. Will a viu recuar para a rua e
desejou, ferozmente, que um limpa
-
neve aparecesse nesse instante e
batesse no carro, fazendo
-
o capotar.
Nenhum limpa
-
neve apareceu. Christine atacou de novo, o mo
tor
uivando, as luzes ofuscando através do relvado coberto de neve. Bateu
contra o monte, empurrando punhados de neve violentamente para os
lados. A dianteira se inclinou e, por um momento, Will pensou que o carro
ia tornar a arremeter contra o que restara
do monte congelado. Então, as
rodas traseiras perderam a tração e giraram freneticamente.
Christine deu marcha à ré.
Will teve a sensação de que sua garganta adquiria o diâmetro de um
alfinete. Seus pulmões lutaram por ar. Pegou o inalador e começou a usá
-
lo. A polícia. Tinha que chamar a polícia. Eles viriam logo. O 58 de
Cunningham não poderia pegá
-
lo. Estava seguro em sua casa. Estava...
Christine retornou, acelerando através da rua. Desta vez, colidiu
contra o monte de neve e o transpôs facilmente, a d
ianteira a princípio se
alteando, inundando a fachada da casa de luz, depois baixando com um
rangido. Estava na entrada da garagem. Sim, tudo bem, mas não
conseguiria ir mais longe, ela... o car...
Christine não diminuiu a marcha. Ainda acelerada, cruzou
t
angencialmente a entrada de carros semicircular, prosseguiu empurrando
a neve mais solta e mais baixa do lado do jardim e rugiu diretamente para
a janela envidraçada, onde Will Darnell continuava olhando para fora.
Ele recuou aos tropeções, arquejando com
dificuldade, e esbarrou
em sua poltrona.
Christine colidiu contra a casa. O janelão envidraçado explodiu,
deixando entrar o vento ululante. O vidro voou em flechas mortais, cada
uma delas refletindo as luzes dos faróis do carro. A neve entrou,
lançando
-
se
sobre o tapete, em erráticas espirais. Os faróis dianteiros
iluminaram momentaneamente a sala com a claridade artificial de um
estúdio de televisão e então recuou, o pára
-
choque dianteiro entortado, o
capô levantado no ar, a grade esmagada em um gotejante
sorriso cromado,
cheio de presas.
Will estava de gatinhas, lutando penosamente para respirar, o peito
pesando como uma pedra. Tinha a vaga sensação de que, se não
tropeçasse na poltrona e caísse, provavelmente seria cortado em tiras pelo
vidro que voara pa
ra todos os lados. Seu roupão se abrira, adejando atrás
dele quando se levantou. O vento que entrava em rajadas pela janela caiu
sobre o
Guia de TV
na mesinha ao lado da poltrona, e a revistinha voou
através da sala até o pé da escada, as páginas velozment
e folheadas. Will
segurou o telefone com as duas mãos e discou 0.
Christine recuou, sobre seu próprio trajeto através da neve. Recuou
toda a distância até o achatado banco de neve no início da entrada de
carros. Então avançou, acelerando rapidamente e, nes
se momento, o capô
começou a desamassar
-
se imediatamente, a grade a regenerar
-
se. Tornou
a chocar
-
se contra a parede da casa, abaixo do janelão. Mais vidro voou;
madeira estilhaçada rangeu e estalou. O pára
-
brisa de Christine, agora
rachado e leitoso, pare
cia espiar para dentro da casa, como um olho
alienígena e gigantesco.
—
Polícia!
—
pediu Will à telefonista.
Sua voz era quase inaudível, apenas um murmúrio sibilante. O
roupão esvoaçou ao gélido vento que penetrava pela janela arrombada.
Ele viu que a par
ede abaixo da janela estava quase desmoronada. Pontas
quebradas de sarrafos salientavam
-
se como ossos fraturados. O carro não
poderia entrar ali, poderia?
Poderia?
—
Por favor, senhor, quer falar mais alto?
—
pediu a telefonista.
—
A ligação não está muito
boa.
Polícia,
disse Will, mas agora sua voz nem chegava a sussurro, era
apenas um silvo de ar. Deus do céu, ele estava sufocando, asfixiando
-
se;
seu peito era uma caixa
-
forte trancada. Onde estava seu inalador?
—
Alô?
—
chamou a telefonista, indecisa.
Lá
estava ele, no chão. Will deixou o telefone cair e agachou
-
se para
pegar o inalador.
Christine atacou de novo, rugindo através do jardim e agora
colidindo com a parte lateral da casa. Desta vez, toda a parede ruiu, como
uma explosão de granada, atirando fr
agmentos de vidro e ripas.
Inacreditavelmente, como em um pesadelo, o radiador amassado e
deformado de Christine estava em sua sala de estar, ela
entrara,
Will podia
sentir o cheiro do escapamento e do motor aquecido.
O chassi de Christine agarrou
-
se em al
go e ela recuou pelo buraco
estilhaçado, com um rangido de tábuas arrancadas, a parte dianteira agora
apenas uma ruína, polvilhada de neve e reboco. Entretanto, voltaria
dentro de poucos segundos e, desta vez, conseguiria... conseguiria...
Will agarrou o i
nalador e correu às cegas para a escada.
Estava apenas na metade dos degraus, quando o uivo acelerado do
motor que avançava foi ensurdecedor. Ele se virou para olhar, mais
amparando
-
se no corrimão do que o agarrando.
A altura em que se encontrava nos degra
us emprestava à cena uma
certa aparência de pesadelo. Ele viu Christine cruzar o jardim coberto de
neve, viu o capô levantar
-
se tanto que a dianteira do carro agora
assemelhava
-
se à bocarra de imenso crocodilo vermelho e branco. De
repente, o capô se solto
u com estrondo, quando o carro tomou a colidir
contra a casa, naquele momento fazendo mais de sessenta e cinco por hora.
Christine arrancou o restante da estrutura da janela, atirando mais
tábuas estilhaçadas através da sala de estar. Os faróis altearam
-
se
ofuscantes e então ela estava
dentro,
ela estava
em sua casa,
deixando atrás
de si um imenso buraco na parede, com um fio elétrico pendendo para o
tapete, como uma negra artéria amputada. Pequenas nuvens da embutida
fibra de vidro isolante dançavam ao ven
to frio como borlas leitosas.
Will gritou, mas não ouviu o próprio grito, em meio ao
ensurdecedor rugido do motor de Christine. O silenciador Seats que Arnie
colocara nela
—
uma das poucas coisas que ele
realmente
colocara nela,
pensou Will, loucamente
—
p
endia da entrada da casa, juntamente com a
maior parte do cano de escapamento.
O Fury rugiu através da sala de estar derrubando de lado a
confortável poltrona de Will, deixando
-
a caída ali, como um pônei morto.
O piso sob Christine rangeu inquietamente e u
ma parte da mente de Will
gritou:
Isto mesmo! Afunde! Afunde! Deixe a maldita coisa cair na adega!
Vejamos se ela consegue sair de lá
! Esta imagem foi então substituída pela de
um tigre em um buraco no chão, que havia sido escavado e depois
camuflado por e
spertos nativos.
O assoalho, no entanto, suportou o peso
—
pelo menos durante
aqueles momentos
—
sem dar sinais de ruir.
Christine rugiu para ele, através da sala de estar. Em sua esteira
deixava marcas ziguezagueantes de impressões nevadas dos pneus, sobr
e
o tapete. Chocou
-
se contra a escada. Will foi atirado à parede. O inalador
escapou de sua mão e saltitou pelos degraus, de um em um, até chegar ao
último.
Christine deu marcha à ré através do aposento, as tábuas rangendo
sob seu peso. Sua traseira colidi
u com a TV Sony e o tubo de imagens
implodiu. Ela tornou a rugir para diante, batendo na parte lateral da
escada novamente, agora estilhaçando ripas e arrancando reboco. Will
pôde sentir toda a estrutura afrouxar
-
se debaixo dele. Houve uma terrível
sensaçã
o de estar
pendurado.
Por um momento, Christine ficou exatamente
abaixo dele; olhando para baixo, ele viu as entranhas oleosas no
compartimento do motor, sentiu o calor que subia dele. Ela tornou a
recuar e Will embarafustou pelos degraus, ansiando por ar,
aferrando a
gorda salsicha que era seu pescoço com os olhos esbugalhados.
Chegou ao topo da escada, um instante antes de Christine bater
novamente na parede e transformar o centro dos degraus em confusa
ruína. Um longo estilhaço de madeira caiu dentro do
motor. O ventilador
o mastigou e cuspiu fora serragem mal triturada e pequenas farpas. Toda
a casa estava impregnada do cheiro de gasolina e de fumaça do
escapamento. Os ouvidos de Will retiniam com o forte trovejar daquela
máquina impiedosa.
Christine deu
marcha à ré. Agora, seus pneus mastigavam tiras
esfarrapadas do tapete.
Pelo corredor,
pensou Will. O
sótão. Será seguro no sótão. Sim, o sót.. ob,
Deus., oh, Deus., oh, meu DEUS...
A dor final chegou subitamente, aguda como uma ferroada. Como
se um pinge
nte de gelo lhe houvesse perfurado o coração. Seu braço
esquerdo ficou bloqueado pela dor. E não conseguia respirar, o peito se
movia inutilmente. Ele tropeçou para trás. Um pé dançou sobre o nada e
então caiu de costas na escada, em duas grandes reviravol
tas que lhe
fraturaram ossos, as pernas voando acima da cabeça, os braços agitando
-
se, o roupão azul enfunado e trapeando.
Aterrou em um monte enovelado ao pé dos degraus, e Christine
precipitou
-
se para ele: esmagou
-
o, recuou, tornou a esmagá
-
lo, arrancou
o
pesado pilar de sustentação da escada, no final dos degraus, quebrou
-
o
como se fosse um graveto, deu marcha à ré e tornou a esmagar o homem.
Debaixo do assoalho, chegou o crescente gemido dos suportes,
estilhaçando
-
se e ruindo. Christine fez uma pausa no
meio da sala por um
momento, como se ouvisse. Dois de seus pneus estavam vazios e um
terceiro quase fora do aro. O lado esquerdo do carro fora amassado para
dentro e grandes partes dessa área já estavam sem pintura.
De repente, Christine começou a recuar.
O motor guinchou e ela
disparou da sala em marcha à ré, saindo pelo buraco desigual na parede
lateral da casa de Will Darnell, a traseira rebaixando
-
se vários centímetros,
antes de pousar na neve. Os pneus giraram no mesmo lugar, encontraram
apoio e a pux
aram. Ela recuou meio adernando até a rua, o motor tossiu e
falhou, uma fumaceira azul pendia no ar à sua volta, o óleo gotejava e se
espalhava.
Na estrada, ela manobrou e tomou a direção de Libertyville. A
alavanca de mudança caiu para DRIVE mas, a princí
pio, a transmissão
danificada não quis engatar; quando engatou, Christine rodou lentamente,
afastando
-
se da casa. Mais atrás, na casa de Will, uma enorme mancha de
luz refletiu
-
se na neve revolta, em um formato que não tinha a menor
semelhança com o unifor
me retângulo iluminado passando através de
uma janela. A forma da claridade na neve era absurda e estranha.
Ela se moveu lentamente, cambaleando de um lado para outro sobre
os pneus inúteis, como uma velha bêbada seguindo por um beco. A neve
caía pesadamen
te, transformada em linhas inclinadas pelo vento.
Um dos faróis, estilhaçado na última e destrutiva arremetida de
atropelamento, piscou e acendeu.
Um dos pneus começou a reinflar
-
se, depois o outro.
As nuvens de fedorento óleo queimado começaram a diminuir
.
O som incerto e engasgado do motor normalizou
-
se.
O capô desaparecido começou a reaparecer, partindo da base do
pára
-
brisa, assemelhando
-
se fantasticamente a uma estola ou xale que
fossem tricotados por agulhas invisíveis; o metal se construía do nada,
c
intilante aço azulado, em seguida escurecendo para vermelho, como que
impregnado de sangue.
As rachaduras do pára
-
brisa começaram a desfazer
-
se, em sentido
inverso, deixando atrás de si uma superfície de imaculada uniformidade.
Os outros faróis acenderam
-
s
e, um após outro; agora, Christine se
movia rápido, confiante, através da noite tempestuosa, por trás do
escarnecedor corte de suas luzes seguras.
O odômetro girava maciamente ao contrário.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, Christine repousava na
escur
idão do boxe vinte, na Garagem Faça
-
Você
-
Mesmo, do falecido Will
Darnell. O vento uivava e gemia nos montes de sucata nos fundos da
garagem, carcaças enferrujadas que talvez possuíssem seus próprios
fantasmas e suas próprias funestas lembranças, enquanto a
neve
pulverizada redemoinhava por entre os assentos rasgados e esfarrapados
e os pisos sem tapetes.
O motor de Christine dava lentos gastos estalidos, esfriando
-
se.
Christine
—
Canções adolescentes sobre
Morte
L
EIGH
F
AZ UMA
V
ISITA
James Dean, naquele Me
rcury 49,
J
únior Johnson Bonner, nos bosques da Carolim,
Inclusive Burt Reywlds, naquele negro Trans
-
Am,
Todos se reunir
ão no Rancho Cadillac.
—
Bruce Springsteen
Faltando uns quinze minutos para Leigh chegar, peguei minhas
muletas e caminhei com dificuld
ade at
é a poltrona mais próxima da porta,
a fim de ter certeza de que me ouviria, quando gritasse para ela entrar. Em
seguida, tornei a pegar meu exemplar do
Esquire
e voltei a ler um artigo
intitulado "O Próximo Vietnã", que fazia parte de um trabalho esc
olar.
Ainda não conseguira digeri
-
lo bem. Estava nervoso e assustado, em
parte
—
grande proporção, creio
—
era simples ansiedade. Eu queria vê
-
la
outra vez.
A casa estava vazia. N
ão muito depois de Leigh telefonar, naquela
tempestuosa tarde da véspera de N
atal, chamei meu pai de lado e
perguntei
-
lhe se não poderia levar mamãe e Elaine a algum lugar, na tarde
do dia vinte e seis.
—
Por que não?
—
concordou ele, bastante amável.
—
Obrigado, papai.
—
Tudo bem, mas você me deve uma, Dennis.
—
Papai!
Ele piscou
solenemente.
—
Eu coço suas costas e você coca as minhas.
—
Que grande sujeito!
—
exclamei.
—
Muito nobre
—
concordou ele.
Meu pai, que nada tem de tolo, perguntou se aquilo tinha algo a ver
com Arnie.
—
Ela é namorada dele, não é?
—
Bem
—
respondi, não mu
ito certo sobre como estaria a situação, mas
também pouco à
vontade, por motivos pessoais
—
ela tem sido. Não sei a
quantas andam agora.
—
Problemas?
—
Não fiz um bom trabalho cuidando dele, hein?
—
Isso é muito difícil de se fazer da cama de um hospital,
Dennis.
Muito bem, tomarei providências para que sua mãe e Ellie estejam fora de
casa, na tarde de terça
-
feira. Apenas, seja cauteloso, está bem?
Depois disso, ponderei o que, exatamente, ele quereria dizer com
sua
última frase; certamente não estaria preo
cupado quanto a eu tentar
atacar Leigh, ainda com uma coxa no gesso e outra meia forma de gesso
nas costas. Talvez receasse apenas que algo andasse terrivelmente fora dos
eixos, com meu velho amigo de infância subitamente transformado em
um estranho
—
e um
estranho que saíra da prisão sob fiança.
Quanto a
mim,
tinha toda certeza de que alguma coisa n
ão andava
bem, e isso me deixou um bocado assustado. O
Keystone
não é publicado
no Natal, mas todas as três redes de televisão filiadas de Pittsburgh, bem
como
os canais independentes, haviam relatado a história do que tinha
acontecido a Will Darnell, juntamente com bizarras e aterradoras tomadas
de sua casa. O lado que dava para a rua havia sido demolido. Era a única
palavra que se encaixava ali. Aquele lado da
casa parecia ter sido
atravessado por um tanque Panzer, manobrado por algum nazista
enlouquecido. A hist
ória havia estado nas manchetes da manhã
—
POSSÍVEL ASSASSINATO NA ESTRANHA MORTE DE FIGURA
PROVAVEL
MENTE LIGADA AO MUNDO DO CRIME. Isto já era ruim o
bastante, mesmo sem outra foto da casa de Will Darnell, com aquele
enorme buraco feito em um dos lados. Entretanto, tinha
-
se que ir à página
três, para ler o restante. A outra notícia era menor, porque Will Darnell
havia sido uma figura talvez "ligada ao m
undo do crime", enquanto que
Don Vandenberg fora apenas um reles atendente de posto de gasolina,
evadido da escola.
ATENDENTE DE POSTO DE GASOLINA MORTO EM UM
ATROPELAMENTO E FUGA, NA V
ÉSPERA DE NATAL, dizia o
cabeçalho. Seguia
-
se apenas uma coluna. A hist
ória terminava com o
Chefe de Polícia de Libertyville teorizando que o motorista
provavelmente estaria bêbado ou drogado. Nem ele nem o
Keystone
faziam qualquer tentativa para relacionar as mortes, separadas entre si por
quase 15 quilômetros, na noite de u
ma fortíssima nevasca que
interrompera todo o tráfego no Ohio e oeste da Pensilvânia. Entretanto, eu
era capaz de relacioná
-
las. Não queria fazê
-
lo, mas era impossível deixar
isso de lado. E meu pai não estivera olhando estranhamente para mim
várias vezes,
durante a manhã? Certo. Por uma ou duas vezes, tive a
impressão de que ia dizer qualquer coisa
—
não tinha idéia do que lhe
responderia, se ele falasse; a morte de Will Darnell, por mais estranha que
fosse, nem por isso era tão estranha quanto minhas susp
eitas. Então, ele
havia se calado sem falar. Era um alívio erguer
-
se uma barreira sobre os
acontecimentos.
A campainha tocou
às duas e quinze.
—
Entre!
—
gritei, levantando
-
me de qualquer modo em minhas
muletas. A porta se abriu e a cabeça de Leigh aparece
u.
—
Dennis?
—
Eu mesmo. Pode entrar.
Ela entrou, parecendo muito bonita em uma jaqueta para esquiar,
vermelho vivo e cal
ças azul
-
escuras. Leigh empurrou para trás o capuz
forrado de pele do agasalho.
—
Sente
-
se
—
disse ela, abrindo o zíper da jaqueta.
—
V
amos,
imediatamente, é uma ordem! Você parece uma cegonha gigante nessas
coisas.
—
Continue
—
respondi, tornando a sentar
-
me, com um baque
deselegante. Quando estamos engessados, nunca é como nos filmes: a
gente não consegue sentar
-
se como Cary Grant, prep
arando
-
se para tomar
um coquetel no Ritz, em companhia de Ingrid Bergman. Tudo acontece de
repente, e se a almofada onde aterramos não emitir um som alto e
insultuoso, como se a repentina descida nos tivesse assustado no melhor
momento, podemos considerar
-
nos felizes. Tive sorte desta vez.
—
Estou
tão carente de elogios, que chego a ficar doente.
—
Como vai, Dennis?
—
Remendando
-
me aos poucos
—
falei.
—
E você?
—
Tenho andado melhor.
Ela falou em voz baixa e mordeu o l
ábio inferior. Às vezes, isto pode
ser
um gesto sedutor em uma garota, mas não naquele momento.
—
Pendure seu agasalho e sente
-
se.
—
Certo.
Seus olhos pousaram nos meus, e fit
á
-
los era um pouco demais.
Desviei o rosto, olhando para outro lugar e pensando em Arnie. Ela
pendurou o agasalho e reto
rnou lentamente para a sala de estar.
—
Seus pais... ?
—
Consegui que o velho levasse todo mundo
—
respondi.
—
Imaginei que talvez
—
dei de ombros
—
a gente devesse conversar em
particular.
Ela parou junto do sof
á, olhando para mim através da sala. Fui
nov
amente atingido pela simplicidade de sua boa aparência
—
o adorável
corpo jovem, delineado nas calças azul
-
escuras e uma suéter em um tom
mais leve, um azul
-
pólvora, formando um conjunto que me levava a
pensar em esquiar. Leigh amarrara os cabelos em um ra
bo
-
de
-
cavalo
frouxo, que pendia sobre seu ombro esquerdo. Os olhos eram da cor de
sua suéter, talvez um pouquinho mais escuros. Uma beldade americana
bem nutrida, diria qualquer um, exceto pelos malares altos, que pareciam
um tanto arrogantes, rememorando
talvez alguma ascendência mais
antiga e mais exótica. Em sua árvore genealógica poderia existir um
viking, umas quinze ou vinte gerações anteriores.
Talvez n
ão fosse bem isso o que eu estava pensando.
Ela me viu observando
-
a por tanto tempo e enrubesceu. D
esviei os
olhos.
—
Está preocupado com ele, Dennis?
—
Preocupado? Assustado seria uma palavra melhor.
—
O que sabe sobre aquele carro? O que ele lhe contou?
—
Não muito
—
respondi.
—
Escute, quer beber alguma coisa?
Parece que há algo na geladeira... Esten
di a mão para minhas muletas.
—
Nada disso, fique aí!
—
ordenou ela.
—
Eu bebo alguma coisa,
mas posso ir apanhar. E você?
—
Quero uma soda, se sobrou alguma.
Ela foi at
é a cozinha e fiquei olhando sua sombra na parede,
movendo
-
se lentamente, como uma bail
arina. Houve um peso
momentâneo acrescentado ao meu estômago, quase.como uma náusea.
Penso que a isto se chama apaixonar
-
se pela garota do melhor amigo.
—
Vocês têm um produtor automático de gelo.
—
A voz dela
chegou até mim.
—
Também temos um. É formidáve
l!
—
De vez em quando ele dá a louca e joga cubos de gelo por todo o
chão
—
respondi.
—
Como Jimmy Cagney, em
Fúria Sanguinária:
"Tomem,
seus sujos!". Isso deixa minha mãe louca.
Eu estava tagarelando. Ela riu. Cubos de gelo tilintaram nos copos.
Logo ela
voltava, com dois copos de gelo e duas latas de soda.
—
Obrigado
—
falei, pegando a minha.
—
Não,
eu
é que lhe digo obrigada.
—
Agora seus olhos azuis
estavam escuros e graves.
—
Obrigada por você estar perto. Se tivesse que
enfrentar isso sozinha, não cre
io que... Oh, eu não sei!
—
Ora, vamos lá
—
animei.
—
A coisa não é tão ruim assim.
—
Não é? Já soube sobre Will Darnell? Assenti.
—
E sobre aquele outro? Don Vandenberg?
Isto significava que tamb
ém ela estabelecera a relação. Assenti
novamente.
—
Estive l
endo. É Christine que preocupa você, Leigh?
Durante muito tempo, fiquei em d
úvida se ela responderia ou não.
Se seria
capaz
de
responder. Pude vê
-
la lutando com a questão, os olhos
baixos para o copo que segurava nas duas mãos. Por fim disse, em voz
muito
baixa:
—
Acho que ela tentou me matar.
N
ão sei o que eu esperava, mas certamente não era aquilo.
—
O que está querendo dizer?
Ela come
çou, primeiro vacilante, depois mais depressa, até despejar
toda a história. É uma história que vocês já leram, portanto,
não vou
repeti
-
la aqui; basta dizer que tentei relatá
-
la o mais exatamente possível,
segundo o que ela me contou. Leigh não brincava sobre estar assustada.
Via
-
se isso na lividez de seu rosto, no retardamento ou arquejos de sua
voz, na maneira como as mãos
acariciavam constantemente a parte
superior dos braços, dando a impressão de que sentia frio, apesar da
suéter. E então, quanto mais falava, mais apavorado eu ficava.
Leigh terminou, ao relatar como as luzes do painel de instrumentos
pareciam transformar
-
se em vigilantes olhos, enquanto ela quase perdia
os sentidos. Riu nervosamente ao comentar isto, como se achasse o detalhe
um evidente absurdo, mas n
ão a acompanhei no riso. Estava recordando a
voz seca de George LeBay, nós dois sentados em cadeiras barat
as de pátio,
diante do Hotel Rainbow, enquanto ele me contava a história de Roland,
de Verônica e Rita. Rememorei aqueles fatos, e minha mente estabelecia
inexprimíveis conexões. Luzes acendiam
-
se. Não gostei do que elas
revelavam. Meu coração começou a ba
ter pesadamente no peito e não riria
com Leigh, nem que disso dependesse minha vida.
Leigh me contou o ultimato que lhe dera
—
ela ou o carro.
Descreveu a furiosa reação de Arnie. Aquela havia sido a última vez que
saíra com ele.
—
Então, ele foi preso
—
d
isse ela
—
e comecei a pensar... pensar
sobre o que aconteceu a Buddy Repperton e aqueles outros rapazes... e o
"Penetra" Welch...
—
E agora, Vandenberg e Darnell.
—
Sim, mas isso não é tudo.
—
Ela bebeu um gole de seu copo e
depois o encheu. A beirada da
lata castanholou brevemente na borda do
copo.
—
Na véspera de Natal, quando liguei para você,
papai e mam
ãe
tinham ido tomar uns drinques na casa do chefe de meu pai. Então,
comecei a ficar nervosa. Estava pensando sobre... oh, nem sei sobre o que
pensava.
—
Acho que sabe.
Ela pousou a m
ão na testa e a esfregou, como se estivesse ficando
com dor de cabeça.
—
Sim, acho que sei. Pensava que o carro podia estar lá fora.
Ela.
Lá
fora, pegando eles dois. Entretanto, se Christine estava fora da garagem,
na vésper
a de Natal, suponho que havia muito para mantê
-
la ocupada,
sem prejudicar meus pa...
—
Leigh bateu com o copo sobre a mesinha,
sobressaltando
-
me.
—
Ora, por que fico falando nesse carro, como se fosse
uma pessoa?
—
exclamou. As lágrimas começaram a descer
por seu
rosto.
—
Por que fico fazendo isso?
Naquela noite, vi claramente como tudo terminaria, se me
dispusesse a consol
á
-
la. Arnie estava entre nós
—
e parte de mim também
estava. Eu o conhecia há muito tempo. Muitíssimo tempo.
S
ó que isso fora antes
—
e
isto era agora.
Equilibrei
-
me nas muletas e abri caminho at
é o sofá, deixando
-
me
cair ao lado dela. As almofadas suspiraram. Não foi um chiado, mas
esteve bem perto disso.
Minha m
ãe conserva uma caixa de lenços de papel na gaveta da
mesinha de canto. Tirei
um lenço, olhei para ela, depois tirei um bom
punhado. Entreguei
-
lhe os lenços e Leigh me agradeceu. Então, não
gostando muito de mim mesmo, passei um braço por seus ombros e a
apertei.
Ela se retesou por um instante... e ent
ão permitiu que a puxasse para
meu ombro. Estava trêmula. Ficamos apenas sentados daquela maneira,
ambos receando até o menor movimento, creio. Receando que
pudéssemos explodir. Ou outra coisa qualquer. No outro lado da sala, o
relógio tiquetaqueava imponentemente sobre a lareira. A cl
aridade
brilhante do inverno, penetrando pelas janelas arqueadas, nos permitia
uma visão da rua em três sentidos. A tempestade amainara por volta do
meio
-
dia do Dia de Natal, e agora o firme céu azul sem nuvens parecia
negar que até existisse semelhante co
isa como a neve
—
porém os
montículos parecidos a dunas que rolavam pelos gramados dos jardins,
abaixo e acima na rua, como os dorsos de grandes animais sepultados,
confirmavam o fato.
—
O cheiro
—
falei afinal.
—
Como pode estar certa disso?
—
Estava lá!
—
exclamou, afastando
-
se de mim e sentando
-
se ereta.
Recolhi meu braço, com uma sensação mesclada de desapontamento e
alívio.
—
Estava lá, realmente... um cheiro horrível de podre.
—
Ela me
encarou.
—
Por quê? Você também o sentiu?
Neguei com a cabe
ça. Nun
ca o sentira. Não realmente.
—
Então, o que sabe sobre aquele carro?
—
perguntou.
—
Porque
você sabe alguma coisa. Posso ver no seu rosto.
Era a minha vez de pensar, firme e demoradamente. Por estranho
que possa parecer, o que me veio
à mente foi uma image
m de fissão
nuclear, vista em algum livro didático de ciências. Uma história em
quadrinhos. Ninguém espera vê
-
las em livros didáticos de ciências, mas
como me disse alguém certa vez, existem outros desvios e rodeios ao
longo da trilha da educação pública..
. De fato, esse alguém havia sido o
próprio Arnie. A história em quadrinhos mostrava dois átomos
"envenenados" avançando velozmente um contra o outro, em seguida se
chocando. Rápido! Em vez de um punhado de destroços (e uma
ambulância de átomos para recolh
er os nêutrons mortos e feridos), massa
crítica, reação em cadeia e o diabo de um "big bang".
Decidi, ent
ão, que a analogia daquela história em quadrinhos não
era assim tão estranha. Leigh possuía certos dados de que eu não
dispunha antes. O contrário tamb
ém era verdadeiro. Em ambos os casos,
boa parte daquilo era suposição, uma outra era constituída de sentimentos
subjetivos e circunstâncias... mas tudo em quantidade suficiente para
realmente amedrontar. Perguntei
-
me brevemente o que faria a polícia, se
so
ubesse o que sabíamos. Pude adivinhar: nada. É possível levar
-
se um
fantasma a julgamento? Ou um carro?
—
Dennis?
—
Estou pensando
—
respondi.
—
Não sente cheiro de madeira
queimada?
—
O que é que você sabe?
—
insistiu ela.
Colisão. Massa crítica. Reação
e
m cadeia. Cataplan!
A quest
ão era, segundo eu pensava, que se reuníssemos nossos
dados, teríamos que tomar alguma iniciativa ou contar para alguém. Fazer
alguma coisa. Nós...
Recordei meu sonho: o carro estacionado l
á, na garagem de LeBay, o
motor aceleran
do e diminuindo, tornando a acelerar, os faróis acendendo
-
se, o guincho dos pneus. Tomei as mãos dela nas minhas.
—
Está bem
—
falei.
—
Ouça. Arnie: ele comprou Christine de um
sujeito que agora está morto. Um sujeito chamado Roland D. LeBay. Nós a
vimos e
m seu gramado certo dia, quando voltávamos do trabalho para
casa. Então...
—
Você está fazendo o mesmo
—
cortou ela suavemente.
—
O mesmo, o quê?
—
Chamando o carro de
ela.
Assenti, sem largar suas mãos.
—
Sim, eu sei. E difícil parar. A questão é que Arni
e a queria ou
melhor, queria o carro, seja lá o que este for, desde a primeira vez que o
viu. Hoje em dia acho... eu não sabia então, mas sei agora... que LeBay
esperava por Arnie, ele o queria como dono de Christine; acho que até lhe
daria o carro de pres
ente, se fosse o caso. É como se Arnie visse Christine
e soubesse, e então LeBay viu Arnie e soube a mesma coisa.
Leigh libertou as m
ãos das minhas e recomeçou a esfregar
incessantemente os cotovelos.
—
Arnie disse que pagou...
—
Sim, é claro que pagou. E
ainda está pagando. Isto é, se restou
algo de Arnie, afinal.
—
Não entendo o que quer dizer.
—
Vou mostrar a você
—
respondi
—
, em alguns minutos. Primeiro,
preciso fazer um retrospecto.
—
Está bem.
—
LeBay tinha mulher e uma filha. Isto foi por volta dos
anos 50.
Sua filha morreu na beira da estrada. Morreu sufocada. Com um
hambúrguer.
O rosto de Leigh ficou branco, depois mais branco ainda. Por alguns
momentos, pareceu t
ão leitosa e translúcida como vidro embaciado.
—
Leigh!
—
exclamei vivamente.
—
Você e
stá bem?
—
Estou
—
respondeu ela, com arrepiante placidez. Sua cor não
melhorou. A boca se moveu em horrível careta, que talvez pretendesse ser
um sorriso tranqüilizador.
—
Estou ótima.
—
Levantou
-
se.
—
Por favor,
onde é o banheiro?
—
No fim do corredor
—
falei.
—
Leigh, você está com uma cara
horrível!
—
Preciso vomitar
—
respondeu ela, naquela mesma voz plácida.
Caminhou para a porta. Movia
-
se desajeitadamente agora, como
uma marionete, perdida toda a gra
ça de dançarina que eu vira antes em
sua sombra. Sa
iu lentamente da sala, mas quando ficou fora de vista o
ritmo de seus passos acelerou
-
se; ouvi a porta do banheiro ser escancarada
e depois os sons. Recostei
-
me contra o encosto do sofá e coloquei as mãos
sobre os olhos.
Quando voltou continuava p
álida, m
as recuperara um pouco da
coloração antiga. Lavara o rosto e ainda havia algumas gostas de água nas
faces.
—
Sinto muito
—
falei
—
Está tudo bem. Apenas... me assustou um pouco.
—
Ela esboçou
um ligeiro sorriso.
—
Acho que a história ainda não acabou, não
é?
—
Seus olhos se fixaram nos meus.
—
Responda
-
me uma coisa apenas,
Dennis. O que você disse é verdade? Verdade mesmo?
—
É
—
respondi.
—
Pura verdade. E ainda há mais. Acha que vai
querer ouvir o resto?
—
Não, mas conte assim mesmo
—
respondeu ela.
—
Pode
mos passar por alto
—
falei, sem muita convicção. Seus
olhos graves, angustiados, se prenderam nos meus.
—
Acho que seria mais... mais seguro... falarmos tudo.
—
A esposa dele suicidou
-
se, pouco depois da morte da filha.
—
O carro...
—
... estava envolvid
o.
—
Como?
—
Leigh...
—
Como?
Eu lhe contei
—
não me limitando a falar na menininha e sua mãe,
mas falando também sobre o próprio LeBay, segundo ouvira de seu irmão
George. Seu infindável estoque de raiva. As crianças que riam de suas
roupas e de seu corte
de cabelo. Sua fuga para o Exército, onde roupas e
cabelos eram iguais para todos. A oficina mecânica. O despeito constante
contra os bostas, particularmente aqueles bostas que lhe traziam seus
carros de luxo para serem consertados à custa do governo. A S
egunda
Guerra Mundial. O irmão Drew, morto na França. O velho Chevrolet. O
velho Hudson Hornet. E, através de tudo isso, aquela firme e imutável
pulsação latente: a raiva.
—
Aquela palavra...
—
murmurou Leigh.
—
Que palavra?
—
Bostas.
—
Ela precisou forçar
-
se a dizê
-
la, o nariz enrugando
-
se
em lastimável e quase inconsciente repugnância.
—
Ele
a usa. Arnie.
—
Eu sei
Entreolhamo
-
nos e suas mãos tornaram a encontrar as minhas.
—
Você está gelada
—
falei.
Mais um inteligente comentário de Dennis Guilder, aquel
a fonte de
sabedoria. Eu tinha um milhão deles.
—
Estou. Tenho a impressão de que nunca mais esquentarei.
Eu quis passar os braços em torno dela, mas não o fiz. Tinha receio.
Arnie ainda estava muito presente em tudo. O terrível naquilo
—
sim,
terrível
—
er
a como cada vez mais parecia que ele estava morto... morto ou
vítima de algum estranho encantamento.
—
O irmão dele falou mais alguma coisa?
—
Nada que pareça encaixar
-
se.
Entretanto, a recordação brotou como bolha em água parada e
estourou:
Ele era obceca
do e tinha raiva, mas não era um monstro,
tinha dito
George LeBay.
Pelo menos... não creio que fosse.
Eu tivera a sensação de que,
perdido no passado como ele estivera, quase me diria algo mais... porém,
percebera a tempo onde estava e que falava a um estr
anho. O que
pretenderia dizer?
Quase em seguida, tive uma idéia monstruosa. Rejeitei
-
a. Ela se foi...
mas era difícil livrar
-
me dela. Como empurrar um piano. E eu ainda podia
ver seus contornos nas sombras.
Percebi que Leigh me observava atentamente e me p
erguntei quanto
do que estivera pensando se revelaria em meu rosto.
—
Você tem o endereço do Sr. LeBay?
—
perguntou ela.
—
Não.
—
Refleti por um instante e então recordei o funeral, que
agora parecia infinitamente distante, perdido no tempo.
—
Mas acho que
o Posto da Legião Americana de Libertyville deve ter. Eles sepultaram
LeBay e entraram em contato com o irmão. Por quê?
Leigh apenas meneou a cabeça e foi até a janela, de onde ficou
espiando para o dia ofuscante.
Fim do ano,
pensei ao acaso.
Ela se virou
para mim, e fiquei novamente surpreso com sua beleza
tranqüila, sem intimações, exceto pelos malares altos e arrogantes, o tipo
de malares que se poderia esperar em uma dama que, provavelmente,
carregasse um punhal à cinta.
—
Você disse que me mostraria u
ma coisa
—
disse.
—
O que era?
Assenti. Agora não podia parar mais. Começara a reação em cadeia.
Seria impossível interrompê
-
la.
—
Vá lá em cima
—
pedi.
—
Meu quarto é a segunda porta à
esquerda. Procure na terceira gaveta da cômoda. Vai ter que procurar
d
ebaixo de minhas cuecas, mas elas não mordem.
Ela sorriu
—
apenas um pouquinho, mas já era alguma coisa.
—
E o que vou encontrar? Um pacotinho de droga?
—
Desisti disso o ano passado
—
repliquei, sorrindo também.
—
Este ano passei para o Quaalude. Financio
o vício vendendo heroína no
ginásio.
—
O que é afinal?
—
O autógrafo de Arnie
—
disse
—
, imortalizado em gesso.
—
Autógrafo de Arnie? Assenti.
—
Em duplicata
—
acrescentei.
Ela os encontrou, e cinco minutos depois estávamos novamente no
sofá, olhando para
dois pedaços de molde de gesso. Pusemo
-
los lado a
lado sobre a superfície de vidro da mesinha de café, ligeiramente
esfiapados nos lados, um pouco sujos pelo uso. Outros nomes ficaram
pela metade em um deles. Eu havia guardado os moldes e mesmo
orientara
o enfermeiro onde cortá
-
los. Mais tarde, eu recortara os dois
quadrados, um da perna direita, outro da esquerda.
Olhamos para eles em silêncio:
Leigh me fitou, inquisitiva e perplexa.
—
São pedaços dos seus...
—
Meus moldes de gesso. Exatamente.
—
Isso
é... alguma brincadeira ou o quê?
—
Não é nenhuma brincadeira
—
afiancei.
—
Eu o vi assinando os
dois moldes.
Agora que tinha dito, sentia uma espécie de relaxamento, de
estranho alívio. Era bom poder partilhar aquilo com alguém. Estivera me
roendo e cutuc
ando a mente por muito tempo.
—
Não há a menor semelhança entre as duas assinaturas.
—
Nem precisa me dizer
—
respondi.
—
Entretanto, Arnie também
não é muito igual ao Arnie de antigamente. E tudo isso nos leva de volta
àquele maldito carro.
—
Dei uma fort
e pancada no pedaço de gesso da
esquerda.
—
Essa não é a assinatura dele! Conheci Arnie a vida inteira, vi
seus trabalhos de casa, vi quando assinava requisições de materiais, seus
recibos de pagamento, e digo que
essa não é a assinatura dele! A
da direita
é
dele. Essa daqui, não. Quer fazer uma coisa para mim amanhã, Leigh?
—
O quê?
Eu lhe disse. Ela concordou lentamente.
—
Para nós.
—
Como?
—
Farei por nós. Porque temos que fazer alguma coisa, não?
—
Claro
—
assenti.
—
Acho que sim. Posso fazer uma pergun
ta
pessoal? Ela afirmou com a cabeça, os olhos azuis fixos nos meus.
—
Como tem dormido ultimamente?
—
Não muito bem
—
respondeu.
—
Maus sonhos. E você?
—
A mesma coisa. Nada muito bom.
Então, por não me conter mais, passei as mãos por seus ombros e a
beij
ei. Houve uma hesitação momentânea e pensei que ela fosse recuar...
mas então o queixo se ergueu e Leigh devolveu o beijo, plena e
firmemente. Talvez houvesse nisso uma espécie de sorte, porque eu estava
praticamente imobilizado.
Quando o beijo terminou, e
la fitou meus olhos interrogativamente.
—
Contra os sonhos
—
falei.
Pensei que a frase me sairia tola e falsa, da maneira como aparece no
papel, mas em vez disso soou trêmula, quase dolorosamente franca.
—
Contra os sonhos
—
repetiu ela, gravemente, como s
e fosse um
talismã.
Desta vez, ela inclinou a cabeça para mim e tornamos a nos beijar,
observados por aqueles dois informes pedaços de gesso, que nos fitavam
como brancas escleróticas cegas, com o nome de Arnie escrito neles.
Beijamo
-
nos pelo simples confo
rto animal proveniente do contato
animal
—
bem, isso e algo mais, começava a ser algo mais
—
, e então nos
abraçamos sem falar e não creio que estivéssemos brincando sobre o que
estava acontecendo conosco
—
pelo menos, não inteiramente. Era como
também podi
a ser o velho e bom sexo
—
pleno, maduro, efervescente de
hormônios adolescentes. E talvez ainda houvesse a chance de ser algo
mais pleno e mais agradável do que apenas sexo.
Contudo, havia algo mais naqueles beijos
—
eu sabia disso, ela sabia
e, provavelm
ente, você também. Aquela outra coisa era uma espécie de
vergonhosa sensação de traição. Eu podia sentir dezoito anos de
lembranças clamando
—
a fazenda de formigas, os jogos de xadrez, filmes,
as coisas que ele me ensinara, as vezes que eu o protegera, im
pedindo que
o molestassem. Bem, talvez não o tivesse protegido, no final. Talvez o
tivesse visto como era pela última vez
—
um triste, angustiante final, por
falar nisso
—
naquela noite do Dia de Ação de Graças, quando ele me
levara os sanduíches de peru e
cerveja.
Penso não ter ocorrido a nenhum de nós dois que, até então, nada de
imperdoável havíamos feito a Arnie
—
nada que pudesse enfurecer
Christine. Agora, contudo, estava feito.
T
RABALHO DE
D
ETETIVE
Bem, quando as veias se romperem
E eu ficar perdido
na ponte do rio,
Todo arrebentado na estrada
E à margem da água,
Virão médicos pela rodovia,
Prontos a costurar
-
me com linha,
E se eu cair doente,
Sei que ela vem pôr um lençol
na minha cama.
—
Bob Dylan
O que aconteceu nas mais ou menos três semanas seg
uintes, foi que
eu e Leigh bancamos os detetives
—
e nos apaixonamos.
No dia seguinte, ela foi à Prefeitura e pagou cinqüenta centavos pela
xerox de dois documentos
—
estes são enviados para Harrisburg e depois
uma cópia é remetida de volta à cidade.
