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christine
alfredo jose dias





C

C

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e

e





Stephen King







Título original: Christine



Tradução



de



Louisa



Ibañez



E

ditora Objetiva

, 1998



Digitalizado por SusanaCap



WWW

.

PORTALDETONANDO

.

COM

.

BR

/

FORUMNOVO

/
















C

ONTRA

C

APA



Arnie C

unnigham era um perdedor. Rosto coberto de espinhas,

desajeitado com as garotas, magro demais para esportes, passava os dias

como sombra pelos corredores da escola, tentando fugir das goza

ções

implacáveis dos jovens de sua idade.



Isso at

é Christine entrar

em sua vida. Amor à primeira vista

--



não

há melhor forma de explicar o que aconteceu a Arnie ao vê

-

la. A partir

desse dia, o mundo ganha novo sentido. Tudo o que ele quer é estar junto

de Christine e nada, ninguém conseguirá detê

-

lo. Uma velha história de



amor, mais um Romeu e Julieta do século XX? Não, quando a trama nasce

da mente insuperável de Stephen King. Christine é um carro. Um

Plymouth Fury 1958. Um feitiço sobre rodas que se apodera do jovem

Arnie e faz dele alguém diferente. Muito diferente. Chr

istine é uma

obsessão.



A vida de Arnie Cunnigham nunca mais ser

á igual. Também não

será igual o pacato subúrbio de classe média em que mora. Nao quando

Christine está nas ruas. Não quando a velha e irascível Christine resolve

tirar de seu caminho quem quer



que tente afastá

-

la de seu novo dono.








O

RELHAS



Cen

ário: subúrbio de classe média, em Pittsburg. Ano: 1978.



Personagens: Arnie Cunnigham, jovem estudioso e rejeitado pelos

colegas; Dennis Guilder, seu

único amigo e protetor ocasional; Leigh

Cabot a aluna r

ecém

-

chegada ao colégio que Arnie conquista e... Dennis

também deseja.



O mesmo e velho tri

ângulo amoroso? Os ingredientes certos para

mais uma açucarada historinha de amor e ciúme? Não. Porque aqui,

velando nas sombras, está Christine. Um quarto personagem

, uma dama

perversa que levará a trama por uma trilha de sangue e vingança. Por

caminhos onde um ódio implacável zela pela posse de Arnie. Não,

Christine não é uma rival comum. Lataria vermelha e branca, Christine é

um carro, um velho Plymouth 1958 que sed

uz Arnie com um poder

assombroso.



Quando Arnie se dedica febril

mente a restaurar Christine, Dennis e

Leigh come

çam a suspeitar que o preço dessa crescente obsessão pode ser

terrivel

mente alto. Em pouco tempo, Arnie não é mais o mesmo. Em

pouco tempo, Chr

istine também se transforma. E logo as calmas ruas de

subúrbio vão sendo banhadas de sangue. Há algo poderosamente maligno

solto pelas estradas de Libertyville. Uma

for

ça sobrenatural que vai

deixando seu rastro de vingança por onde passa. E Dennis é o pri

meiro a

descobrir a verdade aterradora





Christine está viva.



Nesta hist

ória de terror sobre

natural, Stephen King leva o leitor

numa viagem assustadora por um roteiro macabro. Se tiver coragem,

embarque em Christine e boa sorte... pode ser que, para você,



esse passeio

tenha volta.





N

OTA DO

A

UTOR



As letras das canções citadas neste livro foram atribuídas ao cantor

(ou cantora, ou grupos) mais comumente associados às mesmas. Isto




poderá ofender o purista, que considera a letra de uma canção como

pertencendo

mais ao compositor do que ao cantor. O que você fez,

poderia argumentar o purista, foi algo semelhante a atribuir

-

se as obras de

Mark Twain a Hall Holbrook.



Discordo. No mundo da canção popular, é como dizem os Rolling

Stones: o cantor, não a canção.