Desta
vez, minha família estava em casa, quando Leigh chegou. Ellie
aproveitou as menores oportunidades para cair em nossa pele. Estava
fascinada por Leigh e fiquei secretamente feliz quando, cerca de uma
semana após o Ano
-
Novo, começou a amarrar o cabelo para
trás, como
Leigh usava. Tive vontade de gozá
-
la por causa disso... mas resisti à
tentação. Talvez eu estivesse crescendo um pouquinho (mas não o
suficiente para deixar de surrupiar um de seus petiscos, quando o
descobri escondido atrás dos recipientes de p
irex para sobras, dentro da
geladeira).
Exceto pelas incursões ocasionais de Ellie, eu e Leigh ficamos a
maior parte do tempo com a sala de estar para nós naquela tarde
seguinte
—
vinte e sete de dezembro
—
após terem sido cumpridas as
amenidades sociais.
Apresentei Leigh a meus pais, mamãe serviu café e
conversamos. Elaine falou quase o tempo todo
—
tagarelando sobre sua
escola e crivando Leigh de perguntas sobre a nossa. A princípio fiquei
aborrecido, porém grato depois. Meus pais são o máximo, em matéria
de
classe média polida (se mamãe estivesse sendo conduzida à cadeira
-
elétrica e tropeçasse no capelão, certamente lhe pediria desculpas), e
percebi claramente que gostaram de Leigh. Entretanto, também ficou
óbvio
—
para mim, pelo menos
—
que estavam perpl
exos e um tanto
constrangidos, perguntando
-
se onde Arnie se encaixaria naquele quadro.
Acho que eu e Leigh nos perguntávamos o mesmo. Por fim, eles
fizeram o que fazem os pais em geral, quando não entendem tais
situações
—
aceitaram tudo como coisa de cria
nças e foram tratar da
própria vida. Papai foi o primeiro a desculpar
-
se alegando que sua oficina
no porão estava na confusão costumeira de pós
-
Natal e precisava dar um
jeito naquilo. Mamãe disse que ia escrever um pouco.
Ellie olhou solenemente para mim e
perguntou:
—
Dennis, Jesus tinha um cachorro?
Ca
í na gargalhada, Ellie também. Leigh ficou espiando para nós,
rindo, sorrindo polidamente, da maneira como fazem os estranhos, ante
uma piada de família.
—
Dê o fora, Ellie
—
falei.
—
E se eu não der?
—
perg
untou ela, mas era apenas rotina,
implicância de garota, porque já estava se levantando.
—
Faço você lavar minha roupa de baixo
—
respondi.
—
Nem
morta!
—
declarou ela, imponente, e saiu do aposento.
—
Minha irmãzinha...
—
comentei. Leigh sorria.
—
Ela é ót
ima.
—
Se tivesse que aturá
-
la em tempo integral, garanto como mudaria
de idéia. Vejamos o que você conseguiu.
Leigh colocou as c
ópias em xerox sobre a superfície de vidro da
mesa de café, onde os moldes de gesso haviam estado na véspera.
Era o novo regist
ro de um carro usado, um Plymouth 1958, sed
ã de
quatro portas, vermelho e branco. Estava datado de 1º de novembro de
1978 e assinado por Arnold Cunningham. Seu pai revalidara a assinatura:
—
Você acha isto parecido com quê?
—
Com uma das assinaturas em
um daqueles pedaços de gesso que
você me mostrou
—
disse ela.
—
Qual?
—
É a maneira como ele assinou, logo depois que fui acidentado em
Ridge Rock
—
respondi.
—
É como ele sempre assinou. Agora, vejamos a
outra.
Ela a colocou ao lado da primeira. Era a fol
ha do registro de um
carro novo, um Plymouth 1958, sed
ã de quatro portas, vermelho e branco.
Estava datado de 1º de novembro de 1957
—
senti um certo choque ante
aquela exata similaridade e, ao olhar para o rosto de Leigh, percebi que o
mesmo acontecera co
m ela.
—
Observe a assinatura
—
disse Leigh, em voz baixa. Observei.
Aquela era a caligrafia que Arnie usara na noite do Dia de A
ção de
Graças: ninguém precisaria ser gênio ou grafólogo para ver isso. Os nomes
eram diferentes, porém a grafia era exatamen
te a mesma. Leigh estendeu
a mão e eu a tomei na minha.
O que meu pai fazia no por
ão, em sua oficina, era fabricar
brinquedos. Imagino que isto possa lhes parecer um tanto singular, mas
acontece que é um
hobby
para ele. Talvez seja mais do que isso
—
supon
ho
que houve uma época em sua vida, em que teve que fazer a difícil escolha
entre ir para uma faculdade ou trabalhar por conta própria, como
fabricante de brinquedos. Se for verdade, acho que ele escolheu o meio
mais seguro. Às vezes me parece ver isto em
seus olhos, como um velho
fantasma que ainda não repousou de todo, mas provavelmente seja
apenas imaginação minha, que antigamente era menos ativa do que hoje.
Eu e Ellie éramos os principais beneficiados, mas Arnie também
encontrou vários brinquedos fabri
cados por meu pai, debaixo de várias
árvores de Natal e ao lado de vários bolos de aniversário. O mesmo
acontecia com a melhor amiguinha de infância de Ellie, Aimée Carruthers
(que há muito se mudou para Nevada e, atualmente, é mencionada nos
tons melancól
icos reservados aos que morreram jovens e insensatamente),
e muitas outras.
Agora, meu pai doava a maior parte do que fazia ao Fundo 400, do
Exército da Salvação. Antes do Natal, o porão sempre me recordava a
oficina de trabalho de Papai Noel
—
até pouco a
ntes do Natal, ficava
entulhado de caprichosas caixas de papelão, contendo trenzinhos de
madeira, móveis em miniatura, relógios com ponteiros que realmente
marcavam as horas, bichinhos de pano, um ou dois pequenos teatros de
marionetes. Seu interesse centr
alizava
-
se nos brinquedos de madeira (até a
Guerra do Vietnã, ele fizera batalhões de soldadinhos, porém nos últimos
cinco anos, mais ou menos, os viera abandonando aos poucos e, mesmo
agora, não tenho certeza de que estivesse cônscio da mudança), mas send
o
versátil, penetrava em todos os campos. Na semana seguinte ao Natal,
havia uma pausa. A oficina parecia terrivelmente vazia, com apenas o
cheiro adocicado da serragem para recordar
-
nos que os brinquedos
haviam estado lá.
Nessa semana, ele varria, limpava
, azeitava seus instrumentos e se
preparava para o ano seguinte. Então, quando o inverno ia passando por
janeiro e fevereiro, começariam a surgir de novo os brinquedos e o
aparente lixo que se transformaria em partes de brinquedos
—
trens e
bailarinas com
articulações de madeira e círculos vermelhos nas
bochechas, uma caixa cheia de estofamento que pertencera ao velho sofá
de alguém e que mais tarde seria o recheio de um urso (os ursos de meu
pai sempre se chamavam Owen ou Olive
—
eu acabara com seus ursos
Owen entre a infância e o segundo ano primário, enquanto Ellie dera cabo
de um mesmo número de ursos Olive), pequenos enrolados de fios, botões
e olhos isolados, sem corpos, espalhados por sobre a bancada de trabalho,
como algo saído de uma sensacionalista
história de terror. Mais tarde,
surgiriam as caixas das lojas de bebidas e os brinquedos seriam
novamente guardados nelas.
Nos últimos três anos, ele recebera três prêmios do Exército da
Salvação, mas os mantinha escondidos em uma gaveta, como que
envergo
nhado deles. Eu não entendia isso na época, e não entendo agora,
pelo menos inteiramente, mas sei que não era vergonha. Meu pai nada
tinha de que se envergonhar.
Depois do jantar daquela noite, com dificuldade fui descendo a
escada, agarrado ao corrimão co
m um braço e usando a outra muleta
como bastão de esqui.
—
Dennis
—
disse papai, amável, mas ligeiramente apreensivo
—
quer que o ajude?
—
Não, eu me arranjo.
Ele deixou a vassoura ao lado de um pequeno punhado amarelo de
pó de serra e farpas de madeira, p
ara ver se eu realmente me saía bem na
descida.
—
Então, que tal um empurrão?
—
Ha
-
ha, muito engraçadinho!
Terminei de descer, arrastei
-
me para a grande poltrona que ele
mantém a um canto, perto de nossa antiga televisão preto
-
e
-
branco, e me
sentei.
Pluft!
—
Como está indo?
—
perguntou ele.
—
Bastante bem.
Ele pegou um punhado de cavacos de madeira com um pano de pó,
atirou
-
o em sua cesta de lixo, espirrou e apanhou um pouco mais.
—
Não sente dor?
—
Não. Bem... um pouco.
—
Precisa tomar cuidado com degraus.
Se sua mãe visse o que
acabou de... Sorri
—
Eu sei. Ela gritaria.
—
Onde
está
sua mãe?
—
Ela e Ellie foram à casa dos Renneke. Dinah Renneke ganhou
uma coleção completa dos discos de Shaun Cassidy, no Natal. Ellie está
roxa
de inveja.
—
Pensei que Shaun t
ivesse passado de moda.
—
Talvez ela receie que a moda esteja voltando.
Papai riu. Houve um silêncio amistoso por um momento, eu sentado,
ele fazendo a limpeza. Eu sabia que papai ia acabar tocando no assunto, e
assim foi.
—
Leigh costumava sair com Arnie,
não é?
—
perguntou.
—
Costumava
—
respondi
Ele olhou para mim, depois prosseguiu com seu trabalho. Pensei
que fosse perguntar se eu julgava aquilo prudente ou talvez mencionar
que um sujeito roubar a garota de outro não era a melhor maneira de
incentivar
uma amizade. Entretanto, não disse nem uma coisa nem outra.
—
Mal temos visto Arnie ultimamente. Será que ficou envergonhado
da confusão em que se meteu?
Minha impressão era de que papai não acreditava nisso, em
absoluto. Estava apenas jogando verde.
—
Não
sei
—
respondi
—
Não creio que ele tenha muito com que se preocupar. Agora, com
Will Darnell morto...
—
Papai sacudiu o pano de pó acima da cesta de lixo
e as aparas de madeira deslizaram para dentro dela com um pluft
macio.
—
Enfim, duvido muito que eles
até se dêem o trabalho de
instaurar processo.
—
É mesmo?
—
Não há nada sério contra Arnie. Pode ser multado e o juiz
provavelmente lhe fará um sermão, porém ninguém vai querer colocar
uma marca negra permanente na ficha de um jovem e decente suburbano
bra
nco, destinado a cursar uma faculdade e assumir um próspero lugar na
sociedade.
Papai me dirigiu um olhar agudo e questionante. Eu me remexi na
poltrona, sentindo
-
me repentinamente pouco à vontade.
—
Sim, acho que sim
—
respondi.
—
A menos que ele não seja
mais assim, hein, Dennis?
—
Não é não. Arnie mudou.
—
Quando foi a última vez que o viu?
—
No Dia de Ação de Graças.
—
E ele estava bem?
Sacudi a cabeça lentamente, de súbito sentindo vontade de chorar e
soltar tudo o que sabia. Já me sentira assim antes
e ficara calado; desta vez
também consegui calar
-
me, porém por uma razão diferente. Recordei o
que Leigh me dissera, quanto a ficar nervosa por causa dos pais, na
véspera do Natal. E agora, a mim parecia que quanto menos pessoas
soubessem de nossas suspeit
as, tanto melhor... para elas.
—
O que há de errado com ele?
—
Não sei.
—
Leigh sabe?
—
Não. Não há nenhuma certeza. Temos... algumas suspeitas.
—
Quer falar sobre isso?
—
Quero. Por um lado, eu quero, mas acho que seria melhor não
falar.
—
Está bem
—
diss
e ele.
—
Não fale por enquanto.
Varreu o chão. O som das cerdas duras sobre o concreto do piso era
quase hipnótico.
—
Talvez fosse melhor você ter uma conversa com Arnie, o quanto
antes.
—
Sim, já pensei nisso.
Entretanto, eu não ansiava nem um pouco pelo
encontro. Houve
outro período de silêncio. Papai terminou de varrer e depois passou os
olhos em torno.
—
Parece que fiz um bom serviço, não?
—
Excelente, papai.
Ele sorriu com certa tristeza e acendeu um Winston. Desde seu
ataque do coração parara de fumar
quase completamente, mas mantinha
um maço por perto e de vez em quando fumava um
—
em geral quando
estava tenso.
—
Droga, isto aqui parece deserto como o diabo!
—
Hum... também acho.
—
Quer uma ajudazinha para subir, Dennis? Ajeitei
-
me nas muletas.
—
Não
é para se desprezar.
Ele olhou para mim e deu uma risadinha abafada.
—
Long John Siver. Só falta o papagaio.
—
Vai ficar aí parado, rindo, ou me ajudar?
—
Ajudar, é claro.
Passei um braço por seu ombro, de certa forma sentindo
-
me
novamente criança
—
aquilo
provocou lembranças esquecidas de papai
me levando para cima, para minha cama nas noites de domingo, depois
que eu começava a cochilar, quando o
Programa de Ed Sullivan
ia pelo meio.
Até o cheiro da loção de barba era o mesmo.
No alto da escada, ele disse
:
—
Interrompa
-
me, se eu estiver sendo muito indiscreto, Denny.
Leigh não está mais saindo com Arnie, está?
—
Não, papai.
—
Está saindo com você?
—
Eu... bem, realmente não sei. Acho que não.
—
Ainda
não, é o que quer dizer.
—
Bem., é sim, acho que é isso.
Eu começava a sentir
-
me constrangido e ele devia ter percebido, mas
insistiu.
—
Seria correto afirmar que ela rompeu com Arnie porque ele não
era mais o mesmo?
—
Sim, creio que seria correto dizer isso.
—
Ele sabe sobre você e Leigh?
—
Papai, não há nada
para saber... pelo menos por enquanto.
Ele pigarreou, pareceu considerar aquilo, e não disse nada. Soltei
-
me
dele e procurei ajeitar minhas muletas. Talvez tivesse demorado um
pouco mais do que o necessário nisso.
—
Vou lhe dar um conselho de graça
—
disse
meu pai
finalmente.
—
Não deixe o Arnie saber o que há entre você e ela... e nem
se incomode em protestar, quanto a não haver nada. Estão tentando ajudá
-
lo de alguma forma, não é isso?
—
Não sei se existe alguma coisa que eu ou Leigh possamos fazer
por Ar
nie, papai.
—
Eu o vi umas duas ou três vezes
—
disse papai.
—
Você o viu?
—
perguntei sobressaltado.
—
Onde? Meu pai deu de
ombros.
—
Oh, na rua. No centro da cidade. Afinal, Libertyville não é tão
grande assim, Dennis. Ele...
—
O quê?
—
Mal pareceu recon
hecer
-
me. E parece mais velho. Agora que
ficou sem as espinhas, parece muito mais velho. Eu costumava pensar que
saíra ao pai, mas agora...
—
Ele se interrompeu de repente.
—
Dennis, já
pensou que Arnie possa estar tendo alguma espécie de colapso nervoso?
—
Já
—
respondi.
No entanto, eu desejaria ter
-
lhe dito que havia outras possibilidades.
Possibilidades piores, que talvez levassem meu pai a pensar se não seria
eu quem estava tendo um colapso nervoso.
—
Seja cauteloso
—
disse ele. Embora não mencionasse o
que
sucedera a Will Darnell, de repente tive a forte intuição de que pensava
naquilo.
—
Seja cauteloso, Dennis.
Leigh telefonou para mim no dia seguinte e disse que seu pai
recebera um chamado de Los Angeles, sobre negócios de fim de ano e que,
no impulso
do momento, propusera levar a família, para que se
afastassem do frio e da neve.
—
Mamãe não fala em outra coisa e eu, simplesmente, não encontro
um motivo para me recusar a ir
—
disse ela.
—
Serão apenas dez dias e as
aulas só vão começar a oito de janei
ro.
—
Parece uma excelente idéia
—
respondi.
—
Divirta
-
se por lá..
—
Acha que eu deveria ir?
—
Se não for, seria bom examinar sua cabeça.
—
Dennis?
—
O que é?
A voz dela baixou um pouco.
—
Vai tomar cuidado, não vai? Eu... bem, ultimamente tenho
pensado mu
ito em você.
Ela desligou em seguida, deixando
-
me surpreso e satisfeito
—
embora permanecesse a sensação de culpa, um pouco menor agora, mas
ainda existente. Papai perguntara se eu estava tentando ajudar Arnie.
Estaria? Ou talvez me limitava a espionar uma
parte de sua vida, que ele
rotulara de proibida... e roubava sua namorada enquanto isso? E,
exatamente o que, Arnie
faria ou diria
se descobrisse?
Minha cabeça latejava com tantas perguntas e pensei que talvez até
fosse bom Leigh afastar
-
se de Libertyvill
e durante alguns dias.
Como ela tinha dito sobre nossos pais
—
parecia mais seguro.
No dia 29, sexta
-
feira, o último dia útil do ano velho, liguei para o
Posto da Legião Americana de Libertyville e pedi para falar com o
secretário. Eu conseguira seu nome,
Richard McCandless, com o porteiro
do prédio, que também me fornecera o número de telefone onde o
encontraria. Descobri que o número pertencia a uma boa casa de móveis
de Libertyville, em nome de David Emerson. Disseram
-
me que esperasse
um momento, e entã
o ouvi a voz de McCandless, grave e rouca,
parecendo ser de um homem forte e sessentão
—
como se ele e Patton
houvessem aberto caminho para Berlim, através da Alemanha, ombro a
ombro e talvez abocanhando no ar as balas inimigas, à medida que
avançavam.
—
M
cCandless
—
disse ele.
—
Sr. McCandless, meu nome é Dennis Guilder. Em agosto passado,
os senhores providenciaram um funeral em estilo militar, para um homem
chamado Roland D. LeBay...
—
Ele era seu amigo?
—
Não, apenas um mero conhecido, mas...
—
Então cr
eio que não ferirei seus sentimentos com o que vou
dizer
—
respondeu McCandless, a voz soando como se cascalhos
chocalhassem em sua garganta. Parecia uma mistura de Andy Devine e
Broderick Crawford.
—
LeBay não passava de um grande filho da mãe e,
se minha
vontade prevalecesse, a Legião não levantaria um dedo para
sepultá
-
lo. LeBay abandonou a organização em 1970, mas se não a
abandonasse, nós o expulsaríamos. Aquele homem foi o bastardo mais
brigão que já existiu.
—
É mesmo?
—
Pode ter certeza. Ele começav
a uma discussão com alguém e fazia
aquilo transformar
-
se em briga. Não se podia jogar pôquer com o cretino e,
certamente, não se podia também beber com ele. Era impossível a
convivência com ele; antes de mais nada, porque LeBay não se dava com
ninguém. E n
ão precisava ir muito longe para exaltar
-
se e brigar. Um
louco filho da mãe, se perdoa a minha franqueza. Quem é você, rapaz?
Por um insano momento, pensei em citar Emily Dickinson para ele:
"Não sou ninguém! Quem é você?".
—
Um amigo meu comprou um carro
de LeBay, pouco antes dele
morrer..
—
Quê! Não me diga que foi aquele 57!
—
Bem, em realidade, era um 58...
—
Certo, certo, 57 ou 58, vermelho e branco. Era a única maldita
coisa com que ele se preocupava. Tratava o carro como se fosse uma
mulher. Sabia qu
e foi por causa desse carro que ele deixou a Legião?
—
Não, não sabia
—
respondi.
—
O que aconteceu?
—
Ah, merda. Uma velha história, garoto. Bem, estou enchendo seus
ouvidos de sujeira, mas o caso é que vejo tudo vermelho, sempre que
penso naquele filho d
a mãe do LeBay. Ainda tenho as cicatrizes nas mãos.
Tio Sam ficou com três anos de minha vida durante a Segunda Guerra
Mundial e isso só me rendeu uma condecoração, um Coração Púrpura,
embora permanecesse em combate todo aquele tempo. Abri caminho a
duras
penas através de metade daquelas merdinhas de ilhas do Pacífico
Sul. Eu e mais cinqüenta outros caras sujeitamos Guadalcanal e uma carga
banzai... dois milhões de fodidos japoneses avançando contra nós,
excitados até os olhos e agitando aquelas espadas que
recortam de latas de
café, e nunca tive um arranhão. Duas balas passaram certeiras a meu lado,
e pouco antes de finalizarmos a carga, o sujeito mais perto de mim teve as
tripas rearrumadas por cortesia do Imperador do Japão, mas as únicas
vezes que vi a c
or de meu próprio sangue, lá no Pacífico, era quando me
cortava fazendo a barba. Então...
McCandless riu.
—
Ora, que merda, lá vou eu outra vez! Minha mulher diz que um
dia toda essa merda me cairá na boca, de tanto eu arreganhá
-
la. Como é
mesmo o seu nome
?
—
Dennis Guilder.
—
Ok, Dennis, sujei seus ouvidos, agora suje os meus. O que deseja?
—
Bem, meu amigo comprou aquele carro e o restaurou... para uma
espécie de exibição, seria o termo. Um carro de exposição.
—
Hum
-
hum, justo como LeBay
—
disse McCandles
s, e minha boca
ficou seca.
—
Ele adorava aquele carro fodido, posso lhe garantir. Não
dava uma merda pela mulher... sabia o que aconteceu com ela?
—
Sim
—
respondi
—
Ele a levou a isso
—
disse McCandless, carrancudamente.
—
Depois que a filha deles morreu
, a esposa não recebeu dele o menor
consolo. Aliás, não acredito que ele também desse a mínima merda pela
criança. Desculpe, Dennis, mas não consigo me conter. Falo assim o tempo
todo. Sempre. Minha mãe costumava dizer: "Dickie, sua língua é presa no
meio
e solta nas extremidades." O que foi que você disse que queria?
—
Eu e meu amigo fomos ao funeral de LeBay
—
expliquei
—
e
depois que a cerimônia terminou, apresentei
-
me a seu irmão...
—
Parecia um sujeito decente
—
cortou McCandless.
—
Professor
em Ohio.
—
Exatamente. Conversamos e ele me deu a impressão de ser um
homem bastante correto. Contei
-
lhe que faria em minha prova final de
inglês um trabalho sobre Ezra Pound...
—
Ezra o quê?
—
Pound.
—
Merda, quem é? Estava no funeral de LeBay?
—
Não, senhor. Poun
d foi um poeta.
—
Um o quê?
—
Poeta. Também já morreu.
—
Oh
—
disse McCandless, demonstrando dúvida.
—
De qualquer modo, LeBay, eu me refiro a George LeBay, disse
que me enviaria algumas revistas sobre Ezra Pound, para a minha prova,
se eu quisesse. Bem, a
contece que eu poderia usá
-
las, mas esqueci o
endereço dele. Pensei que o senhor poderia ter.
—
Claro, deve estar nos registros; tudo isso é registrado. Odeio ser
um maldito secretário, mas meu ano termina em julho e nunca mais quero
o cargo. Sabe o que qu
ero dizer? Um fodido, nunca mais!
—
Espero não estar incomodando muito.
—
Não, diabo, não! Quero dizer, afinal, para que serve a Legião
Americana, não é mesmo? Para ajudar os outros. Me dê seu endereço,
Dennis, e vou enviar um cartão com a informação.
Forn
eci
-
lhe meu nome e endereço, desculpando
-
me por tê
-
lo
perturbado em seu trabalho.
—
Não, nem pense nisso
—
respondeu ele.
—
De qualquer modo,
estou em minha maldita folga para o café.
Por um momento, senti
-
me tentado a perguntar
-
lhe o que ele fazia
na casa
de móveis de David Emerson, onde a elite de Libertyville
comprava. Seria um vendedor? Eu podia vê
-
lo mostrando a mercadoria a
alguma jovem elegante, dizendo:
Veja aqui este fodido e lindo sofá, madame, e
aqui esta maldita poltrona, posso lhe garantir que
não tínhamos nada disto em
Guadalcanal, quando aqueles fodidos japoneses drogados caíram sobre nós, com
suas espadas de lata.
Sorri ligeiramente, mas o que ele disse em seguida logo me deixou
sério.
—
Andei umas duas vezes naquele carro de LeBay. Não pude
gostar
dele. Raios me partam se sei por que, mas o caso é que nunca fui com ele.
E nunca mais entrei nele, depois que sua esposa... você entende. Céus,
aquilo me dava arrepios.
—
Acredito que sim
—
falei, e minha voz parecia vir de muito
longe.
—
Escute, o
que
aconteceu,
quando ele saiu da Legião? O senhor não
disse que tinha algo a ver com o carro?
Ele riu, parecendo um pouco satisfeito.
—
Não está mesmo interessado nessa velha história, está?
—
Bem... estou. Claro que estou. Meu amigo comprou o carro,
lem
bre
-
se.
—
Sendo assim, vou contar. Sim, foi uma maldita coisa curiosa.
Alguns companheiros mencionam isso de vez em quando, se temos
alguma folga. Não fui o único com cicatrizes nas mãos. Falando
francamente, foi algo de arrepiar.
—
Como aconteceu?
—
Ah, u
ma brincadeira de criança. Bem, na verdade, ninguém
gostava do filho da puta, você entende. Era um estranho, um solitário...
Como Arnie,
pensei.
—
... e todos tínhamos bebido
—
terminou McCandless.
—
Foi após a
reunião, e LeBay se mostrara um sujeito ainda
mais cretino que de
costume. Havia um grupo nosso no bar, compreenda, e podíamos dizer
que LeBay se dispunha a voltar para casa. Estava pegando seu blusão e
discutindo com Anderson "Cachorrinho" sobre um detalhe de beisebol.
Quando LeBay ia embora, era sem
pre do mesmo jeito, garoto. Ele saltava
para aquele Plymouth, dava marcha à ré e depois pisava. Aquela coisa
disparava do pátio de estacionamento como um foguete, jogando cascalho
para toda parte. Então a idéia foi de Sonny Bellerman... quatro de nós
saímo
s pela porta dos fundos e fomos para o pátio de estacionamento,
enquanto LeBay gritava com "Cachorrinho". Ficamos atrás do canto mais
distante do prédio, porque sabíamos onde ele terminava a marcha à ré do
carro, antes de disparar para diante. Ele sempre o
chamava por um nome
de mulher, já lhe disse, era como se fosse casado com a maldita coisa.
'"Fiquem de olhos bem abertos e cabeça baixa, ou ele nos verá', disse
Sonny. 'E não se movam, enquanto eu não mandar.' Estávamos todos um
tanto ou quanto de pileque
, entenda.
"Então, uns dez minutos depois, lá vinha ele, bêbado como um
gambá e apalpando os bolsos à procura das chaves. Sonny disse: 'Fiquem
atentos, caras, e bem agachados!'
"LeBay entrou no carro e deu marcha à ré. Tudo perfeito, porque
parou para acen
der um cigarro. Enquanto fazia isso, nós agarramos o
pára
-
choque traseiro daquele Fury e levantamos as rodas traseiras do chão,
para que quando ele tentasse seguir em frente, jogando cascalho para
todos os lados, como sempre, você me entende, as rodas fica
riam apenas
girando, sem ir a lugar nenhum. Entende o que quero dizer?"
—
Entendo
—
respondi.
Era
uma brincadeira de criança. Tínhamos feito aquilo de vez em
quando nos bailes do colégio. Certa vez, de molecagem, tínhamos
impedido a partida do Dodge do tre
inador Puffer, suspendendo do chão
suas rodas de tração.
—
No entanto, tivemos uma espécie de choque. Ele acendeu o
cigarro e depois ligou o rádio. Era outra coisa que nos deixava loucos da
vida, aquela maneira como ele sempre ficava ouvindo
rock and roll,
como
se fosse algum garotão, e não um fodido coroa, já podendo candidatar
-
se à
aposentadoria da Segurança Social. Então, ele puxou a alavanca para
"dirigir". Não podíamos ver, porque estávamos todos agachados, para não
sermos surpreendidos. Recordo que So
nny Betertnan ria baixinho e,
pouco antes de acontecer, cochichou: "Estão pra cima, homens?", e eu
cochichei de volta: "Seu pau está pra cima, Bellerman." Ele foi o único que
se machucou de verdade, entenda. Por causa da aliança. E eu juro por
Deus, aquela
s rodas
estavam
para cima! Tínhamos a traseira daquele
Plymouth uns dez centímetros fora do chão.
—
O que aconteceu?
—
perguntei.
Enfim, pela maneira como marchava a história, eu julgava adivinhar
o que sucedera.
—
O que aconteceu? Ele arrancou como sempre
, foi o que aconteceu.
Igualmente como se as quatro rodas estivessem pousadas no chão. O carro
atirou cascalho para os lados e puxou aquele pára
-
choque traseiro de
nossas mãos, levando consigo um metro de pele esfolada. Arrancou a
maior parte do dedo anula
r de Sonny Bellerman; sua aliança ficou presa
no pára
-
choque, entenda, e aquele dedo saltou como rolha, saindo de uma
garrafa. E ouvimos LeBay rindo enquanto se afastava, como se soubesse o
tempo todo que estávamos ali. Ele poderia saber, compreenda; se ti
vesse
ido ao banheiro, ao terminar a forte discussão com "Cachorrinho", ele bem
podia ter olhado pela janela, enquanto nos esgueirávamos, podia ter
-
nos
visto de pé atrás do prédio, esperando por ele.
"Bem, isto foi o fim para ele e a Legião. Nós lhe mandam
os uma
carta, dizendo que não o queríamos mais lá, e ele saiu. E agora, veja só
como este mundo é gozado: foi justamente Sonny Bellerman que se
levantou na reunião, pouco depois da morte de LeBay, afirmando que
devíamos fazer por ele o que era devido, pouc
o importando o que
acontecera. 'Certo', disse Sonny. 'O cara era um sujo filho da puta, mas
lutou na guerra como nós. Então, por que não lhe darmos aquilo a que
tem direito?' Então, foi o que fizemos. Eu não concordei. Acho que Sonny
Bellerman é muito mais
cristão do que eu jamais seria."
—
Talvez não tivessem levantado as rodas traseiras do chão
—
falei,
pensando no que acontecera aos sujeitos que tinham rebentado Christine,
em novembro. Eles haviam perdido muito mais do que a pele dos dedos.
—
Nós levanta
mos, tenho certeza
—
afirmou McCandless.
—
Quando recebemos a saraivada de cascalho, ele veio das rodas
dianteiras.
Até hoje, não consigo imaginar como ele conseguiu aquilo. É muito
esquisito, acho eu. Gerry Barlow, que estava em nosso grupo, quando
suspen
demos o carro, sempre comentou que LeBay devia ter, de certa
forma, conseguido adaptar uma tração nas quatro rodas. Entretanto, não
acredito que se possa fazer essa conversão. O que me diz?
—
Concordo plenamente
—
respondi.
—
Não creio que isso possa
ser f
eito.
—
Certo, jamais poderia
—
assentiu McCandless.
—
Nunca. Bem, ei,
acho que gastei a maior parte de minha folga para o café, garoto. Vou
voltar e beber outra meia xícara, antes de esgotar o tempo. Mandarei o
endereço para você, se tivermos. Acho que te
mos.
—
Obrigado, Sr. McCandless.
—
Foi um prazer, Dennis. Cuide
-
se.
—
Certo. Use e não abuse, está bem? Ele riu.
—
Era o que costumávamos dizer no 5
9
de Combate.
Desligou. Recoloquei lentamente o fone no gancho e meditei sobre
carros que continuam se moven
do mesmo depois de erguidas do chão
suas rodas com tração. Uma coisa
esquisita.
Sim, era realmente esquisito, e
o Sr. Candless ainda tinha as cicatrizes para prová
-
lo. Isso me fez recordar
algo dito por George LeBay. Também ele tinha uma cicatriz, resultan
te de
sua associação com Roland D. LeBay. E, à medida que envelheceu,
sua
cicatriz aumentou.
V
ÉSPERA DO
A
NO
-
N
OVO
Por que esse jovem e arrojado astro
morreu em seu carro?
Ninguém sabe o motivo...
Pneus chiando, o fogo rugindo,
e acabou
-
se o jovem astro,
Oh
, como puderam deixá
-
lo morrer?
No entanto, um jovem se foi, mas sua
lenda persiste,
Porque ele morreu sem motivo...
—
Bobby Troup
Liguei para Arnie, na véspera do Ano
-
Novo. Eu tivera uns dois dias
para refletir e não queria realmente vê
-
lo, mas era preci
so. Seria
impossível decidir qualquer coisa enquanto não o visse de novo,
pessoalmente. E até ver Christine outra vez. Eu mencionara o carro a meu
pai, durante o café, de passagem, como por casualidade. Ele me disse que
certamente todos os carros apreendid
os na Garagem de Darnell, àquela
altura, já teriam sido fotografados e entregues aos donos.
Foi Regina Cunningham quem atendeu, em voz fria e formal:
—
Residência dos Cunningham.
—
Oi, Regina, sou eu, Dennis.
—
Dennis!
—
Ela pareceu satisfeita e surpresa.
Por um instante, era
a voz da antiga Regina, a que dava para mim e Arnie sanduíches de
manteiga de amendoim recheados com pedacinhos de bacon (manteiga de
amendoim e bacon, em pão integral, é claro).
—
Como vai você?
Soubemos que já teve alta do hospital.
—
Vou me virando
—
falei.
—
E você? Houve um breve silêncio,
depois ela disse:
—
Bem, você sabe como andaram as coisas por aqui.
—
Problemas
—
respondi.
—
Sim, eu sei.
—
Todos os problemas que não tivemos em anos anteriores
—
enfatizou ela.
—
Acho que esta
vam todos amontoados em um canto,
esperando por nós.
Pigarreei de leve e não disse nada.
—
Queria falar com Arnie?
—
Sim, se ele estiver por aí. Após outra breve pausa, ela disse:
—
Eu me lembro como, nos velhos tempos, vocês dois viviam
correndo um para a
casa do outro, na véspera do Ano
-
Novo. Queriam ver
a entrada do Ano
-
Novo. Não era assim que diziam, Dennis?
Ela parecia quase tímida, e isso nada tinha a ver com a antiga Regina,
sempre marchando a todo vapor.
—
Bem... sim
—
respondi.
—
Coisas de crianças
, eu sei, mas...
—
Não!
—
exclamou ela, viva e rapidamente.
—
De modo algum! Se
Arnie já precisou de você, Dennis, se ele já precisou de algum amigo, este
é o momento. Ele... está lá em cima, dormindo. Tem dormido demais.
Além disso, não... ele não... não.
..
—
Não o que, Regina?
—
Ele não se inscreveu para a faculdade!
—
explodiu ela, mas
baixou a voz imediatamente, como se Arnie pudesse ouvi
-
la.
—
Nem uma!
O Sr. Vickers, conselheiro de orientação do colégio, telefonou para mim e
me disse! Arnie alcançou 70
0 pontos de média, quase podia entrar para
qualquer universidade do país... pelo menos poderia, antes deste... deste
problema...
—
Sua voz tremulou em direção às lágrimas, mas ela
conseguiu controlar
-
se de novo.
—
Converse com ele, Dennis. Se pudesse
ficar
algumas horas com ele esta noite... beberem juntos algumas cervejas
e... e então apenas falar com ele...
Ela se interrompeu, mas eu podia perceber que havia algo mais.
Algo que ela precisava dizer e não podia.
—
Por favor, Regina
—
falei. Eu não gostava d
a antiga Regina, a
dominadora compulsiva que parecia dirigir a vida do marido e do filho de
maneira a ajustar
-
se à sua própria programação, porém gostava ainda
menos desta mulher angustiada e chorosa..
—
Vamos, se acalme, está bem?
—
Eu receio falar com el
e
—
declarou ela, por fim.
—
Michael
também não tem coragem... Arnie... parece explodir, se alguém o contraria
em alguma coisa. A princípio, era apenas sobre o carro; agora é também
sobre a universidade. Converse com ele, Dennis, por favor.
—
Houve uma
out
ra breve pausa e então, quase por casualidade, ela soltou o que lhe roia
o coração:
—
Acho que nós o estamos perdendo.
—
Não, Regina, escute...
—
Vou chamá
-
lo
—
disse ela, abruptamente, largando o fone.
A espera pareceu alongar
-
se. Apertei o fone entre o q
ueixo e o
ombro e fiquei batendo com os nós dos dedos contra o gesso que ainda me
cobria a parte superior da perna esquerda. Lutei contra um ansioso desejo
de simplesmente desligar o telefone e fugir de toda aquela confusão.
Então, tornaram a erguer o fone
no outro lado.
—
Alô?
—
disse uma voz circunspecta.
O pensamento que me atravessou a mente, com absoluta segurança,
foi:
Esse não é Arnie.
—
Arnie?
—
Está me parecendo Dennis Guilder, a boca que anda como um
homem
—
disse a voz. Agora ela
parecia a
de Arn
ie, claro, mas ao mesmo
tempo não parecia. A voz dele não ficara mais grave, mas dava a
impressão de ter
-
se
enrouquecido,
como por usá
-
la demais ou gritar muito.
Era alheia, como se eu estivesse falando com um estranho que exibia uma
excelente imitação de
meu amigo Arnie.
—
Cuidado com o que está dizendo, seu cacete
—
falei.
Eu sorria, mas minhas mãos estavam frias. Geladas.
—
Compreenda
—
disse ele, em tom confidencial
—
, sua cara e meu
traseiro mostram uma suspeita semelhança.
—
Já notei a semelhança mas,
da última vez, pensei que fosse o
contrário
—
repliquei. Então, um pequeno silêncio caiu entre nós, já
havíamos completado o que, conosco, significavam as amenidades.
—
Bem, o que está fazendo esta noite?
—
perguntei.
—
Pouca coisa
—
respondeu.
—
Nada de
encontros ou coisa assim.
E você?
—
Bem, estou em plena forma
—
falei.
—
Vou pegar Roseanne e
levá
-
la ao Estúdio 2000. Você pode ir conosco e, se quiser, segurar minhas
muletas enquanto dançamos.
Ele riu um pouquinho.
—
Tenho uma sugestão
—
disse eu.
—
Tal
vez nós dois pudéssemos
ver o Ano
-
Novo, como antigamente. O que acha?
—
Ótimo!
—
exclamou ele. Parecia gostar da idéia, mas ainda não
era bem o velho Arnie.
—
Ver Guy Lombardo e toda aquela turma bacana.
Tá legal.
Fiz uma pausa momentânea, ainda incerto so
bre o que dizer.
Respondi por fim, cautelosamente:
—
Bem, talvez Dick Clark ou qualquer outro. Guy Lombardo já
morreu, Arnie.
—
É mesmo?
—
ele pareceu perplexo, vacilante.
—
Oh. Oh, sim,
acho que morreu mesmo. E Dick Clark ainda pinta por aí, não?
—
Certo
—
respondi.
—
Vou ter que maneirar, Dick, com um bom ritmo, você poderá
dançar
—
disse Arnie, mas não era a voz dele, em absoluto.
Minha mente efetuou uma súbita e hedionda conexão
(o melhor cheiro do mundo... exceto, talvez, o de uma cona)
e senti que a m
ão se apertava convulsivamente sobre o fone. Acho
que quase gritei. Eu não estava falando com Arnie, mas com Roland D.
LeBay. Estava falando com um morto.
—
Aqui é Dick, tudo bem
—
ouvi
-
me dizendo, como que à distância.
—
Como está indo, Dennis? Você pode
dirigir?
—
Não, ainda não. Acho que vou pedir ao velho para me levar.
—
Fiz uma breve pausa, depois mergulhei de cabeça:
—
Pensei que você
talvez pudesse me trazer de volta, se já está com seu carro. Pode ser?
—
Claro!
—
ele pareceu sinceramente excitado.
—
Vai ser muito
bom, Dennis! Excelente! Daremos algumas boas risadas. Como nos velhos
tempos.
—
Certo
—
respondi. E então, juro por Deus, como saiu quase sem
sentir, acrescentei:
—
Como na oficina mecânica.
—
Sim, isso mesmo!
—
replicou Arnie, rindo.
—
Um
barato! Até lá,
Dennis.
—
Tudo bem
—
respondi, automaticamente.
—
Até lá.
Desliguei, fiquei olhando para o telefone e, de repente, comecei a
tremer de alto a baixo. Nunca havia sentido tanto medo na vida como
naquele momento. O tempo passa: a mente reconst
rói suas defesas.
Imagino que um dos motivos sobre a existência de tão pouca convincente
evidência a respeito de fenômenos psíquicos é porque a mente se põe a
funcionar, reestruturando a evidência. Uma pequena porção é melhor do
que muita insanidade. Quest
ionei mais tarde o que ouvira ou me fiz
acreditar que Arnie não entendera bem meu comentário, mas naqueles
poucos momentos, após colocar o fone no gancho, tinha certeza: LeBay se
apossara dele. De algum modo, morto ou não, LeBay estava nele.
E LeBay assumi
a o comando.
A véspera do Ano
-
Novo foi um dia frio, de céu límpido. Papai me
deixou em casa dos Cunningham faltando quinze para as sete e ajudou
-
me a caminhar até a porta dos fundos
—
muletas não foram feitas para o
inverno ou aléias cobertas de neve.
A c
amioneta dos Cunningham não estava ali, mas Christine
descansava na entrada para carros, seu brilhante revestimento vermelho e
branco recamado por uma condensação de cristais de gelo. Havia sido
liberada, juntamente com os demais carros embargados, somente
naquela
semana. Só em olhar para aquele carro fui tomado de uma estranha
sensação de medo, como uma dor de cabeça. Não queria voltar para casa
naquele carro, nem nessa noite, nem nunca. Preferia meu Duster, comum
e fabricado em série, com os assentos cobe
rtos de vinil e o idiota adesivo
no pára
-
choque: CARRO DO STAFF DA MÁFIA.
A luz da entrada dos fundos foi acesa e vimos a silhueta de Arnie
caminhar para a porta. Ele nem mesmo
parecia
Arnie. Tinha os ombros
caídos e os movimentos pareciam mais velhos. Fal
ei para mim mesmo que
devia ser tudo imaginação, produto das suspeitas que acalentava e,
naturalmente, eu estava cheio de merda... e sabia disso.
Ele abriu a porta e se inclinou para fora, em uma velha camisa de
flanela e
jeans.
—
Dennis!
—
exclamou.
—
Olá
, amigão!
—
Oi, Arnie
—
falei.
—
Olá, Sr. Guilder.
—
Oi, Arnie
—
disse meu pai, levantando a mão enluvada.
—
Como
tem passado?
—
Hum... Sabe como é, não muito bem, mas tudo vai mudar. Ano
-
Novo, vida nova, sai a velha merda, entra a nova merda, certo?
—
Cre
io que sim
—
disse meu pai, parecendo algo chocado.
—
Tem
certeza de não querer que eu volte para apanhá
-
lo, Dennis?
Eu queria que ele voltasse, mais do que tudo. No entanto, Arnie
olhava para mim e sua boca ainda sorria, mas os olhos eram opacos e
vigilan
tes.
—
Não é preciso, Arnie me levará para casa... se aquela banheira
enferrujada ainda conseguir rodar.
—
Oh
-
oh, veja lá o que diz de meu carro
—
disse Arnie.
—
Christine
é muito sensível.
—
É mesmo?
—
perguntei.
—
Claro que é
—
disse Arnie, sorrindo. Vir
ei a cabeça e desculpei
-
me:
—
Sinto muito, Christine.
—
Ótimo! Assim está melhor.
Por um momento, nós três ficamos ali, eu e meu pai ao pé dos
degraus da porta da cozinha, Arnie na soleira mais acima, nenhum de nós
parecendo saber o que dizer em seguida. S
enti uma espécie de pânico
—
alguém precisava
dizer qualquer coisa, ou então toda aquela ridícula
representação de que nada mudara acabaria ruindo pelo próprio peso.
—
Muito bem, garotos
—
disse meu pai, afinal
—
, fiquem sóbrios. Se
forem além de duas cerv
ejas, ligue para mim, Arnie.
—
Não se preocupe, Sr. Guilder.
—
Estaremos muito bem
—
falei, exibindo um sorriso que eu sabia
forçado e falso.
—
Volte para casa e durma seu merecido sono para
descansar sua beleza, papai. Está precisando.
—
Oh
-
oh
—
respondeu
meu pai.
—
Veja lá o que diz de meu rosto.
Ele é muito sensível. Papai voltou para o carro. Fiquei vendo
-
o ir
-
se, com
minhas muletas sob as axilas. Observei
-
o enquanto cruzava por trás de
Christine. Então, quando manobrou na entrada para carros e tomou a
direção de casa, eu me sentia um pouco melhor.
Bati a neve da ponteira de cada muleta, cuidadosamente, enquanto
ainda estava na soleira. A cozinha dos Cunningham tem piso ladrilhado e
uns dois quase
-
acidentes me ensinaram que, sobre superfícies lisas, dua
s
muletas com neve podem transformar
-
se em patins para gelo.
—
Você sabe realmente manobrar esses bichinhos
—
comentou
Arnie, vendo
-
me cruzar pela cozinha.
Tirou do bolso da camisa de flanela um maço de Tiparfilos, escolheu
um, enfiou na boca a boquilha de
plástico branco e o acendeu, com a
cabeça inclinada para um lado. A chama do fósforo brincou
momentaneamente em seu rosto, como tiras de pintura amarela.
—
É uma capacidade que perderei com satisfação
—
respondi.
—
Quando foi que começou com os charutos?
—
Na Garagem de Darnell
—
respondeu.
—
Só não fumo diante de
mamãe. O cheiro a deixa fora de si.
Arnie não fumava como um cara aprendendo o hábito
—
parecia
um homem, veterano de vinte anos naquilo.
—
Pensei em fazer um pouco de pipoca
—
disse.
—
O que ach
a?
—
É uma boa. Tem cerveja?
—
Afirmativo. Tem uma embalagem de seis na geladeira e mais
duas lá embaixo.
—
Grande!
—
Sentei
-
me cuidadosamente à mesa da cozinha,
estirando a perna esquerda.
—
Onde estão seus pais?
—
Foram a uma reunião de fim de ano na cas
a dos Fassenbach.
Quando é que vai tirar esse gesso?
—
Talvez no final de janeiro, se tiver sorte.
—
Agitei minhas muletas
no ar e exclamei dramaticamente:
—
Tiny Tim voltou a andar! Que Deus
nos abençoe, a cada um de nós!
A caminho do fogão, com uma frigi
deira, um saco de milho de
pipocas e uma garrafa de óleo, Arnie riu e balançou a cabeça.
—
O mesmo velho Dennis. Não arrancaram muita coisa de você, seu
bosta.
—
Você não deu muito as caras no hospital pra me visitar, Arnie.
—
Levei uma ceia de Ação de Gra
ças pra você, que diabo queria
mais, sangue? Dei de ombros. Ele suspirou.
—
Às vezes, penso que você era o meu amuleto, Dennis.
—
Largue do meu pé, seu cérebro de borracha.
—
Falo sério. Estive em maus lençóis, desde que você se arrebentou,
e ainda continu
o. Fervendo em água quente. É um milagre que não pareça
uma lagosta.
Ele riu com vontade. Não era o riso que se esperaria de um jovem
em apuros, mas o de um homem
—
sim, um homem
—
que está se
divertindo imensamente. Arnie colocou a frigideira no fogo e de
spejou o
óleo dentro dela. Seu cabelo, mais curto do que costumava ser e penteado
para trás, em um estilo novo para mim, caiu sobre a testa. Ele o jogou para
trás com um gesto brusco da cabeça e acrescentou a pipoca ao óleo.
Colocou ruidosamente uma tampa
na frigideira. Depois foi à geladeira.
Pegou uma embalagem de seis cervejas. Colocou
-
a à minha frente, com
um baque surdo, retirou duas latas e as abriu. Entregou
-
me uma e ficou
com a sua. Ergui a minha.
—
Um brinde
—
disse Arnie.
—
Morte aos bostas do mun
do, em
1979! Baixei minha lata lentamente.
—
Não posso brindar a isso, cara.
Vi uma fagulha de raiva nos olhos cinzentos. Uma fagulha que
pareceu piscar neles, como falsificado bom humor, para então desaparecer.
—
Bem, então a que
pode brindar... cara?
—
Q
ue tal um brinde à universidade?
—
perguntei calmamente.
Ele me fitou com ar carrancudo, o bom humor anterior desaparecido
como que por encanto.
—
Eu devia imaginar que ela encheu você com esse lixo. Minha mãe
é uma mulher que não se detém diante de nada,
para conseguir o que
quer. Você sabe disso, Dennis. Ela beija até o traseiro do diabo, se for
preciso.
Larguei minha lata de cerveja, ainda cheia.
—
Bem, ela não beijou meu traseiro. Apenas disse que você não fez
nenhuma inscrição ainda e que estava preocu
pada.
—
A vida é minha
—
disse Arnie. Seus lábios se torceram,
modificando o rosto, tornando
-
o incrivelmente feio.
—
Faço o que bem
entendo.
—
E a universidade não está em seus planos?
—
É claro que sim, mas quando eu me decidir. Diga isso a ela, caso
perg
unte. Quando chegar o momento. Não esse ano. Definitivamente não.
Se ela está pensando que vou para a Universidade de Pittsburgh, para a
Horlicks ou Rutgers, bancar o calouro e ficar berrando como louco nos
jogos de futebol do colégio, deve estar maluca. N
ão, depois de toda a
merda que passei esse ano. Não dá, cara.
—
E o que
vai fazer?
—
Vou cair fora
—
respondeu ele.
—
Entrar em Christine e motorar
por aí, esquecendo essa cidadezinha de programa único. Você entende?
—
Sua voz começou a alterar
-
se, ficando
estridente, fazendo com que o
horror me invadisse novamente. Sentia
-
me impotente contra aquele medo
efeminado e só desejava que não transparecesse no meu rosto. Porque
agora não era apenas a voz de LeBay, mas até mesmo seu
rosto,
pairando
sob o de Arnie c
omo alguma coisa morta, preservada em formol.
—
Minha vida tem sido uma tempestade de merda este ano e acho que o
maldito Junkins continua atrás de mim, a todo vapor. Seria melhor tomar
cuidado, antes que alguém acabe com ele...
—
Quem é Junkins?
—
pergunt
ei.
—
Não importa
—
respondeu Arnie.
—
Não é importante.
—
Atrás
dele, o óleo começou a chiar. Um punhado de milho estourou
—
ploft!
—
contra a tampa.
—
Tenho que agitar aquilo, Dennis. Vai querer um brinde
ou não? Para mim, não faz diferença.
—
Está bem
—
falei.
—
Que tal um brinde a nós?
Ele sorriu, aliviando um pouco a constrição em meu peito.
—
A nós, legal, é uma boa pedida, Dennis. A nós. Não podia ser
outra coisa, hein?
—
Claro
—
respondi, com voz algo enrouquecida.
—
Não podia ser
outra coisa. Fizem
os tintim com as latas de cerveja e bebemos.
Arnie foi para o fogão e começou a agitar a frigideira, onde o milho
explodia velozmente. Deixei uns dois goles de cerveja deslizarem pela
minha garganta. Àquela altura, cerveja ainda era mais ou menos novidade
para mim e nunca ficara embriagado com ela, porque gostava do sabor e
alguns amigos
—
Lenny Barongg era o principal deles
—
me tinham dito
que quando a gente fica tropeçando, levantando, vomitando pela camisa
abaixo, leva semanas sem conseguir olhar para a
coisa. Infelizmente,
desde então venho descobrindo que isso não é a pura verdade.
Arnie, entretanto, bebia como se a Proibição fosse ser reinstaurada a
primeiro de janeiro; esvaziara sua primeira lata, antes mesmo da pipoca
terminar de estourar. Amassou a
vazia, piscou para mim e disse:
—
Veja como coloco bem no traseiro do vagabundinho, Dennis.
A alusão me escapôu, de maneira que apenas dei um sorriso forçado,
quando ele jogou a lata na cesta do lixo. Ela acertou primeiro a parede,
antes de cair na cesta.
—
Cesta
—
falei.
—
Perfeito
—
disse ele.
—
Quer me passar outra?
Entreguei
-
lhe a lata, imaginando, que diabo, meus pais planejavam
ver a entrada do Ano
-
Novo em casa e, se Arnie ficasse realmente bêbado e
incapaz de dirigir, eu podia ligar para papai. Arni
e, bêbado, talvez
dissesse coisas que jamais diria estando sóbrio e, por outro lado, eu não
queria voltar com ele para casa em Christine.
A cerveja, entretanto, não pareceu afetá
-
lo. Ele terminou de preparar
a pipoca, despejou
-
a em uma grande tigela de plá
stico, derreteu meia
barra de margarina, despejou
-
a sobre as pipocas, salgou e disse:
—
Vamos para sala ver TV. O que acha?
—
Para mim, está ótimo.
Peguei minhas muletas, apoiei
-
as sob as axilas
—
ultimamente havia
a sensação de que estava ficando calejado
debaixo dos braços e então
tateei pelas três cervejas que ainda estavam sobre a mesa.
—
Eu volto para apanhar
—
disse Arnie.
—
Vamos. Antes que você
acabe derrubando tudo. Sorriu para mim, e naquele momento não era
outro senão Arnie Cunningham, a tal pont
o que
meu coração se confrangeu um pouco ao olhar para ele.
Havia um especial de véspera de Ano
-
Novo passando na TV,
bastante chato. Donny e Marie Osmond cantavam, ambos mostrando seus
gigantescos dentes brancos, em sorrisos amistosos mas, ao mesmo tempo,
parecendo o riso de tubarões. Deixamos a TV ligada e conversamos. Falei
a Arnie sobre as sessões de fisioterapia e como estava me exercitando com
pesos. Depois de duas cervejas, confessei
-
lhe que receava nunca mais
tornar a caminhar direito. Deixar de joga
r futebol pela escola não me
incomodava, porém aquilo, sim. Ele assentia, calma e compreensivamente,
enquanto eu falava.
Eu poderia terminar aqui, e dizer que jamais passara uma noite tão
peculiar em minha vida. Coisas piores aguardavam, mas nada era tão
e
stranho, tão...
tão desconexo.
Era como posar para um filme, cujas imagens
estão quase
—
mas não inteiramente
—
fora de foco. Por vezes ele me
parecia Arnie, mas em outras não havia a mais remota semelhança. Ele
adquirira modos que eu nunca percebera antes
—
girar as chaves do carro
nervosamente sobre o retângulo de couro ao qual estavam afixadas,
estalar os nós dos dedos e, ocasionalmente, morder a polpa do polegar
com os incisivos superiores. Houve ainda aquele comentário sobre
"colocar bem no traseiro do
vagabundinho", quando atirou fora a lata de
cerveja. E, embora houvesse bebido cinco cervejas, quando eu ainda
terminava a minha segunda, apenas sorvendo uma atrás da outra, ele
ainda não parecia bêbado.
Além disso, havia os gestos que eu sempre associara
a Arnie, que
pareciam ter desaparecido completamente: o puxão rápido e nervoso do
lóbulo da orelha quando falava, o estiramento súbito das pernas,
terminando com os tornozelos brevemente cruzados, seu hábito de
exprimir satisfação, deixando o ar sibilar a
través dos lábios franzidos, em
vez de rir abertamente. O último ocorrera uma ou duas vezes. No entanto,
era mais freqüente indicar sua jovialidade em uma série de esganiçadas
risadinhas sufocadas, que eu associava a LeBay.
O especial terminou às onze da n
oite e Arnie girou o botão da TV,
até encontrar uma festa
-
dançante em algum hotel de Nova Iorque, onde
insistiam em mostrar Times Square, na qual já se amontoara uma boa
multidão. Não era Guy Lombardo, mas bem próximo disso.
—
Você não vai mesmo para a uni
versidade?
—
perguntei.
—
Não este ano. Eu e Christine iremos para a Califórnia, logo depois
da formatura do colégio. Para aquelas praias douradas de sol.
—
Seus velhos já sabem?
Ele pareceu sobressaltar
-
se à idéia.
—
Diabo, não! E não vá contar a eles! Pr
eciso tanto que eles saibam
disso, como preciso de um peru de borracha.
—
O que pretende fazer por lá? Ele deu de ombros.
—
Trabalhar consertando carros. Sou tão bom nisso como em
qualquer coisa.
—
Então, ele me deixou atônito, ao dizer, casualmente:
—
Esp
ero convencer Leigh a ir comigo.
A cerveja entrou pelo buraco errado e comecei a tossir, pulverizando
minhas calças. Arnie me bateu duas vezes nas costas, com força.
—
Você está bem?
—
Estou
—
consegui dizer.
—
A cerveja entrou no canal errado.
Arnie... se
pensa que ela vai com você, está vivendo num mundo de sonho.
Leigh está às voltas com requerimentos para a universidade. Tem um
punhado deles, cara. Ela está seriamente envolvida nisso.
Os olhos dele estreitaram
-
se imediatamente e tive a desagradável
sens
ação de que a cerveja me traíra, fazendo
-
me falar mais do que devia.
—
O que mais sabe sobre minha garota?
De repente, eu me sentia como se houvesse caído em um enorme
campo, fortemente minado.
—
Ela não fala em outra coisa, Arnie. Quando começa com o assu
nto,
ninguém consegue fazê
-
la calar
-
se.
—
Companheiro... Não está se intrometendo, está, Dennis?
—
Ele
me observava atentamente, os olhos cheios de suspeita.
—
Você não faria
uma coisa dessas, hein?
—
Não
—
respondi, mentindo da maneira mais absoluta e
com
pleta.
—
Não sei como pode imaginar uma coisa dessas.
—
Então, como sabe tanto sobre o que ela anda fazendo?
—
Eu a vi por aí
—
respondi.
—
Falamos sobre você.
—
Ela fala sobre mim?
—
Sim, mais ou menos
—
repliquei, com naturalidade.
—
Disse que
vocês dois
tiveram uma discussão sobre Christine.
Era a coisa certa a dizer. Ele relaxou.
—
Foi uma discussãozinha de nada. Sem nenhuma importância. Ela
virá me procurar. E se quer ir para a universidade, há boas universidades
na Califórnia. Nós nos casaremos, Denni
s. Vamos ter filhos e toda essa
merda.
Lutei para manter o rosto impassível.
—
Ela já sabe disso? Ele riu.
—
Nem desconfia! Ainda não, mas vai saber. Dentro em breve. Eu a
amo e nada pode acontecer para nos atrapalhar.
—
O riso extinguiu
-
se.
—
O que ela di
sse sobre Christine?
Outra mina.
—
Disse que não gostava do carro. Acho que... bem, talvez estivesse
um pouco enciumada. Novamente, era a coisa certa a dizer. Ele relaxou
ainda mais.
—
Sim, claro que é isso. Enfim, ela vai aparecer, Dennis. O
verdadeiro am
or nunca transcorre tranqüilamente, mas ela vai aparecer,
não se preocupe. Se tornar a vê
-
la, diga que vou telefonar. Ou dê o recado,
quando as aulas recomeçarem.
Pensei em dizer
-
lhe que, naquele exato momento, Leigh estava na
Califórnia mas decidi ficar c
alado. Perguntei
-
me o que este novo e
desconfiado Arnie faria se soubesse que eu beijara a garota com quem
pensava casar, que a abraçara... que estava me apaixonando por ela.
—
Veja, Dennis!
—
exclamou Arnie, apontando para a TV.
A câmera mostrava Times Sq
uare novamente. A multidão era um
imenso
—
mas ainda crescente
—
organismo. Passava pouco de onze e
meia. O ano velho estava nas últimas.
—
Veja aqueles bostas!
Ele cacarejou sua risada estridente e excitada, terminou a cerveja e
desceu para pegar uma nova
embalagem de seis. Fiquei sentado,
pensando em Welch e Repperton, em Trelawney, Stanton, Vandenberg e
Darnell. Pensei em como Arnie
—
ou quem quer que ele se tornara
—
julgava que ele e Leigh haviam tido apenas uma briguinha de namorados
sem importância e
em como encerrariam o ano letivo casando
-
se, como
naquelas melosas baladas de amor dos anos 50.
E, oh, Deus, tive um grande calafrio.
Vimos o Ano
-
Novo entrar.
Arnie arranjou umas duas bombinhas e estalos de festa
—
do tipo
que estoura e solta então uma n
uvem de pequenas serpentinas de papel
crepom. Erguemos um brinde a 1979 e conversamos mais um pouco sobre
assuntos neutros, como a decepcionante derrota dos Phillies nos
desempates e as chances dos Steelers de fazerem toda a caminhada até a
Grande Taça.
A
tigela de pipoca baixara até o milho sem estourar e os caroços
queimados, quando decidi fazer uma das perguntas que estivera evitando.
—
O que acha que aconteceu a Darnell, Arnie?
Ele me fitou vivamente, depois tornou a olhar para a TV, onde casais
dançava
m, com confetes do Ano
-
Novo nos cabelos. Bebeu mais um pouco
de cerveja.
—
As pessoas com quem negociava calaram a boca dele, porque
podia falar demais. É o que acho que aconteceu.
—
As pessoas para quem .ele trabalhava?
—
Will costumava dizer que a Gangue
do Sul era ruim
—
explicou
Arnie
—
, mas que os colombianos ainda eram piores.
—
Quem são os...
—
Os colombianos?
—
Arnie riu cinicamente.
—
Caubóis da cocaína,
é isso que eles são. Will costumava comentar que eles matam um sujeito
até mesmo se o cara olha
r para suas mulheres da maneira errada e
algumas vezes, quando olham da maneira certa. Talvez tenha sido coisa
dos colombianos. O negócio foi feito bastante bem do jeito deles.
—
Você estava entregando coca para Darnell? Arnie deu de ombros.
—
Eu entregava
muamba
para Will. Só transportei coca para ele uma
ou duas vezes, e dou graças a Deus por não estar levando nada pior do
que cigarros sem selagem, quando me pegaram. Eles me pegaram com a
mão na massa, cara. Uma boa merda. Entretanto, se a situação fosse
a
mesma, provavelmente eu faria tudo de novo. Will podia ser um velho
filho da mãe, sujo e nojento, mas era legal, em certo sentido.
—
Seus olhos
ficaram velados, estranhos.
—
Sim, de certo modo era legal. Só que sabia
demais. Aí está por que o liquidaram.
Sabia demais... e, cedo ou tarde,
terminaria dando com a língua nos dentes. Acho que foram os
colombianos. Uns filhos da puta.
—
Não pesquei nada. E nem é da minha conta, acho. Ele olhou para
mim, sorriu e piscou.
—
Era a teoria do dominó. Pelo menos, ass
im devia ser. Havia um
sujeito chamado Henry Buck. Supõe
-
se que ele me acusaria. Então, eu
acusaria Will. E depois... a grande jogada... Will certamente acusaria os
caras lá do Sul, que lhe vendiam a droga, as bolinhas, cigarros e bebida.
Eram eles que Jun
... que os tiras realmente queriam. Especialmente os
colombianos.
—
E acha que eles o mataram? Arnie me fitou opacamente.
—
Eles ou a Gangue do Sul, lógico. Quem mais poderia ser? Sacudi
a cabeça.
—
Bem
—
disse ele
—
, tomamos outra cerveja e levo você em c
asa.
Eu adorei essa noite, Dennis. Realmente adorei.
Havia um toque de verdade naquilo, mas Arnie jamais faria um
comentário enfático como: "Eu adorei essa noite, realmente adorei". Nunca
o velho Arnie.
—
Hum... eu também, cara.
Eu não queria outra cerveja
, mas aceitei assim mesmo. Desejava
adiar o momento inevitável de entrar em Christine. De tarde, parecera um
passo necessário
—
experimentar, eu mesmo, a atmosfera daquele carro...
se houvesse alguma atmosfera para experimentar. Agora, a idéia parecia
ater
radora, uma loucura. O segredo do que eu e Leigh nos estávamos
tornando, um para o outro parecia um enorme ovo quebradiço em minha
cabeça.
Diga
-
me, Christine, você pode ler pensamentos?
Senti um riso aloucado subindo em minha garganta e despejei
cerveja so
bre ela.
—
Escute
—
falei
—
, vou ligar para o velho vir me buscar, se você
quiser, Arnie. Ele ainda deve estar de pé.
—
Não há problema
—
disse Arnie.
—
Eu conseguiria caminhar três
quilômetros em linha reta, não se preocupe.
—
Eu só pensei...
—
Aposto com
o está louco para voltar a dirigir, não está?
—
Bem, estou, é claro.
—
Nada melhor do que a gente estar atrás do volante de nosso
próprio carro
—
disse Arnie, e então seu olho esquerdo baixou na piscada
remelosa de um velho devasso.
—
Exceto, talvez, uma c
ona.
Chegara a hora. Arnie desligou a TV e fiz minha penosa caminhada
de muletas através da cozinha, levei algum tempo para conseguir vestir
minha velha jaqueta de esqui, esperando que Michael e Regina chegassem
de sua festa e adiassem as coisas por algum
tempo mais
—
talvez Michael
sentisse o cheiro de bebida no hálito de Arnie e me oferecesse uma carona.
Ainda estava bem clara em minha mente a lembrança da tarde em que eu
deslizara para trás do volante de Christine, quando Arnie estava em casa
de LeBay,
negociando com o velho filho da mãe.
Arnie pegara umas duas cervejas na geladeira
—
"Para a estrada",
intimou. Pensei em dizer
-
lhe que se fosse apanhado embriagado, por estar
em liberdade sob fiança, provavelmente iria para a cadeia antes de piscar
um olho
. Depois decidi ser melhor ficar calado. Saímos.
A primeira manhã de 1979
—
madrugada, aliás
—
estava
terrivelmente fria, o tipo de frio que faz a umidade do nariz congelar em
segundos. Os bancos de neve, à margem da entrada para carros,
cintilaram como bi
lhões de diamantes. E lá estava Christine, as vidraças
negras embaciadas pela neve. Olhei para o carro.
A Gangue,
dissera Arnie.
A Gangue do Sul ou os colombianos.
Soava melodramático, mas possível
—
não, mais: soava plausível. Entretanto, a Gangue liquida
va pessoas a tiros,
empurrava
-
as de janelas, estrangulava
-
as. Segundo a lenda, Al Capone se
livrara de um pobre otário com um bastão de beisebol recheado de
chumbo. Só que... dirigir um carro sobre o gramado nevado de um sujeito,
atirá
-
lo contra a parede d
e sua casa e entrar em sua sala de estar...
Os colombianos, talvez. Arnie tinha dito que os colombianos eram loucos.
Mas loucos
assim?
Eu não acreditava.
Christine reluzia à luz que vinha da casa e à luminosidade das
estrelas. E se
tivesse sido
ela? E se e
la descobrisse que eu e Leigh tínhamos
nossas suspeitas? Pior ainda, e se descobrisse que nós andávamos de
namorico?
—
Precisa de ajuda nos degraus, Dennis?
—
perguntou Arnie,
sobressaltando
-
me.
—
Não. Posso me entender com a escada
—
respondi.
—
Prefiro
u
ma mãozinha na alameda.
—
Não tem problema, cara.
Desci os degraus da cozinha em diagonal, aferrando o corrimão com
uma das mãos e sustendo as muletas na outra. Na alameda, apoiei
-
me
sobre elas, dei uns dois passos e então escorreguei. Uma pontada
imprecis
a de dor correu por minha perna esquerda acima, aquela que
ainda não valia nada. Arnie me agarrou.
—
Obrigado
—
falei, contente pela chance de parecer amedrontado.
—
Vá com calma.
Chegamos ao carro, e Arnie perguntou se eu podia entrar sozinho.
Respondi qu
e podia. Ele me deixou e passou pela frente do capô de
Christine. Segurei a maçaneta com mão enluvada e uma impotente
sensação de medo, de repulsa, me envolveu por completo. Só então
comecei a acreditar, bem lá no fundo, sentir onde uma pessoa vive.
Porque
a maçaneta estava viva em minha mão. Eu a sentia como uma fera
viva, que estivesse adormecida. Aquela maçaneta não parecia de aço
cromado; Santo Deus, ela dava a sensação de pele. Como se eu pudesse
apertá
-
la e despertar a fera, rugindo.
Fera?
Certo,
que
fera?
O que seria? Alguma espécie de
Ifrit?
Um carro comum que, de certa
forma, se tornara a perigosa, fedorenta morada de um demônio? Uma
sobrenatural manifestação da prolongada personalidade de LeBay, uma
demoníaca casa mal
-
assombrada que rodava sobre pn
eus Goodyear? Eu
não sabia. Sabia apenas que estava assustado, aterrorizado. Achava que
não conseguiria ir em frente com aquilo.
—
Ei, você está bem?
—
perguntou Arnie.
—
Consegue entrar?
—
Consigo
—
respondi roucamente.
Apertei o polegar sobre o botão aba
ixo da maçaneta, abri a porta,
virei
-
me de costas para o banco e deixei o corpo cair sobre ele, as pernas
rigidamente estendidas. Segurei a perna e a girei. Era como mover um
móvel. Meu coração martelava no peito. Puxei a porta e a fechei.
Arnie girou a ch
ave e o motor ganhou vida
—
como se a máquina
estivesse quente, em vez de gelada. Então, fui assaltado pelo cheiro,
parecendo vir de toda parte, mas principalmente parecendo emanar do
estofamento: o fedor forte, doentio e apodrecido de morte e decomposição
.
Não sei como descrever aquela ida para casa, aqueles cinco
quilômetros rodados, que não duraram mais de dez ou doze minutos, sem
dar de mim mesmo a impressão de um fugitivo de hospício. Não há meios
de ser objetivo a respeito; apenas estar aqui e tentar
, é bastante para me
deixar gelado e ardente ao mesmo tempo, febril e indisposto. Não é
possível separar o que era real e o que minha mente podia ter elaborado:
nenhuma linha divisória existia entre o objetivo e o subjetivo, entre a
verdade e a horripilant
e alucinação. Entretanto, nada foi produto da
embriaguez, posso garantir
—
se não outra coisa, pelo menos isto eu posso
garantir. Qualquer tonteira que a cerveja pudesse ter provocado,
evaporou
-
se imediatamente. O que se seguiu foi uma lúcida excursão pela
terra dos amaldiçoados.
Para início de conversa, nós recuamos no tempo.
Por um momento, não era Arnie quem dirigia, em absoluto; era
LeBay, putrefato e fedendo a sepultura, metade esqueleto e metade carne
apodrecida, esponjosa, botões esverdinhados e cor
roídos. De sua gola
subiam larvas, abrindo caminho lentamente. Pude ouvir um lento
zumbido e, a princípio, pensei que fosse algum curto
-
circuito em qualquer
das luzes no painel de instrumentos. Só mais tarde comecei a pensar que
poderia ter sido o som de m
oscas, procriando em sua carne. Era inverno,
sem dúvida, mas...
Em certas ocasiões, parecia haver outras pessoas no carro, conosco.
Olhei uma vez pelo espelho retrovisor e vi um manequim de cera de uma
mulher, fitando
-
me com os olhos vivos e cintilantes de
um troféu
empalhado. Penteava os cabelos no estilo pajem, em moda nos anos 50.
Suas faces pareciam demasiado pintadas com rouge e recordei que o
envenenamento por monóxido de carbono, presumivelmente, emprestava
a ilusão de vida e de pele corada. Mais tar
de, tornei a espiar pelo espelho e
tive a impressão de ver uma menininha lá, o rosto escurecido pela asfixia,
os olhos esbugalhados como os de um animal empalhado, cruelmente
comprimido. Fechei os olhos e, ao abri
-
los, Buddy Repperton e Richie
Trelawney su
rgiram no espelho retrovisor. O sangue se coagulara em
placas secas sobre a boca, queixo, pescoço e a camisa de Buddy. Richie era
uma massa carbonizada
—
mas com olhos vivos e atentos. Buddy
estendeu o braço lentamente. Segurava uma garrafa de Texas Driver
na
mão enegrecida. Tornei a fechar os olhos. Depois disso, não olhei mais
para o espelho.
Recordo que o rádio transmitia
rock:
Dion e os Belmonts, Ernie K
-
Doe, os Royal Teens, Bobby Rydell ("Oh, Bobby, oh... everything's cool...
we're glad you go to a swi
nging' school...")
Recordo ainda que, por um momento, parecia haver um dado
vermelho de isopor pendendo do espelho retrovisor, depois ali havia
sapatinhos de criança, em seguida, nem uma coisa nem outra.
Acima de tudo, recordo ter insistido na idéia de que
tais coisas
—
o
fedor de carne putrefata e os estofados bolorentos
—
existiam apenas em
minha mente, que eram como as miragens que atormentam a consciência
de um fumador de ópio.
Eu era alguém mais ou menos drogado, tentando manter uma
espécie de conversa
racional com uma pessoa lúcida. Sim, porque eu e
Arnie conversávamos; lembro
-
me disso, mas não do que dizíamos.
Procurei controlar
-
me. Mantive a voz normal. Tinha reações. E aqueles
dez ou doze minutos pareceram durar horas.
Já disse que é impossível ser
objetivo sobre aquela corrida; caso
tenha existido alguma progressão lógica de eventos, agora ficou perdida
para mim, bloqueada. Aquela jornada através da noite negra e gelada foi,
de fato, como uma viagem por uma avenida, a caminho do inferno. Não
consigo
recordar tudo o que aconteceu mas, ainda assim, recordo mais do
que desejaria. Saímos da entrada para a garagem, em marcha à ré, e
penetramos no parque de diversões de um mundo louco, onde eram reais
todos os arrepios de medo.
Falei que recuamos no tempo
, mas teríamos realmente recuado? As
ruas atuais de Libertyville conti
nuavam lá, porém eram como uma tênue
capa velando um filme
—
como se a Libertyville de fins dos anos 70
houvesse sido desenhada sobre plástico transparente, cobrindo um tempo
que, de ce
rta forma, era mais real. Pude sentir que o tempo estendia suas
mãos mortas para nós, tentando capturar
-
nos, pren
der
-
nos para sempre.
Arnie parava em cruzamentos onde a via era preferencial para nós; em
outros, embora as luzes de trânsito estivessem verme
lhas, seguia
suavemente com Christine, sem ao menos reduzir a marcha. Na Rua
Principal, vi a Joalheria Shipstad e o Teatro Strand, ambos demolidos em
1972, a fim de darem lugar ao novo Banco Comercial da Pensilvânia. Os
carros estacionavam ao longo da rua
—
reunidos em grupos aqui e ali,
onde aconteciam as festas de comemoração do Ano
-
Novo
—
, todos
parecendo anteriores aos anos 60... ou de antes de 1958. Buicks de portas
alongadas. Uma camioneta De Soto Firelite, de comprida carroceria azul,
parecendo recém
-
saída da linha de montagem. Um cupê Dodge Lancer 57,
de quatro portas. Fords Fairiane, com suas características traseiras, cada
uma com enormes dois pontos de lado. Pontiacs nos quais a grade do
radiador ainda não fora fendida. Ramblers, Packards e alguns
Studebakers, com a dianteira em forma de bala, e um Edsel, fantástico e
novo em folha.
—
Sim, este ano será melhor
—
disse Arnie.
Olhei para ele. Levava a lata de cerveja aos lábios e, antes de tocar a
boca, seu rosto transformava
-
se no de LeBay, uma figu
ra em
decomposição, extraída de alguma história em quadrinhos de terror. Os
dedos que seguravam a lata eram apenas ossos. Posso jurar para quem
quiser, que eram apenas ossos
—
e as calças jaziam achatadas contra o
assento, como se dentro delas nada mais ho
uvesse além de cabos de
vassoura.
—
Será mesmo?
—
falei, respirando o desagradável e asfixiante
miasma do carro o mais lentamente possível, tentando não sufocar.
—
Será
—
disse LeBay, só que ele agora era Arnie novamente, e
quando paramos em um sinal verme
lho vi um Camaro 77 passar em
disparada.
—
Tudo quanto peço é que fique do meu lado um pouco,
Dennis. Não deixe minha mãe arrastá
-
lo para essa merda. As coisas vão
ser diferentes.
Ele era LeBay de novo, sorrindo um sorriso descarnado e eterno,
ante a idéia
de que as coisas seriam diferentes. Senti meu pensamento
oscilar. Sem dúvida, logo começaria a gritar.
Baixei os olhos, desviando
-
os daquele rosto horrendo, e vi o que
Leigh tinha visto: instrumentos do painel de controle que não eram
instrumentos em abso
luto, mas verdes olhos luminosos, esbugalhando
-
se
para mim.
Em algum ponto, o pesadelo terminou. Paramos junto ao meio
-
fio,
em um local da cidade que nem mesmo reconheci, um setor que podia
jurar nunca ter visto antes. Havia construções nos lotes de terre
no por
toda parte, algumas casas já com três quartos edificados, outras apenas
nas estruturas. A meio caminho do quarteirão, mais abaixo, iluminado
pelos faróis de Christine, um cartaz dizia:
PROPRIEDADES MAPLEWAY
VENDA EXCLUSIVA DOS CORRETORES DE LIBERTY
VILLE
Um bom lugar para criar seus filhos
Pense nisto
—
Bem, aqui estamos
—
disse Arnie.
—
Acha que pode fazer a
caminhada sozinho, cara? Olhei indeciso em torno, para aquele projeto de
urbanização deserto e coberto de neve. Depois concordei. Era melhor f
icar
ali, de muletas e sozinho, do que naquele terrível carro. Senti um largo
sorriso plastificado em meu rosto.
—
Claro que posso. Obrigado.
—
Sem suar
—
disse Arnie. Terminou sua cerveja e LeBay a atirou
em uma sacola de lixo.
—
Outro soldado morto.
—
Si
m
—
respondi.
—
Feliz Ano
-
Novo, Arnie.
Procurei a maçaneta e a abri. Perguntei
-
me se conseguiria sair, se
meus braços trêmulos agüentariam as muletas.
LeBay olhava para mim, sorrindo.
—
É só ficar do meu lado, Dennis
—
disse ele.
—
Sabe o que
acontece aos
bostas que não ficam.
—
Sim, claro
—
sussurrei.
Eu sabia perfeitamente. Botei minhas muletas para fora do carro e
icei o corpo para elas, pouco ligando para qualquer gelo existente no solo.
Elas me manteriam. E, imediatamente, o mundo sofreu uma reviravolt
a,
uma completa transformação. Surgiram luzes
—
só que, evidentemente,
elas haviam estado ali o tempo todo. Minha família se mudara para as
Propriedades Mapleway em junho de 1959, um ano antes de meu
nascimento. Ainda morávamos ali, mas a área não era mais
conhecida
como Propriedades Mapleway, desde 1963 ou 64, no máximo.
Fora do carro, eu olhava para minha casa, em minha rua
perfeitamente normal
—
apenas outra parte de Libertyville, Pensilvânia.
Tornei a olhar para Arnie quase esperando ver LeBay novamente
,
motorista de táxi vindo do inferno, com sua carga de muitos mortos,
trazida das profundezas da noite.
No entanto, era apenas Arnie, usando seu blusão do ginásio, com
seu nome costurado acima do bolso do peito. Arnie, parecendo tão pálido
e tão sozinho. A
rnie, com uma lata de cerveja pousada na virilha.
—
Boa noite, cara.
—
Boa noite
—
respondi.
—
Tome cuidado quando voltar para casa.
Não vai querer que o apanhem, não?
—
Não me apanharão
—
disse ele.
—
Cuide
-
se, Dennis.
—
Pode deixar.
Bati a porta. Meu hor
ror fora substituído por uma profunda e
terrível angústia
—
como se ele tivesse sido sepultado. Sepultado vivo.
Fiquei espiando, enquanto Christine se afastava do meio
-
fio e começava a
descer a rua. Espiei, até vê
-
la dobrar a esquina e desaparecer de vista
.
Então, comecei a subir a entrada para minha casa. A alameda estava em
boas condições. Meu pai se dera ao trabalho de despejar sobre ela quase
um saco de cinco quilos de Halite a fim de torná
-
la antiderrapante,
preocupado comigo.
Eu já fizera três quartos
da caminhada até a porta quando uma
espécie de fumaça cinzenta pareceu flutuar para mim e envolver
-
me. Tive
que parar e abaixar a cabeça tentando me recuperar. Posso perder os
sentidos, aqui fora, pensei confusamente, e morrer congelado em minha
própria c
alçada, onde um dia eu e Arnie brincamos de amarelinha, pique
e estátua.
Por fim, pouco a pouco, o acinzentado começou a clarear. Senti um
braço em torno de minha cintura. Era papai, de roupão e chinelos.
—
Dennis, você está bem?
Se eu estava bem? Eu havia
sido trazido para casa por um cadáver!
—
Estou
—
respondi.
—
Apenas um pouco tonto. Vamos entrar.
Você vai acabar congelando aqui fora.
Ele subiu os degraus comigo, o braço ainda em torno de minha
cintura
—
e era bom senti
-
lo ali.
—
Mamãe ainda está acord
ada?
—
perguntei.
—
Não. Ela viu o romper do ano e depois foi para a cama. Ellie
também. Você está bêbado, Dennis?
—
Não.
—
Pois não me parece bem
—
disse ele, batendo a porta atrás de nós.
Deixei escapar uma risada que parecia um breve e louco ganido. As
coisas ficaram novamente cinzentas... porém apenas por pouco tempo,
agora. Quando recuperei o controle, papai olhava para mim, muito
preocupado.
—
O que aconteceu lá?
—
Papai...
—
Fale comigo, Dennis!
—
Não posso, papai.
—
O que há com ele? O que há de err
ado com ele, Dennis?
Apenas balancei a cabeça e não era por causa da loucura daquilo
tudo, de receio por mim. Agora eu temia por todos eles
—
meu pai, minha
mãe, Elaine, os pais de Leigh. Temia horrivelmente por eles.
E só ficar do meu lado, Dennis. Sabe o
que acontece aos bostas que não
ficam.
Teria eu ouvido realmente aquilo?
Ou aquilo estava apenas em minha mente?
Meu pai ainda olhava para mim.
—
Não posso.
—
Está bem
—
disse ele.
—
Por enquanto. Acho eu. Ainda assim,
preciso saber uma coisa, Dennis, e q
uero que você me diga. Tem algum
motivo para crer que Arnie estivesse envolvido, de qualquer modo, na
morte de Darnell e na daqueles rapazes?
Pensei no rosto sorridente e putrefato de LeBay, as calças frouxas em
torno de algo que só poderiam ser ossos.
—
N
ão
—
respondi, e era quase a verdade.
—
Arnie, não.
—
Certo
—
disse ele.
—
Quer ajuda na escada?
—
Posso dar um jeito. Vá para a cama também, papai.
—
Sim, irei logo. Feliz Ano
-
Novo, Dennis... e se quiser falar comigo,
ainda estarei aqui.
—
Não há nada par
a dizer
—
respondi. Nada que eu
pudesse
dizer...
—
De certa forma
—
disse ele
—
, não acredito muito.
Fui para o quarto, enfiei
-
me na cama e deixei a luz acesa. Não
consegui dormir. Aquela foi a mais longa noite de minha vida e por várias
vezes pensei em l
evantar
-
me e ir para junto de mamãe e papai, como fazia
quando era criança. Em certo momento, cheguei realmente a surpreender
-
me saindo da cama e tateando pelas muletas. Deitei
-
me outra vez. Sim, eu
receava por todos eles, mas isso não era o pior. Não era
mais.
Eu receava perder a razão. Aí estava o pior.
O sol acabava de despontar no horizonte, quando finalmente
adormeci e tive um sono agitado, por umas três ou quatro horas. Quando
acordei, minha mente já começava a tentar curar
-
se da irrealidade. Meu
prob
lema era que, simplesmente, eu não podia mais dar ouvidos àquela
canção de ninar. Os versos se apagaram para sempre.
G
EORGE
L
E
B
AY
N
OVAMENTE
Naquela noite fatídica, quando o carro
ficou preso
Nos trilhos da ferrovia,
Eu a puxei para fora e você estava salv
a,
Mas você fugiu correndo...
—
Mark Dinning
Na sexta
-
feira, cinco de janeiro, recebi um cartão de Richard
McCandless, secretário do Posto da Legião Americana de Libertyville.
Escrito nas costas, em manchada caligrafia a lápis, estava o endereço da
residê
ncia de George LeBay em Paradise Falls, Ohio. Fiquei com o cartão
no bolso traseiro das calças a maior parte do dia, tirando
-
o ocasionalmente
e olhando para ele. Não queria telefonar para George LeBay; não queria
voltar a falar com ele sobre seu louco irmã
o Roland; não queria que aquela
alucinada situação persistisse, em absoluto.
Naquela tarde, meus pais foram ao Monroeville Mall com Ellie, que
queria gastar parte do dinheiro ganho no Natal em um novo par de esquis.
Meia hora depois que eles se foram, pegu
ei o telefone e coloquei o cartão
de McCandless à minha frente. Uma ligação para a telefonista situou
Paradise Falls na área de código 513
—
oeste do Ohio. Após uma pausa
para refletir, disquei 513 e pedi à telefonista de auxílio o número de LeBay.
Anotei
-
o no cartão, fiz nova pausa para refletir
—
agora uma pausa mais
longa
—
, e então ergui o fone do gancho uma terceira vez. Disquei metade
do número de LeBay e então desliguei.
Foda
-
se,
pensei, tomado de um
nervoso ressentimento que não me lembrava de ter s
entido antes.
Já chega
o que houve, portanto, foda
-
se, não vou ligar para ele. Estou cheio disso tudo, lavo
minhas mãos de toda essa situação nojenta. Que ele vá para o inferno, em seu
próprio carro restaurado. Foda
-
se!
—
Foda
-
se!
—
sussurrei e afastei
-
me
dali, antes que a consciência
começasse a pesar novamente.
Fui para o andar de cima, tomei um banho de esponja e fui me
deitar. Adormeci profundamente antes de Ellie e meus pais voltarem,
continuando a dormir muito bem por toda a noite. Foi uma boa coisa,
porque demorei muito tempo para voltar a dormir tão bem assim. Muito
tempo mesmo.
Enquanto eu dormia, alguém
—
alguma coisa
—
matou Rudolph
Junkins, da Polícia Estadual da Pensilvânia. Estava no jornal, quando me
levantei na manhã seguinte. INVESTIGADOR D
O CASO DARNELL
ASSASSINADO PERTO DE BLAIRSVILLE, bradavam as manchetes.