Os no

mes dos autores das letras estão aqui para os que quiserem

conhecê

-

los. Agradeço a todos eles





e mais particularmente a Chuck

Berry, Bruce Springsteen, Brian Wilson... e Jan Berry, de Jan and Dean. Ele

voltou da Curva do Homem morto.



É deveras trabalhoso

conseguir

-

se as necessárias permissões legais

para o uso de letras



de canções, de modo que eu gostaria de agradecer a

algumas das pessoas que me auxiliaram a



recordar as canções e, depois, a

garantir a possibilidade de seu uso. Elas incluem: Dave Marsh,



cr

ítico e

historiador de rock; James Feury, conhecido como "Mighty John Marshall",

que transmite rocks em minha cidadezinha, pela WACZ; seu irmão, Pat

Feury, que divulga canções antigas em Portland; Debbie Geller; Patrícia

Dunning e Peter Batchelder. Obrigad

o a todos vocês, chapas, e que seus

discos antigos nunca empenem muito, a ponto de não poderem tocá

-

los.



S.K.





P

RÓLOGO



Esta é a história de um triângulo amoroso





suponho que este seria

o nome





formado por Arnie Cunningham, Leigh Cabot e, naturalmente,

Ch

ristine. Quero que compreendam, no entanto, que Christine chegou

primeiro. Ela foi o primeiro amor de Arnie e, embora eu não tenha a

presunção de garantir (de qualquer modo, não após os altos níveis de

sabedoria que alcancei, em meus 22 anos), creio que el

a foi seu único e

verdadeiro amor. Portanto, chamo de tragédia ao que aconteceu.



Eu e Arnie crescemos no mesmo quarteirão, freqüentamos juntos a

Escola Primária Owen Andrews e o Ginásio Darby. Também juntos,

fomos para o Ginásio de Libertyville. Penso que

fui o principal motivo de

Arnie não haver sido devorado no ginásio. Eu era um cara importante








sei que isso não quer dizer grande coisa; cinco anos após o diploma, não

se consegue nem mesmo uma cerveja grátis, por termos sido o capitão dos

times de futebo

l e beisebol, e um nadador da Associação de Escolas



,

mas, como fui tudo isso, pelo menos Arnie nunca foi liquidado. Abusaram

dele um bocado, mas nunca o destruíram.



Ele era um perdedor, compreendam. Todo ginásio tem dois, pelo

menos; é como uma lei nacion

al.



Um homem, uma mulher. Sacos

-

de

-

pancada de todos. Seu dia foi

ruim? Falhou em uma prova importante?



Discutiu com seus velhos e ficou o fim de semana a pé? Não há

problema. Encontre um daqueles pobres coitados que se esgueiram pelos

corredores como crimi

nosos, antes do sinal para as aulas, e vá direto ao

infeliz. Sabiam que, algumas vezes, eles são abatidos em todos os sentidos,

exceto no físico; em outras, acham alguém a quem agarrar

-

se e

sobrevivem. Arnie tinha a mim. Depois teve Cristine. Leigh aparece

u mais

tarde.



Eu só queria que vocês compreendessem isso.



Arnie era um deslocado natural. Estava fora do atletismo por ser

magricela





um e setenta e cinco, com cerca de setenta quilos, tragado por

todas as suas roupas, mais um par de botas Desert Drive. E

stava por fora

também para os intelectuais do ginásio (eles próprios, um grupo

inteiramente "desajustado" em uma cidadezinha como Libertyville),

porque não tinha nenhuma especialização. Arnie era esperto, mas seus

miolos não se fixavam naturalmente em cois

a alguma, a menos que fosse

mecânica automotora.



Era grande nisso. Em se tratando de carros, o garoto era uma espécie

de alucinado nato. Seus pais. no entanto (os dois lecionavam na

Universidade, em Horlicks), não podiam ver seu filho





que tinha

marcado o



máximo de cinco por cento no teste de inteligência Stanford

-

Binet





matricular

-

se nos cursos profissionalizantes. Andy teve muita

sorte, quando lhe permitiram cursar Mecânica de Motores I. II e III.