Meu pai estava lá em cima, tomando uma ducha. Ellie e duas
amigas davam risadinhas na varanda, entretidas em jogar Monopólio.
Minha mãe elaborava uma de suas histórias no quarto de cos
tura. Eu
estava sozinho à mesa, petrificado e assustado. Ocorreu
-
me que Leigh e
sua família voltariam da Califórnia no dia seguinte, no outro começariam
as aulas e, a menos que Arnie (ou LeBay) mudasse de idéia, ela seria
ativamente perseguida.
Empurrei le
ntamente o prato, com os ovos que fritara para mim.
Não os queria mais. Na noite anterior, parecera possível deixar de lado
toda aquela horrenda e inexplicável situação envolvendo Christine, com a
mesma facilidade com que deixava meu café da manhã de lado.
Agora, eu
me perguntava como pudera ser tão ingênuo.
Junkins era o homem que Arnie mencionara na véspera do Ano
-
Novo. Nem brincando, eu poderia acreditar que não fora. O jornal dizia
que ele estivera encarregado da investigação sobre Will Darnell na
Pensi
lvânia, dando a entender que alguma sombria organização criminosa
estava por trás do assassinato. Arnie apontaria a Gangue do Sul. Ou os
malucos colombianos.
Eu pensava diferente.
O carro de Junkins havia sido encontrado em uma solitária estrada
rural, e c
astigado a tal ponto que só serviria para o ferro
-
velho,
(Aquele maldito Junkins continua atrás de mim, a todo vapor. Seria melhor
tomar cuidado, antes que alguém acabe com ele..
É
só ficar do meu lado, Dennis.
Sabe o que acontece aos bostas que não ficam.
..)
com Junkins ainda em seu
interior.
Quando Repperton e seus amigos morreram, Arnie estava na
Filadélfia, jogando xadrez. Quando Darnell foi morto, ele estava em
Ligonier com os pais, visitando parentes. Álibis à prova de fogo. Imaginei
que ele teria out
ro para Junkins. Sete
—
sete mortes agora, todas
formando um círculo mortal em torno de Arnie Cunningham e Christine.
Certamente, a polícia podia ver isso; só um cego perderia tão explícita
cadeia de motivação. O jornal, entretanto, não dizia que alguém es
tava
"auxiliando a polícia nas investigações", como colocariam tão
delicadamente os ingleses.
Evidentemente, a polícia não tem o hábito de transmitir tudo o que
sabe aos jornais. Eu estava a par disto, porém cada instinto meu dizia que
os tiras estaduais n
ão investigavam Arnie seriamente, em conexão com
este último assassinato por automóvel.
Arnie estava a salvo de suspeitas.
O que Junkins teria visto à sua retaguarda, naquela estrada rural,
nos arredores de Blairsville? Um carro vermelho e branco, pensei.
Talvez
vazio, talvez dirigido por um cadáver.
Um calafrio me percorreu a espinha e fiquei com os braços
arrepiados.
Sete pessoas mortas.
Aquilo tinha que acabar. Sem mais qualquer outro motivo, senão o
de que matar pode tomar
-
se hábito. Se Michael e Regina
discordassem dos
planos loucos de Arnie sobre a Califórnia, então um deles, talvez ambos,
poderiam ser as próximas vítimas. Supondo
-
se que ele procurasse Leigh
no colégio na próxima terça
-
feira, que lhe pedisse para casar com ele... e
ela simplesmente dis
sesse não? O que poderia Leigh ver junto ao meio
-
fio,
esperando, quando voltasse para casa à tarde?
Meu Deus do céu, eu estava assustado.
Minha mãe surgiu nesse momento.
—
Você não está comendo, Dennis. Ergui os olhos.
—
Andei lendo o jornal. Acho que não
tinha muita fome, mamãe.
—
Precisa comer direito ou não ficará bom. Quer que prepare sua
aveia? Meu estômago comprimiu
-
se à idéia, mas sorri e abanei a cabeça.
—
Não. Comerei um pouco mais no almoço.
—
Promete?
—
Prometo.
—
Você se sente bem, Denny? Ultima
mente me parece tão cansado,
tão abatido...
—
Estou ótimo, mamãe.
Ampliei o sorriso, para mostrar
-
lhe o quanto estava ótimo. Então,
pensei nela, saindo de seu Reliant azul, no Monroeville Mall, e dois carros
atrás; havia um outro, branco e vermelho, espera
ndo. Mentalmente, eu a
via passar diante dele, com a bolsa debaixo do braço, vi a alavanca de
transmissão de Christine cair subitamente para DRIVE...
—
Tem certeza? Não é a perna que o incomoda, é?
—
Não.
—
Está tomando suas vitaminas?
—
Estou.
—
E seu chá
de botões de rosa?
Comecei a rir. Ela pareceu irritada por um instante, depois sorriu.
—
Você é um tratante, Dennis Guilder
—
disse, com seu melhor
sotaque irlandês (que é bastante bom, uma vez que sua mãe nascera no
velho torrão)
—
, e não tem jeito mesmo
!
Ela voltou para o quarto de costura e, após um momento,
recomeçaram as explosões irregulares de sua máquina de escrever.
Recolhi o jornal e olhei para a foto do carro amassado de Junkins. O
CARRO DA MORTE, dizia a legenda.
Tente isto, pensei: Junkins tem
um interesse muito maior do que apenas
descobrir quem vendia excitantes ilegais e cigarros a Will Darnell. Junkins é um
detetive estadual, e um detetive estadual trabalha em mais de um caso, ao mesmo
tempo. Poderia estar querendo descobrir quem matou "Pen
etra" Welch. Ou podia
estar...
Peguei as muletas, fui até o quarto de costura e bati à porta.
—
O que é?
—
Lamento incomodar, mamãe...
—
Não seja tolo, Dennis.
—
Você vai hoje ao centro da cidade?
—
Poderia ir. Por quê?
—
Porque eu gostaria de ir à bibliot
eca.
Por volta das três horas da tarde daquele sábado, a neve recomeçara
a cair. Eu sentia uma ligeira dor de cabeça após ficar forçando a vista na
tela de microfilmes, mas conseguira o que queria. Meu pressentimento
estava certo
—
não que isso significas
se um grande salto intuitivo.
Junkins havia sido encarregado do caso de atropelamento e fuga que
vitimara "Penetra" Welch, certo... mas também fora incumbido de
investigar o que acontecera a Repperton, Trelawney e Bobby Stanton. Ele
teria de ser um tira mu
ito tapado, para não ler o nome de Arnie nas
entrelinhas do que sucedia.
Recostei
-
me na cadeira, desliguei a máquina e fechei os olhos.
Procurei ser Junkins, por um minuto. Ele desconfia do envolvimento de
Arnie naquelas mortes. Não de patrociná
-
las, mas d
e envolvimento nelas
de algum modo. Desconfia de Christine? Talvez sim. Nos filmes de
detetives na TV, eles sempre são os maiores para identificar armas,
máquinas de escrever usadas na redação de notas de resgate e carros
envolvidos em atropelamentos e fug
as. Fragmentos de tinta, arranhados
na pintura, talvez...
Surge o caso do contrabando de Darnell. Para Junkins, isso é
excelente. A garagem será fechada e embargado tudo que estiver nela.
Talvez Junkins suspeite...
De quê?
Esforcei
-
me em imaginar. Sou um t
ira. Acredito em respostas
legítimas, respostas saudáveis, respostas rotineiras. Então, de que suspeito?
Após um momento, surge a idéia.
De um cúmplice, naturalmente. Suspeito da existência de um
cúmplice. Tem de haver um cúmplice. Ninguém, em seu juízo pe
rfeito,
desconfiaria que o carro estivesse fazendo aquilo sozinho. Então...?
Então, depois de fechada a garagem, Junkins leva para lá os
melhores técnicos e laboratoristas que consegue. Eles examinam Christine
de ponta a ponta, procurando provas do que aco
nteceu. Raciocinando
como Junkins
—
pelo menos, tentando
—
, penso que tem de existir
alguma evidência. Atingir um corpo humano não é como atingir um
travesseiro de penas. Bater contra a barreira de estrada nas Squantic Hills,
também não é como bater contra
um travesseiro de penas.
Então o que descobrem aqueles peritos em homicídios por veículos?
Nada.
Não encontram amassados, nenhuma pintura retocada, nenhuma
mancha de sangue. Não encontram fragmentos marrons da pintura da
barreira na estrada das Squantic H
ills
—
que foi quebrada
—
encravados
no carro. Em resumo, Junkins não encontra a mais remota evidência de
que Christine foi usada em cada crime. Agora, saltando à frente, para o
assassinato de Darnell. Junkins retorna à garagem no dia seguinte, a fim
de ch
ecar Christine? Eu voltaria, se fosse ele. A parede de uma casa
também não é um travesseiro de penas
—
e um carro que acabou de
rompê
-
la deve apresentar danos importantes, danos que, simplesmente,
não poderiam ser reparados da noite para o dia. E, quando e
le chega, o
que encontra?
Apenas Christine, sem o menor problema no pára
-
choque.
Isto conduz a outra dedução, esta explicando por que Junkins nunca
deixou alguém vigiando o carro. Eu não entendia por que ele nunca
suspeitou do envolvimento de Christine. No
fim, porém, a lógica o
orientara
—
e talvez o tivesse matado, também. Junkins não pusera
alguém vigiando Christine, porque o álibi do carro, embora mudo, era tão
à prova de fogo como o de seu dono. Se ele inspecionara Christine,
imediatamente após o assas
sinato de Will Darnell, deve ter concluído que
o carro não podia estar envolvido, por mais persuasiva que a evidência
em contrário pudesse parecer.
Nem um arranhão naquele carro. E por que não? Simplesmente
porque Junkins não tinha todos os fatos. Refleti
no odômetro que girava
para trás e recordei Arnie dizendo:
Apenas um defeito.
Pensei no ninho de
rachaduras do pára
-
brisa, parecendo cada vez ficar menor e recuar
—
como se também recuasse para dentro. Pensei na extravagante
substituição de peças que não d
emonstrava qualquer ritmo ou razão. Por
último, evoquei aquela fantástica corrida de pesadelo, ao voltar para casa
na noite de domingo
—
carros antigos que pareciam novos, estacionados
no meio
-
fio, diante de casas onde havia festas, no Teatro Strand, ainda
intacto em toda a sua solidez de tijolos amarelos, o projeto de urbanização
pela metade, já completado e ocupado pelos suburbanos de Libertyville
vinte anos atrás.
Apenas um erro.
Refleti que ignorar aquele erro era o que tinha
realmente
matado
Rudolph Ju
nkins.
Porque, vejamos: quando temos um carro durante algum tempo, ele
vai
-
se estragando, pouco importa quantos cuidados lhe dediquemos e, em
geral, os estragos acontecem ao acaso. Um carro sai da linha de montagem
como um bebê recém
-
nascido, e precisament
e como um recém
-
nascido
começa a rodar entre corredores indígenas, no correr dos anos. As
pedradas e flechadas de punição que o acertam ao acaso, arriam uma
bateria aqui, arruínam uma barra de direção ali, congelam um mancal
acolá. A bóia do carburador emp
erra, um pneu fura, há um curto na parte
elétrica, o estofamento começa a deteriorar
-
se.
É como um filme. E, se pudermos rodar o filme para trás...
—
Deseja mais alguma coisa?
—
perguntou o funcionário
encarregado da Seção de Microfilmes atrás de mim, e eu
quase gritei.
Mamãe me esperava no saguão principal e tagarelou a maior parte
do caminho para casa, falando sobre o que escrevia e suas novas aulas, de
dança de discoteca. Assenti e respondi com acerto, a maioria das vezes.
Enquanto isso, pensava que, se
Junkins
levara
seus técnicos, altamente
especializados em carros, se ele os trouxera de Harrisburg, certamente
todos haviam deixado de enxergar um elefante, enquanto procuravam
pela agulha. Aliás, eu não podia censurá
-
los. Carros não costumam rodar
ao con
trário, como acontece com filmes. E não existem fantasmas,
espectros ou demônios, preservados em óleo para motor.
Acredite em um, acredite em todos,
pensei
—
e estremeci.
—
Quer que ligue o aquecedor, Denny?
—
perguntou minha mãe,
com ar jovial.
—
Você que
r, mamãe?
Pensei em Leigh, que devia chegar no dia seguinte. Leigh, de rosto
adorável (acentuado pelos malares oblíquos, quase cruéis), o corpo jovem
e docemente sensual, ainda não deteriorado pelas forças do tempo e da
gravidade; como aquele Plymouth de m
uito tempo atrás, enviado em 1957
por uma transportadora de Detroit, em certo sentido, ela ainda estava no
período de garantia. Então pensei em LeBay, morto e não
-
morto ao
mesmo tempo, e recordei sua lascívia (seria aquilo lascívia ou apenas uma
pulsão par
a estragar as coisas?). Recordei Arnie, comentando com
tranqüila certeza que eles iam casar
-
se. Em seguida, com impotente
nitidez, visualizei a noite de núpcias. Vi Leigh erguendo os
-
olhos, na
penumbra de algum quarto de motel, para ver apenas um pútrido
e
sorridente cadáver, reclinado sobre ela. Eu a ouvi gritar, enquanto
Christine, uma Christine enfeitada com serpentinas de papel crepom e
letreiros de RECÉM
-
CASADOS, escritos com espuma de sabão,
aguardava fielmente do lado de fora, além da porta trancada
. Christine
—
ou a terrível força fêmea que a animava
—
saberia que Leigh não ia durar
muito... e ela, Christine, estaria próxima, depois que Leigh se fosse.
Fechei os olhos, procurando afastar aquelas imagens, mas isso
apenas as intensificou.
Tudo começar
a com Leigh querendo Arnie, e progredira
logicamente, até o ponto em que Arnie a queria de volta. Entretanto, não
terminara aí, terminara? Porque agora, LeBay possuía Arnie...
e ele
desejava Leigh.
Entretanto, LeBay não ia tê
-
la. Não a teria, se eu pudesse
impedir.
Naquela noite, telefonei para George LeBay.
—
Perfeitamente, Guilder
—
disse ele. Parecia mais velho, mais
cansado.
—
Lembro
-
me muito bem de você. Tagarelei até cansá
-
lo, diante
de meu quarto, naquele hotel que acredito tenha sido o mais depress
ivo
do universo. O que posso fazer por você?
Por seu tom, parecia esperar que eu não quisesse demais. Vacilei.
Devia contar
-
lhe que seu irmão voltara do mundo dos mortos? Que nem
mesmo a sepultura fora capaz de exterminar seu ódio pelos bostas? Que
ele se
apoderara de meu amigo, que o escolhera, tão definitivamente como
Arnie escolhera Christine? Devíamos discorrer sobre mortalidade, sobre
tempo e amor rançoso?
—
Guilder? Você desligou?
—
Estou com um problema, Sr. LeBay, e não sei ao certo como falar
-
lhe a
respeito. Tem relação com seu irmão.
Algo novo surgiu então em sua voz, algo tenso e controlado.
—
Não imagino que tipo de problema poderia ter, relacionado a
meu irmão. Rollie está morto.
—
Pois é justamente isto.
—
Agora, eu era incapaz de controlar a v
oz,
que tremulava para uma oitava mais alta e depois caía novamente para
um tom grave.
—
Não acredito que ele esteja morto.
—
De que está falando?
—
A voz era tensa, acusadora e...
amedrontada.
—
Se esta é a sua maneira de pilheriar, eu lhe asseguro que
nã
o poderia ter pior gosto.
—
Falo sério. Permita
-
me, apenas, contar ao senhor parte do que
vem acontecendo, desde que seu irmão morreu.
—
Escute, Guilder, tenho vários maços de provas para corrigir e um
romance que pretendo terminar, de maneira que não tenh
o tempo a
perder com...
—
Por favor
—
pedi.
—
Por favor, Sr. LeBay, por favor, ajude
-
me e
ajude meu amigo. Houve uma longa, longuíssima pausa, e então LeBay
suspirou.
—
Conte a sua história
—
disse, e depois, após uma breve pausa,
acrescentou:
—
Maldito sej
a!
Transmiti a história para ele, à maneira de um moderno telegrama
interurbano. Podia imaginar minha voz passando através de postos de
conexão computadorizados, cheios de circuitos miniaturizados, para
finalmente chegar aos ouvidos do homem.
Contei
-
lhe o
problema de Arnie com Repperton, a expulsão de
Buddy e sua vingança. Falei sobre a morte de "Penetra" Welch, sobre o que
acontecera nas Squantic Hills e o que acontecera durante a tempestade da
véspera de Natal. Falei sobre as rachaduras no pára
-
brisa, pa
recendo
recuar, e um odômetro que girava ao contrário, com a máxima certeza.
Falei sobre o rádio que parecia transmitir apenas a WDIL, uma estação
que transmitia músicas antigas, pouco importando para onde se movesse
o ponteiro do
dial
—
o que provocou um
leve grunhido surpreso em
George LeBay. Falei sobre a assinatura em meus moldes de gesso,
expliquei como a assinatura de Arnie, feita na noite do Dia de Ação de
Graças, combinava com a de seu irmão, no formulário original do registro
de Christine. Falei so
bre o constante uso de Arnie da palavra "bostas".
Sobre a maneira como ele passara a pentear o cabelo, no estilo cheio de
brilhantina dos anos 50. De fato, contei
-
lhe tudo, exceto o que acontecera
comigo, quando Arnie me trouxera para casa, naquela madruga
da de
Ano
-
Novo. Pensara contar
-
lhe também isto, porém não pude. Jamais
comentei uma vírgula daquilo com ninguém, até descrevê
-
lo aqui, quatro
anos depois.
Quando terminei, houve silêncio na linha.
—
Sr. LeBay? Ainda está me ouvindo?
—
Eu não desliguei
—
di
sse ele, finalmente.
—
Guilder... Dennis...
não é minha intenção ofendê
-
lo, mas deve compreender que, o que está
sugerindo, transcede quaisquer possíveis fenômenos psíquicos,
estendendo
-
se até...
—
A voz dele extinguiu
-
se.
—
Até a loucura?
—
Não é bem a pa
lavra que eu empregaria. A julgar pelo que diz,
você esteve envolvido em um terrível acidente de futebol. Ficou dois
meses no hospital, sofrendo dores atrozes por algum tempo. Bem, não
seria o caso de sua imaginação...
—
Sr. LeBay
—
interrompi
—
, seu irmão
nunca usou uma frase com
o termo vagabundinho?
—
Como?
—
Vagabundinho. Como quando se joga uma bola de papel em uma
cesta de papéis e, acertando, a gente diz "Cesta"? Só que, em vez disso,
"Veja como coloco bem no traseiro do vagabundinho." Seu irmão
cost
umava dizer isso?
—
Como é que você sabe?
—
E então, sem me dar tempo para
responder:
—
Ele empregou a frase em alguma das ocasiões em que o
viram, não?
—
Não.
—
Você é um mentiroso, Guilder.
Não respondi. Estava trêmulo, de joelhos bambos. Nenhum adulto
j
á me dissera aquilo, em toda a minha vida.
—
Sinto muito, Dennis, mas meu irmão está morto. Era um
desagradável, talvez até mesmo um perverso ser humano, porém está
morto e todas essas mórbidas fantasias e idéias...
—
Quem era o vagabundinho?
—
consegui pe
rguntar. Silêncio.
—
Seria Charlie Chaplin?
Não pensei que ele fosse dar alguma resposta. Então, por fim, em
voz opressa, ele disse:
—
Somente em segunda
-
mão. Ele aludia a Hitler. Havia uma
passável semelhança entre Hitler e o pequeno vagabundo de Chaplin.
Chaplin fez um filme chamado O
Grande Ditador.
É provável que você
nunca o tenha visto. De qualquer modo, era um nome bastante comum
para ele, durante os anos de guerra. Você ainda era muito novo, para
poder lembrar. Entretanto, isso nada significa.
Foi a
minha vez de ficar em silêncio.
—
Nada significa!
—
gritou ele.
—
Nada! São fantasias e sugestões,
nada mais! Procure entender isto!
—
Há sete pessoas mortas, aqui no oeste da Pensilvânia
—
respondi.
—
Não é apenas uma fantasia. Há as assinaturas em meus
moldes de gesso. Também não são fantasias. Eu guardei esses moldes, Sr.
LeBay. Posso enviá
-
los para o senhor. Dê uma olhada neles e me diga se
uma das assinaturas não foi feita na caligrafia de seu irmão.
—
Poderia ser uma falsificação, consciente ou não.
—
Se acredita nisso, procure um perito em grafologia. Eu pago.
—
Você mesmo poderia fazer isso.
—
Sr. LeBay
—
falei
—
,
eu
não preciso mais ser convencido.
—
Certo, mas então, o que quer de mim? Que eu partilhe suas
fantasias? Não farei isso. Meu irmão está
morto. O carro dele não passa de
um carro.
Ele mentia, eu podia senti
-
lo. Senti
-
o, mesmo pelo telefone.
—
Quero que me explique uma coisa que me disse, na noite em que
conversamos.
—
O que poderia ser?
A voz soava desconfiada. Passei a língua nos lábios.
—
O senhor disse que ele era obcecado e furioso, mas que não era
um monstro. Pelo menos, segundo disse, não acreditava que fosse. Então,
tive a idéia de que mudou inteiramente de assunto... porém, quanto mais
eu penso nisso, mais acredito que não mudou de
assunto, não. Sua frase
seguinte foi de que ele nunca as agredira. A esposa e a filha.
—
Francamente, Dennis. Eu...
—
Ouça, se o senhor ia dizer alguma coisa, pelo amor de Deus, diga
agora!
—
exclamei. Minha voz entrou em colapso. Enxuguei a testa, e a
mão
ficou molhada de suor pegajoso.
—
Não é mais fácil para mim do que
para o senhor, Arnie está obcecado por uma garota, o nome dela é Leigh
Cabot, mas acho que não é Arnie quem está obcecado por ela, de maneira
alguma. Acho que é o seu irmão, seu irmão mort
o,
agora, fale comigo, por
favor!
Ele suspirou.
—
Falar com você?
—
perguntou.
—
Falar
com você? Falar sobre
velhos acontecimentos... não, essas antigas suspeitas... isso seria quase o
mesmo que despertar um espírito maligno adormecido, Dennis. Por favor,
eu não sei de nada.
Eu podia ter
-
lhe dito que o espírito maligno já fora despertado, mas
ele sabia perfeitamente.
—
Diga
-
me sobre o que suspeita.
—
Telefonarei mais tarde para você.
—
Sr. LeBay... por favor...
—
Telefonarei mais tarde
—
repetiu ele.
—
Agor
a, preciso ligar para
minha irmã Márcia, no Colorado.
—
Se isso pode ajudar, eu ligarei...
—
Não. Ela nunca falaria com você. Só comentamos o assunto entre
nós, uma ou duas vezes, se tanto. Espero que sua consciência esteja limpa
nisto tudo, Dennis. Sim, p
orque está nos pedindo para abrir velhas feridas,
para fazê
-
las sangrar novamente. Portanto, vou perguntar mais uma vez:
está bem certo do que disse?
—
Estou
—
sussurrei.
—
Eu ligo mais tarde
—
disse ele, e desligou.
Passaram
-
se quinze minutos, depois vint
e. Dei volta à sala em
minhas muletas, incapaz de sentar
-
me e ficar quieto. Espiei para a rua lá
fora através da vidraça, uma rua varrida pelo vento, um estudo em
brancos e pretos. Aproximei
-
me do telefone por duas vezes e não ergui o
fone, temendo que ele
pudesse estar tentando ligar para mim, ao mesmo
tempo, e receando mais ainda que não ligasse. Da terceira vez, justamente
quando pousei a mão sobre ele, a campainha tocou. Puxei
-
a rapidamente,
como se houvesse sido picado, mas depois o ergui do gancho.
—
Oi?
—
exclamou a voz afogueada de Ellie, no andar de baixo.
—
É
você, Donna?
—
Por favor, Dennis Guilder...
—
começou a voz de LeBay,
parecendo mais velha e mais cansada do que nunca.
—
Já atendi, Ellie
—
avisei.
—
Tá legal, e daí?
—
replicou ela, atrevida
, antes de desligar.
—
Alô? Sr. LeBay?
—
perguntei, com o coração em disparada.
—
Falei com ela
—
anunciou ele, em voz soturna.
—
Márcia me
disse para fazer o que achasse melhor. No entanto, está amedrontada.
Juntos, você e eu, conspiramos para amedrontar
uma velha senhora que
nunca fez mal a ninguém e que nada tem a ver com isto.
—
É por uma boa causa
—
falei.
—
Será?
—
Se eu pensasse o contrário, não teria telefonado para o senhor
—
respondi.
—
Vai ser franco comigo ou não, Sr. LeBay?
—
Sim, mas para você
e mais ninguém
—
disse ele.
—
Se comentar
com outra pessoa, negarei tudo. Entendido?
—
Certo.
—
Muito bem
—
ele suspirou.
—
Em nossa conversa do verão
passado, Dennis, eu lhe disse uma mentira sobre o que acontecera e outra
mentira a respeito do que eu...
do que eu e Marcy sentimos quanto a isso.
Mentíamos para nós mesmos. Se não fosse por sua causa, creio que
continuaríamos mentindo entre nós sobre aquele... aquele incidente à
beira da estrada... pelo resto de nossas vidas.
—
Fala da garotinha? Da filha d
e LeBay?
—
Sim
—
disse ele lentamente.
—
De Rita.
—
O que aconteceu realmente, quando ela se sufocou?
—
Minha mãe costumava chamar Rollie de sua
changeling
*
—
disse
LeBay.
—
Eu lhe contei isso?
—
Não.
—
Não, claro que não. Segundo lhe disse naquela época,
achava que
seu amigo seria mais feliz livrando
-
se do carro, porém é a coisa que uma
pessoa pode dizer em defesa das próprias crenças, porque o irracional... o
irracional se intromete nisso.
Ele fez uma pausa e não o apressei. George LeBay diria ou não o q
ue
tinha a dizer. Nada mais simples.
—
Minha mãe dizia que ele era um bebê de gênio excelente, até os
seis meses de idade. E então... ela dizia que foi então que o duende Puck
apareceu. Que Puck levou seu afável bebê para brincar com ele,
substituindo
-
o po
r um
changeling.
Ela ria, ao falar nisso. No entanto,
nunca comentava em presença de Rollie ou quando ele estava por perto...
e seus
olhos
jamais eram felizes, Dennis. Creio que... bem, era sua única
explicação para o que ele era, para o fato de ser tão in
tocável em seu ódio...
tão egoísta em seus raros e simples objetivos.
"Havia um garoto
—
esqueci seu nome
—
um garoto maior, que
surrou Rollie três ou quatro vezes. Um valentão. Ele começava pelas
roupas de Rollie e perguntava se usara as peças de baixo um
ou dois
meses seguidos. Rollie lutava com ele, xingava
-
o e o ameaçava, mas o
valentão ria dele, segurava
-
o à distância com seus braços mais compridos
e o surrava até cansar
-
se, ou até o nariz de Rollie deitar sangue. Então,
Rollie ficava sentado na esquin
a, fumando um cigarro e chorando, com
*
Criança boba, feia ou de mau gênio, que se acredita ter sido trocada, ao nascer, pelas
fadas. (N.T.)
sangue e ranho secando no rosto. E se eu ou Drew nos aproximávamos,
ele nos espancava para valer.
"A casa do valentão pegou fogo certa noite, Dennis. O valentão, o
pai do valentão e o irmãozinho do valentão foram morto
s. A irmã do
valentão sofreu queimaduras horríveis. Presumia
-
se que o incêndio se
originara no fogão da cozinha
—
e talvez assim fosse, realmente.
Entretanto, as sirenes dos bombeiros me despertaram e eu ainda estava
acordado, quando Rollie entrou no quart
o em que dormíamos, subindo
pela latada de hera junto à parede. Havia fuligem em sua testa e ele
cheirava a gasolina. Ele me viu deitado, com os olhos abertos, e disse: "Se
contar alguma coisa, George, mato você." Desde aquela noite, Dennis,
tentei convenc
er
-
me de que cumpriria a palavra, caso eu contasse que ele
estivera lá fora, espiando o incêndio. Bem, talvez fosse apenas isso."
Eu tinha a boca seca. Parecia haver uma bola de chumbo em meu
estômago. Os cabelos da nuca estavam eretos.
—
Que idade seu irm
ão tinha na época?
—
perguntei, em voz rouca.
—
Ainda não fizera treze anos
—
disse LeBay, com falsa e terrível
calma.
—
Certo dia de inverno, coisa de um ano mais tarde, houve uma
briga durante um jogo de hóquei. Um sujeito chamado Randy
Throgmorton abriu
uma fenda na cabeça de Rollie, com seu bastão. Bateu
nele até deixá
-
lo sem sentidos. Nós o levamos ao velho Dr. Farner... Rollie
já recuperara os sentidos então, porém continuava grogue, e o médico deu
doze pontos em seu couro cabeludo. Uma semana mais ta
rde, Randy
Throgmorton caiu através do gelo, na lagoa Palmer, e afogou
-
se. Estivera
patinando em uma área claramente marcada por avisos de GELO FINO.
Aparentemente.
—
Está dizendo que seu irmão matou essas pessoas? Está dando a
entender que LeBay matou a p
rópria filha?
—
Não que ele a matou, Dennis, nunca pensei nisso. Ela morreu
asfixiada. Estou sugerindo que ele podia tê
-
la deixado morrer.
—
O senhor disse que ele a virou de cabeça para baixo... que bateu
nas costas dela, tentou fazê
-
la vomitar...
—
Foi o
que Rollie me contou no funeral
—
disse George.
—
Então, o que...
—
Eu e Márcia comentamos o caso mais tarde. Somente aquela vez,
compreenda. Durante o jantar daquela noite. Rollie me dissera: "Eu a
suspendi por suas botas e tentei arrancar o filho da put
a de lá, a tapas,
Georgie. Só que a coisa estava muito no fundo da garganta". E o que
Verônica disse a Márcia foi: "Rollie a suspendeu no ar pelos sapatos e
tentou arrancar de lá o que quer que a estava sufocando dando
-
lhe tapas,
mas a coisa estava muito n
o fundo da garganta." Eles contaram
exatamente a mesma história, empregando exatamente as mesmas
palavras. Sabe o que isso me levou a pensar?
—
Não.
—
Pensei em Rollie, escalando a janela do quarto e cochichando para
mim:
"Se contar alguma coisa, Georgie,
mato você."
—
Bem, mas... por quê? Por que ele iria?
—
Mais tarde, Verônica escreveu para Márcia, dando a entender que
Rollie pouco fizera para salvar a filha. E que, já bem no fim, ele a colocara
novamente no carro. Para que não ficasse ao sol, explicara.
Na carta,
entretanto, Verônica disse ter pensado que Rollie desejava que a menina
morresse no carro.
Eu não queria dizer aquilo, mas era preciso.
—
Está sugerindo que seu irmão ofereceu a filha como uma espécie
de sacrifício humano? Houve uma longa, refle
xiva e tenebrosa pausa.
—
Não. Ele não o faria, de alguma forma consciente
—
disse
LeBay.
—
Não mais do que sugiro ter ele assassinado a filha
conscientemente. Se conhecesse meu irmão, veria o quanto é ridículo
suspeitar dele como tendo parte com feitiçari
a, bruxaria ou pactos com
demônios. Rollie acreditava apenas nos próprios sentidos... exceto,
imagino, sua própria vontade. Apenas sugiro que ele poderia ter tido
alguma... alguma intuição... ou que poderia ter sido dirigido a fazer o que
fez. Minha mãe di
zia que ele era um
changeling.
—
E Verônica?
—
Não sei
—
disse ele.
—
O veredicto policial foi de suicídio,
embora ela não deixasse qualquer nota explicando seu ato. Sim, poderia
perfeitamente ser suicídio. Não obstante, a pobre mulher tinha feito
alguns a
migos na cidade e muitas vezes me pergunto se talvez não tivesse
dado a entender a qualquer deles, como fez com Márcia, que a morte de
Rita não havia sido bem como ela e Rollie tinham contado. Eu me
pergunto se Rollie descobriu.
Se contar alguma coisa, Geo
rgie, mato você.
Não
há prova de nada, evidentemente. No entanto, eu gostaria de saber por
que ela quis morrer daquele jeito... e fico surpreso ao pensar em como
uma mulher sem o menor conhecimento sobre carros, saberia o suficiente
para pegar uma mangueir
a, adaptá
-
la ao cano de descarga e enfiá
-
la
através da janela do carro. Procuro não meditar muito nessa coisa. Às
vezes me fazem perder o sono.
Refleti nas coisas que ele tinha dito e nas que não dissera
—
o que
deixara nas entrelinhas. Intuitivo, ele diss
era.
Tão egoísta em seus raros e
simples objetivos.
Suponhamos que Roland LeBay houvesse percebido, de
algum modo que não admitiria nem para si mesmo, que estava investindo
seu Plymouth com algum poder sobrenatural? E suponhamos que ele
estivesse apenas es
perando pela chegada do herdeiro certo... e então...
—
Isto responde às suas perguntas Dennis?
—
Creio que sim
—
respondi, lentamente.
—
O que vai fazer?
—
Creio que o senhor sabe.
—
Destruir o carro?
—
Vou tentar
—
respondi.
Então, olhei para minhas mulet
as, descansando contra a parede.
Minhas malditas muletas.
—
Você pode destruir também seu amigo.
—
Eu posso salvá
-
lo
—
repliquei. George LeBay comentou, em voz
lenta:
—
Eu me pergunto se isso ainda será possível.
A
T
RAIÇÃO
Havia sangue e vidro por toda pa
rte,
E não vi mais ninguém além de mim
Quando a chuva caiu, forte e fria,
Vi um rapaz, jazendo à beira da estrada,
Ele pediu "Por favor, senhor,
quer me ajudar?"
—
Bruce Springsteen
Eu a beijei.
Seus braços passaram em torno de meu pescoço. Uma de suas mã
os
frias pressionou minha nuca de leve. Para mim, não havia mais dúvidas
sobre o que estava acontecendo; quando se afastou ligeiramente, com os
olhos semicerrados, pude ver que também ela não tinha dúvidas.
—
Dennis
—
ela murmurou, e tornei a beijá
-
la. Nos
sas línguas se
tocaram suavemente. Por um instante, seu beijo intensificou
-
se e pude
sentir a paixão denunciada por aqueles altos malares. Então, ela ofegou
um pouco e recuou.
—
Já chega
—
disse.
—
Acabaremos presos por
atentado ao pudor ou coisa assim.
Er
a dezoito de janeiro. Estávamos estacionado no pátio atrás do
Kentucky Fried local, com os restos de um excelente jantar de galinha
espalhados à nossa volta. Estávamos em meu Duster e só isso já era um
grande acontecimento para mim
—
era a primeira vez que
eu estava ao
volante, desde o acidente. Naquela mesma manhã, o médico retirara o
enorme molde de gesso de minha perna esquerda e o substituíra por um
aparelho ortopédico. Em tom grave, ele me aconselhara a não retirar o
aparelho, mas eu podia notar que es
tava satisfeito sobre a maneira como
as coisas estavam indo. O médico atribuía isso à sua técnica superior;
minha mãe, ao pensamento positivo e canja de galinha; o treinador Puffer,
ao chá de botões de rosa.
Quanto a mim, achava que Leigh Cabot tinha muito
a ver com
aquilo.
—
Precisamos conversar
—
disse ela.
—
Não. Vamos namorar um pouco mais
—
respondi.
—
Conversamos agora. Namoramos depois.
—
Ele começou de novo? Ela assentiu.
No correr das quase duas semanas, desde minha conversa telefônica
com LeBay
—
as duas primeiras do turno letivo de inverno
—
, Arnie
estivera agindo para uma
aproximação
com Leigh, e agindo com tal
intensidade que eu e ela ficamos assustados. Eu lhe contara minha
conversa com George LeBay (mas não, como já disse, minha terrível volta
para casa com Arnie, na madrugada de Ano
-
Novo) e tornara o mais claro
possível que, de modo algum, ela devia simplesmente romper com ele.
Isso o tornaria enfurecido e, naquela época, se Arnie se enfurecia com
alguém, coisas desagradáveis aconteciam a tal
pessoa.
—
Isso é como enganá
-
lo
—
comentou Leigh.
—
Eu sei
—
respondi, mais rispidamente do que pretendia.
—
Não
gosto da situação, porém não quero aquele carro em ação novamente.
—
E depois? Meneei a cabeça.
Em verdade, eu começava a sentir
-
me como o Prín
cipe Hamlet,
adiando indefinidamente. Claro que sabia o que tinha de ser feito:
Christhie precisava ser destruída. Juntamente com Leigh, já havia
discutido maneiras de como fazê
-
lo.
A primeira idéia partira dela
—
coquetéis Molotov. Encheríamos
algumas gar
rafas de vinho com gasolina, acenderíamos os pavios ("Pavios?
Que pavios?", perguntei. "Lenços de papel fariam o mesmo", respondeu
ela prontamente, de novo aumentando minha curiosidade sobre seus
antepassados de malares altos) e as jogaríamos pelas janelas
de Christine.
—
E se as portas estiverem trancadas, com os vidros levantados?
—
perguntei.
—
Em geral, é como costumam ficar, você sabe.
Ela me fitou como se eu fosse um perfeito idiota.
—
Está dizendo que a idéia de bombardear o carro de Arnie é
certa
—
respondeu
—
, mas tem escrúpulos apenas em quebrar alguns
vidros?
—
Não
—
repliquei
—
, mas quem chegará perto do carro o
suficiente para quebrar os vidros com um martelo, Leigh? Você?
Ela olhou para mim, mordendo o carnudo lábio inferior. Não disse
nada. A
idéia seguinte fora minha. Dinamite. Leigh refletiu nisso e
meneou a cabeça.
—
Eu poderia conseguir sem muito esforço, acho
—
falei.
Eu continuava vendo Brad Jeffries de tempos em tempos e ele ainda
trabalhava para a Penn
-
DOT, que tinha dinamite suficiente
para mandar o
Estádio Three Rivers à lua. Pensei que poderia apanhar a chave certa, sem
Brad saber de nada
—
ele geralmente ficava meio tocado, quando via os
jogos dos Pingüins pela televisão. Eu pegaria a chave dos explosivos na
prateleira, durante o ter
ceiro período de um tempo, e a devolveria no
terceiro período de outro. Era bastante remota a possibilidade de que ele
precisasse de explosivos em janeiro e, desta forma, desse por falta da
chave. Era um embuste, outra traição
—
porém um meio de resolver a
situação.
—
Não
—
disse ela.
—
Por que não?
Para mim, a dinamite parecia constituir o tipo da destruição total
que o momento exigia.
—
Porque agora Arnie deixa o carro estacionado na entrada da
garagem da casa dele. Você quer mesmo explodir um carro e man
dar
estilhaços de metal por todo um bairro? Arriscar
-
se a que um pedaço de
vidro arranque a cabeça de alguma criança?
Pestanejei. Não tinha pensado nisso mas, quando ela falou, a
imagem se destacou nitidamente, em toda a sua hediondez. Isso me fez
pensar e
m outras coisas. Acender uma banana de dinamite no cigarro e
depois jogá
-
la contra o objeto a ser destruído... bem, podia ser muito legal
nos faroestes do canal 2, na tarde de sábado, mas a situação se modificava
radicalmente na vida real. Ainda assim, ape
guei
-
me à idéia o mais que
pude.
—
E se agíssemos à noite?
—
Continuaria muito perigoso
—
replicou ela.
—
E você sabe muito
bem. Está em sua cara. Houve uma longa, demorada pausa.
—
O que me diz do compressor de ferro
-
velho, na Garagem de
Darnell?
—
arrisc
ou Leigh por fim.
—
Continuam as objeções básicas de antes
—
falei.
—
Quem
dirigiria Christine até lá? Eu, você ou Arnie?
Foi aí que as coisas pararam.
—
O que vai ser para hoje?
—
perguntei a ela.
—
Ele me convidou para sairmos à noite
—
respondeu Leigh.
—
Boliche, desta vez.
—
Nos dias anteriores havia sido cinema, sair para
jantar, ir ver TV na casa dele, propostas de encontros para estudar.
Christine estava em todos os planos, como meio de transporte.
—
Ele
começa a irritar
-
se com minhas recusas e meu e
stoque de pretextos está
acabando. Se vamos mesmo fazer alguma coisa, terá de ser logo.
Assenti. Uma coisa era o fracasso em encontrarmos um método
satisfatório. Outro impedimento que nos continha era minha perna. Agora
que retirara o gesso, eu recebera or
dens estritas do médico para usar as
muletas, mas já havia testado a perna esquerda sem elas. Sentia alguma
dor, porém não tanto quanto eu temia.
Essas coisas pesavam, claro
—
porém o melhor de tudo dizia
respeito a nós dois. À descoberta um do outro. E, e
mbora isto pareça
sórdido, acho que deveria acrescentar algo mais, se é que pretendo
esclarecer tudo com a mais absoluta franqueza (e havia prometido a mim
mesmo, quando comecei a relatar a história, que a interromperia se não
pudesse manter a verdade). O
sabor do perigo acrescentara algo ao que eu
sentia por Leigh
—
e, acho, ao que ela sentia por mim.
Ele era meu melhor amigo, mas havia ainda uma vil e insensata
atração, na idéia de que nós dois nos víamos sem que ele soubesse. A cada
vez que a tomava nos
braços, sempre que minha mão deslizava pela
curvatura firme de seus seios, eu sentia isso. A traição. Poderiam me dizer
por que havia tal atração? Pois havia. Pela primeira vez na vida, eu me
apaixonara por uma garota. Já escorregara antes, mas agora eu le
vara o
grande trambolhão. E o adorava. E adorava Leigh. No entanto, aquela
constante sensação de traição... era algo rastejante, ao mesmo tempo
vergonhoso, e também uma louca espécie de incentivo. Podíamos
comentar entre nós dois (e assim fazíamos) que fic
ávamos de boca fechada
para proteger nossas famílias e a nós mesmos.
Isso era verdade.
Porém não toda a verdade, Leigh. Não, não era toda a verdade.
De certo modo, nada pior podia ter acontecido. O amor abranda o
tempo de reação, emudece a noção de perigo
. Minha conversa com LeBay
acontecera doze longos dias antes e meus cabelos da nuca não ficavam
mais eriçados ao refletir no que ele tinha dito
—
e, pior ainda, no que
havia sugerido.
O mesmo era verdadeiro
—
ou não
—
quanto às poucas vezes em
que converse
i com Arnie ou o vi pelos corredores. De certa estranha
maneira, era como se estivéssemos novamente em setembro e outubro,
quando nos havíamos afastado, simplesmente, porque Arnie andava
muito ocupado. Ao conversarmos, ele se mostrava amável, embora fossem
frios os olhos cinzentos atrás dos óculos. Esperei que uma lamentosa
Regina ou um angustiado Michael ligassem para mim, com a notícia de
que Arnie finalmente parara de brincar com eles e desistira da idéia de ir
para a universidade no outono.
Tal não acon
teceu, e foi o próprio Boca de Motor
—
nosso
conselheiro de orientação
—
quem me disse que Arnie levara para casa
um punhado de informações impressas sobre a Universidade da
Pensilvânia, a Universidade Drew e a Estadual da Pensilvânia. Eram as
universidade
s em que Leigh estava mais interessada. Eu sabia disso e
Arnie também.
Duas noites antes, eu ouvira, sem querer, uma conversa de mamãe e
minha irmã Ellie, na cozinha.
—
Por que Arnie não vem mais aqui, mamãe?
—
perguntara Ellie.
—
Ele e Dennis brigaram?
—
Não, querida
—
respondera minha mãe.
—
Não creio que tenham
brigado. Só que, quando amigos ficam mais velhos... às vezes se afastam.
—
Isso nunca irá acontecer comigo
—
dissera Ellie, com a firme
convicção dos que acabaram de fazer quinze anos.
Fiquei sent
ado na sala, perguntando
-
me em que, de fato, consistia
tudo aquilo: alucinação, provocada por minha longa permanência no
hospital, segundo LeBay sugerira, e um simples crescente afastamento,
um espaço que crescia entre dois amigos de infância. Era possível
observar
-
se uma certa lógica nisso, perceber
-
se o distanciamento que
nascera entre nós, mesmo não se levando Christine em consideração.
Desta forma, os fatos cruéis ficavam de fora, mas era confortador.
Acreditar nisso permitiria que eu e Leigh levássemos
nossas vidas
rotineiras
—
envolvidos em nossas atividades escolares, esforçando
-
nos
um pouco mais para as Provas de Progressos Escolásticos de março e,
naturalmente, saltando para os. braços um do outro assim que seus pais
ou os meus saíssem da sala. Quer
íamos ter liberdade para namorar,
porque éramos dois adolescentes excitados, completamente atraídos um
pelo outro.
Eram coisas que me acalentavam... que nos acalentavam. Estávamos
sendo cautelosos
—
em verdade, tão cautelosos como adúlteros, em vez
de apen
as dois jovens
—
, mas eu havia retirado o gesso da perna nesse dia,
pudera usar novamente as chaves de meu Duster, em vez de apenas ficar
olhando para elas e, movido por um impulso, ligara para Leigh,
perguntando se ela gostaria de ir comigo ao mundialment
e famoso
Colonel's, para comermos um pouco de seus também mundialmente
famosos frangos crocantes. Ela ficara eufórica.
Assim, pode
-
se ver como nossa cautela diminuiu, como nos
tornamos um pouquinho indiscretos. Estávamos sentados no pátio de
estacionamento
, com o motor do Duster ligado para termos um pouco de
calor, e conversávamos sobre a forma de darmos um fim àquele velho e
infinitamente esperto monstro feminino, como duas crianças brincando de
caubói.
Nenhum de nós viu Christine, quando ela estacionou à
nossa
retaguarda.
—
Tudo indica que ele esteja se aprontando para um longo cerco
—
falei.
—
Como assim?
—
As universidades que vem escolhendo. Ainda não pensou nisso?
—
Não entendi
—
respondeu ela, intrigada.
—
São as universidades que mais interessam a
você
—
falei
pacientemente.
Leigh olhou para mim. Olhei também para ela, tentando sorrir, mas
não conseguindo.
—
Está bem
—
falei.
—
Vamos discutir o caso mais uma vez.
Coquetéis Molotov estão fora. A dinamite parece arriscado, mas se nós...
Uma respiração
ofegante de Leigh me interrompeu de estalo
juntamente com a expressão de assustado horror em seu rosto. Ela olhava
através do pára
-
brisa, a boca aberta, os olhos arregalados. Virei
-
me
naquela direção e o que vi foi tão espantoso que, por um momento,
també
m fiquei imobilizado.
Arnie estava parado diante de meu Duster.
Havia estacionado bem atrás de nós e tinha ido apanhar seu frango,
sem perceber quem estava ali
—
e por que deveria? Estava quase escuro,
de maneira que um Duster de quatro anos, sujo de lama,
fica muito
semelhante a qualquer outro. Arnie tinha ido, voltava com o frango frito e
retornava a seu carro... mas parara diante do meu, ficara olhando através
do pára
-
brisa para nós dois, sentados muito juntos e abraçados, fitando
-
nos profundamente dentr
o dos olhos, como dizem os poetas. Apenas uma
coincidência
—
uma sombria, terrível coincidência. Exceto que, agora,
parte de minha mente estava absolutamente convicta de que havia sido
Christine... de que havia sido ela que o conduzira até ali.
Houve, entã
o, um longo e gélido momento de silêncio. Um pequeno
gemido escapou da garganta de Leigh. Arnie tinha parado a meio
caminho do pequeno pátio de estacionamento, trajando seu blusão do
ginásio, calças
jeans
desbotadas e botas. Um cachecol de cor lisa fora
en
rolado em torno do pescoço. Ele erguera a gola do blusão e as lapelas
negras emolduravam um rosto que se torcia lentamente da expressão de
terrível incredulidade para uma pálida careta de ódio. A sacola de listras
vermelhas e
brancas, tendo impressa o rost
o sorridente do
Colonel
—
o
Coronel
—
escapou de uma de suas mãos enluvadas e caiu no piso
nevado do pátio de estacionamento.
—
Dennis
—
sussurrou Leigh.
—
Dennis... Oh, meu Deus!
Ele come
çou a correr. Pensei que vinha para o carro, talvez
pretendendo arra
ncar
-
me dali e agredir
-
me. Eu podia me ver apoiado
fracamente na perna ainda não de todo boa, sob as luzes do pátio que
tinham sido acesas justamente naquele minuto, enquanto Arnie
—
cuja
vida eu salvara durante todos aqueles anos, desde o jardim da infânc
ia
—
acabava com a minha raça. Ele correu, a boca torcida em um esgar que eu
jamais vira antes
—
mas aquele não era o seu rosto. Agora era o rosto de
LeBay.
Arnie n
ão parou em meu carro, ele continuou correndo. Virei
-
me no
assento, e então avistei Christin
e.
Abri minha porta e lutei para sair, agarrando
-
me
à calha da porta
para apoio. O frio me deixou imediatamente com os dedos dormentes.
—
Dennis, não
—
gritou Leigh.
Consegui ficar em p
é, justamente quando Arnie escancarou a porta
de Christine.
—
Arnie!
—
gritei.
—
Ei, cara!
Houve um movimento brusco e seco de sua cabe
ça. Os olhos dele
estavam arregalados, opacos e fixos. Um fio de saliva começava a escorrer
de um canto da boca. A grade do radiador de Christine também parecia
rosnar.
Ele ergueu os dois punh
os e os sacudiu para mim.
—
Seu bosta!
—
A voz era aguda e incerta.
—
Fique com ela! Você a
merece! Vocês são uns merdas! Que fiquem um com outro! Não ficarão assim por
muito tempo!
As pessoas tinham acudido
às janelas envidraçadas do Kentucky
Fried Chicke
n e do vizinho Kowloon Express para verem o que estava
acontecendo.
—
Arnie! Vamos conversar, cara...
Ele saltou para o carro e bateu a porta com for
ça. O motor de
Christine rugiu e seus faróis ganharam vida, os ofuscantes olhos brancos
de meu sonho, espet
ando
-
me como a um besouro em um cartão. E, acima
deles, havia o rosto terrível de Arnie, o rosto de um demônio enfurecido.
Aquele rosto, cheio de ódio e fantasmagórico, habitou meus sonhos desde
então. Um rosto que desapareceu em seguida, sendo substituído
por uma
caveira, uma sorridente caveira.
Leigh deixou escapar um grito agudo, estridente. Tamb
ém tinha se
virado para espiar, portanto, percebi que aquilo não era apenas
imaginação minha. Ela vira o mesmo que eu.
Christine projetou
-
se com um rugido, os pn
eus traseiros girando e
atirando neve para tr
ás. Arnie não arremeda contra o Duster
—
era a mim
que visava. Creio que sua intenção seria esmagar
-
me como geléia entre os
dois carros. Fui salvo por minha perna esquerda, ainda em más condições,
pois falhou e
caí de costas dentro do carro, batendo com a anca direita no
volante e fazendo a buzina soar.
Uma onda de vento gelado fustigou
-
me o rosto. O brilhante flanco
vermelho de Christine passou a uns noventa cent
ímetros de mim.
Disparou rugindo pela alameda de s
aída do pátio e entrou na JFK Drive
como um foguete, sem diminuir a marcha, a traseira rabeando.
Desapareceu em seguida, ainda acelerando.
Olhei para a neve e vi as marcas recentes, ziguezagueantes de seus
pneus. Mais uns dez cent
ímetros, e Christine colid
iria contra minha porta
aberta.
Leigh chorava. Usei as m
ãos para colocar minha perna esquerda
dentro do carro, bati a porta e a abracei. Seus braços me procuraram às
cegas e então me apertaram, com a força do pânico.
—
Não era... não era ele que...
—
Pssst
, Leigh. Não se preocupe. Não pense mais nisso.
—
Não era Arnie que estava dirigindo aquele carro! Era uma pessoa morta!
Era urna pessoa morta!
—
Era LeBay
—
falei. Agora que falara, senti uma espécie de calma
irreal, em vez da trêmula reação que seria mai
s natural, isso e a culpa de,
finalmente, ter sido apanhado com a garota de meu melhor amigo.
—
Era
ele, LeBay. Você acabou de conhecer Roland D. LeBay.
Ela chorou, tomada de medo, de choque e de horror, apertando
-
se
contra mim. Fiquei satisfeito em t
ê
-
la.
Minha perna esquerda latejava
monotonamente. Ergui os olhos para o espelho retrovisor e vi a vaga vazia,
pouco antes ocupada por Christine. Agora que acontecera, parecia
-
me que
quaisquer outras conclusões seriam impossíveis. A paz das duas últimas
semanas
, a alegria pura de ter Leigh a
meu lado, tudo isto agora parecia
ser a situa
ção antinatural, a situação falsa
—
tão falsa como a mistificada
guerra entre a conquista da Polônia por Hitler e o devastador assalto da
Wehrmacht contra a França.
Ent
ão, comecei
a ver o final das coisas, como ele seria.
Ela ergueu para mim o rosto lavado de l
ágrimas.
—
E agora, Dennis? O que vamos fazer?
—
Agora, vamos dar um fim nisso.
—
Como? O que quer dizer?
Falando mais para mim do que para ela, respondi:
—
Ele precisa de um
álibi. Temos de estar prontos, para quando ele
se afastar daqui. A garagem. A Garagem de Darnell. Vamos encurralar
aquele carro lá dentro. Tentar matá
-
lo,
—
Dennis, de que está falando?
—
Ele deixará a cidade
—
falei.
—
Não entende? Todas aquelas
pessoas
que Christine matou... bem, elas formam um círculo em torno de
Arnie. Ele sabe disso. Ele fará com que Arnie torne a sair da cidade.
—
Está falando de LeBay? Assenti, e Leigh estremeceu.
—
Precisamos matá
-
lo. Você sabe disso.
—
Sim, mas... como? Por favor,
Dennis... como faremos? Por fim, eu
tinha uma idéia.
P
REPARATIVOS
Há um matador na estrada,
Seu cérebro se contorce como um sapo...
—
The Doors
Levei Leigh at
é sua casa e lhe disse para telefonar
-
me, se visse
Christine rodando pelos arredores.
—
E o que
você fará? Virá até aqui com um lança
-
chamas?
—
Uma bazuca
—
falei, e ambos começamos a rir histericamente.
—
Abaixo o 58! Abaixo o 58!
—
gritou Leigh e rimos ainda mais.
N
ão obstante, por todo o tempo em que ríamos, estávamos meio
mortos de medo... talve
z mais do que meio. Enquanto ficávamos ali, rindo,
eu me sentia perturbado por Arnie, perturbado pelo que ele tinha visto e
pelo que eu havia feito. Creio que Leigh sentia o mesmo. No entanto, há
momentos em que só nos resta rir. Às vezes, é apenas o que f
azemos. E
quando o riso se solta
-
, nada pode sufocá
-
lo. O riso continua, cumprindo o
seu dever...
—
E o que digo a meus pais?
—
perguntou Leigh quando,
finalmente, conseguimos controlar
-
nos.
—
Preciso dizer
alguma coisa
a eles,
Dennis! Não vou deixar que s
e arrisquem a serem atropelados na rua!
—
Não diga nada
—
falei.
—
Não diga nada, mesmo.
—
Mas...
—
Em primeiro lugar, eles não acreditariam em você. Em segundo,
nada irá acontecer, enquanto Arnie permanecer em Libertyville. Aposto
minha vida nisso.
—
Só i
sso, bobão?
—
sussurrou ela.
—
Não. Aposto minha vida, a de minha mãe, meu pai e minha irmã.
—
Como saberemos, se ele deixar a cidade?
—
Eu vou cuidar disso. Você ficará doente amanhã. Não irá à aula.
—
Já estou doente
—
disse, em voz baixa.
—
Dennis, o que
vai
acontecer? O que está planejando?
—
Eu telefono pra você mais tarde, esta noite.
—
Beijei
-
a. Seus lábios
estavam frios.
Quando cheguei em casa, Elaine enfiava sua jaqueta relutantemente,
murmurando surdas imprecações contra pessoas que mandam outras
c
omprar pão e leite no Tom's justamente quando vai começar
Dance Fever
na
TV. Ela se dispunha a me xingar também, mas se alegrou, quando me
ofereci para dar
-
lhe uma carona até o mercado, ida e volta. Ellie também
me dirigiu um olhar suspeito, como se tão in
esperada gentileza com a
irmã menor assinalasse o início de alguma doença. Herpes, talvez.
Perguntou se eu me sentia bem. Apenas sorri com suavidade e lhe disse
para entrar no carro antes que eu mudasse de idéia, embora a esta altura
minha perna direita do
esse e a esquerda latejasse furiosamente. Eu podia
falar e insistir com Leigh sobre como Christine não atacaria, enquanto
Arnie estivesse em Libertyville, e racionalmente, sabia que assim seria.
Entretanto, isto não modificou o instintivo peso no estômago,
quando
pensei em Ellie caminhando os dois quarteirões até o Tom's e cruzando as
escuras ruelas suburbanas, com sua berrante jaqueta amarela. Eu ficava
vendo Christine, estacionada em uma daquelas ruas, agachada no escuro
como um velho e maldito cão de caç
a.
Ao chegarmos ao Tom's, dei
-
lhe um dólar.
—
Compre chocolate e uma Coca para cada um de nós.
—
Você está se sentindo bem mesmo, Dennis?
—
Estou. E se gastar meu troco naquele jogo de Asteróides, quebro o
seu braço.
Aquilo pareceu sossegá
-
la. Ellie saiu,
e fiquei encurvado atrás do
volante do Duster, pensando na terrível enrascada em que estávamos
metidos. Não podíamos contar a ninguém
—
aí estava o pesadelo. E aí
residia a força de Christine. Poderia chegar até meu pai, em sua oficina de
brinquedos e dize
r que o que Ellie chamava de "aquele velho e horroroso
carro vermelho de Arnie Cunningham" agora se dirigia sozinho? Poderia
ligar para os tiras e lhes dizer que um sujeito morto queria matar minha
namorada e a mim? Não. A única coisa a nosso favor, além d
o fato de que
o carro não se moveria enquanto Arnie não tivesse um álibi, era que ele
não queria testemunhas
—
"Penetra" Welch, Don Vandenberg e Will
Darnell haviam sido liquidados sozinhos, de madrugada, Buddy
Repperton e seus dois amigos tinham sido mort
os em local isolado.
Elaine chegou, com uma sacola apertada contra o busto florescente,
entrou no carro, entregou meu chocolate e minha Coca.
—
O troco
—
pedi.
—
Você é um sovina
—
respondeu, mas colocou vinte e poucos
centavos em minha mão estendida.
—
Eu
sei, mas gosto de você assim mesmo
—
falei.
Puxei seu capuz para trás, desmanchei
-
lhe o cabelo e depois a beijei
na orelha. Ela pareceu surpresa e desconfiada
—
mas então sorriu. Não
era má pessoa, minha irmã Ellie. Imaginá
-
la atropelada na rua,
simplesme
nte porque eu me apaixonara por Leigh Cabot, depois que
Arnie perdera a cabeça e a deixara... Francamente, eu não podia permitir
que isso acontecesse.
Em casa, subi penosamente para o andar de cima, depois de dizer
olá para mamãe. Ela queria saber como est
ava a perna e respondi que em
ótimo estado. No entanto, quando cheguei ao andar de cima, a primeira
parada foi no armário de remédios que havia no banheiro. Tomei duas
aspirinas para amenizar a dor nas pernas, que agora pareciam cantar
Ave
-
Maria.
Depois fu
i até o quarto de meus pais, onde fica a extensão do
telefone, e me sentei na cadeira de balanço de mamãe, com um suspiro.
Ergui o fone do gancho e fiz a primeira de minhas ligações.
—
Dennis Guilder, o flagelo do projeto de extensão da estrada!
—
exclamou
Brad Jeffries, alegremente.
—
É bom falar com você, rapaz.
Quando é que vai aparecer, para vermos os Pingüins outra vez?
—
Não sei
—
respondi.
—
Já me cansei de ver aleijados jogando
hóquei. Mas se você estiver interessado em um bom time, como os
Voadores
...
—
Céus, ter que ouvir isto de um garoto que nem mesmo é meu
filho!
—
exclamou Brad.
—
Acho que o mundo está mesmo caminhando
para o inferno.
Tagarelamos um pouco mais, chutando de um lado para outro, e
então lhe disse o motivo do telefonema. Ele riu.
—
O que há, Denny? Querendo negociar por conta própria?
—
É possível
—
repliquei, pensando em Christine.
—
Somente por
algum tempo.
—
Não quer falar a respeito?
—
Bem, ainda não. Conhece alguém que tenha um troço desses para
alugar?
—
Claro que sim, Dennis.
Escute, só há um sujeito que poderia fazer
negócio com você, nas bases que mencionou. Johnny Pomberton. Vive
perto de Ridge Road. Ele tem mais rodantes do que Carter tem pílulas
para o fígado.
—
Ok
—
respondi.
—
Obrigado, Brad.
—
Como vai Arnie?
—
Acho qu
e está bem. Não o tenho visto tanto quanto antes.
—
Um cara curioso, Dennis. Nem em minha pior suposição pensaria
que ele ia durar todo o verão por aqui, assim que botei os olhos nele. No
entanto, se mostrou decidido como o diabo.
—
Certo
—
respondi.
—
Tud
o isso e ainda mais.
—
Diga olá para ele, quando se encontrarem.
—
Direi, Brad. Não se preocupe.
—
Apareça, Dennis. Venha qualquer noite e esvazie algumas latas
de cerveja comigo.
—
Vou aparecer. Boa noite.
—
Boa noite, Denny.
Desliguei e fiquei olhando pa
ra o telefone por um ou dois minutos,
indeciso, sem muita vontade de fazer a ligação seguinte. No entanto, era
preciso fazê
-
la; seria a ligação central para toda aquela lamentável e
estúpida situação. Peguei o fone e disquei de cor o número dos
Cunningham.
Se Arnie atendesse, eu simplesmente desligaria, sem nada
dizer. No entanto, tive sorte, foi Michael quem respondeu.
—
Alô?
Sua voz soava cansada e um pouco amortecida.
—
Aqui é Dennis, Michael.
—
Ei, olá!
—
ele parecia sinceramente satisfeito.
—
Arnie est
á aí?
—
Lá em cima. Chegou em casa, vindo de algum lugar, e foi direto
para seu quarto. Parecia bastante carrancudo, mas isto não tem sido
incomum ultimamente. Quer que o chame?
—
Não
—
falei.
—
Está tudo bem. Era com você mesmo que eu
queria falar. Precis
o de um favor seu.
—
Muito bem, é só dizer.
—
Percebi que aquela voz algo mortiça
era... Bem, Michael Cunningham devia estar a meio caminho de um
pileque.
—
Você nos
prestou um favor dos diabos, enfiando um pouco de
juízo nele, sobre universidade.
—
Não ac
redito que ele tenha ouvido uma vírgula do que falei,
Michael.
—
Bem, a verdade é que algo aconteceu. Ele se candidatou a três
universidades, só este mês. Regina acha que você caminha sobre a água,
Dennis. E, só para nós, ela anda muito envergonhada sobre
a maneira
como o tratou, quando Arnie nos falou sobre seu carro a primeira vez.
Enfim, você conhece Regina. Ela jamais conseguiria dizer "sinto muito".
Eu sabia disso perfeitamente. Perguntei
-
me o que ela pensaria, se
soubesse que Arnie
—
ou o que quer que
controlasse Arnie
—
tinha tanto
interesse pela universidade quanto um avaro por fundos mútuos. Ou se
soubesse que ele apenas seguia as pegadas de Leigh, perseguia
-
a,
obcecado por ela. Era perversão sobre perversão
—
LeBay, Leigh e
Christine, em um hediond
o
ménage a trois.
—
Ouça, Michael
—
falei.
—
Eu gostaria que você me telefonasse,
caso Arnie decidir deixar a cidade por algum motivo. Especialmente
dentro destes primeiros dias ou durante a semana. De dia ou à noite.
Preciso saber se Arnie vai deixar Libe
rtyville. E tenho que saber antes dele
ir. É muito importante.
—
Por quê?
—
Prefiro não explicar por enquanto. É muito complicado e ia
parecer... bem, você acharia meio louco.
Houve um longo, demorado silêncio. Quando o pai de Arnie tornou
a falar, sua voz
era quase um sussurro.
—
É algo sobre esse maldito carro dele, não é?
Até onde ele suspeitaria? Quanto saberia? Se Michael fosse como a
maioria das pessoas que eu conhecia, talvez desconfiasse um pouco mais
quando bêbado, do que sóbrio. No momento, eu não
tinha certeza. No
entanto, achava que Michael
suspeitara,
mais do que ninguém exceto,
talvez, do que Will Darnell.
—
Certo
—
respondi.
—
É isso mesmo.
—
Eu sabia
—
disse, em voz opaca.
—
Eu sabia. O que está
acontecendo, Dennis? O que ele anda fazendo? Vo
cê sabe?
—
Não posso falar mais, Michael. Pode me telefonar se ele
programar alguma viagem para amanhã ou depois?
—
Está certo
—
disse ele.
—
Telefonarei.
—
Obrigado.
—
Dennis
—
disse Michael.
—
Acha que terei meu filho de volta?
Ele merecia a verdade. Aqu
ele pobre e angustiado homem merecia a
verdade.
—
Não sei
—
respondi, mordendo o lábio inferior até que doesse.
—
Acho que... bem, talvez já seja um pouco tarde para isso
—
concluí.
—
De que se trata, Dennis?
—
ele quase gemeu.
—
Drogas? Alguma
espécie de
drogas?
—
Direi quando puder
—
respondi.
—
É tudo o que posso prometer.
Sinto muito.
Não foi difícil convencer Johnny Pomberton.
Era um homem animado e falante, de modo que logo
desapareceram quaisquer temores de que ele não fizesse negócio com um
adolesc
ente. Tive a impressão de que Johnny Pomberton faria negócios
com o próprio Satã, acabado de subir dos infernos e ainda com cheiro de
enxofre, se a proposta fosse boa e dentro da lei.
—
Claro
—
repetia ele.
—
Claro, claro.
Mal se iniciava uma proposta, e J
ohnny Pomberton já estava
concordando, o que chegava a ser um pouco enervante. Eu tinha uma
história que serviria de bom pretexto, mas não acredito que ele chegasse a
ouvi
-
la. Limitou
-
se a dar
-
me um preço, aliás um preço bastante razoável.
—
Está bom para
mim
—
falei
—
Claro
—
concordou ele.
—
Quando é que virá?
—
Bem, o que me diz de amanhã, às nove e meia...
—
Claro
—
interrompeu ele.
—
Até lá, então.
—
Mais uma pergunta, Sr. Pomberton.
—
Claro. E me chame de Johnny.
—
Ok, Johnny. E sobre a mudança automá
tica?
Johnny Pomberton riu alegremente
—
com tal vivacidade que
mantive o fone um pouco afastado do ouvido, algo deprimido. Aquele
riso era resposta suficiente.
—
Em uma dessas coisinhas? Você deve estar brincando. Para quê?
Não pode dirigir com uma mudanç
a comum? De pedal?
—
Naturalmente. Foi como aprendi
—
falei.
—
Claro! Quer dizer que não haverá problemas, certo?
—
Acho que não
—
respondi, pensando em minha perna esquerda,
que estaria pressionando o pedal, ou tentando pressionar. Só de apertá
-
lo
um pouc
o essa noite, já a fizera doer como o diabo. Esperei que Arnie
demorasse alguns dias, antes de viajar para fora da cidade mas, de algum
modo, era difícil acreditar que aquilo estivesse nas cartas. Tinha de ser
amanhã, pelo fim de semana no máximo, e minha
perna esquerda teria
que se conformar com a situação.
—
Bem, boa noite, Sr. Pomberton. Eu o
verei amanhã.
—
Claro. Obrigado por ligar, garoto. Já pensei no que lhe serve. Vai
gostar dela, duvido que não goste. E se não começar a me chamar de
Johnny, vou do
brar o preço.
—
Claro
—
falei e desliguei com ele ainda rindo.
Vai gostar dela.
Duvido que não goste.
Ela novamente
—
eu estava me tornando morbidamente cônscio
daquela forma casual de tratamento... e infernalmente preocupado com
isso.
A seguir, fiz minha
última ligação para os preparativos. Havia
quatro Sykes no catálogo. Encontrei o que procurava, na segunda
tentativa: o próprio Jimmy atendeu. Apresentei
-
me como amigo de Arnie
Cunningham e a voz dele animou
-
se. Gostava de Arnie, que raramente
zombava dele
e jamais "o agredira", como Buddy Repperton tinha feito,
quando trabalhava para Will. Ele quis saber como ia Arnie e, mentindo
novamente, falei que Arnie estava ótimo.
—
Poxa, isso é bom
—
disse ele.
—
Arnie levou algum tempo com o
traseiro em apuros. Eu
sabia que aquela muamba, aqueles cigarros, não
iam dar em boa coisa para ele.
—
Estou telefonando por causa de Arnie
—
falei.
—
Você se lembra
de quando Will foi detido e eles fecharam a garagem, Jimmy?
—
Claro que me lembro
—
suspirou Jimmy.
—
Agora, o co
itado do
Will está morto e fiquei sem emprego. Minha mãe vive dizendo que tenho
que ir para a escola técnica vocacional, mas acho que não dou pra isso. Eu
me daria melhor como porteiro ou coisa assim. Meu tio Fred é porteiro lá
na universidade e disse que
talvez tenha uma vaga, porque o outro
porteiro, bem, ele sumiu, deu o fora e...
—
Arnie disse que ficou sem seu jogo completo de chaves
-
de
-
boca,
quando fecharam a garagem
—
interrompi.
—
Estava atrás de alguns
daqueles pneus velhos, nas prateleiras mais al
tas. Ele deixou o jogo lá,
para que ninguém roubasse.
—
E ainda está lá?
—
perguntou Jimmy.
—
Acho que sim.
—
Que azar!
—
Sabe, aquele conjunto de chaves vale uns cem dólares.
—
Caramba! Aposto como não está mais lá. Aposto como um
daqueles tiras ficou com
ele.
—
Arnie acha que o jogo continua lá. Só que ele não pode nem
chegar perto da garagem, por causa da enrascada em que se meteu.
Era mentira, mas achei que Jimmy não daria pela coisa e assim
aconteceu. De qualquer modo, meu amor
-
próprio não ficou muito
satisfeito ao aproveitar
-
me assim de um sujeito quase retardado.
—
Que merda! Bem, olha só, eu vou até lá e descolo as ferramentas.
Claro! Amanhã cedo, a primeira coisa que vou fazer. Ainda tenho minhas
chaves para entrar na garagem.
Deixei escapar um susp
iro de alívio. O que eu queria não era o
imaginário jogo de chaves
-
de
-
boca, mas as chaves de Jimmy.
—
Aí é que está, Jimmy, eu mesmo gostaria de ir pegar as chaves
para Arnie. Faria uma surpresa a ele, entende? E sei direitinho onde ele as
deixou. Você pod
eria revirar aquilo tudo o dia inteiro e talvez não as
encontrasse.
—
É mesmo, é verdade. Nunca fui muito bom para encontrar coisas,
era bem como Will dizia. Ele sempre repetia que eu nunca encontraria
meu traseiro, nem usando as duas mãos e uma lanterna.
—
Que nada, cara, ele falava assim por brincadeira. Bem, a verdade
é que eu gostaria de ir buscar o jogo de chaves de Arnie.
—
Bem, tá legal.
—
Pensei que se fosse aí, pegar suas chaves, amanhã... Bem, eu
pegaria o conjunto de Arnie e devolveria as chaves
pra você antes do
anoitecer.
—
Olhe, só que eu não posso. Will dizia para nunca emprestar
minhas chaves a ninguém e...
—
Está certo, mas a garagem agora está vazia. Lá só ficaram as
ferramentas de Arnie e aquele ferro
-
velho nos fundos. O Estado logo
estará
colocando a garagem à venda, com tudo que tiver dentro. Se eu for
pegar as ferramentas depois disso, seria como roubar, entende?
—
Oh! Bem, se for assim, acho que pode ser. Se você trouxer as
chaves de volta.
—
Então ele acrescentou algo absurdamente toca
nte:
—
Sabe? Elas são tudo que tenho para me lembrar de Will.
—
Você as terá de volta. Prometo.
—
Ok
—
disse ele.
—
Se for para Arnie, acho que está legal.
Pouco antes de ir para a cama, agora do andar de baixo, fiz uma
ligação final
—
para uma sonolenta
Leigh.
—
Estará tudo terminado, qualquer noite destas. Você topa?
—
Claro
—
disse ela.
—
Acho
que sim. O que planejou, Dennis?
Eu lhe contei, ponto por ponto, quase esperando que ela encontrasse
uma porção de falhas em minha idéia. No entanto, quando termi
nei, Leigh
apenas perguntou:
—
E se não funcionar?
—
Caberá a você fazer a lista de honra. Não creio que seja necessário
pintar
-
lhe o quadro.
—
Não
—
disse ela.
—
Acho que não.
—
Eu deixaria você fora disso, se pudesse
—
falei.
—
Acontece que
LeBay desconf
iaria de uma armadilha e, portanto, a isca tem que ser boa.
—
Eu não admitiria que você me deixasse de fora
—
disse ela.
Falava com firmeza.
—
Isto também tem a ver comigo. Eu amei o Arnie.
Amei de verdade. E quando a gente começa a amar alguém... acho que
nunca esquece inteiramente. Não é, Dennis?
Refleti em todos aqueles anos. Os verões de leitura, nadar e jogar
Monopólio,
scrabble,
xadrez chinês. As fazendas de formigas. As vezes em
que eu impedira que o humilhassem, de todos aqueles jeitos que as
crianç
as eliminam um estranho, o garoto que é um pouco esquisito, que
não se afina bem com o grupo. Houve vezes em que eu precisava me
esforçar muito, para impedir que o maltratassem, vezes em que me
perguntara se minha vida não seria mais fácil e melhor se eu a
penas
largasse Arnie de mão, deixando
-
o de lado. Entretanto, assim não seria
melhor. Eu precisava dele, a fim de fazer com que me sentisse bem
comigo
—
e ele o fizera. Tínhamos jogado limpo sempre e, oh, merda! O
que acontecia agora era muito amargo, sim,
realmente muito mais amargo.
—
Tem razão
—
respondi e, de repente, tive que pôr a mão sobre os
olhos.
—
Acho que não dá mesmo pra esquecer. Eu também amei o Arnie.
E talvez, mesmo a essa altura, ainda não seja também tarde demais para
ele.
Eu gostaria de r
ezar:
Bom Deus, permita que eu salve Arnie, só mais uma
vez. Apenas esta última vez.
—
Não é a ele que odeio
—
disse ela, em voz baixa.
—
Eu odeio
aquele homem, LeBay... nós vimos mesmo aquela coisa hoje à tarde,
Dennis? No carro?
—
Sim
—
respondi.
—
Creio
que vimos.
—
Odeio os dois: ele e essa maldita Christine. Será para logo?
—
Falta pouco. Acho que sim.
—
Está bem. Eu amo você, Dennis.
—
Também amo você.
E, como se viu, tudo terminou no dia seguinte
—
sexta
-
feira,
dezenove de janeiro.
A
RME
Eu rodava em
meu Stingray, tarde da noite,
Quando um XKE se aproximou pela direita,
Ele baixou a janela do reluzente e novo Jag,
E me desafiou ali para uma corrida.
Eu disse: "Topo, chapa, minha máquina é legal,
Partimos da esquina de Sunset com Vine,
Mas lhe faço uma
proposta (se você tem peito):
Vamos disputar todo o trajeto...
até a Curva do Morto. "
—
Jan e Dean
Iniciei aquele longo e terrível dia indo até a casa de Jimmy Sykes em
meu Duster. Eu imaginara poder ter algum problema com a mãe dele,
mas tudo correu be
m. Ela parecia um pouco mais retardada que o filho.
Convidou
-
me para comer
bacon
com ovos (que rejeitei, porque meu
estômago dava nós miseráveis) e ficou falando de minhas muletas,
enquanto Jimmy revirava seu quarto à procura do molho de chaves.
Fiquei de
conversa fiada com a Sra. Sykes, que era aproximadamente do
tamanho do Monte Etna, mas o tempo ia passando e uma angustiante
certeza se criava dentro de mim: Jimmy perdera suas chaves em algum
lugar, e tudo ia por água abaixo, antes mesmo de começar. Ele v
oltou,
abanando a cabeça.
—
Não consegui encontrar
—
disse.
—
Devo ter perdido em algum
lugar. Que droga!
A Sra. Sykes
—
quase cento e cinqüenta quilos, envolvidos por um
desbotado vestido caseiro, os cabelos presos em rolinhos cor
-
de
-
rosa,
disse então, co
m um jeito prático que achei formidável:
—
Já procurou em seus bolsos, Jim?
Uma expressão admirada passou pelo rosto de Jimmy. Ele enfiou a
mão no bolso de suas calças verdes de brim e depois, com um sorriso
envergonhado, puxou um molho de chaves. O chavei
ro era um daqueles
vendidos na loja de novidades do Monroeville Mall
—
um grande ovo
frito de borracha. O ovo estava sujo de graxa.
—
Oh, aí estão vocês, babaquinhas
—
disse.
—
Cuidado com sua linguagem, rapazinho
—
disse a Sra. Sykes.
—
Basta mostrar a De
nnis qual a chave que abre a porta, e guarde essa
linguagem suja em sua cabeça.
Jimmy terminou entregando
-
me três chaves, porque não estavam
etiquetadas e ele não podia distinguir qual a que servia. Uma delas abria a
grande porta de aço, de enrolar, da ent
rada, outra abria a porta dos
fundos, que dava para o comprido pátio de carros velhos, e a terceira era
do escritório de Will.
—
Obrigado
—
falei.
—
Devolvo assim que puder, Jimmy.
—
Tá legal
—
disse Jimmy.
—
Diga alô a Arnie por mim.
—
Eu digo.
—
Tem cert
eza de que não quer
bacon
com ovos, Dennis?
—
perguntou a Sra. Sykes.
—
Há de sobra.
—
Obrigado
—
respondi
—
, mas preciso ir andando.
Eram oito e quinze e as aulas começavam às nove. Arnie geralmente
chegava às oito e quarenta e cinco, segundo me dissera L
eigh. Eu tinha
apenas o tempo indispensável. Ajeitei
-
me nas muletas e fiquei em pé.
—
Ajude
-
o a sair
—
ordenou a Sra. Sykes.
—
Não fiquei aí parado!
Comecei a protestar e ela acenou para que me fosse.
—
Não vai querer cair em cima do traseiro, antes de che
gar a seu
carro, Dennis. Podia tornar a quebrar a perna.
Riu ruidosamente ao terminar de falar, e Jimmy, a encarnação viva
da obediência, praticamente me carregou até o Duster.
O céu daquele dia era de um gélido cinza pesado e o rádio previa
mais neve par
a o final da tarde. Dirigi através da cidade até o Ginásio de
Libertyville, tomei a via que conduzia ao pátio de estacionamento dos
alunos e estacionei na primeira fila. Não era preciso Leigh me dizer que
Arnie costumava estacionar na última. Eu necessitav
a vê
-
lo, tinha que
jogar a isca diante de seu nariz, mas o queria o mais longe possível de
Christine quando o fizesse. Com ele afastado do carro, o jugo de LeBay
parecia mais fraco.
Fiquei lá sentado dentro do carro, com a chave virada para
ACCESSORY, por
causa do rádio, e contemplei o campo de futebol.
Parecia impossível que já trocara sanduíches com Arnie naquelas
arquibancadas cobertas de neve. Era difícil acreditar que eu mesmo já
correra e suara naquele campo, com vestimentas acolchoadas, capacete e
ca
lças justas, estupidamente convicto de minha invulnerabili
dade física...
talvez até mesmo de minha imortalidade.
Não me sentia mais assim.
Os alunos iam chegando, estacionavam seus carros e
encaminhavam
-
se para o prédio, conversando, rindo e brincando.
Af
undei no assento, não querendo ser reconhecido. Um ônibus
aproximou
-
se da entrada principal e despejou um bando de garotos. Um
pequeno grupo de friorentos rapazes e garotas reuniu
-
se na área de fumar,
onde Buddy desafiara Arnie, naquele dia do outono passa
do. Um dia que,
agora, também parecia terrivelmente distante.
Meu coração disparava no peito e eu me sentia miseravelmente
tenso. Uma parte de mim desejava com ânsia que Arnie não aparecesse.
Então, avistei o familiar vulto vermelho
-
e
-
branco de Christine,
vindo da
School Street, a encaminhar
-
se para a entrada de veículos dos alunos,
rodando a uns uniformes trinta por hora, o cano de descarga expelindo
uma leve fumaça branca. Arnie estava ao volante, usando seu blusão do
colégio. Não olhou para mim; simplesm
ente, dirigiu
-
se até seu costumeiro
lugar, nos fundos do estacionamento, e lá parou o carro.
Fique encolhido e ele nem o verá,
sussurrou aquela traiçoeira e ansiosa
parte de minha mente.
Passará a seu lado, como os outros, e irá embora.
No entanto, em vez
disto eu abri a porta do Duster e passei as
muletas para o lado de fora. Apoiando o peso nelas, icei
-
me e fiquei em pé
sobre a neve compacta do pátio de estacionamento, sentindo
-
me um
pouco como naquele velho filme
Dupla Indenização,
com Fred MacMurray.
Do
colégio, chegou o
rrrinnng
do primeiro sinal, fraco e sem importância
pela distância
—
Arnie estava mais atrasado do que nos velhos tempos.
Minha mãe costumava dizer que ele era irritantemente pontual. Talvez
LeBay não tivesse sido.
Ele veio em minha dire
ção, com os livros debaixo do braço, a cabeça
baixa, esgueirando
-
se por entre os carros. Passou por trás de um furgão,
saindo temporariamente de meu campo visual, depois tornou a aparecer.
Então ergueu a cabeça e seus olhos se fixaram diretamente nos meus.
Ao me ver, arregalou os olhos e fez uma automática meia
-
volta, em
direção a Christine.
—
Você se sente meio nu, quando não está ao volante não é?
—
perguntei.
Ele me encarou. Seus lábios se encurvaram ligeiramente para baixo,
como se houvesse provado algo
de sabor desagradável.
—
Como vai a sua cona, Dennis?
—
perguntou.
George LeBay não dissera, mas deixara entrever que seu irmão era
extraordinariamente bom para agredir os outros, através de seus pontos
fracos.
Dei dois passos arrastados para diante, apoi
ado nas muletas,
enquanto ele ficava parado, sorrindo com os cantos da boca para baixo.
—
Como se sentia você, quando Repperton o chamava de Cara de
Cona?
—
perguntei.
—
Gostou tanto que resolveu usar em mais alguém?
Parte dele pareceu ser atingida por aqu
ilo
—
algo que talvez
estivesse apenas em seus olhos
—
, mas o sorriso desdenhoso e vigilante
permaneceu nos lábios. Estava frio ali fora. Eu não pusera as luvas e
minhas mãos estavam ficando dormentes, nas barras cruzadas das
muletas. Nossa respiração form
ava pequenas nuvens.
—
Ou que tal no quinto ano, quando Tommy Deckinger costumava
chamar você de Hálito de Peido?
—
perguntei, alteando a voz. Ficar
irritado com ele não tinha sido parte do plano, mas agora a raiva estava ali,
sacudindo
-
me por dentro.
—
Vo
cê gostava? E lembra
-
se de quando Ladd
Smythe era aluno
-
patrulheiro e jogou você no chão? Lembra
-
se de como
tirei o chapéu dele e lhe enfiei dentro das calças? Onde é que você estava,
Arnie? Esse cara, LeBay, só apareceu há pouco tempo. E eu, eu sempre
est
ive presente!
Aquele recuo.novamente. Desta vez ele completou a volta, o sorriso
vacilando, os olhos em busca de Christine, da maneira como procuramos
um ente querido em um apinhado aeroporto ou rodoviária. Ou como um
drogado procuraria o seu fornecedor.
—
Precisa dela tanto assim?
—
perguntei.
—
Cara, você teve os
colhões fisgados direitinho, hein?
—
Não sei do que está falando
—
disse ele, em voz rouca.
—
Você
roubou minha garota. Nada vai modificar isso. Agiu pelas minhas costas...
me enganou... você não
passa de um
bosta,
como todos os outros.
—
Ele
agora me fitava, de olhos arregalados, doridos e brilhando de raiva.
—
Pensei que podia confiar em você, mas você é pior do que Repperton ou
qualquer um
deles!
—
Deu um passo para mim e gritou, com total fúri
a
pela perda:
—
Você a roubou, seu bosta!
Arrastei
-
me em outro passo para diante com as muletas. Uma delas
escorregou ligeiramente, sobre a neve dura do piso. Éramos como dois
relutantes adversários, aproximando
-
se um do outro.
—
Não se pode roubar o que f
oi jogado fora
—
falei.
—
De que está falando?
—
Estou talando da noite em que ela sufocou em seu carro. Da noite
em que Christine tentou matá
-
la. Você disse a Leigh que não precisava
dela. Você disse pra ela se foder.
—
Eu nunca disse isso! É mentira! É u
ma maldita mentira!
—
Com quem estou falando?
—
perguntei.
—
Não interessa!
—
Seus olhos cinzentos eram enormes, atrás dos
óculos.
—
Não interessa quem seja o cara com quem esteja falando! Isso
tudo não passa de uma mentira nojenta! Aliás, eu não esperava
outra coisa
daquela cadela asquerosa!
Outro passo para mais perto. O rosto pálido dele era marcado com
acentuadas manchas vermelhas.
—
Quando escreve seu nome, não parece mais a sua assinatura,
Arnie.
—
Cale a boca, Dennis!
—
Seu pai diz que é como ter um
estranho em casa.