Precisou batalhar muito para conseguir a permissão. Esta

va ainda

deslocado com os que se drogavam, porque não era disso. E também não

se ligava com o grupo machão calças

-

jeans

-

e

-

Lucky

-

Strikes, porque não

era de beber e chorava, se atingido com força.






Oh, sim, era um desajustado também com as garotas. Seu

mecani

smo glandular



degringolara inteiramente. Quero dizer, Arnie era

um tapete de espinhas. Acho que lavava o



rosto umas cinco vezes por dia,

tomava umas duas dúzias de duchas por semana e



experimentava cada

creme ou panacéia conhecidos pela ciência moderna. Na

da funcionava. O

rosto de Arnie parecia uma pizza e ele ia ficar com uma daquelas caras

furadas e marcadas para sempre.



Eu gostava dele assim mesmo. Arnie tinha um sutil senso de humor

e uma mente que não se cansava de fazer perguntas, inventar jogos e

peq

uenas, divertidas brincadeiras. Foi Arnie



quem me mostrou como

construir uma fazenda de formigas quando eu tinha sete anos, e



passamos

todo um verão espiando aqueles animaizinhos, fascinados por sua

diligência e total



seriedade. Quando tínhamos dez anos, f

oi por sugestão

de Arnie que nos esgueiramos de casa



certa noite e colocamos um monte

de bostaseca de cavalo, tirada dos Estábulos da Rota 17,



debaixo do

enorme cavalo de plástico sobre o gramado do Libertyville Motel, do

outro lado da



linha do trem, em Mo

nroeville. Arnie aprendeu xadrez

primeiro.



Aprendeu pôquer primeiro. Ensinou

-

me a aumentar meu escore em

Scrabble. Nos dias



chuvosos, bem até a época em que me apaixonei (ora,

foi mais ou menos isso





ela era chefe de torcida, com um corpo

espetacular; ac

hei que me apaixonara pelo corpo, embora, quando Amie

avisou que a mente da garota tinha toda a profundidade e ressonância de

um Chaun Cassidy 45,



eu não pudesse responder que ele estava mentindo,

porque não estava mesmo), era nele que eu



pensava primeiro,



porque

Arnie sabia como engrandecer os dias de chuva, da mesma forma



como

sabia aumentar os escores no Scrabble. Talvez seja esta uma das maneiras

de



identificarmos as pessoas realmente solitárias... elas sempre podem

imaginar algo legal para se



fazer em

um dia de chuva. A gente sempre

pode contar com ela. Estão sempre em casa. Sempre na pior.



De minha parte, ensinei Arnie a nadar. Chateei

-

o até convencê

-

lo a

comer verduras, para



que pudesse melhorar um pouco a sua magreza.

Consegui trabalho para ele em um

a estrada,



um ano antes de nosso último

ano no Ginásio de Libertyville





e para isso nos empenhamos a



fundo

com os pais dele, que se viam como grandes amigos dos trabalhadores nas

fazendas da Califórnia e dos metalúrgicos daquela cidadezinha cretina,

mas q

ue ficavam horrorizados à



idéia de seu talentoso filho (com um




máximo de cinco por cento em seu teste Stanford

-

Binet,



lembrem

-

se)

ficando com os pulsos sujos de terra e o pescoço vermelho.



Então, perto do fim daquelas férias de verão, Arnie viu Christine

p

ela primeira vez e se apaixonou por ela. Eu estava com ele nesse dia





íamos para casa, voltando do trabalho





e



testemunharia a respeito

diante do Trono de Deus Todo

-

Poderoso, se para isso me convocassem

.



Irmão, ele gamou e gamou



de fato. Até que podia te

r sido gozado, se

não fosse tão triste,



se aquilo não ficasse assustador tão depressa



como

ficou. Podia ter sido divertido, se não houvesse sido tão ruim.



Ruim





a que ponto?



Foi ruim desde o começo. E se tornou rapidamente pior.





Dennis

-



Canções adolesce

ntes sobre

carros





P

RIMEIROS

P

ROJETOS



Ei, olhe l

á!



Do outro lado da rua!



Um carro feito na medida para mim,



Seria um luxo ter aquele carro...



Aquele carro é um barato, cara,



É algo fora de série.







Eddie Cochran









Deus do céu!





gritou de repente meu amig

o Arnie Cunningham.







O que foi?





perguntei.






Seus olhos saltavam por tr

ás dos óculos de aros de aço, ele

espalmara a mão sobre o rosto, de maneira que a palma cobria a boca

parcialmente e o pescoço parecia girar sobre rolamentos, no modo como

Arnie se vir

ava para trás, por sobre o ombro.







Pare o carro, Dennis! Volte!







O que você está...







Volte, quero olhar para ela outra vez! Entendi na mesma hora.







Oh, cara, esqueça





falei.





Se está se referindo àquela... coisa

que acabamos de deixar para trás...







Volte!





ele quase berrou.



Voltei, imaginando que talvez fosse uma daquelas sutis piadinhas

de Arnie. S

ó que não era. Ele gamara mesmo. Arnie se apaixonara.



Ela era uma piada imbecil e jamais saberei o que Arnie viu nela,

nesse dia. Na m

áquina, quero dizer

, no carro. O lado direito do pára

-

brisa

era uma confusa teia de aranha em rachaduras. A traseira direita do teto

estava afundada e um ninho horrendo de ferrugem se espraiara pelo vale

de pintura descascada. O pára

-

choque traseiro descambava para um lado

e



o tampo do porta

-

mala estava entreaberto. O estofamento sangrava para

fora, através de compridos rasgões na cobertura dos assentos, da frente e

traseiro. Era como se alguém tivesse brincado ali com uma faca. Um pneu

estava arriado. Os outros, tão carecas,



que dava para se ver o

encordoamento interno. O pior de tudo era a mancha escura de óleo,

debaixo do motor.



Arnie se apaixonara por um Plymouth Fury 1958, um daqueles

comprid

ões, com enormes aletas no radiador. Havia um velho anúncio de

À VENDA, já desbot

ado pelo sol, escorado contra o lado direito do pára

-

brisa





o lado que não estava rachado.







Veja que linhas ele tem, Dennis!





sussurrou Arnie.



Corria em torno do carro, como um possesso. Seu cabelo suado

subia e descia na cabe

ça. Experimentou a porta tr

aseira, no lado do

passageiro, e ela se abriu com um rangido.







Você está me gozando, Arnie, não está?





perguntei.





É

insolação, certo? Me diz que é insolação. Vou levar você para casa, ligar o

ar

-

condicionado e esquecemos tudo isto, está bem?






De qualque

r modo, falei isso sem muita esperan

ça. Ele sabia fazer

uma piada, mas então não havia nada que lembrasse uma piada em sua

cara. Pelo contrário, era uma espécie de loucura imbecil, que não me

agradou nem um pouco.



Ele nem mesmo se deu ao trabalho de respon

der. Um bafo quente e

espesso de ar, cheirando a velhice, óleo e adiantada decomposição brotou

da porta aberta do carro. Arnie também pareceu nem perceber. Entrou e

sentou

-

se no desbotado banco traseiro dilacerado. Um dia, vinte anos

antes, aquilo tinha si

do vermelho. Agora, era um rosa lavado e desbotado.



Estiquei o braço e arranquei um pouco do recheio, olhei para ele e o

soprei ao vento.







É como se o exército russo tivesse pisado sobre isso, ao avançar

para Berlim





comentei. Ele finalmente notou que eu



ainda estava ali.







Certo... certo, mas poderia ser consertado. Essa máquina... ela

ficaria um barato. Uma unidade móvel, Dennis. Uma beleza. Uma

verdadeira...







Ei, ei! O que estão fazendo aí, garotos?



Era um velhote que parecia estar curtindo





mais ou

menos





seu

septuagésimo verão. Talvez menos. Aquele sujeito me deu a impressão de

ser dos que não curtem muito as coisas. O pouco que restava do cabelo era

comprido e ralo. Tinha um bom caso de psoríase em andamento, na parte

careca do crânio.