—
Estou avisando, cara!
—
Por que se preocupa?
—
perguntei brutalmente.
—
Eu sei o que
vai acontecer. Leigh também sabe. A mesma coisa que aconteceu a Buddy
Repperton, Will Darnell e a todos os outros. Porque você não é mais Arnie.
Está a
í, não, LeBay? Vamos, mostre
-
se e me deixe vê
-
lo! Já o vi antes. Eu o
vi na véspera do Ano
-
Novo, tornei a vê
-
lo ontem, lá onde vendem frango
frito.
Sei que você está aí, por que não pára de se foder por aí e aparece?
E ele apareceu... mas agora no rosto de
Arnie, e era ainda mais
hediondo do que todas as caveiras e esqueletos jamais imaginados pelas
revistas de horror em quadrinhos. O rosto de Arnie
mudou.
Um rosnado
brotou em seus lábios, como uma rosa putrefata. Então o vi, como devia
ter sido quando jove
m, e quando um carro era tudo que um jovem
precisava ter; tudo o mais se seguiria automaticamente. Vi o irmão mais
velho de George LeBay.
Só recordo uma coisa sobre ele, mas lembro disso muito bem: sua raiva. Ele
estava sempre enraivecido.
Ele caminhou par
a mim, encurtando a distância entre onde estivera
e onde eu estava parado, apoiado nas muletas. Seus olhos eram enevoados,
além de todo alcance. Aquele sorriso de escárnio estava impresso em seu
rosto, como algo marcado a fogo.
Tive tempo de pensar na cica
triz no braço de George LeBay,
descendo do cotovelo ao pulso.
Ele me empurrou, depois voltou e me jogou ao
chão.
Eu podia ouvir aquele LeBay de quatorze anos gritando:
De agora em
diante, fique fora do meu caminho, seu maldito imbecil, fique fora do meu ca
minho,
ouviu?
Era LeBay que eu encarava agora
—
e LeBay não era dos que se
conformam facilmente em perder. Aliás, ele não aceitava a derrota, isso
nunca.
—
Lute com ele, Arnie
—
falei.
—
Ele já esteve no comando por
tempo demais. Lute com ele, mate
-
o, faça
-
o ficar lon...
Ele esticou o pé e chutou minha muleta direita, arrancando
-
a de
mim. Lutei para permanecer em pé, cambaleei, quase consegui... e então
ele chutou a muleta esquerda. Caí sobre a neve dura e compacta. Ele deu
outro passo e ficou acima de mim,
o rosto, duro e alienado.
—
Você queria, agora vai ter
—
disse vagamente.
—
Certo, certo
—
arquejei.
—
Lembra
-
se das fazendas de formigas,
Arnie? Você está aí, em algum lugar? Esse otário sujo nunca teve uma
fodida fazenda de formigas na vida. Nunca teve
um
amigo
em toda a vida!
De repente, aquela dureza se rompeu. O rosto
—
o rosto dele
se
turvou.
Não sei mais como descrever o que vi. LeBay estava ali, enfurecido
ao ser posto de lado por um motim interno. Então, surgiu Arnie abatido,
cansado, envergonhado
mas, acima de tudo, desesperadamente infeliz.
Em seguida, novamente LeBay, o pé se estirando para chutar
-
me,
enquanto eu jazia caído na neve, rastejando para pegar minhas muletas,
sentindo
-
me impotente, inútil e entorpecido. Depois foi novamente Arnie,
me
u amigo Arnie, jogando para trás o cabelo caído na testa, naquele gesto
familiar e aturdido. Era Arnie, dizendo:
—
Oh, Dennis... Dennis... me desculpe... sinto muito.
—
É tarde demais para se desculpar, cara
—
falei.
Peguei uma muleta, depois a outra. Ergu
i
-
me pouco a pouco,
escorregando duas vezes, antes de me suster novamente sobre elas.
Minhas m
ãos, agora, eram como peças de mobiliário. Arnie não fez
qualquer movimento para ajudar
-
me; ficou recostado contra o furgão, os
olhos arregalados e chocados.
—
De
nnis, eu não consigo entender
—
sussurrou.
—
Às vezes,
parece que nem estou mais aqui. Ajude
-
me, Dennis! Ajude
-
me!
—
LeBay está aí?
—
perguntei.
—
Ele sempre está aqui
—
grunhiu Arnie.
—
Oh, Deus, sempre!
Exceto...
—
O carro?
—
Quando Christine... quando e
la roda, então, ele está com ela. É a
única vez em que ele... ele...
Arnie silenciou. Sua cabe
ça descambou para um lado. O queixo
rolou sobre o peito, em um giro frouxo. Seu cabelo pendeu para a neve. A
saliva escorreu de sua boca e caiu sobre as botas. En
tão, ele começou a
chorar baixinho e esmurrou o furgão atrás, com as mãos enluvadas.
—
Vá embora! Vá embora? Vá embooooraaaa!
Por uns cinco segundos, nada aconteceu
—
nada, exceto o
estremecimento de seu corpo, como se uma cesta de serpentes houvesse
sido
despejada dentro de suas roupas; nada, exceto aquele lento, horrível
girar do queixo sobre o peito.
Pensei que Arnie talvez estivesse vencendo, que conseguia expulsar
o velho e nojento filho da puta. Entretanto, quando ergueu o rosto, Arnie
se fora. Era Le
Bay quem estava ali.
—
Tudo vai acontecer exatamente como ele disse
—
falou LeBay.
—
Não se meta, rapaz. Talvez eu não o atropele.
—
Vá à Garagem de Darnell esta noite
—
disse eu. Minha voz estava
rouca, tinha o peito seco como areia.
—
Nós brincaremos. Le
varei Leigh
comigo. Leve Christine.
—
Eu é que escolho hora e lugar
—
replicou LeBay, e sorriu com a
boca de Arnie, mostrando os dentes jovens e fortes de Arnie... uma boca
ainda a anos da indignidade das dentaduras.
—
Você ignora quando e
onde, mas saberá
... chegado o momento.
—
Pense bem
—
falei, como que por casualidade.
—
Vá à garagem
esta noite... ou eu e ela começaremos a contar tudo amanhã.
Ele riu, um som horrendo e insolente.
—
E aonde isso os levará? Ao hospício de Reed City?
—
Oh, claro que não n
os darão crédito de início
—
repliquei.
—
Eu
concordo com você nisso. De qualquer modo, essa história de mandarem
as pessoas para um asilo de loucos, assim que começam a falar sobre
fantasmas e demônios... Ha
-
ha, LeBay! Talvez isso acontecesse no seu
tempo
, antes dos discos voadores, de
O
Exorcista
e daquela casa em
Amityville. Só que, hoje, muita gente
acredita
nessa história.
Ele ainda sorria, mas seus olhos me fitaram com uma sombra de
suspeita. Era isso e algo mais. Pensei ter tamb
ém percebido uma prime
ira
fagulha de medo.
—
E o que você não parece perceber, é quantas pessoas sabem que
existe algo errado.
Seu sorriso vacilou. Claro, ele j
á deveria ter percebido e ficado
preocupado. Entretanto, matar talvez seja uma febre; após certo tempo,
talvez simples
mente seja impossível parar e contar a despesa.
—
Seja qual for a espécie de estranha e nojenta vida que ainda tenha,
está toda presa àquele carro
—
falei.
—
Você sabia disso e planejou usar
Arnie, desde o princípio... exceto que "planejou" é a palavra err
ada. Sim,
porque na verdade você nunca planejou nada, não é mesmo? Apenas
seguiu suas intuições.
Ele emitiu um som que parecia um rosnado e se virou para ir.
—
De fato, você quer refletir sobre isso
—
falei quando já se ia.
—
O
pai de Arnie sabe que há alg
o sujo por trás de tudo isto. O meu também. E
imagino que exista algum policial, em qualquer lugar, querendo ouvir,
o
que for,
sobre como seu amigo Junkins morreu. E tudo leva de volta a
Christine, Christine, Christine... Cedo ou tarde, alguém a levará par
a
aquele compactador nos fundos da garagem, apenas por uma questão de
princípios.
Ele se virou para tr
ás e me fitou, com uma viva mistura de ódio e
medo nos olhos.
—
Nós falaremos e muitos rirão da gente, não duvido. Entretanto,
tenho dois pedaços de molde
s de gesso com a assinatura de Arnie.
Somente uma não é dele. É sua. Eu vou levá
-
la aos tiras estaduais
e vou
ficar infernizando a vida deles at
é que consigam um especialista em
grafologia para confirmar o que afirmo. Todos vão começar a ficar de olho
em A
rnie. Começarão também a ficar de olho em Christine. Vê o quadro?
—
Filho, você não me perturba nem um pouquinho.
Seus olhos, contudo, diziam o contr
ário. Eu o atingia, sem dúvida
nenhuma.
—
Eu lhe digo que será assim
—
insisti.
—
As pessoas são racionais
apenas na superfície. Elas atiram sal sobre o ombro esquerdo, quando
derrubam o saleiro, não passam debaixo de escadas; acreditam na
sobrevivência após a morte. E, cedo ou tarde... provavelmente mais cedo,
comigo e Leigh gritando a plenos pulmões... alguém
irá transformar
aquele seu carro em sucata. Em uma lata de sardinhas. E estou quase
apostando que, quando isso acontecer, você irá embora com ele.
—
Não aposte nisso!
—
rosnou ele.
—
Estaremos na garagem esta noite
—
falei.
—
Se você for bom,
poderá acaba
r conosco. Bem, isso não significará exatamente o fim, mas
você terá uma certa pausa para respirar... tempo suficiente para dar o fora
da cidade. Entretanto, não creio que seja tão bom, meu chapa. Essa coisa já
foi longe demais. Vamos livrar
-
nos de você!
A
rrastei
-
me de volta para o Duster e entrei no carro. Usei as muletas
mais desajeitadamente que de costume, tentando dar
-
lhe a impress
ão de
estar com maior incapacidade física do que realmente estava. Já o tinha
abalado, mencionando as assinaturas; era temp
o de dar o fora, antes que a
situação piorasse para o meu lado. Havia, no entanto, mais uma coisa.
Algo que, sem a menor dúvida, deixaria LeBay frenético.
Puxei a perna esquerda com as m
ãos, bati a porta e inclinei
-
me para
fora. Fitei
-
o dentro dos olhos e
sorri.
—
Ela é grande na cama
—
falei.
—
Pena que você nunca vá
descobrir.
Com um furioso rugido, ele avan
çou contra mim. Subi o vidro da
janela e apertei o botão que trancava a maçaneta. Então, sem pressa, liguei
o motor, enquanto ele batia os punhos enlu
vados contra o vidro. Seu rosto
se contorcia em terrível rosnado. Nada havia de Arnie agora. Nem o
menor sinal de Arnie, naquele rosto. Meu amigo se fora. Senti uma
angústia sombria, mais profunda do que lágrimas ou medo, mas mantive
aquele lento, insultan
te e canalha sorriso em meu rosto. Depois,
vagarosamente, ergui meu dedo médio para o vidro.
—
Foda
-
se, LeBay
—
falei.
Arranquei, deixando
-
o parado no p
átio, sacudido por aquela fúria
incontrolável que seu irmão me contara. Aquilo era o principal com que
e
u contava, para atraí
-
lo à garagem essa noite. Ainda veríamos.
P
ETÚNIA
Algo quente escorria de meus olhos,
Mas encontrei meu bem assim mesmo, aquela noite,
Abracei
-
a com for
ça e demos nosso último beijo...
—
J. Frank Wilson and the Cavaliers
Dirigi por u
ns quatro quarteir
ões, antes que a reação começasse.
Então, fui obrigado a parar. Tremia horrivelmente. Nem mesmo o
aquecedor, ligado ao máximo, podia acabar com os tremores. Minha
respiração vinha em penosos e pequenos arquejos. Encolhi
-
me para ver se
me
aquecia, mas era
como se nunca mais me aquecesse, nunca mais. O
rosto, aquele rosto horr
ível, e Arnie sepultado em algum ponto do interior,
ele está sempre aqui,
dissera Arnie, sempre, exceto quando... o quê? Quando
Christine rodava por si mesma, é claro.
LeBay não podia estar em dois
lugares ao mesmo tempo. Isto ficava além, mesmo, de seus poderes.
Por fim, fui capaz de recome
çar a dirigir e nem mesmo tive
consciência de que estivera chorando, senão quando olhei para o
retrovisor e vi os círculos molhados
sob meus olhos.
Faltavam quinze para as dez, quando cheguei ao local de trabalho
de Johnny Pomberton. Ele era um homem alto, de ombros largos, usava
botas verdes de borracha e vestia um grosso blus
ão de caça, quadriculado
em preto e vermelho. Um velho chap
éu, com a copa suja de graxa, estava
meio de lado na cabeça calva, enquanto ele estudava o céu.
—
O rádio disse que vem mais neve por aí. Não tinha certeza de
quando você chegaria, rapaz, mas a trouxe para fora assim mesmo. O que
acha dela?
Firmei as mulet
as debaixo dos bra
ços e saí de meu carro. O sal para
estradas rangia debaixo das ponteiras de borracha das muletas, mas a
caminhada era segura. Estacionado à frente da pilha de lenha de Johnny
Pomberton estava um dos veículos de aparência mais estranha que
eu já
vira na vida. Um cheiro fraco e picante, não exatamente agradável,
emanava dele até onde nós estávamos.
Outrora, muito tempo atr
ás em sua carreira, aquele veículo havia
sido um produto GM
—
ou, pelo menos, assim anunciava o gigantesco
escudo em seu
nariz. Agora, tornara
-
se um pouco de tudo. Uma coisa,
sem a menor dúvida, continuava sendo: enorme. O topo da grade do
radiador ficaria ainda uma cabeça acima de um homem alto. Para trás e
acima, a boléia se amoldava como um imenso capacete quadrado. Mais
atrás, suportado por dois conjuntos de rodas duplas de cada lado, havia
um corpo longo e tubular, como o de um caminhão
-
tanque de gasolina.
Exceto que eu jamais vira um caminh
ão
-
tanque que, como aquele,
fosse pintado de rosa
-
vivo. A palavra PETUNIA havia s
ido escrita no
flanco, em letras góticas com meio metro de altura.
—
Não sei o
que
pensar disso
—
falei.
—
Para que é?
Pomberton enfiou um cigarro Camel na boca e o acendeu com um
r
ápido roçar da unha coriácea do polegar na ponta de um fósforo de
madeira.
—
Chupa
-
cocô
—
disse ele.
—
O quê?
Ele sorriu.
—
Vinte mil galões de capacidade
—
explicou.
—
Ela é uma piada, é
Petúnia.
—
Não saquei
—
respondi, mas começava a entender.
Naquilo tudo havia uma absurda e sombria ironia que Arnie
—
o
antigo Arnie
—
teria a
preciado. Quando telefonara, eu havia perguntado a
Pomberton se ele dispunha de um caminhão grande e pesado para
alugar
—
e aquele era, no momento, o maior veículo em seu pátio. Seus
quatro caminhões basculantes estavam trabalhando, dois em Libertyville e
mais dois em Philly Hill. Pomberton explicara que tinha uma
motoniveladora, mas esta sofrera um colapso nervoso pouco depois do
Natal. Segundo ele, estava tendo um problema dos diabos para manter
seus veículos rodando, desde que a Garagem de Darnell havia
sido
fechada.
Pet
únia era essencialmente um carro
-
tanque, nem mais, nem menos.
Sua função era bombear sistemas de esgoto.
—
Quanto é que ela pesa?
—
perguntei a Pomberton. Ele atirou
longe o cigarro.
—
Vazia ou cheia de merda? Engoli em seco.
—
Como está a
gora?
Ele jogou a cabe
ça para trás e riu.
—
Acha que eu ia alugar um veículo carregado?
—
Ele pronunciou
veícu cargado.
—
Nada disso, ela está vazia, seca como um osso, e toda
lavada com mangueira. Pode apostar. Ainda um pouco cheirosa, não?
Eu funguei. Si
m, estava cheirosa, certamente.
—
Podia ser muito pior
—
falei.
—
Imagino.
—
Claro
—
disse Pomberton.
—
Fique certo disso.
O pedigree
original
da velha Petúnia se perdeu há muito, mas em seu registro atual diz que
pesa nove toneladas, PBV.
—
O que signific
a isso?
—
Peso bruto do veículo
—
disse ele.
—
Se eles param a gente na
divisa do Estado, e o veículo pesa mais de nove toneladas, a CCI
—
Comissão de Comércio Interestadual
—
fica preocupada. Vazia, ela
provavelmente pesa por aí, não sei bem, coisa de qua
tro a quatro e meia
toneladas. Tem cinco marchas, com um diferencial de duas velocidades, o
que dá a você dez marchas para diante... se puder afundar um pedal.
Ele analisou minhas muletas de alto a baixo, com expressão
duvidosa, e acendeu outro cigarro.
—
Você
pode
pisar um pedal?
—
Claro
—
falei, com ar sério.
—
Se não for muito duro. Muito bem,
mas por quanto tempo? Essa era a questão.
—
Bem, isso é lá com você e não quero me meter.
—
Ele me fitou
com interesse.
—
Vou lhe dar dez por cento de desconto, se
pagar em
dinheiro, porque em geral não explico as transações em dinheiro a meu tio
favorito.
Remexi minha carteira e encontrei quatro notas de vinte e quatro de
dez.
—
Quanto foi que disse sobre o aluguel de um dia?
—
Que tal acha noventa pratas?
Entregue
i noventa a ele. Viera preparado para pagar cento e vinte.
—
E o que vai fazer com aquele seu Duster? Aquilo nem me passara
ainda pela cabeça.
—
Será que não posso deixá
-
lo aqui? Só por hoje?
—
Claro
—
disse Pomberton.
—
Pode deixar a semana inteira, que
p
ara mim não faz diferença. De qualquer modo, é melhor botar o carro
nos fundos. Deixe também as chaves, para o caso de precisar manobrá
-
lo.
Manobrei o Duster e o levei para os fundos, onde havia uma selva
de canibalizadas peças de caminhão, apontando fora
da neve alta, como
ossos sob areia branca. Levei quase dez minutos para retornar,
caminhando de muletas. Podia ter vindo mais depressa, mas não queria
abusar da perna esquerda. Preferia poupá
-
la para a embreagem de
Petúnia.
Aproximei
-
me de Petúnia, sentind
o o medo enovelar
-
se em meu
estômago, como uma pequena nuvem negra. Não tinha dúvidas de que
ela conseguiria deter Christine
—
se esta realmente aparecesse à noite, na
Garagem de Darnell, e se eu conseguisse dirigir o maldito veículo. Nunca
dirigira nada t
ão grande em minha vida, embora no verão passado tivesse
passado algumas horas em um
bulldozer,
e Brad Jeffries me deixasse
experimentar o caminhão de carga umas duas vezes, terminado o trabalho
do dia.
Pomberton ficou parado, em seu blusão xadrez, as mãos
enfiadas
fundo nos bolsos das calças de trabalho, espiando
-
me com analisadores
olhos. Cheguei até o lado do motorista, agarrei a maçaneta e escorreguei
um pouco. Ele deu um ou dois passos em minha direção.
—
Pode deixar, eu me arranjo.
—
Certo
—
disse ele
.
Enfiei novamente a muleta debaixo do braço, a respiração
congelando
-
se em rápidos e pequenos haustos, e abri a porta. Segurando
-
me à maçaneta interna com a mão esquerda e equilibrando
-
me na perna
direita como uma cegonha, atirei as muletas dentro da cabi
ne e depois as
segui. As chaves estavam na ignição, o sistema de mudança impresso na
alavanca. Bati a porta, empurrei o pedal com a perna esquerda
—
sem
muita dor, até ali, tudo bem
—
e botei Petúnia em marcha. Seu motor
soava como um campo cheio de carros
de corrida, em Philly Plains.
Pomberton chegou mais perto.
—
É um pouco barulhenta, não?
—
gritou.
—
Se é!
—
gritei de volta.
—
Sabe de uma coisa?
—
berrou ele.
—
Duvido como o diabo que
você consiga um
I
em sua licença de motorista, rapaz!
Um
I
na licenç
a para dirigir significa que o Estado testou a gente em
grandes caminhões. Eu tive um
A
para motocicletas (para grande desgosto
de minha mãe), mas não um
I
.
Sorri para ele.
—
Você não checou, porque eu parecia de confiança.
—
Claro!
—
ele sorriu também.
Ac
elerei um pouco. Petúnia deu dois altíssimos estouros, que eram
quase tão barulhentos como morteiros.
—
Incomoda
-
se se eu perguntar para que quer o caminhão? Sei que
não é da minha conta, claro.
—
Preciso dele para fazer justamente o que é sua função.
—
Co
mo é? Não entendi.
—
Quero me livrar de um pouco de merda
—
respondi.
Fiquei um pouco assustado, na pequena ladeira que partia do local
de trabalho de Pomberton, mas, mesmo inteiramente vazio, aquele grande
veículo rodava bem. Eu me sentia incrivelmente a
lto
—
capaz de olhar de
cima para os tetos dos carros que passavam por mim. Dirigir pelo centro
comercial de Libertyville me deixava tão em evidência como um filhote de
baleia nadando em um tanque para peixinhos dourados. Não entendia
por que o bombeador d
e esgotos de Pomberton tinha sido pintado
naquele rosa tão vivo. Isso me valeu alguns olhares curiosos.
Minha perna esquerda começava a doer um pouco, mas manejar o
sistema de mudança de Petúnia
—
com o qual não estava familiarizado
—
,
naquele trânsito de
pare
-
e
-
siga, me manteve a mente alheia a isso. Uma
dor mais surpreendente se desenvolvia em meus ombros e pelo peito;
originava
-
se, simplesmente, de dirigir Petúnia através do trânsito. O
veículo não era equipado com direção hidráulica, de maneira que o
vo
lante pesava realmente.
Dobrei da Rua Principal para a Walnutt, e entrei no pátio de
estacionamento, atrás da Western Auto. Desci cautelosamente da cabine
de Petúnia, bati sua porta (a esta altura, meu nariz estava quase
acostumado ao fraco odor que ela de
sprendia), ajeitei as muletas sob as
axilas e caminhei para a entrada dos fundos.
Tirei as três chaves da garagem que estavam no chaveiro de Jimmy e
as entreguei na seção de confecção de chaves. Por um e oitenta, consegui
duas cópias de cada. Guardei as ch
aves novas em um bolso e o chaveiro
de Jimmy em outro, já com suas chaves originais. Saí pela porta da frente
para a Rua Principal e fui até o Libertyville Lunch, onde havia telefone
público. Lá no alto, o céu ficara mais cinzento e carregado do que nunca.
Pomberton estava certo. Haveria neve.
Depois que entrei, pedi um café com creme e consegui troco para a
cabine telefônica. Entrei na cabine, fechei a porta desajeitadamente e liguei
para Leigh. Ela respondeu ao primeiro toque.
—
Dennis! Onde está você?
—
No Libertyville Lunch. Está sozinha?
—
Estou. Papai foi trabalhar, e mamãe fazer compras na mercearia.
Dennis, eu... eu quase contei tudo a ela. Comecei a pensar em quando ela
fosse estacionar na A&P, depois atravessando o pátio de estacionamento
e... Sei
lá, o que você disse sobre Arnie ter que deixar a cidade parecia não
ter importância. Claro que faz sentido, mas parecia não importar. Sabe do
que estou falando, não?
—
Sei
—
respondi, pensando em como dera carona a Ellie na
véspera, quando ela fora ao Tom
's, embora minha perna estivesse doendo
como o diabo.
—
Sei exatamente o que quer dizer.
—
Não posso continuar assim, Dennis. Vou acabar biruta. Ainda
está querendo experimentar a sua idéia?
—
Ainda
—
falei.
—
Deixe um bilhete para sua mãe, Leigh. Diga a
e
la que precisou sair por algum tempo. Não explique mais nada. Se você
não chegar a tempo do jantar, seus pais certamente telefonarão para
minha casa. Talvez eles decidam que nós dois fugimos.
—
Até que não seria má idéia
—
disse ela, e riu de um jeito que
me
deixou arrepiado.
—
Vou até aí.
—
Ei, mais uma coisa. Existe algum analgésico em sua casa? Darvon?
Alguma coisa assim?
—
Sobrou um pouco de Darvon, da vez que papai distendeu um
músculo nas costas
—
disse ela.
—
É a sua perna, Dennis?
—
Está doendo um p
ouco.
—
Um pouco, como?
—
Está tudo bem.
—
Nada de muito grave?
—
Tudo legal. Aliás, depois desta noite, darei a ela um bom repouso,
certo?
—
Certo.
—
Venha para cá, o mais depressa que puder.
Ela chegou quando eu pedia uma segunda xícara de café. Usava
u
ma jaqueta de pele com franjas e
jeans
desbotados. Os
jeans
estavam
enfiados em botas surradas. Ela conseguia parecer
sexy
e prática ao
mesmo tempo. Várias cabeças se viraram quando entrou.
—
Está muito bonita
—
falei e beijei
-
lhe a têmpora.
Ela me entrego
u um frasco de cápsulas cinzentas e rosadas.
—
Pois você não me parece muito animado, Dennis. Tome.
A garçonete, uma mulher de seus cinqüenta anos, com cabelos
grisalhos, chegou com meu café. A xícara assentou placidamente, uma
ilha em uma pequena poça mar
rom no pires.
—
Por que não estão na escola, garotos?
—
perguntou ela.
—
Tivemos uma dispensa especial
—
respondi sério. Ela me encarou
com firmeza.
—
Café, por favor
—
pediu Leigh, tirando as luvas. Quando a
garçonete se afastou do balcão, com uma audível
fungadela, Leigh se
inclinou para mim e disse:
—
Não seria engraçado se fôssemos apanhados
em flagrante pelo inspetor de alunos?
—
Hilariante
—
falei.
Pensei que, apesar da radiância que o frio lhe emprestara, Leigh não
estava parecendo tão bem assim. Ali
ás, creio que nenhum de nós
ostentaria sua melhor aparência enquanto aquilo tudo não terminasse.
Havia pequenas linhas de tensão em torno de seus olhos, como se ela
houvesse dormido mal à noite.
—
Muito bem, o que faremos?
—
Logo sairemos daqui
—
falei.
—
Espere até ver sua carruagem,
madame.
—
Meu Deus!
—
exclamou Leigh, olhando para a magnificência rosa
viva de Petúnia. Seu vulto agigantava
-
se silenciosamente no pátio de
estacionamento da Western Auto, miniaturizando um furgão Chevrolet de
um lado e um V
olkswagen do outro.
—
O que é isto?
—
Um chupa
-
cocô
—
respondi impassível.
Ela olhou para mim, perplexa... mas então se dobrou em um acesso
de gargalhadas histéricas. Era bom vê
-
la rir assim. Quando lhe havia
contado meu encontro com Arnie, aquela manhã, n
o pátio de
estacionamento dos alunos, as linhas de tensão em seu rosto ficaram mais
e mais tensas e os lábios haviam perdido a cor, tanto os comprimira.
—
Bem, parece um tanto ridículo
—
falei olhando para Petúnia.
—
Um comentário bastante
suave
—
replicou e
la, ainda rindo e
soluçando
—
, mas fará o trabalho, se é que alguma coisa o fará. É, acredito
que dará conta do recado. Aliás... está até apropriada, não é?
—
Foi o que também pensei
—
concordei.
—
Bem, vamos entrar
—
disse ela.
—
Estou com frio. Entrou na
cabine à minha frente, franzindo o nariz.
—
Argh!
—
exclamou. Eu sorri.
—
Vai acabar se acostumando com o cheiro
—
falei.
Estendi
-
lhe minhas muletas e escalei penosamente a subida até o
volante. A dor em minha perna esquerda amenizara para o antigo lateja
r
monótono, substituindo as séries de agudas ferroadas de antes. Eu havia
tomado dois Darvon no restaurante.
—
Acha que sua perna vai agüentar, Dennis?
—
Terá que agüentar
—
respondi e bati a porta.
C
HRISTINE
Como falei pro
meu amigo, porque estou
sempre
falando: John, eu
disse, mas seu nome era
outro, que escuridão em
volta da gente, o que
podemos fazer contra
isso, ou melhor, a gente
precisa comprar um carro grande,
dirija, ele disse, pelo
amor de Deus, vê lá
por onde tu tá indo.
—
Robert Creeley
Eram m
ais ou menos onze e meia quando deixamos o pátio de
estacionamento da Western Auto. Os primeiros flocos de neve
começavam a cair. Dirigi pela cidade, rumo à casa dos Sykes, fazendo a
mudança com mais facilidade, agora que o Darvon começava a agir.
A casa e
stava às escuras e fechada. A Sra. Sykes devia estar no
trabalho, e Jimmy talvez recebendo sua pensão do fundo de desemprego,
ou coisa assim. Leigh encontrou um envelope amassado em sua bolsa,
riscou seu endereço sobrescritado e escreveu
Jimmy Sykes à
fren
te, em sua
bela e inclinada caligrafia. Colocou o chaveiro de Jimmy dentro do
envelope, dobrou a aba e o enfiou pela fenda para cartas, na porta da
frente. Enquanto fazia isso, deixei Petúnia em ponto morto, dando
descanso à minha perna.
—
E agora?
—
pergu
ntou ela, tornando a entrar na cabine.
—
Falta um telefonema
—
respondi.
Encontrei uma cabine telefônica perto do cruzamento da JFK Drive
com Crescent Avenue. Desci cautelosamente da boléia do caminhão,
segurando
-
me até que Leigh me passasse as muletas. E
ntão, caminhei com
cuidado para o telefone, através da neve que espessava. Vista pelo vidro
sujo da cabine telefônica, além da neve que caía em redemoinhos, Petúnia
parecia um estranho dinossauro cor
-
de
-
rosa.
Liguei para a Universidade Horlicks e a telefon
ista transmitiu a
ligação para o gabinete de Michael. Arnie me dissera, certa vez, que seu
pai tinha preguiça de deixar o gabinete para almoçar e que preferia comer
lá mesmo, levando o almoço em um saco de papel. Então, quando a
chamada foi atendida ao seg
undo toque, eu o abençoei pela informação.
—
Dennis! Tentei pegá
-
lo em casa! Sua mãe disse...
—
Para onde ele vai?
Senti um frio no estômago. Só então
—
naquele exato momento
—
é
que tudo começava a parecer inteiramente real para mim e fiquei
pensando que
a louca confrontação no pátio do colégio caminhava para
um desfecho.
—
Como soube que ele ia viajar? Tem que me contar e...
—
Agora não há tempo para perguntas e, de qualquer modo, eu não
saberia responder a nenhuma. Para onde ele vai?
A voz de Michael soo
u lentamente:
—
Ele e Regina irão à Penn State hoje à tarde, logo após as aulas.
Arnie telefonou para ela de manhã, perguntando se podia acompanhá
-
lo.
Disse que...
—
Michael fez uma pausa para pensar.
—
Disse que caíra em
si subitamente. Que pensou nisso h
oje cedo, quando ia para o colégio, foi
uma idéia repentina, de que poderia perder a universidade se não tomasse
providências definitivas sobre isso. Já decidira que a Penn State era a
melhor, e queria que Regina o acompanhasse, para falar com o deão da
Fa
culdade de Artes e Ciências, bem como com algumas pessoas dos
Departamentos de História e Filosofia.
A cabine estava fria. Minhas mãos começavam a entorpecer. Leigh
estava lá no alto, na casa de navegação de Petúnia, espiando ansiosamente
para mim.
Você sa
be como arranjar as coisas, Arnie,
pensei. É
bem um jogador
de xadrez.
Ele manipulava a mãe, puxando os cordões e fazendo
-
a dançar.
Senti certa pena dela, mas não tanta como deveria ter sentido. Quantas
vezes Regina havia sido a manipuladora, fazendo outro
s dançarem em
seu palco, como em um teatrinho de marionetes? Agora, enquanto ela
estava meio angustiada, com medo e vergonha, LeBay acenara diante de
seus olhos com uma coisa
—
a única
—
que, sem sombra de dúvida, a
faria sair correndo: a possibilidade de
que a situação pudesse voltar ao
normal.
—
E isto faz sentido para você?
—
perguntei a Michael.
—
É claro que não!
—
explodiu ele.
—
Também não faria sentido
para ela, se Regina estivesse com as idéias em ordem. Do jeito como são
hoje as admissões à faculd
ade, a Penn State só o matricularia em julho, se
ele tivesse dinheiro para a anuidade e os pontos suficientes exigidos para
sua entrada. Arnie tem as duas coisas. Ele falava como se estivéssemos
nos anos 50 e não nos 70.
—
Quando é que eles partem?
—
Ela i
rá encontrá
-
lo no colégio, após a sexta aula. Pelo menos, foi o
que disse, quando telefonou para mim. Arnie pedirá dispensa das outras
aulas.
Aquilo significava que eles estariam deixando Libertyville em
menos de uma hora e meia. Portanto, fiz a última per
gunta, embora já
soubesse a resposta:
—
E eles não irão em Christine, certo?
—
Certo. Irão na camioneta. Regina estava delirante de alegria,
Dennis.
Delirante.
Isso de Arnie querer ir com ela a Penn State... bem,
parece coisa inspirada. Nem cavalos selvage
ns impediriam Regina de
aproveitar semelhante chance. O que está acontecendo, Dennis?
Por favor!
—
Contarei tudo amanhã
—
respondi.
—
É uma promessa. Palavra.
Enquanto isso, faça uma coisa para mim. Pode ser um assunto de vida e
morte para minha família e
a família de Leigh Cabot. Você...
—
Oh, meu Deus!
—
exclamou ele, em voz rouca. Falava no tom do
homem que acaba de entrever a luz.
—
Ele esteve fora, todas as vezes...
exceto quando o rapaz Welch foi morto. Então, Arnie estava... Regina o
viu dormindo e t
enho certeza de que não mentia sobre isso... Dennis,
quem tem dirigido aquele carro?
Quem está usando Christine para matar
pessoas, quando Arnie não está aqui?
Quase lhe contei, mas o frio era intenso na cabine telefônica e minha
perna começava a doer nova
mente. Por outro lado, minha resposta
suscitaria perguntas, dúzias de perguntas. No fim, talvez a única coisa que
eu conseguisse fosse sua recusa em acreditar.
—
Ouça, Michael
—
falei, com a maior circunspecção. Por um
estranho momento, senti
-
me como Miste
r Rogers, na TV.
Um grande carro
dos anos 50 irá liquidá
-
los, moças e rapazes... Pode soletrar Christine? Eu sabia
que poderia!
—
Você tem que ligar para meu pai e para o pai de Leigh. Faça
com que as duas famílias se reúnam na casa de Leigh.
—
Eu estava
p
ensando em tijolos, bons e sólidos tijolos.
—
Creio que você devia ir para
lá também, Michael. Fiquem todos juntos, até que eu e Leigh cheguemos
lá ou telefonemos. Tem que dizer a eles, de minha parte e de Leigh: não
devem sair de dentro de casa, depois de
...
—
Fiz os cálculos: se Arnie e
Regina deixassem o ginásio às duas, quanto tempo demoraria para que o
álibi dele fosse a toda prova? Depois de quatro horas desta tarde. Depois
das quatro, nenhum de vocês deve ir à rua. A qualquer rua.
Em hipótese
alguma.
—
Dennis, eu não posso, simplesmente...
—
Tem que poder
—
falei.
—
Faça tudo para convencer meu velho e
então os dois procurem convencer os Cabots. E fique longe de Christine,
Michael.
—
Eles partirão diretamente da escola
—
disse Michael.
—
Arnie
acha qu
e o carro poderá ficar no pátio de estacionamento dos alunos.
Eu podia sentir novamente em sua voz a certeza da mentira. Depois
do que acontecera no outono passado, Arnie seria tão capaz de abandonar
Christine em um estacionamento público, como aparecer nu
para a aula
de Cálculos.
—
Está bem
—
respondi
—
, mas se, por acaso, você olhar pela janela
e a vir na entrada para carros, fique longe. Entendeu?
—
Entendi, mas...
—
Telefone primeiro para meu pai. Prometa.
—
Está bem, eu prometo, Dennis, mas...
—
Obriga
do, Michael.
Desliguei. Minhas mãos e os pés estavam dormentes de frio, mas eu
tinha a testa pegajosa de suor. Empurrei a porta da cabine telefônica,
abrindo
-
a com a ponteira de uma muleta, e caminhei penosamente até
Petúnia.
—
O que disse ele?
—
perguntou
Leigh.
—
Prometeu?
—
Sim
—
respondi.
—
Prometeu, e meu pai fará com que fiquem
todos juntos. Tenho certeza absoluta disso. Se Christine for atrás de
alguém esta noite, irá atrás de nós.
—
Certo
—
disse ela.
—
Ainda bem.
Liguei o motor de Petúnia e saímos
dali. O palco estava montado
—
da melhor maneira que eu pudera, afinal
—
e agora nada mais podia fazer,
senão esperar e ver o que aconteceria.
Rodamos através da cidade em direção à Garagem de Darnell, por
entre uma neve ligeira que caía insistentemente.
Manobrei para o pátio de
estacionamento, pouco depois de uma hora daquela tarde. A edificação
comprida e desajeitada, com suas laterais de aço corrugado, estava
inteiramente deserta, e as rodas enormes de Petúnia afundaram
-
se na
neve que se amontoara, até
pararmos diante da porta principal. Os avisos
pregados àquela porta ainda eram os mesmos de muito antes, daquela
longínqua tarde de agosto, quando Arnie levou Christine para lá, pela
primeira vez: POUPE SEU DINHEIRO! SEU KNOW
-
HOW, NOSSAS
FERRAMENTAS!
Vaga
na Garagem, Alugada por Semana, Mês ou Ano
e
BUZINE PARA ENTRAR, mas o que realmente significava alguma coisa
era o novo aviso, contra a janela escura do escritório: FECHADO ATÉ
SEGUNDA ORDEM. A um canto da fachada nevada, havia um velho
Mustang amassado,
com aquelas portas adoradas pelos fanáticos dos anos
60. Agora, jazia silencioso e inútil, sob uma roupagem de neve.
—
Isso dá calafrios
—
disse Leigh, em voz baixa.
—
Também acho.
—
Entreguei
-
lhe as chaves que mandara fazer na
Western Auto, aquela manhã.
—
Uma delas deve dar.
Ela pegou as chaves, saiu e caminhou até a porta. Fiquei de olho nos
dois espelhos retrovisores, enquanto Leigh manipulava a fechadura, mas
nenhum de nós parecia estar chamando uma atenção indevida. Suponho
que haja certa psicologia e
nvolvida quando se vê um veículo tão grande e
evidente
—
isso torna difícil de engolir a idéia de algo clandestino ou ilegal.
Leigh deu um puxão súbito na porta, levantou
-
se, tornou a puxar e
então voltou ao caminhão.
—
Consegui girar a chave, mas não cons
igo levantar a porta
—
explicou.
—
Acho que ficou congelada no chão, grudada pela neve.
Era só o que faltava, pensei. Formidável. Nada daquilo seria
conseguido com facilidade.
—
Sinto muito, Dennis
—
disse ela, parecendo ler em meu rosto.
—
Ora, está tudo
bem
—
falei.
Abri a porta do motorista e executei outra de minhas cômicas saídas
deslizantes.
—
Tome cuidado
—
disse ela, ansiosa, caminhando a meu lado, com
o braço em minha cintura, enquanto eu caminhava cautelosamente sobre
as muletas, através da neve a
té a porta.
—
Lembre
-
se de sua perna.
—
Sim, mamãe
—
respondi, sorrindo um pouco.
Fiquei de lado, diante da porta, de maneira a abaixar
-
me para a
direita, mantendo o peso fora da perna em más condições. Inclinado para
a neve, com a perna esquerda no ar, a
mão esquerda aferrada às muletas, a
direita agarrando a maçaneta da porta de aço de enrolar, eu devia parecer
um contorcionista de circo. Puxei, e senti a porta ceder um pouco... mas
não o suficiente. Leigh tinha razão: ela congelara bastante na parte infe
rior.
Era possível ouvir
-
se o gelo estalando.
—
Agarre também e ajude
-
me
—
pedi.
Leigh colocou as duas mãos sobre a minha direita e puxamos juntos.
O som estalante ficou um pouco mais alto, porém o gelo ainda não cedera
de todo, na base da porta.
—
Quase c
onseguimos
—
falei. Minha perna direita latejava
dolorosamente e o suor me escorria pelo rosto.
—
Vou contar. Quando
disser três, dê tudo que puder. Certo?
—
Certo
—
disse ela.
—
Um... dois...
três!
Aconteceu que a porta ficou livre do gelo de repente, com
absurda,
incrível facilidade. Pareceu voar para cima em seus trilhos e cambaleei
para trás, minhas muletas escapando. A perna esquerda se dobrou sob
meu corpo e caí sobre ela. A neve alta amaciou um pouco a queda, mas
ainda assim senti a dor, uma espécie
de relâmpago prateado, que pareceu
disparar para cima, partindo da coxa e fazendo todo o trajeto até as
têmporas, antes de retornar ao ponto inicial. Trinquei os dentes para não
gritar e só a custo me contive. Então, Leigh ficou de joelhos na neve, a
meu l
ado, o braço em torno de meus ombros.
—
Dennis! Você está bem?
—
Ajude
-
me a ficar em pé.
Ela precisou fazer a maior parte do esforço e ambos estávamos
ofegando como corredores quando consegui novamente levantar
-
me e
ajeitar as muletas debaixo dos braços. A
gora, eu precisava realmente delas.
A perna esquerda me torturava.
—
Você não conseguirá pisar na embreagem daquele caminhão,
Dennis. Não agora...
—
Conseguirei. Ajude
-
me a voltar, Leigh.
—
Você está branco como um fantasma! Acho que devemos
procurar um mé
dico.
—
Negativo. Ajude
-
me a voltar.
—
Dennis...!
—
Leigh, ajude
-
me a voltar!
Fizemos a caminhada de volta até Petúnia, centímetro por
centímetro, deixando para trás pegadas arrastadas e desajeitadas sobre a
neve. Estendi os braços, aferrei
-
me ao volante e
icei o corpo, roçando de
leve no estribo com a perna direita... e ainda assim, no fim, Leigh teve que
ficar atrás, colocar as duas mãos em meus fundilhos e empurrar para cima.
Afinal me vi ao volante de Petúnia, acalorado e tremendo de dor. Minha
camisa e
stava molhada de neve derretida e suor. Até aquele dia de janeiro
de 1979, eu ignorava que dor em certo grau pode fazer
-
nos suar.
Tentei empurrar a embreagem com a perna esquerda e aquele raio
prateado de dor surgiu novamente, fazendo
-
me jogar a cabeça par
a trás e
trincar os dentes, até que diminuiu um pouco.
—
Vou até o fim da rua, encontrar um telefone e chamar um médico,
Dennis.
—
O rosto de Leigh estava pálido e assustado.
—
Você fraturou a
perna novamente, não foi? Quando caiu?
—
Não sei
—
respondi
—
m
as você não fará nada disso, Leigh. Serão
os seus pais ou os meus, se não terminarmos com isso agora. Você sabe
que é assim. LeBay não vai parar. Ele tem um desejo de vingança
superdesenvolvido. Não vamos parar agora!
—
Você não pode dirigir isso!
—
gemeu e
la.
Ergueu os olhos para a boléia, agora chorando. O capuz de sua
jaqueta havia caído para trás, em nosso esforço mútuo para colocar
-
me no
assento do motorista, onde agora me encontrava, em total inutilidade. Eu
podia ver um chuveiro de flocos de neve em s
eu cabelo louro
-
escuro.
—
Vá lá dentro
—
falei.
—
Veja se encontra uma vassoura ou um
cabo comprido de madeira.
—
De que vai adiantar?
—
perguntou ela, chorando ainda mais.
—
Consiga o que estou pedindo, e então veremos.
Ela penetrou na goela escura da por
ta aberta e desapareceu de vista.
Apalpei a perna e fiquei gelado de terror. Se realmente tornara a fraturá
-
la,
havia uma forte possibilidade de ficar usando um calcanhar artificial pelo
resto da vida. Entretanto, não sobraria tanta vida assim, caso não
pu
déssemos dar um fim em Christine. Bem, aquela idéia nada tinha de
animadora.
Leigh voltou, com uma vassoura de cerdas inclinadas.
—
Acha que serve?
—
perguntou.
—
Para nos levar até lá dentro, sim. Então, veremos se encontramos
coisa melhor.
O cabo era do
tipo de rosca. Segurei
-
o, torci
-
o e joguei para um lado
a extremidade com as cerdas. Mantendo
-
o na mão esquerda, ao longo do
lado do corpo
—
apenas mais uma maldita muleta
—
, empurrei a
embreagem com ele. Conseguiu firmar
-
se por um instante no pedal,
depoi
s escorregou.
A embreagem saltou de volta. O topo do cabo quase me bate na boca.
Vai indo bem, Guilder. Enfim, não havia outro jeito.
—
Vamos, entre
—
falei.
—
Dennis, você tem certeza?
—
Tanta quanto posso ter
—
respondi.
Ela me olhou por um momento, depo
is assentiu.
—
Está bem.
Deu a volta para o lado do passageiro e entrou. Bati minha porta,
apertei a embreagem de Petúnia com o cabo de vassoura e engrenei em
primeira. Eu tinha a embreagem pressionada pela metade, e Petúnia
começava a rodar para diante, q
uando o cabo de vassoura tornou a
escorregar. O tanque
-
séptico rodou para dentro da Garagem de Darnell
com uma série de corcoveios bruscos e, quando afundei o pé direito no
freio, o motor afogou. Estávamos com a maior parte do veículo no interior.
—
Precis
o de alguma coisa com uma base maior, Leigh
—
falei.
—
Este cabo de vassoura não funciona.
—
Vou ver o que encontro.
Ela saiu e começou a caminhar pelos cantos da garagem,
procurando. Olhei em torno.
Dava calafrios,
Leigh tinha dito, e estava com
razão. Os
únicos carros remanescentes eram quatro ou cinco velhos
soldados, feridos tão gravemente que ninguém se preocupou em reclamá
-
los. Todos os espaços em diagonal que restavam, com seus números em
tinta branca, estavam vazios. Olhei para o boxe vinte e depois
desviei os
olhos.
As altas prateleiras de pneus também estavam quase vazias.
Sobravam alguns, carecas, colocados uns sobre os outros, como
gigantescos biscoitos escurecidos pelo fogo, mas era tudo. Um dos dois
elevadores estava parcialmente erguido, com u
m aro de roda preso sob ele.
O diagrama para alinhamento das rodas dianteiras, na parede da direita,
reluzia fracamente em branco e vermelho, os dois alvos para os faróis
dianteiros assemelhando
-
se a olhos injetados. E sombras, sombras por
toda parte. Mais
acima, aquecedores em forma de enormes caixas
apontavam suas persianas para cá e para lá, como sinistros bastões
enferrujados.
Tudo ali dentro dava a impressão de um lugar morto.
Leigh usara outra das chaves de Jimmy para abrir o escritório de
Will. Eu po
dia vê
-
la andando de um lado para outro, através da janela que
Will usava para vigiar seus fregueses... aqueles "Zés" trabalhadores que
tinham de manter seus carros rodando
—
para que pudessem blablablá.
Ela apertou alguns interruptores e as luzes fluoresc
entes do teto se
acenderam em gélidas fileiras brancas. Isto significava que a companhia
de eletricidade não havia cortado o fornecimento. Eu precisava fazê
-
la
apagar as luzes novamente
—
não podíamos nos arriscar a chamar a
atenção
—
mas, pelo menos, terí
amos algum calor.
Ela abriu outra porta e desapareceu de vista temporariamente. Olhei
para meu relógio. Era uma e meia da tarde.
Leigh voltou, e a vi segurando um escovão de cabo, com uma
grande esponja amarela na extremidade inferior.
—
Acha que pode serv
ir?
—
Está perfeito
—
falei.
—
Entre, garota. Vamos trabalhar.
Ela tornou a subir para a boléia, e empurrei o pedal da embreagem,
usando o esfregão.
—
Muito melhor
—
falei.
—
Onde o encontrou?
—
No banheiro
—
disse ela, e franziu o nariz.
—
A coisa estava
ruim, lá dentro?
—
Imundo, fedendo a charuto e com uma pilha de livros bolorentos
a um canto. Do tipo vendido naquelas lojinhas ordinárias.
Então, era isso o que Darnell deixara para trás, pensei: uma garagem
vazia, uma pilha de livros pornográficos e um f
edor
-
fantasma de charutos.
Tornei a sentir frio e pensei que, por minha vontade, veria aquele lugar
nivelado por um
buildozer,
e depois aterrado. Não podia afastar a
impressão de que era uma espécie de sepultura sem marca
—
o local onde
LeBay e Christine h
aviam matado a mente de meu amigo e se apossado de
sua vida.
—
Mal posso esperar para me ver fora daqui
—
disse Leigh, olhando
nervosamente em torno.
—
É mesmo? Pois eu começo a gostar. Estava pensando em me
mudar para cá.
—
Acariciei
-
lhe o ombro e fitei s
eus olhos
profundamente.
—
Podemos iniciar uma família
—
sussurrei.
Ela ergueu o punho fechado.
—
Quer que eu comece com um nariz sangrando?
—
Não, de modo nenhum. Afinal, eu também mal posso esperar
para dar o fora daqui. Dirigi o resto que faltava de Pet
únia para dentro da
garagem. Podia manejar bastante bem a embreagem, usando o esfregão...
em primeira pelo menos. O cabo tinha uma tendência e envergar e eu teria
preferido algo mais grosso, mas aquilo tinha que servir, até podermos
encontrar qualquer cois
a melhor.
—
Precisamos apagar as luzes novamente
—
falei, desligando o
motor.
—
As pessoas erradas poderiam vê
-
las.
Leigh saiu e as apagou, enquanto eu manobrava Petúnia em um
amplo círculo, para então dar marcha à ré cautelosamente, até quase
encostar a t
raseira na janela entre a garagem e o escritório de Darnell.
Agora, o enorme focinho do veículo apontava diretamente para a porta
aberta da fachada, pela qual havíamos entrado.
Com as luzes apagadas, as sombras apoderaram
-
se de tudo
novamente. A claridade
que vinha pela porta aberta era fraca, amortecida
pela neve, alvacenta e sem força. Espalhava
-
se pelo concreto rachado e
sujo de graxa, como uma cunha, morrendo simplesmente a meio caminho
através do piso.
—
Estou com frio, Dennis
—
gritou Leigh, do escrit
ório de
Darnell.
—
Ele marcou os interruptores para o aquecimento. Posso ligar?
—
Vá em frente!
—
gritei para ela.
Pouco depois, a garagem sussurrava com o som dos aquecedores.
Recostei
-
me no assento, passando de leve as mãos sobre a perna esquerda.
O teci
do de meu
jeans
se estirava maciamente sobre a coxa, liso e sem uma
ruga. A filha da mãe estava inchando. E doía. Céus, como doía!
Leigh voltou e subiu para meu lado. Repetiu o quanto era terrível o
meu aspecto e, por algum motivo, minha mente se rebelou,
levando
-
me a
evocar a tarde em que Arnie levara Christine para a garagem, o marido da
rainha do
be
-
bop
gritando para ele tirar aquele lixo da frente de sua casa e
Arnie me dizendo que o cara era um fanático por Robert Deadford.
Recordei como havíamos rido
escondido. Fechei os olhos, contra a
ferroada das lágrimas.
Sem mais nada a fazer além de esperar, o tempo custou a passar. O
relógio marcou quinze para as duas, depois duas horas. Lá fora, a neve se
intensificara um pouco, mas não demasiado. Leigh desceu
da boléia e
apertou o botão que fazia descer a porta da entrada. Aquilo tornou o
interior ainda mais sombrio.
Ela voltou, tornou a subir e comentou:
—
Há um dispositivo engraçado, ao lado da porta, dá para ver?
Parece o dispositivo eletrônico de abrir gar
agem que nós tínhamos,
quando moramos em Weston.
Sentei
-
me ereto, repentinamente.
—
Oh!
—
gemi.
—
Meu Deus!
—
O que foi?
—
Então é isso! Um dispositivo para abrir a porta da garagem! E há
um transmissor, um dispositivo semelhante, em Christine. Arnie o
men
cionou para mim, na noite de Ação de Graças. Você tem que quebrá
-
lo, Leigh. Use o cabo do esfregão.
Assim, ela tornou a descer, ergueu o cabo do esfregão e ficou abaixo
do dispositivo da célula fotoelétrica, olhando para cima e batendo nele
com o cabo. Par
ecia uma mulher tentando matar um besouro quase no
teto. Afinal, foi recompensada com um estalido de plástico e trincar de
vidro.
Ela retornou lentamente, deixou o esfregão a um lado e subiu para a
boléia.
—
Não acha que era tempo de me contar o que tem em
mente,
Dennis?
—
O que quer dizer?
—
Você sabe
—
disse ela, e apontou para a porta fechada. Cinco
janelas quadradas, em uma fila de três quartos de sua altura, para cima,
permitiam a entrada de uma claridade mínima, através dos vidros
sujos.
—
Quando escu
recer, você pretende abrir a porta outra vez, não é?
Eu admiti. Em si, a porta era de madeira, mas reforçada com tiras
articuladas de aço, como a porta interna de um elevador antigo. Permitiria
a entrada de Christine mas, uma vez fechada, o carro não conse
guiria
despedaçá
-
la, para sair novamente. Pelo menos, era o que eu esperava.
Senti um arrepio, ao pensar em como havíamos deixado passar o detalhe
do elevador eletrônico da porta.
Abrir a porta ao escurecer, sim. Deixar Christine entrar, sim. Fechar
a port
a novamente. Então, eu usaria Petúnia para destruí
-
la até a morte.
—
Está bem
—
disse Leigh.
—
Uma armadilha. No entanto, quando
ela... quando ele entrar, como fará para tornar a fechar a porta e manter o
carro preso aqui dentro? Talvez haja um botão no es
critório de Darnell,
mas eu não o vi.
—
Que me conste, lá não há nenhum
—
falei.
—
Portanto, você terá
que ficar junto à porta, para apertar o botão que a fecha.
—
Apontei. O
botão manual ficava ao lado direito da porta, meio metro abaixo da caixa
do dispo
sitivo elétrico.
—
Você se encostará à parede, fora de vista.
Quando Christine entrar... sempre se supondo que entre... você apertará o
botão que faz a porta descer e ficará de lado rapidamente. A porta desce. E,
bam! A ratoeira está fechada.
Leigh ficou s
éria.
—
Fechada para Christine, mas para você também. Nas palavras do
imortal Wordsworth, um erro.
—
Isso é de Coleridge, não de Wordsworth. Não há outro jeito,
Leigh. Se você ainda estiver lá, quando aquela porta descer, Christine irá
atropelá
-
la. Mesmo q
ue houvesse um botão no escritório de Darnell, bem...
Você viu no jornal o que aconteceu com a parede lateral da casa dele.
O rosto dela era obstinado.
—
Estacione perto do interruptor. Então, quando ela entrar, eu estico
o braço pela janela e aperto o bot
ão que baixa a porta.
—
Se estacionar lá, ficarei à vista. E se este tanque ficar à vista,
Christine não entrará.
—
Não estou gostando disso!
—
explodiu Leigh.
—
Não quero
deixá
-
lo sozinho! É como se você me enganasse!
De certa forma, era justamente o que
eu tinha feito e, por mais
válido que fosse, hoje não faria a mesma coisa. Naquela época, entretanto,
eu tinha dezoito anos, e não há maior porco
-
chauvinista do que um porco
-
chauvinista de dezoito anos. Passei um braço por seus ombros. Ela resistiu
por um
momento, rígida, mas depois amoleceu.
—
Não há outra maneira
—
falei.
—
Se não fosse por minha perna...
ou se você pudesse dirigir um veículo de mudança padronizada...
Dei de ombros.
—
Tenho medo por você, Dennis. Eu quero ajudar.
—
Já está ajudando de sob
ra. Você é quem ficará realmente em
perigo, Leigh... Estará fora da boléia, no chão, quando ela entrar. E eu vou
ficar sentado aqui dentro, para esfacelar a cadela, fazê
-
la em pedaços.
—
Só espero que seja mesmo assim
—
disse ela. Pousou a cabeça em
meu om
bro. Acariciei
-
lhe os cabelos. Esperamos.
Em imaginação, eu podia ver Arnie saindo do edifício principal do
Ginásio de Libertyville, com os livros debaixo do braço. Via Regina
esperando por ele, na camioneta dos Cunningham, radiante de felicidade.
Arnie so
rria remotamente e se submetia ao seu abraço. Arnie, você tomou
a decisão acertada... não sabe o quanto eu e seu pai estamos aliviados, o
quanto ficamos
felizes.
Sim, mamãe. Quer dirigir, querido? Não, dirija você,
mamãe. Está bem.
Eles dois partiriam para
a Penn State, através da neve ligeira, com
Regina dirigindo, Arnie no banco do passageiro, as mãos entrelaçadas
rigidamente sobre o colo, o rosto pálido e sério, livre das espinhas.
Enquanto isso, no pátio de estacionamento dos alunos, no Ginásio
de Liber
tyville, Christine esperava silenciosamente, na entrada para carros.
Esperava que a neve caísse mais intensamente. Esperava o escurecer.
Às três e meia mais ou menos, Leigh atravessou o escritório de
Darnell para usar o banheiro e, enquanto esteve ausente,
engoli em seco
mais duas cápsulas de Darvon. Minha perna era um pesado e firme
tormento.
Pouco depois disso, perdi a noção coerente do tempo. Acho que o
analgésico me entorpeceu. Tudo começou a parecer como um sonho: as
sombras que se adensavam, a clarida
de fria penetrando pelas janelas e
transformando
-
se lentamente para um cinza
-
sujo, o zumbido dos
aquecedores no alto.
Creio que eu e Leigh fizemos amor... não da maneira comum, não
com minha perna daquele jeito, mas por uma espécie de doce substitutivo.
Pa
rece
-
me recordar sua respiração aprofundando
-
se em meu ouvido, até
quase ofegar; parece
-
me recordar seu sussurro para que eu tomasse
cuidado, por favor, fosse cuidadoso, porque já perdera Arnie e não
suportaria perder
-
me também. Parece
-
me recordar uma expl
osão de
prazer, que fez a dor desaparecer brevemente, mas de modo tão total que
nem todo o Darvon do mundo conseguiria fazer... mas, brevemente, é a
palavra certa. Aliás, tudo havia sido muito breve. Então, acho que cochilei.
A coisa seguinte que recordo c
om certeza foi Leigh sacudindo
-
me
para que despertasse e cochichando meu nome insistentemente em meu
ouvido.
—
Hum? O que foi?
Eu me estirara, e a perna fora tomada por uma dor vitrificada,
apenas esperando para explodir. Minhas têmporas doíam, e os olhos
pareciam grandes demais para as órbitas. Pestanejei várias vezes para
Leigh, como uma grande e imbecil coruja.
—
Está escuro
—
disse ela.
—
Acho que ouvi alguma coisa.
Pestanejei de novo e vi que ela parecia tensa, amedrontada. Então,
olhei para a porta
—
e ela estava completamente aberta.
—
Diabo, como foi que...
—
Fui eu que abri
—
disse ela.
—
Bolas!
—
exclamei, estirando
-
me um pouco e piscando vivamente,
com a intensidade da dor na perna.
—
Não foi muito esperto, Leigh. Se ela
tivesse vindo...
—
Não vei
o
—
disse Leigh.
—
Começava a escurecer, aí está, e a
nevar mais forte. Então, saí, abri a porta e voltei para cá. Achei que você
acordaria logo... Ouvi como murmurava e... e fiquei pensando: "Vou
esperar até que fique bem escuro, vou esperar até que fique
bem escuro,"
mas vi que enganava a mim mesma, porque fez quase meia hora que
escureceu e eu apenas imaginava poder ver alguma claridade. Acho que
era porque desejava vê
-
la. Então... ainda agora... penso que ouvi algo.
Seus lábios começaram a tremer e ela
os comprimiu com força.
Olhei para meu relógio, e vi que faltavam quinze para as seis. Se
tudo tivesse corrido bem, meus pais e minha irmã agora estariam em
companhia de Michael e dos pais de Leigh. Pelo pára
-
brisa de Petúnia,
olhei para o quadrado escuro
de neve, onde ficava a porta da garagem.
Podia ouvir o vento zunindo. Uma fina camada de neve já fora soprada
para o cimento do interior.
—
Foi apenas o vento que ouviu
—
falei inquieto.
—
Está andando e
falando lá fora.
—
Pode ser, mas...
Assenti, relutan
te. Não queria que ela abandonasse a segurança da
alta boléia de Petúnia, mas se não fosse naquele momento, talvez nunca
saísse dali. Eu não a deixaria sair e ela se deixaria persuadir. E então,
quando e se Christine viesse, tudo que teria a fazer era dar
marcha à ré e
sair novamente da garagem.
E esperar por ocasião mais oportuna.
—
Está bem
—
falei
—
, mas lembre
-
se... fique recuada, naquele
pequeno nicho à direita da porta. Se Christine aparecer, talvez fique
parada lá fora por um instante.
—
Farejando o
ambiente como um animal,
pensei.
—
Não fique com medo, não se mova. Não a deixe percebê
-
la.
Fique calma e espere, até ela entrar. Então, aperte o botão e afaste
-
se
rapidamente. Você entendeu?
—
Entendi
—
sussurrou ela.
—
Acha que vai dar certo, Dennis?
—
D
ará, se ela chegar a aparecer.
—
Não estarei com você, até tudo terminar.
—
Acho que sim.
Ela se inclinou, pousou levemente a mão esquerda no lado de meu
pescoço e beijou
-
me na boca.
—
Tome cuidado, Dennis
—
pediu
—
, mas mate
-
a! Bem, afinal,
Christine nem
é mulher, mas uma coisa. Mate essa coisa, Dennis!
—
Matarei
—
respondi.
Ela me fitou nos olhos e aquiesceu.
—
Faça isso por Arnie
—
disse.
—
Liberte
-
o.
Acariciei
-
a com intensidade e ela retribuiu. Depois deslizou do
assento. Bateu em sua pequena bolsa de m
ão com o joelho, fazendo
-
a cair
no piso da boléia. Fez uma pausa, a cabeça de lado, uma expressão
pensativa e temerosa nos olhos. Então sorriu, abaixou
-
se, pegou a bolsa e
começou a remexer rapidamente em seu interior.
—
Lembra
-
se de
Morte d'Arthur,
Dennis
?
—
perguntou.
—
Mais ou menos.
Clássicos da Literatura Inglesa, de Fudgy Bowen, era uma das aulas
que eu, Leigh e Arnie havíamos tido juntos, antes de meu acidente no
futebol. Uma das primeiras coisas com que deparamos nas aulas tinha
sido
Morte d'Arthur,
de Malory. Não atinava por que Leigh me fizera a
pergunta, naquele momento.
Ela encontrou o que queria. Era uma fina echarpe de náilon, do tipo
que uma garota usa na cabeça, nos dias em que cai uma garoa.
Leigh a amarrou em torno do braço direito de minha
jaqueta.
—
Ora, o que é isso?
—
perguntei, sorrindo um pouco.
—
Seja meu cavaleiro
—
disse ela, e sorriu também, mas os olhos
estavam sérios.
—
Seja meu cavaleiro, Dennis.
Peguei o rolo do esfregão que ela encontrara no banheiro de Will,
meus olhos passar
am de leve sobre a marca impressa "O
-
Cedar" e fiz um
desajeitado cumprimento com ele.
—
Perfeitamente
—
respondi.
—
Chame
-
me apenas
Sir
O
-
Cedar!
—
Faça piadas com isso, se quiser
—
disse ela
—
, mas não brinque
realmente
a respeito. Certo?
—
Certo
—
falei.
—
Se é o que deseja, serei seu perfeito, maldito e
gentil cavaleiro. Ela riu um pouco e aquilo foi melhor.
—
Lembre
-
se daquele botão, menina. Aperte com força. Não
queremos que aquela porta apenas dê um arroto e pare nos trilhos. Sem
escapatória, ok?
—
Ok.
Ela saiu de Petúnia. Pude fechar os olhos e vê
-
la como era então,
naquele límpido e silencioso momento, pouco antes de tudo dar
terrivelmente errado
—
uma garota alta e bonita, de compridos cabelos
louros, cor de mel puro, ancas esguias, pernas compridas
e aquelas
surpreendentes maçãs do rosto nórdicas, agora usando uma jaqueta de
esquiar e calças
jeans
desbotadas, movendo
-
se com a graciosidade de uma
dançarina. Ainda posso ver o quadro e sonhar com ele porque,
naturalmente, enquanto nos ocupávamos em mont
ar o cenário para
Christine, ela se ocupava em montar o seu para nós
—
aquele velho e
infinitamente astuto monstro. Pensaríamos mesmo que éramos capazes de
superá
-
la em astúcia tão facilmente? Acho que sim.
Meus sonhos acontecem em terrível câmara lenta. P
osso ver o suave,
adorável movimento de seus quadris, enquanto ela caminha; posso ouvir
o som oco de suas botas sobre o cimento manchado de graxa; posso até
perceber o macio, seco
uish
-
uish
do interior acolchoado de sua jaqueta,
roçando contra a blusa. Ela
está caminhando lentamente, de cabeça
erguida
—
agora, ela
é
o animal, mas não predador; caminha com a graça
cautelosa de uma zebra, aproximando
-
se de uma fonte d'água, ao
escurecer. É o andar de um animal que pressente o perigo. Tento gritar
-
lhe,
através
do pára
-
brisa de Petúnia.
Volte, Leigh, volte depressa, você tinha razão,
ouvi alguma coisa, ela está lá fora agora, lá fora na neve, com os faróis apagados,
agachada, volte, Leighl
Ela parou de repente, as mãos enrijecendo
-
se em punhos, e foi então
que s
úbitos e selvagens círculos de luz brotaram para a vida, na escuridão
nevada do exterior. Eram como olhos brancos que se abriam.
Leigh ficou imóvel, hediondamente exposta em terreno aberto.
Estava a uns nove metros da porta, ligeiramente à direita do centr
o.
Virou
-
se na direção dos faróis e pude ver a expressão atordoada e incerta
de seu rosto.
Eu também ficara tão aturdido que aquele primeiro momento vital
passou em branco. A seguir, os faróis saltaram para diante e pude ver o
formato escuro e alongado de
Christine atrás deles; ouvi o crescente,
furioso urro de seu motor, quando ela partiu em nossa direção, cruzando
a rua onde estivera esperando o tempo todo
—
talvez mesmo desde antes
do escurecer. A neve caiu afunilada de seu teto e rodopiou à frente do
pá
ra
-
brisa, em finíssimas redes que eram derretidas quase
instantaneamente pelo descongelador. Ela alcançou o concreto que levava
à entrada, ainda ganhando velocidade. Seu motor era um brado de fúria.
—
Leigh!
—
gritei, e aferrei a ignição de Petúnia.
Leigh d
obrou à direita e correu para o botão na parede. Christine
rugiu para o interior, quando Leigh já alcançava o botão e o apertava.
Ouvi o chocalhar da porta no alto, descendo pelos trilhos.
Christine entrou em ângulo para a direita, buscando Leigh.
Arrancou
uma grande nuvem de madeira seca e lascas da parede. Houve
um rangido metálico, quando parte do pára
-
choque direito se afrouxou
—
um som semelhante à gargalhada alta de um bêbado. Fagulhas
cascatearam pelo piso, quando ela descreveu uma longa curva torcid
a.
Perdera Leigh, mas não a perderia, ao atacar novamente; Leigh estava
encurralada naquele canto do lado direito, sem mais lugar algum onde
esconder
-
se. Poderia correr para fora, porém eu não tinha certeza, mas um
medo terrível de que a porta não descesse
com velocidade suficiente para
cortar o caminho de Christine. Enquanto descia, a porta poderia atingi
-
la
no teto, mas isso não a deteria e eu sabia.
O motor de Petúnia rugiu e apertei o botão dos faróis. Suas luzes
acenderam
-
se, banhando a porta que se fe
chava, e também Leigh, que se
encostara à parede, de olhos arregalados. Sua jaqueta ficou com uma
estranha cor azul, quase elétrica, à luz dos faróis. Minha mente informou,
com nauseante e precisa certeza, que seu sangue pareceria púrpura.
Vi quando ela er
gueu os olhos para cima, durante um momento,
voltando
-
os em seguida para Christine.
Os pneus do Fury chiaram violentamente, quando arremeteu para
Leigh. Subiram volutas de fumaça das novas marcas negras sobre o
concreto. Tive tempo apenas para registrar o
fato de que havia
gente
no
interior de Christine: um punhado de pessoas.
No mesmo instante em que Christine rugiu para ela, Leigh saltou,
com incrível elasticidade. Minha mente, parecendo funcionar à velocidade
aproximada da luz, perguntou
-
se por um instan
te se ela pretendia passar
por cima do Plymouth em um salto, como se calçasse botas de sete léguas,
e não o tipo comum.
Em vez disto, ela alcançou e agarrou os enferrujados suportes de
metal de uma prateleira no alto, quase dois metros e meio acima do solo
,
mais de noventa centímetros acima de sua cabeça. Era uma prateleira que
corria pelas quatro paredes. Na noite em que eu e Arnie havíamos levado
Christine para lá, toda a prateleira estava entulhada de pneus
recauchutados ou carecas, à espera da recauchut
agem
—
de certo modo
divertido, aquilo me recordara as prateleiras bem estocadas de uma
biblioteca. Agora, quase mais nada havia ali. Segurando
-
se naqueles
suportes angulosos, Leigh girou as pernas enfiadas nas calças jeans, como
um garoto que quisesse jog
á
-
las sobre os próprios ombros no que
costumávamos chamar de "pulo do gato", no primário. O nariz de
Christine amassou
-
se contra a parede diretamente abaixo dela. Se Leigh
houvesse sido mais lenta em suspender as pernas, agora as teria
esmagadas, à altura
dos joelhos. Um pedaço de cromado voou pelo ar.
Dois dos pneus remanescentes saltaram da prateleira e ricochetearam
loucamente no cimento, como gigantescos biscoitos de borracha.
A cabeça de Leigh bateu contra a parede, em um golpe de
atordoante força, qua
ndo Christine deu marcha à ré, com
todos os quatro
pneus soltando borracha e expelindo fumaça azul.
É de se perguntar o que fazia eu, durante todo este tempo. Minha
resposta é que não houve "todo esse tempo". Quando usei o esfregão para
afundar a embreagem
de Petúnia e engrenar em primeira, a porta da
entrada acabava de descer, batendo contra o solo. Tudo aconteceu no
espaço de segundos apenas.
Leigh ainda se suspendia nos suportes da prateleira dos pneus, mas
agora apenas pendia de lá, a cabeça baixa e atu
rdida.
Soltei a embreagem, e uma parte isolada de minha mente comandou:
Vá com calma, cara
—
se soltar a embreagem e o motor afogar, ela está morta.
Petúnia começou a rodar. Acelerei o motor até vê
-
lo roncar, e
comprimi a embreagem até o fundo. Christine r
ugiu novamente para
Leigh, o capô ondulado até quase metade, por causa do primeiro ataque, o
metal brilhante surgindo sob a tinta solta, nos pontos mais pronunciados
das curvaturas. Era como se o capô e a grade estivessem providos de
dentes de tubarão.
Ati
ngi Christine a uns três quartos para a parte fronteira e o
Plymouth girou, um dos pneus saltando fora do aro. O 58 bateu contra um
monturo de velhos pára
-
choques e peças de sucata a um canto. Ali houve
um estrondo terrível, quando o carro se chocou contra
a parede, e depois
o som quente de seu motor, diminuindo e acelerando, acelerando e
diminuindo. Toda a parte esquerda dianteira ficara amassada mas ela
continuava funcionando.
Pisei fundo no freio de Petúnia, com o pé direito, e mal consegui
evitar que eu
próprio esmagasse Leigh. O motor de Petúnia engasgou.
Agora, o único som na garagem, era a máquina uivante de Christine.
—
Leigh!
—
gritei, acima do barulho.
—
Corra, Leigh!
Ela ergueu os olhos, estonteada, e então pude ver tranças pegajosas
de sangue em
seu cabelo
—
era tão púrpura como eu imaginara. Ela
largou os suportes, caiu de pé, cambaleou e se dobrou sobre um joelho.
Christine foi em sua procura. Leigh levantou
-
se, deu dois passos
vacilantes e isso a tirou de campo aberto, colocando
-
a atrás de Petú
nia.
Christine deu uma guinada e atingiu a dianteira do caminhão
-
tanque. Fui
atirado brutalmente para a direita. A dor rugiu através de minha perna
esquerda.
—
Suba!
—
gritei para Leigh, tentando esticar
-
me ainda mais e abrir
a porta.
—
Suba!
Christine rec
uou e, quando tornou a arremeter, cortou
pela direita, escapando de meu campo visual, por trás da traseira de
Petúnia. Pude vê
-
la somente de relance, no espelho retrovisor do lado de
fora da janela do motorista. Então, ouvi apenas o chiado de seus pneus.
M
al tendo consciência do que fazia, Leigh simplesmente vagou,
segurando a cabeça com as mãos entrelaçadas na nuca. O sangue escorria
por entre seus dedos. Passou pela frente do radiador de Petúnia e então
parou.
Eu não precisava ver, para adivinhar o que ac
onteceria em seguida.
Christine tornaria a acelerar, voltaria contra o flanco do caminhão e
esmagaria Leigh na parede.
Desesperado, apertei a embreagem com o esfregão e liguei o motor
novamente. Ele pegou, tossiu, engasgou. Senti o cheiro de gasolina no ar
,
intenso e pesado. Eu tinha afogado o motor.
Christine reapareceu no espelho retrovisor. Investia para Leigh, que
recuou aos tropeções, escapando de ser alcançada por pouco. Christine
afocinhou a parede, com força incrível. A porta do passageiro se abriu,
e o
horror foi completo; a mão que não segurava o cabo do esfregão foi até
minha boca e gritei através dela.
Sentado no lado do passageiro, como um grotesco boneco em
tamanho natural, estava Michael Cunningham. Sua cabeça, pendendo
flacidamente do talo do
pescoço, caiu para um lado quando Christine
acelerou, a fim de investir de novo contra Leigh. Então vi que seu rosto
mostrava um corado acentuado, próprio do envenenamento por
monóxido de carbono. Ele não seguira meu conselho. Christine se dirigira
primei
ro à residência dos Cunningham, como eu mais ou menos
suspeitara. Michael voltara da escola para casa, e lá estava ela, parada na
entrada da garagem
—
o restaurado Plymouth 58 de seu filho. Michael
caminhara para o carro e, de alguma forma, Christine o tin
ha... o tinha
apanhado. Teria Michael talvez entrado naquele carro e se sentara ao
volante por um momento, como eu havia feito naquele dia, na garagem de
LeBay? Era possível. Apenas para ver que vibrações conseguiria captar.
Então, devia ter captado alguma
s terríveis vibrações, durante seus últimos
minutos na Terra. Teria Christine ligado o motor sozinha? Rodado para
dentro da garagem? Talvez. Talvez. E, lá, Michael descobrira que era
impossível desligar o maldito motor em aceleração ou sair do carro?
Poder
ia ter virado a cabeça e visto o verdadeiro espírito que movia o Fury
58 de Arnie? Teria, então, se recostado no assento do passageiro e
desmaiado de terror?
Não importava agora. Leigh era mais importante do que tudo.
Ela também o vira. Seus gritos agudos,
desesperados e estridentes,
flutuavam na atmosfera impregnada da fedorenta fumaça do
escapamento, como balões histericamente brilhantes. De qualquer modo,
pelo menos aquilo interrompera seu atordoamento.
Virando
-
se, ela correu para o escritório de Will Da
rnell, o sangue
espalhando
-
se mais atrás, em gotas como moedas, enquanto corria.
Sangue que já encharcava a gola de sua jaqueta
—
demasiado sangue.
Christine recuou, raspando borracha no chão e deixando vidro
espalhado para trás. Quando ela guinou em um ap
ertado círculo para
perseguir Leigh, a força centrífuga tornou a escancarar a porta do
passageiro
—
mas não antes de eu ver a cabeça de Michael dobrar
-
se para
o lado contrário.
Christine ficou quieta por um instante, o nariz apontado em direção
a Leigh, o
motor acelerando. Talvez LeBay saboreasse o momento antes de
matar. Se foi isso, fico satisfeito, porque se Christine tivesse arrancado
imediatamente, teria liquidado Leigh. Do jeito como foi, tive alguns
segundos de tempo. Girei a chave de novo, gaguejand
o algo em voz
alta
—
uma oração, talvez, e então o motor de Petúnia tossiu para a vida.
Afrouxei a embreagem e pisei no acelerador, quando Christine investiu de
novo. Desta vez, atingi seu lado direito. Houve um grito agudo de metal
dilacerado, quando o pá
ra
-
choque de Petúnia colidiu contra seu pára
-
lama. Christine girou sobre si mesma e bateu na parede. Vidro quebrado.
Seu motor acelerou, enfurecido. Ao volante, LeBay se virou para mim,
sorrindo com ódio.
Petúnia afogou de novo.
Desfiei uma série de todos
os palavrões conhecidos, quando torci
novamente a chave na ignição. Se não fosse pela maldita perna, se não
fosse pela queda na neve, aquilo tudo já teria terminado; seria apenas uma
questão de encurralar Christine e fazê
-
la em pedaços, contra os blocos de
concreto das paredes.
Ainda quando eu tentava o motor de Petúnia, mantendo o pé fora
do acelerador para não tornar a afogá
-
la, Christine começou a recuar, com
um ensurdecedor rangido de metais. Deu marcha à ré entre o radiador de
Petúnia e a parede, deixa
ndo para trás um bom e retorcido pedaço de sua
lataria vermelha, despojando o pneu dianteiro da direita.
Consegui ligar Petúnia e encontrei a marcha à ré. Christine havia
recuado até o ponto mais distante da garagem. Todos os seus faróis
estavam apagados.
O pára
-
brisa se avariara em uma galáxia de trincados.
O capô encolhido parecia rosnar.
Seu rádio estava a todo volume. Pude ouvir Ricky Nelson cantando
"Waitin in School".
Olhei em torno, à procura de Leigh, e a vi no escritório de Will,
espiando para a ga
ragem. Seu cabelo louro se misturava ao sangue. Mais
sangue lhe escorria pelo lado esquerdo do rosto, encharcando a jaqueta.
Ela está sangrando demais,
pensei, incoerentemente.
Sangrando demais,
mesmo para um ferimento na cabeça.
De olhos arregalados, ela
apontava para um ponto além de mim, os
lábios se movendo silenciosamente, atrás do vidro.
Christine chegou rugindo em disparada pelo piso vazio, ganhando
velocidade.
E o capô perdia as ondulações, alisava
-
se, para tornar a cobrir a
cavidade do motor. Dois
faróis piscaram, depois firmaram a luz. O pára
-
lama e o lado direito da lataria
—
vi apenas de relance, mas juro que é
verdade
—
eles estavam...
se refazendo,
o metal vermelho surgindo do nada
e deslizando em uniformes curvas automotivas, que cobriam o pne
u
direito dianteiro e o lado direito do compartimento do motor. As
rachaduras no pára
-
brisa corriam em direção oposta e desapareciam. E o
pneu que saíra do aro estava novo em folha.
Tudo parece novo em folha,
pensei.
Que Deus nos ajude!
Ela corria diretame
nte para a parede entre a garagem e o escritório.
Retirei apressadamente o esfregão da embreagem, esperando interpor o
corpo do caminhão
-
tanque, mas Christine passou por mim. Petúnia
recuou para nada mais senão puro ar. Oh, eu estava me saindo muito bem!
R
ecuei todo o espaço que pude e bati nos amassados armários de guardar
ferramentas, alinhados mais atrás. Eles caíram ao chão, com desarmônicos
sons metálicos. Pelo pára
-
brisa, vi Christine bater na parede entre a
garagem e o escritório de Will. Ela nem dim
inuiu a velocidade; arremeteu
com a potência máxima.
Jamais esquecerei os momentos seguintes
—
eles permanecem
hipnoticamente claros em minha memória, como se vistos através de uma
lente. Leigh percebeu a vinda de Christine e recuou aos tropeções. Seu
cabe
lo ensangüentado estava colado à cabeça. Caiu sobre a cadeira
giratória de Will e dali para o chão, ficando fora de vista, atrás da
escrivaninha. Um instante mais tarde
—
e quero dizer uma fração de
segundo
—
Christine se chocou contra a parede. O janelão
que Will usava
para manter sob observação as idas e vindas dentro de sua garagem,
explodiu para o interior. O vidro voou como uma nuvem de lanças
mortíferas. A dianteira de Christine entortou
-
se com o impacto. O capô
subiu e depois se soltou, voando sobre
o teto do carro, para aterrar no
concreto com um som metálico, muito semelhante ao produzido pelos
armários de ferramentas.
Com o pára
-
brisa estilhaçado, o corpo de Michael Cunningham
voou através da enorme abertura, as pernas sacolejando, sua cabeça
parec
endo uma achatada e grotesca bola de futebol. Foi lançado através
da janela de Will, bateu na escrivaninha com um baque surdo de saco
pesado de cereal e deslizou para o chão. Seus sapatos foram projetados à
distância.
Leigh começou a gritar.
Sua queda prov
avelmente a salvara de ser terrivelmente retalhada
ou morta pelos estilhaços de vidro que voavam, mas quando se ergueu de
trás da mesa, tinha o rosto contorcido de horror e fora tomada da mais
pura histeria. Michael havia deslizado sobre a escrivaninha, e
seus braços
tinham caído sobre os ombros dela. Quando Leigh lutou para levantar
-
se,
parecia estar valsando com o cadáver. Seus gritos eram histéricos. O
sangue, ainda fluindo, cintilava com um brilho fatal. Ela empurrou
Michael e correu para a porta.
—
Não
, Leigh
!
—
gritei, enquanto tornava a apertar a embreagem
com o esfregão. O cabo se partiu irremediavelmente em dois, deixando
-
me com um toco de quinze centímetros de comprimento.
—
Ohhhh..
MERDA!
Christine recuou da janela quebrada, deixando água, anticon
gelante
e óleo empoçados no chão.
Pisei na embreagem com o pé esquerdo, agora mal sentindo a dor,
segurando o joelho esquerdo com a mão esquerda, enquanto manejava a
alavanca de mudança.
Leigh escancarou a porta do escritório e correu para fora.
Christine
se virou contra ela, o nariz esmagado e rosnante
mantendo
-
a em mira.
Acelerei o motor de Petúnia e parti rugindo para Christine. Quando
o amaldiçoado carro dos infernos cresceu no pára
-
brisa, vi o rosto
purpúreo e inchado de uma criança, pressionado à jane
la traseira, olhando
para mim, como a pedir
-
me que parasse.
Colidi com força. O capô do caminhão subiu e ficou arreganhado
como uma boca. Sua traseira rabeou, e Christine saiu deslizando de banda,
passando por Leigh, que correu em fuga, os olhos parecendo
engolir seu
rosto. Lembro
-
me do sangue pulverizado ao longo das franjas de pele do
capuz de sua jaqueta em gotículas, como um orvalho maligno.
Eu estava na minha agora. Estava por cima. Mesmo se, terminando
aquele trabalho, me cortassem a perna na virilha,
ia dirigir Petúnia.
Christine bateu na parede e ricocheteou de volta. Pisei na
embreagem, manobrei a mudança para marcha a ré, recuei uns três metros,
pisei de novo na embreagem, e fiz a mudança para primeira. Christine
acelerou o motor e tentou esgueirar
-
se ao longo da parede. Cortei para a
esquerda e atingi
-
a novamente, achatando
-
lhe o meio, como se fosse uma
vespa. As portas saltaram das molduras, em cima e embaixo. LeBay estava
ao volante, agora uma caveira, então um apodrecido e fedorento camafeu
huma
no, depois um homem, saudável e vigoroso na casa dos cinqüenta,
com cabelos que embranqueciam, cortados rente. Olhou para mim com
seu sorriso demoníaco, uma das mãos no volante, a outra em um punho
crispado, que sacudiu em minha direção.
Mesmo assim, o mot
or de Christine não morria.
Dei marcha à ré de novo. Agora, minha perna estava como ferro em
brasa e a dor subia todo o trajeto até a axila esquerda. Era um inferno. A
dor estava em
toda parte.
Eu podia senti
-
la
(Meu Deus, Michael, por que não ficou em cas
a)
no pescoço, nos
maxilares, nas
(Arnie? Cara, sinto tanto, por desejar o que desejo)
têmporas. O Plymouth
—
o que sobrara dele
—
dava bêbadas
estocadas mais abaixo, no lado da garagem, espalhando ferramentas e
sucata, arrancando suportes e derrubando as
prateleiras suspensas. As
prateleiras batiam no concreto, em pancadas que pareciam bofetadas, sons
que ecoavam como aplausos do demônio.
Tornei a calcar a embreagem e pisei no acelerador. O motor de
Petúnia trovejou e eu me firmei no volante, como um homem
tentando
permanecer montado em um mustangue selvagem. Atingi Christine no
lado direito, e esmaguei toda a lataria perto do eixo traseiro, empurrando
-
a contra a porta, que estremeceu e sacolejou. Debrucei
-
me sobre o volante,
que me batia no estômago, me co
rtava a respiração e me jogava contra o
assento, ofegante.
Agora eu via Leigh, encolhida no canto mais distante, as mãos
apertando o rosto, puxando
-
o para baixo, transformando
-
o em uma
máscara de feiticeira.
O motor de Christine ainda funcionava.
Ela raste
jou lentamente para Leigh, como um animal cujas patas
traseiras foram fraturadas em uma armadilha. E, enquanto rodava, pude
ver sua regeneração, a maneira como revivia: um pneu que se inflava
repentinamente, redondo e cheio, a antena de rádio que se rearti
culava
com um prateado tuingggg, o metal que se formava em torno da traseira
arruinada.