Usava calça

s verdes de velho e tênis de basquete de cano baixo.

Estava sem camisa; em vez disso, tinha algo apertado em torno da cintura,

parecendo uma cinta de mulher. Quando chegou mais perto, vi que era

um colete ortopédico para as costas. De saída, só em olhar pa

ra aquilo, eu

podia dizer que o homem o tinha trocado, pela última vez, mais ou menos

na época em que Lyndon Johnson morrera.







O que estão querendo, garotos?





gritou, em voz aguda e

estridente.







Este carro é seu, senhor?





perguntou Arnie.



Uma pergunta

quase desnecessária. O Plymouth estava estacionado

no terreno da casa pós

-

guerra, de onde o velho brotara. O gramado era

horrível, mas ficava um barato com aquele Plymouth nos fundos.










E daí, se for?





perguntou o velho.







Eu...





Arnie engoliu em seco.





Eu quero comprá

-

lo.



Os olhos do velhote cintilaram. A expressão irritada do rosto foi

substituída por um brilho furtivo no olho e um certo sarcasmo faminto em

torno dos lábios. Então surgiu um falso, resplendente e largo sorriso. Foi

naquele momento, crei

o





bem, justo naquele momento





que senti algo

frio e depressivo dentro de mim. Houve um instante





só então





que

senti vontade de puxar Arnie e arrancá

-

lo dali. Alguma coisa transpareceu

dentro dos olhos do velho. Não foi só o brilho; era algo por trás

do brilho.







Bem, devia ter dito logo





falou o velhote. Estendeu a mão, que

Arnie apertou.





LeBay. Roland D. LeBay. Reformado do Exército.







Arnie Cunningham.



O velho pareceu puxar a mão e fez uma espécie de aceno para mim.

Eu estava fora da jogada; ele

já tinha seu otário. Arnie podia perfeitamente

entregar sua carteira a LeBay.







Quanto?





perguntou Arnie. Depois insistiu:





Seja o que for

que quer pela máquina, ainda é pouco.



Grunhi intimamente, em vez de suspirar. O talão de cheques de

Arnie estava de

ntro de sua carteira.



Por um momento, o sorriso de LeBay falhou um pouco e ele apertou

os olhos desconfiadamente. Devia estar avaliando a possibilidade que

tinha pela frente. Estudou o rosto franco e ansioso de Arnie, à procura de

algum sinal de malícia, p

ara então disparar a pergunta homicidamente

perfeita:







Já teve algum carro antes, filho?







Ele tem um Mustang Mach II





respondi rapidamente.





Seus

pais compraram para ele. Tem uma mudança Hurst, uma superbateria e

pode fazer a estrada ferver, quando em

primeira. O carro...







Não





respondeu Arnie, tranqüilo.





Só tirei minha carteira de

motorista esta primavera. LeBay dedicou

-

me um rápido, mas astuto olhar,

para em seguida voltar a concentrar inteiramente a atenção em seu alvo

principal. Colocou as mãos

no final das costas e estirou

-

se. Captei uma

azeda onda de suor rançoso.










O Exército me deixou com um problema nas costas





disse

ele.





Invalidez total. Os médicos nunca conseguiram endireitar

-

me. Se

perguntarem a vocês o que há de errado no mundo, rapaz

es, digam que

s

ão três coisas: médicos, comunista e radicais que gostam de negros. Dos

três, os comunistas são os piores, seguidos de perto pelos médicos. E se

perguntarem quem disse isto, respondam que foi Roland D. LeBay. Sim,

senhor!



Ele tocou o velho e



arranhado cap

ô do Plymouth, com uma espécie

de admirado amor.







Este aqui foi o melhor carro que já tive. Comprei em setembro de

1957. Naquele tempo, era em setembro que se conseguia o novo modelo

do ano. Durante todo o verão, exibiam fotos de carros deba

ixo de lonas e

encerados, até a gente ficar morrendo para saber como eles eram, por

baixo daquilo. Hoje é diferente.