—
Morra!
—
gritei para o carro.
Eu berrava, meu peito doía. A perna não funcionava mais. Abracei
-
a
com as duas mãos e a
empurrei
contra a embreagem. Minha visão ficou
d
esfocada e cinzenta, com aquela agonia de metal incandescente. Eu quase
podia sentir os ossos esfacelando
-
se.
Acelerei, mudei para primeira novamente e investi. Enquanto fazia
isto, ouvi a voz de LeBay, pela primeira e única vez, aguda e frustrada,
impregn
ada de uma terrível, interminável fúria.
—
Seu BOSTA! Foda
-
se, seu miserável BOSTA! DEIXE
-
ME EM PAZ!
—
Você devia ter deixado meu amigo em paz
—
tentei gritar, mas
tudo que saiu foi um ofegar ferido, dilacerado.
Atingi Christine em cheio, na traseira. O ta
nque de gasolina se
rompeu, quando a traseira do carro se encolheu para dentro e para cima,
em uma espécie de cogumelo metálico. Houve uma lambida amarela de
fogo. Protegi o rosto com as mãos
—
mas então desapareceu. Christine
ficou ali, um refugiado de um
a pista de corridas destruída. Seu motor
funcionava entrecortadamente, falhava, pegava de novo
—
e então
morreu.
O lugar ficou silencioso, exceto pelo ronco grave do motor de
Petúnia.
Depois, Leigh corria pelo piso, gritando e gritando meu nome,
gritando e
chorando. De repente, fiquei estupidamente cônscio de que
usava sua echarpe rosa em torno de minha manga.
Baixei os olhos para ela, e então o mundo ficou cinzento de novo.
Pude sentir suas mãos em mim, mas depois nada além da escuridão,
quando perdi os se
ntidos.
Voltei a mim uns quinze minutos mais tarde, com o rosto molhado e
misericordiosamente fresco. Leigh estava em pé no estribo de Petúnia, o
estribo do motorista, passando em meu rosto um trapo molhado. Agarrei
-
o em uma das mãos, tentei chupá
-
lo e de
pois cuspi. O trapo tinha um
sabor intenso de óleo.
—
Não se preocupe, Dennis
—
disse ela.
—
Corri para a rua... parei
um removedor de neve... assustei o homem como o diabo, pelo que
parece... com todo esse sangue... ele disse... uma ambulância,., ele diss
e
que ia providenciar... Dennis, você está bem?
—
Pareço
bem?
—
sussurrei.
—
Não
—
disse ela, e prorrompeu em lágrimas.
—
Então, não
—
engoli em seco, havia um doloroso bloco seco na
garganta
—
, não faça perguntas bobas. Eu amo você.
Ela me afagou desajeit
adamente.
—
Ele disse que também ia chamar a polícia.
Eu mal a ouvi. Meus olhos tinham encontrado a torcida e silenciosa
sucata
—
o que sobrara de Christine. Sucata era a palavra correta; ela mal
parecia um carro. Entretanto, por que não se queimara? Uma c
alota jazia
caída a um lado, como uma ficha de prata amassada.
—
Há quanto tempo você parou o limpa
-
neve?
—
perguntei, em voz
rouca.
—
Talvez há uns cinco minutos. Depois peguei o pedaço de pano e o
molhei naquele balde lá. Dennis... graças a Deus terminou
!
Punk! Punk! Punk!
Eu continuava olhando para a calota. As
amassaduras começavam a desfazer
-
se.
De repente, ela se ergueu sobre a borda e rolou para o carro, como
uma moeda. Leigh também viu aquilo. Seu rosto ficou tenso. Os olhos
arregalaram
-
se, começara
m a esbugalhar
-
se. Seus lábios formaram a
palavra
Não,
mas não emitiram som algum.
—
Entre aqui comigo
—
falei, em voz baixa, como se aquela coisa
pudesse ouvir
-
nos. Quem sabe? Talvez ouvisse mesmo.
—
Entre no lado
do passageiro. Você vai pisar o acelerado
r, enquanto eu piso a embreagem
com o pé direito.
—
Não...
—
Desta vez, era um sussurro sibilante. Sua respiração saiu
assobiando, em pequenos arquejos.
—
Não... não...
Os destroços do carro estremeciam de alto a baixo. Era a coisa mais
terrível, mais fant
asmagórica que eu já vira, em toda a minha vida.
Estremeciam inteiramente, estremeciam como um animal que ainda não...
está inteiramente... morto. Metal batia nervosamente contra metal.
Conexões de peças crepitavam ritmos de jazz contra suas ligaduras.
Enq
uanto eu espiava, um contrapino torto que jazia no chão ficou reto e
executou meia dúzia de cabriolas, indo aterrar nos destroços.
—
Entre
—
falei.
—
Não posso, Dennis.
—
Seus lábios tremeram
descontroladamente.
—
Não posso... mais... aquele corpo... era o
pai de
Arnie. Não posso, não agüento mais, por favor...
—
Você tem que entrar
—
insisti.
Ela me fitou, depois olhou temerosa para os obscenamente trêmulos
restos daquela velha prostituta que LeBay e Arnie haviam partilhado.
Então, deu a volta pela diantei
ra de Petúnia. Uma peça de cromado se
deslocou e arranhou
-
lhe profundamente a perna. Leigh gritou e correu.
Subiu rapidamente para a boléia e apertou
-
se contra mim.
—
O q
-
que tenho que fazer?
Fiquei meio pendurado para fora da boléia, seguro ao teto, e
emp
urrei a embreagem com o pé direito. O motor de Petúnia ainda
funcionava.
—
Pise no acelerador e mantenha o pé aí
—
falei.
—
Não importa o
que acontecer. Movendo o volante com a direita e segurando
-
me com a
mão esquerda, manobrei a embreagem e rodamos para
diante.
Esmagamos e tornamos a esmagar a sucata, desintegrando
-
a. Em minha
cabeça, eu tinha a impressão de ouvir outro grito de fúria. Leigh agarrou a
cabeça com as mãos.
—
Não posso, Dennis! Não posso fazer isso! Essa... essa coisa...
está
gritando!
—
Tem
que fazer
—
falei. Ela retirara o pé do acelerador e agora eu
ouvia sirenes cortando a noite, aumentando e diminuindo. Agarrei
-
a pelo
ombro e uma explosão de dor me subiu pela perna.
—
Nada mudou,
Leigh. Você tem que fazer!
—
Aquilo
gritou
para mim!
—
Nos
so tempo está se esgotando e ainda não terminamos. Só mais
um pouquinho!
—
Tentarei
—
sussurrou ela, tornando a apertar o pedal.
Engatei a mudança para marcha à ré. Petúnia recuou uns seis metros.
Embreei de novo, passei para primeira... e Leigh gritou, de
repente:
—
Não, Dennis! Não! Olhe!
A mãe e a menininha, Verônica e Rita, estavam em pé diante da
sucata amassada e destroçada de Christine, de mãos dadas, os rostos
solenes e angustiados.
—
Elas não estão lá
—
falei.
—
E, se estiverem, é tempo de voltarem
para...
—
Mais dor em minha perna e o mundo ficou cinzento....
—
voltarem para o lugar a que pertencem. Fique com o pé no pedal!
Soltei a embreagem, e Petúnia tornou a rodar para diante, ganhando
velocidade. As duas figuras não desapareceram, como fazem o
s fantasmas
nos filmes de TV; pareceram gritar para todos os lados, cores brilhantes
que se desbotavam para esmaecidos rosas e azuis... e então desapareceram
por completo.
Batemos novamente contra Christine, espalhando para longe o que
sobrara dela. O meta
l rangeu e se dilacerou.
—
Não estão lá
—
sussurrou Leigh.
—
Não estão realmente lá. Está
bem. Está bem, Dennis. Sua voz vinha de muito longe, percorrendo um
sombrio corredor. Passei para marcha à ré e
fomos para trás. Depois para a frente. Esmagamos os me
tais;
tornamos a esmagá
-
los. Quantas vezes? Não sei. Batíamos violenta e
estrondosamente no que restava de Christine e, a cada vez que o fazíamos,
outra onda de dor me subia pela perna e as coisas ficavam um pouco mais
escuras.
Por fim, ergui os olhos turv
os e vi que o ar, fora da porta, parecia
cheio de sangue. Só que não era sangue, mas uma luz vermelha pulsante,
refletindo
-
se na neve que caía. Pessoas batiam na porta, lá fora.
—
Acha que chega?
—
perguntou Leigh.
Olhei para Christine
—
apenas, aquilo dei
xara de ser Christine. Era
um monte disperso de metal partido e torcido, pedaços de recheio do
estofamento e cintilante vidro quebrado.
—
Tem que chegar
—
falei.
—
Deixe
-
os entrar, Leigh. E, enquanto
ela se foi, tornei a perder os sentidos.
Depois, houve
uma série de imagens confusas; coisas que entravam
em foco por um instante, para então se esfumarem ou desaparecerem de
todo. Posso me lembrar de uma padiola, sendo rodada para fora da
traseira de uma ambulância. Posso recordar suas alças laterais sendo
er
guidas e como as luzes fluorescentes do teto arrancaram frios reflexos
de seu cromado; posso recordar alguém dizendo:
—
Corte isso, tem que cortar, para ao menos darmos uma
espiada
nisso! Também recordo mais alguém
—
creio que Leigh
—
dizendo:
—
Não o mach
uquem, por favor, se for possível, não o machuquem!
Recordo ainda o teto de uma ambulância... tinha que ser uma
ambulância, porque havia dois recipientes de intravenosos, suspensos na
periferia de minha visão. Recordo a fria fricção de anti
-
séptico e, em
s
eguida, a picada de uma agulha.
Depois disso, as coisas se tornaram extremamente estranhas. Em
algum ponto, bem dentro de mim, eu sabia que não estava sonhando se
nada mais o provava, a dor pelo menos fazia isso
—
mas tudo aquilo
parecia
um sonho. Eu estav
a bastante dopado e isso era parte da situação...
mas o choque também fazia parte. Não é brincadeira. Minha mãe estava lá,
chorando, em um quarto desgostosamente semelhante àquele quarto de
hospital onde eu passara todo o outono. Então, meu pai estava lá,
e o pai
de Leigh estava com ele, os dois parecendo possuir um e o mesmo rosto,
ambos tão tensos e severos, que bem poderiam ter sido personagens de
Franz Kafka. Papai se inclinava sobre mim e perguntava, em uma voz de
trovão, reverberando através de camada
s de algodão:
—
Como é que Michael foi parar lá, Dennis?
Era o que eles realmente queriam saber: como Michael tinha ido
parar lá.
Oh,
pensei,
oh, meus amigos, eu poderia contar
-
lhes cada história...
Então, o Sr. Cabot perguntava:
—
Em que foi que meteu min
ha filha, rapaz?
—
E eu recordo ter
respondido:
—
Não é bem em que foi que eu a meti, mas de que foi que ela o
tirou.
Até hoje, ainda acho que foi uma resposta bastante inteligente,
consideradas as circunstâncias e dopado como me encontrava. Elaine
aparece
u lá, brevemente, e tenho a impressão de que segurava,
zombeteiramente fora de meu alcance, uma barra de chocolate ou coisa
assim. Também vi Leigh, oferecendo sua fina echarpe de náilon e pedindo
que eu levantasse o braço, a fim de que ela a amarrasse. Só
que eu não
podia, meu braço era um pedaço de chumbo.
Arnie também estava lá mas, claro,
tinha
que ser um sonho.
Obrigado, cara,
ele disse e, horrorizado, percebi que a lente esquerda
de seus óculos estava estilhaçada. O rosto me parecia legal, mas aquela
l
ente estilhaçada... aquilo me assustou.
Obrigado. Você fez bem. Sinto
-
me
melhor agora. Daqui em diante, acho que tudo vai ficar legal.
Não enche, Arnie,
falei
—
ou tentei falar
—
mas ele tinha sumido.
Foi no dia seguinte
—
não o dia vinte, mas no domingo,
vinte e um
de janeiro
—
que comecei a recuperar
-
me um pouco. Minha perna
esquerda estava de novo no gesso, em sua velha e familiar posição, entre
todas aquelas roldanas e pesos. À esquerda de minha cama, havia um
homem que eu nunca vira antes, lendo um liv
ro de bolso com uma
história de John D. MacDonald. Ao me ver olhando para ele, baixou o
livro.
—
Bem
-
vindo à terra dos vivos, Dennis
—
disse brandamente.
Em gestos deliberados, marcou com uma caixa de fósforos de
papelão a folha onde interrompera a leitura
, deixou o livro sobre o colo e
dobrou as mãos em cima dele.
—
Você é médico?
—
perguntei.
Evidentemente, não era o Dr. Arroway, o médico que cuidara de
mim da última vez; ele seria uns vinte anos mais novo e teria, no mínimo,
uns oito quilos a menos. Pare
cia um sujeito duro.
—
Inspetor da Polícia Estadual
—
disse ele.
—
Meu nome é Richard
Mercer. Rick, se preferir. Estendeu a mão e, estirando a minha, desajeitada
e cautelosamente, eu a toquei. A verdade é que não poderia apertá
-
la.
Minha cabeça doía e me s
entia sedento.
—
Escute
—
falei.
—
Não me incomodo nem um pouco de falar com
você e responderei a todas as suas perguntas, mas gostaria de ver um
médico.
—
Engoli em seco, ele me fitou com preocupação, e então
soltei:
—
Preciso saber se vou tornar a andar
de novo.
—
Se for verdade o que disse aquele Dr. Arroway
—
falou Mercer
—
você estará em forma dentro de quatro a seis semanas. Não tornou a
fraturar a perna, Dennis. Apenas a distendeu seriamente, foi o que ele
disse. Sua perna inchou como uma salsicha, r
apaz. Ele também disse que
teve muita sorte, em sair desta com tão pouco.
—
E quanto a Arnie?
—
perguntei.
—
Arnie Cunningham? Sabe se...
Os olhos dele cintilaram, vacilantes.
—
O que foi?
—
perguntei.
—
O que houve com Arnie?
—
Escute, Dennis
—
ele disse,
depois hesitou.
—
Não sei se é este o
momento.
—
Por favor,
Arnie está... morto? Mercer suspirou.
—
Sim, está morto. Ele e a mãe sofreram um acidente na auto
-
estrada Pensilvânia, devido à neve. Se é que
foi
um acidente.
Tentei falar, e não pude. Fiz um mo
vimento para o jarro de água na
mesa de cabeceira, pensando o quanto era melancólico estar em um
quarto de hospital e saber exatamente onde tudo se encontrava. Mercer
me encheu um copo e colocou nele o canudinho dobrado. Bebi, e me senti
um pouquinho melho
r. Melhor na garganta, quero dizer. Nada mais
parecia melhor, de maneira nenhuma.
—
O que quis dizer com
se
foi um acidente?
—
Bem
—
disse Mercer
—
, era a noite de sexta
-
feira e a neve não
estava tão forte assim. A classificação da estrada foi a dois: dese
rta e
molhada, visibilidade reduzida, dirija com cautela. A julgar pela força do
impacto, supomos que eles não iam a mais de setenta. O carro deu uma
guinada através da linha divisória da estrada e bateu em um caminhão.
Era a camioneta Volvo da Sra. Cunnin
gham. Explodiu.
Fechei os olhos.
—
Regina... ?
—
Também morta no local. Se vale alguma coisa, eles
provavelmente não...
—
... sofreram
—
completei.
—
Tolice. Eles sofreram demais.
—
As
lágrimas me ameaçavam, mas consegui sufocá
-
las. Mercer nada disse.
—
Tod
os os três
—
murmurei.
—
Oh, Deus, todos os três!
—
O motorista do caminhão fraturou um braço. Foi o pior para ele,
no acidente. Disse que havia três pessoas no carro, Dennis.
—
Três?
—
Exatamente. E ele disse que pareciam lutar.
—
Mercer me
encarou.
—
Est
amos seguindo a teoria de que recolheram um carona de
maus instintos, que fugiu depois do acidente e antes da chegada da Polícia
Rodoviária.
Era uma hipótese ridícula, para quem conhecesse Regina
Cunningham. Ela seria mais capaz de usar calças compridas em
um chá
da universidade do que dar carona a um desconhecido. Na mente de
Regina Cunningham, estava firmemente impresso aquilo que se pode ou
não fazer. Como que em cimento, poder
-
se
-
ia dizer.
Havia sido LeBay. A questão é que ele não podia estar em dois
lu
gares ao mesmo tempo. Por fim, ao ver que rumo tomavam as coisas na
Garagem de Darnell, ele abandonara Christine e tentara voltar para Arnie.
O que aconteceu depois, fica no terreno das suposições. Entretanto,
concluí no momento
—
e ainda penso o mesmo
—
q
ue Arnie lutou com
ele... e venceu uma jogada, pelo menos.
—
Morto
—
falei, e agora as lágrimas vieram.
Eu estava demasiado fraco e deprimido para contê
-
las. Afinal, fora
impotente para impedir que ele morresse. Para impedir daquela última
vez, quando real
mente importava. Outros, talvez, poderiam morrer, mas
não Arnie.
—
Conte
-
me o que aconteceu
—
disse Mercer. Deixou seu livro na
mesa de cabeceira e inclinou
-
se para diante.
—
Conte
-
me tudo o que sabe,
Dennis, do começo ao fim.
—
O que foi que Leigh disse?
—
perguntei.
—
E como está ela?
—
Passou aqui a noite de sexta
-
feira, sob observação
—
informou
Mercer.
—
Teve uma concussão e um corte no couro cabeludo, que
precisou de doze pontos. Não houve marcas no rosto. Uma sorte. É uma
garota muito bonita.
—
Ela é
mais do que isso
—
falei.
—
É linda.
—
Não quis dizer nada
—
comentou Mercer, e um sorriso relutante,
creio que de admiração, repuxou seu rosto para a esquerda.
—
Nem para
mim e nem para seu pai. Ele está, poderíamos dizer assim, de saco cheio
com tudo is
so. Ela disse que você decidirá o que falar e quando.
—
Ele me
fitou pensativo.
—
Porque, segundo ela, foi você que acabou com isso.
—
Não fiz nada tão importante
—
murmurei.
Eu ainda tentava admitir a idéia de que Arnie possivelmente
estivesse morto. Era
impossível, não? Quando tínhamos doze anos,
havíamos ido juntos para o Acampamento Winnesko, em Vermont. Então,
fiquei com saudades de casa e disse a ele que ia telefonar, pedir a meus
pais que fossem lá me buscar. Arnie respondeu que se eu fizesse isso
co
ntaria para todo mundo na escola que eu voltara cedo para casa porque
eles me tinham apanhado comendo meleca em meu beliche, depois das
luzes apagadas, e me expulsado do acampamento. Nós dois tínhamos
subido na árvore do meu quintal, até o último galho, e
nele gravamos
nossas iniciais. Ele costumava dormir na minha casa e ficávamos
acordados até tarde, vendo
Filme de Terror,
encolhidos no sofá, debaixo de
um velho edredom. Tínhamos comido juntos todos aqueles sanduíches
clandestinos com Pão Maravilha. Aos q
uatorze anos, Arnie me procurara,
assustado e envergonhado, porque estava tendo aqueles sonhos sexuais e
pensava que eles o faziam molhar a cama. No entanto, eram as fazendas
de formigas que minha mente continuava repisando. Como ele poderia
estar morto, s
e havíamos feito aquelas fazendas de formigas? Santo Deus,
aquelas fazendas de formigas pareciam ter acontecido apenas uma ou
duas semanas antes! Então, como é que ele podia estar morto? Abri a boca
para dizer a Mercer que era impossível Arnie ter morrido
—
aquelas
fazendas de formigas tornavam absurda a própria idéia. Então, tornei a
fechá
-
la. Não podia contar
-
lhe aquilo. Ele era apenas um cara qualquer.
Arnie,
pensei.
Ei, cara
—
não é verdade, certo? Meu Deus do céu, nós
ainda temos muita coisa para fazer
. Ainda nem mesmo fomos juntos ao drive
-
in,
levando nossas garotas!
—
O que aconteceu?
—
tornou a perguntar Mercer.
—
Conte
-
me,
Dennis.
—
Você não ia acreditar
—
respondi, em voz empastada.
—
Talvez se surpreenda com o que eu acreditaria
—
disse ele.
—
E
t
ambém você pode ficar surpreso, com o que sabemos. Um sujeito
chamado Junkins era o investigador principal deste caso. Foi morto não
muito longe daqui. Era meu amigo. Um bom amigo. Uma semana antes
de morrer, contou
-
me acreditar que, em Libertyville, estav
a acontecendo
algo em que ninguém acreditaria. Então, foi morto. Isto torna o assunto
uma questão pessoal para mim.
Mudei cautelosamente de posição.
—
Ele não lhe contou mais nada?
—
Junkins me disse que julgava ter descoberto um antigo
assassino
—
prosseg
uiu Mercer, sem tirar os olhos dos meus.
—
Entretanto, segundo ele, isso não fazia muita diferença, porque o
criminoso estava morto.
—
LeBay
—
murmurei.
Pensei que, se Junkins descobrira isso, não era de espantar que
Christine o tivesse matado. Porque, se
Junkins chegara até aí, estivera bem
perto de toda a verdade.
—
LeBay foi o nome que ele mencionou
—
disse Mercer. Inclinou
-
se
um pouco mais para mim.
—
E vou lhe dizer uma coisa, Dennis: Junkins
era um motorista dos diabos. Quando mais jovem, antes do cas
amento,
costumava correr com
stocker
*
em Philly Plains, e obteve algumas vitórias.
Ele saiu da estrada fazendo uns cento e noventa, em um carro
-
patrulha
Dodge, de motor ajustado. Quem quer que o estivesse perseguindo... e nós
sabemos quem era... tinha de
ser um demônio no volante.
—
Sim
—
falei.
—
Ele era.
—
Vim aqui por minha conta. Levei duas horas esperando que você
acordasse. À noite passada, fiquei aqui até me chutarem para fora. Não há
nenhum taquígrafo comigo, não tenho um gravador e lhe garanto que
não
estou usando um microfone. Quando tiver que prestar depoimento, se
chegar a isso, a jogada será diferente. Agora, no entanto, somos apenas
nós, eu e você. Preciso saber, Dennis. Porque costumo visitar a esposa de
Junkins e seus filhos de vez em quando
. Sacou?
Refleti naquilo. Refleti durante um longo tempo
—
quase cinco
minutos. Ele ficou sentado e quieto, esperando que me decidisse. Assenti
finalmente.
—
Está bem, mas repito que não vai acreditar.
—
Isso ainda veremos
—
disse ele.
Abri a boca, ainda s
em idéia de como começar.
—
Ele era um perdedor, compreenda. Todo ginásio tem dois, pelo
menos, é como uma lei nacional. Sacos de pancadas de todos. Só que às
vezes... às vezes eles encontram algo a que agarrar
-
se e sobrevivem. Arnie
tinha a mim. Depois te
ve Christine.
Olhei para ele e, se tivesse visto o menor brilho indevido naqueles
olhos cinzentos, tão perturbados como os de Arnie... bem, se eu tivesse
visto isso, creio que fecharia a boca ali mesmo. Diria a ele que registrasse
*
Carro antigo, com o motor original recuperado com peças de outro
s carros, usado em
provas de velocidade, onde são permitidas colisões (N.T.)
em seus livros o que lhe
parecesse mais plausível, e dissesse aos filhos de
Junkins o que, diabo, lhe parecesse mais agradável.
No entanto, ele apenas assentiu, fitando
-
me atentamente.
—
Eu só queria que compreendesse isso
—
falei, e então senti um nó
na garganta, que me impediu d
e dizer o que talvez devesse ter dito em
seguida:
Leigh Cabot apareceu mais tarde.
Bebi mais um pouco d'água e engoli com força. Falei durante as
duas horas seguintes.
Finalmente, terminei. Não houve nenhum grande clímax; eu estava
simplesmente seco, com
a garganta dolorida por falar tanto. Não
perguntei se ele acreditava em mim. Não perguntei se ia trancar
-
me em
um asilo de loucos ou dar
-
me uma medalha de mentiroso. Sei que
acreditou em boa parte de tudo, pois o que eu sabia se ligava
perfeitamente ao que
era do seu conhecimento. Ignoro o que pensou do
restante
—
Christine e LeBay, o passado estendendo as mãos para o
presente. Como ignoro até hoje.
Uma pequena pausa de silêncio surgiu entre nós. Por fim, ele bateu
com as mãos nas coxas, fazendo um som vivo
, e levantou
-
se.
—
Bem!
—
exclamou.
—
Imagino que seus pais estejam esperando
para visitá
-
lo.
—
Sim, é provável.
Ele pegou sua carteira e tirou um pequeno cartão comercial, com seu
nome e número de telefone.
—
Em geral, posso ser encontrado aqui. Caso cont
rário, alguém me
dará o recado. Quando estiver com Leigh Cabot novamente, poderia
dizer
-
lhe o que me contou e pedir a ela que entre em contato comigo?
—
Está bem, se é o que deseja. Direi a ela.
—
Ela confirmará sua história?
—
Sim.
Ele me olhou fixamente.
—
Vou lhe dizer uma coisa, Dennis
—
falou.
—
Se está mentindo,
não sabe que mente.
Saiu do quarto. Só tornei a vê
-
lo mais uma vez, e foi durante o triplo
funeral de Arnie e seus pais. Os jornais publicaram um trágico e bizarro
conto de fadas; o pai morto
em um acidente de carro, na entrada da
garagem de sua casa, enquanto a mãe e o filho são mortos na auto
-
estrada
Pensilvânia. Paul Harvey o usou em seu programa.
Não houve qualquer menção à presença de Christine na Garagem de
Darnell.
Minha família foi vis
itar
-
me aquela noite e, a essa altura, eu já me
sentia muito melhor mentalmente
—
em parte por haver desabafado com
Mercer, imagino (ele foi o que um de meus professores de psicologia na
universidade chamou de "um estranho interessado", o tipo de pessoa co
m
quem temos facilidade de falar), porém, principalmente devido a uma
visita
-
relâmpago do Dr. Arroway, no final da tarde. Ele estava furioso e
irritado comigo. Sugeriu que, da próxima vez, enfiasse a maldita perna em
uma serra elétrica, o que nos pouparia
um bocado de tempo e
preocupações... mas também me informou (acho que com má vontade)
que não houvera nenhuma lesão permanente. Era a sua opinião. Avisou
que eu não havia melhorado minhas chances de, um dia, participar da
Maratona de Boston, e saiu.
Portan
to, foi alegre a visita da família
—
devido principalmente a
Ellie, que tagarelou sem cessar sobre aquele iminente cataclismo, seu
Primeiro Encontro. Um cabeça
-
dura, careta e com espinhas, chamado
Brandon Hurling, a convidara para patinarem juntos. Papai o
s levaria de
carro. Muito atraente.
Papai e mamãe se juntaram à conversa, mas ela ficava enviando
ansiosos olhares de "não
-
se
-
es
queça" para o velho. Ele ainda permaneceu
um pouco no quarto, depois que ela saiu com Elaine.
—
O que aconteceu?
—
perguntou.
—
Leigh contou ao pai uma
história maluca, sobre carros que se dirigem sozinhos, garotinhas que já
morreram e não sei mais o quê. Ele ficou fora de si.
Assenti. Estava cansado, mas não queria que Leigh passasse maus
bocados com os pais
—
ou que os deixasse
pensando que a filha mentia ou
ficara biruta. Se ela me protegera com Mercer, eu teria de protegê
-
la com
seus pais.
—
Está certo
—
falei.
—
É uma história e tanto. Pode mandar mamãe
e Ellie tomarem um malte ou qualquer coisa? Bem, acho que seria melhor
sug
erir que as duas fossem a um cinema.
—
É tão comprida assim?
—
Hum
-
hum. Tão comprida assim
Ele olhou para mim, com ar preocupado.
—
Está bem
—
disse.
Pouco depois, eu contava minha história uma segunda vez. Agora a
estou contando pela terceira. E, segundo
dizem, a terceira vez é a
definitiva. Descanse em paz, Arnie. Amo você, cara.
E
PÍLOGO
Se esta fosse uma história de ficção, suponho que a terminaria
contando como o cavaleiro de perna quebrada da Garagem de Darnell
cortejou e conquistou a dama loura... a
quela do cachecol rosa de náilon e
de arrogantes malares nórdicos. Entretanto, isso jamais aconteceu. Leigh
Cabot agora é Leigh Ackerman; mora em Taos, no Novo México, e está
casada com um representante das máquinas IBM. Vende produtos de
beleza, em suas h
oras de folga. Tem duas garotinhas, gêmeas idênticas,
motivo por que talvez não tenha muitas horas de folga. Continuo
mantendo contato com ela, pois minha afeição pela dama nunca chegou a
terminar. Trocamos cartões de Natal e também lhe envio um cartão de
aniversário, já que ela tampouco esquece o meu. Coisas assim. Em certas
ocasiões, parece que tudo aconteceu há mais tempo do que somente
quatro anos.
—
O que houve conosco? Sinceramente, não sei. Saímos juntos
durante dois anos, dormimos juntos (extremamen
te satisfatório), fomos
juntos para a mesma universidade (Drew) e nos tornamos amigos. Seu pai
se calou sobre nossa louca história, depois que o meu conversou com ele,
embora depois disso sempre me considerasse uma pessoa um tanto ou
quanto estranha. Creio
que ele e a Sra. Cabot ficaram aliviados quando eu
e Leigh tomamos caminhos diferentes.
Pude sentir isso quando começamos a afastar
-
nos, e me doeu
—
doeu um bocado. Eu ansiava por ela, da maneira como continuamos a
ansiar por alguma substância da qual não
mais sentimos nenhuma
dependência física... balas, fumo, Coca
-
Cola. Fiquei com dor
-
de
-
cotovelo
por ela, mas penso que de forma consciente, algo que desapareceu com
rapidez quase indecorosa.
Talvez eu entenda o que aconteceu. O sucedido naquela noite, na
G
aragem de Darnell, era um segredo nosso e, naturalmente, apaixonados
precisam ter seus segredos... mas aquele não era dos melhores. Foi algo
frio e antinatural, algo que beirava a loucura, e pior ainda do que loucura,
já que chegava à borda da sepultura. H
ouve noites, após o amor, em que
ficávamos juntos na cama, nus, corpo contra corpo, e aquela coisa estava
entre nós: o rosto de Roland D. LeBay. Eu lhe beijava a boca, os seios ou o
ventre, cálido pela crescente paixão, mas de súbito ouvia a voz dele:
Esse
é
o melhor cheiro do mundo... exceto o de cona.
E eu gelava, minha paixão se
tornava fumaça e cinzas.
Sabe Deus que houve vezes em que eu podia também ver isso no
rosto dela. Os amantes nem sempre vivem felizes para sempre, mesmo
quando agiram da maneira
que parecia correta e da melhor forma que
puderam. Aí está algo mais que levamos quatro anos para aprender.
Então, nos afastamos. Um segredo precisa de dois rostos onde
ricochetear; um segredo precisa ver
-
se refletido em outro par de olhos. E,
embora eu a
amasse, todos os beijos, todas as carícias, todos os passeios de
braços dados, através das folhas que caíam em outubro... nada disso
poderia comparar
-
se ao fantástico simples ato de ela atar sua echarpe em
torno de meu braço.
Leigh deixou a universidade pa
ra casar
—
e então foi adeus, Drew e
olá, Taos. Assisti a seu casamento, sem qualquer peso na consciência. Um
grande sujeito. Tinha uma Honda Civic. Nenhum problema com ele.
Nem mesmo precisei me preocupar quanto a jogar futebol. Drew
nem ao menos tem uma
equipe. Em vez disto, a cada semestre matriculei
-
me em uma matéria extra e freqüentei o curso de verão por dois anos,
época em que estaria suando ao sol de agosto, dando em cima dos
adversários, se as coisas houvessem acontecido de modo diverso. Como
resu
ltado, graduei
-
me mais cedo
—
de fato, três semestres mais cedo.
Quem me vê na rua, não nota o menor defeito, mas se caminhar
comigo por uns sete ou oito quilômetros (na verdade, faço quatro
quilômetros diários; isso de fisioterapia é algo que vicia), perc
eberá que
começo a puxar ligeiramente para a direita.
Minha perna dói em dias chuvosos. E também em noites nevadas.
Em certas ocasiões, quando tenho pesadelos
—
agora não são mais
tão constantes
—
, desperto suando e agarrado àquela perna, onde ainda
existe
uma saliência dura de carne, acima do joelho. Felizmente, todas as
minhas inquietações sobre cadeiras de roda, aparelhos ortopédicos e
calcanhares artificiais foram em vão. Por outro lado, deixei de gostar tanto
de futebol.
Michael, Regina e Arnie Cunning
ham foram sepultados no jazigo da
família, no cemitério de Libertyville Heights
—
ninguém compareceu ao
enterro, além de membros da família: os parentes que Regina possuía em
Ligonier, alguns de Michael, residentes em New Hampshire e Nova
Iorque, e uns pou
cos outros.
O funeral teve lugar cinco dias após aquela infernal cena na
garagem. Os ataúdes estavam fechados. O próprio fato daqueles três
caixões de madeira, alinhados em um estrado tríplice, como soldados,
atingiu meu coração como uma pá de terra fria.
A lembrança das fazendas
de formigas não pôde resistir ao mudo testemunho daqueles ataúdes.
Chorei um pouco.
Depois, rodei minha cadeira pelo corredor até eles e pousei a mão,
instintivamente, sobre o ataúde do centro, sem saber se era ou não o de
Arnie, m
as isso não fazia diferença. Fiquei assim por bastante tempo, a
cabeça baixa, até quando uma voz soou atrás de mim.
—
Quer que o empurre até a sacristia, Dennis?
Girei o pescoço. Era Mercer, parecendo muito correto e
representativo da lei, em um terno de l
ã escura.
—
Certo
—
respondi.
—
Dê
-
me apenas um minuto, ok.
—
Está bem. Vacilei, depois disse:
—
Os jornais disseram que Michael foi morto em casa. Que o carro
passou por seu corpo, depois que ele escorregou no gelo, ou coisa assim.
—
Exato
—
respondeu ele
.
—
Obra sua? Mercer hesitou.
—
Torna as coisas mais simples.
—
Seu olhar desviou
-
se, até onde
Leigh estava sentada com meus pais. Ela falava com mamãe, mas olhava
ansiosamente para mim.
—
Uma garota muito bonita
—
disse.
Mercer já fizera o mesmo comentári
o antes, no hospital.
—
Um dia vou casar com ela
—
falei.
—
Não seria surpresa para mim
—
replicou Mercer.
—
Alguém já
lhe disse que você tem a coragem de um tigre?
—
Acho que o treinador Puffer disse isso. Uma vez
—
falei. Ele riu.
—
Está pronto para aque
le empurrão, Dennis? Já ficou aqui por
tempo demais. Esqueça isso.
—
É mais fácil falar do que fazer. Ele concordou.
—
Sim, acho que sim.
—
Pode me dizer uma coisa?
—
perguntei.
—
Eu preciso saber.
—
Responderei, se puder.
—
O que você fez...
—
Precisei pa
rar e pigarrear.
—
O que fez com...
as peças soltas?
—
Eu mesmo cuidei disso
—
respondeu Mercer. Sua voz era jovial e
quase alegre, mas o rosto estava sério, muito sério.
—
Fiz com que dois
sujeitos da polícia local juntassem tudo e colocassem no compresso
r,
aquele nos fundos da Garagem de Darnell. Ficou um cubinho deste
tamanho.
—
Ele afastou as mãos, a uns cinqüenta centímetros uma da
outra.
—
Um dos sujeitos sofreu um ferimento sério. Precisou levar pontos.
Mercer sorriu subitamente
—
e foi o sorriso mai
s amargo e mais frio
que já vi.
—
Ele disse que aquilo o mordeu.
Em seguida, empurrou
-
me corredor abaixo, até onde minha família
e minha namorada esperavam por mim.
Bem, aí está a minha história. Exceto pelos sonhos.
Estou quatro anos mais velho, e o rost
o de Arnie começa a ficar
indistinto para mim, uma fotografia acastanhada, em um antigo anuário
escolar. Parece incrível que tenha acontecido, mas assim foi. De algum
modo, atravessei este período, a transição de adolescente para adulto
—
seja lá o que for
; possuo um diploma universitário, onde a tinta está quase
seca, e leciono História no ginásio intermediário. Comecei o ano passado,
e dois de meus alunos originais
—
ambos tipo Buddy Repperton
—
eram
mais velhos do que eu. Estou solteiro mas existem algum
as damas
interessantes em minha vida, e dificilmente penso em Arnie.
Exceto nos sonhos.
Esse sonhos não são a única razão pela qual escrevi tudo isso. Existe
outra, que explicarei em um momento, mas mentiria se afirmasse que os
sonhos não constituem uma bo
a parte da razão. Talvez isto seja um
esforço para lancetar a ferida e limpá
-
la. Também é possível que eu
apenas não seja rico o suficiente para me dar o luxo de um analista.
Em um dos sonhos, vejo
-
me de volta à cerimônia do funeral. Os três
ataúdes estão
em seu estrado tríplice, mas não há ninguém na igreja, além
de mim. No sonho, estou novamente de muletas, em pé no início do
corredor central, com a porta às minhas costas. Não quero seguir em
frente, ir até lá, mas as muletas me puxam, movendo
-
se sozinhas
. Toco no
ataúde do meio. Ele se abre repentinamente ao contato e, jazendo no
interior acetinado, não está Arnie, mas Roland D. LeBay, um cadáver
putrefato, em uniforme do Exército. Quando o cheiro nauseante de podre...
me atinge, o cadáver abre os olhos;
suas mãos pútridas, enegrecidas e
pegajosas por alguma excrescência fungóide, tateiam para cima e
encontram minha camisa, antes que eu possa recuar. Então, elas me
puxam, até que seu rosto feroz e fedorento fica apenas a centímetros do
meu. Ele começa a cr
ocitar, mais e mais:
Não suporta o cheiro, hein? Nada
cheira tão bem... exceto uma cona... exceto uma cona... exceto uma cona...
Tento
gritar, mas não posso, porque as mãos de LeBay se fecharam em um
pernicioso, apertado anel em torno de minha garganta.
No
outro sonho
—
e este, de certa forma, ainda é pior
—
eu termino
de dar uma aula ou estou atuando como inspetor em uma sala de estudos
do Ginásio Norton, onde leciono. Recoloco meus livros em minha pasta,
guardo nela as minhas provas e deixo a sala, dirigi
ndo
-
me à aula seguinte.
E lá, no corredor, apertada entre os armários cinza
-
industrial dos alunos,
está Christine
—
nova em folha e cintilante, repousando sobre quatro
pneus novos de banda branca, um enfeite cromado da Vitória Alada no
capô, empinado em mi
nha direção. Christine está vazia, mas seu motor
acelera e diminui... acelera e diminui... acelera e diminui. Em certos
sonhos, a voz que vem do rádio é a de Richie Valens, morto há muito
tempo em um desastre de avião, com Buddy Holly e J. P. Richardson,
T
he
Big Bopper.
Richie está gritando "La Bamba" em ritmo latino. Quando
Christine arremete subitamente para mim, deixando marcas de borracha
no piso do corredor e arrancando portas abertas dos armários a cada lado,
com suas maçanetas, vejo que em sua diante
ira há uma placa
exibicionista
—
um sorridente crânio branco, sobre campo inteiramente
negro. Acima da caveira estão impressas as palavras O ROCK AND ROLL
JAMAIS MORRERÁ.
Então acordo
—
algumas vezes gritando, mas sempre agarrando
minha perna.
Os sonhos,
contudo, agora têm sido menos regulares. Em uma de
minha aulas de Psicologia
—
tive muitas delas, talvez ansiando
compreender coisas que não podem ser compreendidas
—
li que as
pessoas sonham menos à medida que ficam mais velhas. Acredito que,
agora, tudo
irá bem comigo. No último Natal, quando enviei a Leigh meu
cartão anual, acrescentei uma linha à nota costumeira no verso. Abaixo da
assinatura, movido por um impulso, garatujei:
Como tem manejado aquilo?
Então, selei o cartão e o remeti, antes que me arre
pendesse. Um mês mais
tarde, recebi um cartão
-
postal, mostrando o novo Centro de Artes de Taos.
Nas costas, havia o meu endereço e apenas uma linha seca:
Manejando o
quê? L.
De um jeito ou de outro, creio termos descoberto coisas que temos
de saber.
Mais o
u menos pela mesma época
—
parece que meus pensamentos
se concentram nisso, com mais freqüência, justamente por volta do
Natal
—
escrevi uma nota para Rick Mercer, porque a questão
permanecera em minha mente, atormentando
-
me cada vez mais. Eu lhe
perguntav
a o que tinha sido feito do bloco de sucata de metal que, uma
vez, fora Christine.
Não recebi resposta.
O tempo, entretanto, tem
-
me ensinado a lidar também com isso.
Venho pensando menos em tais assuntos. Realmente.
Assim, aqui estou eu, no finalzinho de
tudo, velhas lembranças e
velhos pesadelos, amontoados em um ordenado punhado de páginas. Em
breve, tais páginas serão postas em uma pasta, essa pasta irá para meu
arquivo, a gaveta será trancada
—
e isso significará o fim.
Bem, eu disse que havia algo mai
s, não? Uma outra razão para
anotar tudo.
Seu egoístico objetivo. Sua fúria interminável.
Foi algo que li no jornal, algumas semanas atrás
—
apenas um item
fornecido pela AP, creio que por ser bizarro.
Seja franco, Guilder,
posso
ouvir Arnie dizendo
—
port
anto, serei franco. Pois foi esse item que me
impeliu a prosseguir, mais do que todos os sonhos e antigas lembranças.
A notícia dizia respeito a um indivíduo chamado Sander Galton,
cujo apelido
—
podemos supor logicamente
—
deve ter sido Sandy.
Este Sander
Galton foi morto na Califórnia, onde trabalhava em um
cinema
drive
-
in,
em Los Angeles. Estava aparentemente sozinho, fechando
tudo por aquela noite, após terminado o filme. Encontrava
-
se no bar. Um
carro derrubou uma parede, derrubou o balcão, amassou a m
áquina de
pipocas e o pegou, quando ele tentava abrir a porta para a cabine de
projeção. Os tiras deduziram que era o que fazia, no momento em que o
carro o atropelou, porque encontraram a chave em sua mão. Li a notícia,
intitulada ESTRANHO ASSASSINATO POR
AUTOMÓVEL EM LOS
ANGELES
—
e pensei no que Mercer me tinha dito, aquela última coisa:
Ele disse que aquilo o mordeu.
Claro que é impossível mas, de início, tudo era impossível.
Fico pensando em George LeBay, no Ohio.
Na irmã dele, no Colorado
Em Leigh, no
Novo México.
E se a coisa começar outra vez?
E se a coisa estiver vindo para leste, terminar o serviço?
Deixando
-
me para o fim?
Seu egoístico objetivo.
Sua fúria interminável
F I M
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