Sua voz ressumava irritação, pelos

tempos degradantes que vivera.





Uma máquina novinha em folha.

Cheirava como carro saído da fábrica e,



para mim, este é o melhor cheiro

do mundo.





Fez uma pausa para considerar.





Exceto, talvez, pelo de

uma cona.



Olhei para Arnie, mordendo furiosamente o interior das bochechas,

para n

ão estourar de rir de tudo aquilo. Arnie olhou para mim, surpreso.

O ve

lho nem pareceu notar

-

nos; estava isolado em seu próprio planeta.







Vesti cáqui trinta e quatro anos





contou LeBay, ainda tocando o

capô do carro.





Entrei aos dezessete, em 1923. Comi poeira no Texas e vi

piolhos do tamanho de lagostas, em algumas casas

das putas de Nogales.

Vi homens com as tripas saindo pelos ouvidos, no tempo da guerra. Foi na

França que vi isso. As tripas deles saíam pelos ouvidos. Acredita nisso,

filho?







Sim, senhor





respondeu Arnie.



Duvido que tivesse ouvido uma s

ó palavra do que

LeBay dizia.

Equilibrava

-

se ora em um pé, ora no outro, como se estivesse apertado

para ir ao banheiro.







Bem, e quanto ao carro...





insistiu Arnie.







Você está na Universidade?





clamou LeBay, subitamente.







em Horlicks?







Não, senhor. Estou no Ginási

o de Libertyville.










Muito bom





disse LeBay, taciturno.





Fique longe de

universidades. Estão cheias de gente que gosta de negros, gente que quer

entregar o Canal do Panamá. "Cérebros", é o nome que dão a eles. Pois eu

digo que são "cacholas de merda".



Ol

hou amorosamente para o carro em cima do pneu arriado, a

pintura dissolvendo

-

se em ferrugem, banhado pelo

último sol da tarde.







Machuquei as costas na primavera de 57





disse ele.





O

Exército já estava falindo naquele tempo. Saí na hora exata. Voltei par

a

Libertyville. Torrei grana. Aproveitei meu tempo. Então, entrei na

Norman Cobb, concessionária Plymouth, onde hoje fica o boliche, lá perto

da Main Street, e encomendei este carro aqui. Disse para eles: quero

vermelho e branco, modelo do próximo ano. Ver

melho como um carro de

bombeiros por dentro. Eles conseguiram. Quando recebi a máquina, tinha

um total de seis milhas no odômetro. Sim, senhor.



Ele cuspiu.



Olhei para o od

ômetro, por cima do ombro de Arnie. O vidro estava

turvo, mas pude ler o estrago assi

m mesmo: 97.432. E seis décimos.

Caramba!







Se gosta tanto do carro, por que quer vendê

-

lo?





perguntei. Ele

me dirigiu um olhar leitoso, bastante aterrador.







Está querendo bancar o sabido pra cima de mim, filho? Não

respondi, mas tampouco fugi com o olha

r.



Ap

ós alguns momentos daquele duelo olho

-

a

-

olho (o que Arnie

ignorou por completo; deslizava lentamente uma amorosa mão por uma

das aletas dorsais), ele disse:







Não posso mais dirigir. Minhas costas pioraram muito. E os olhos

estão indo pelo mesmo camin

ho.



Entendi de repente





ou acho que entendi. Se ele nos fornecera as

datas exatas, teria setenta e um anos. E, aos setenta, neste Estado é

obrigatório o exame de vista a cada ano, para que renovem a licença de

motorista. LeBay devia ter falhado no exame d

e vista ou tinha medo de

falhar, o que vinha a dar no mesmo. Antes de submeter

-

se a tal

indignidade, resolveu colocar o Plymouth à venda. E, depois disso, o carro

envelhecera rapidamente.







Quanto quer por ele?





Arnie tornou a perguntar.






Ele mal podia esp

erar para ser degolado. LeBay virou o rosto para o

céu, como se o estudasse para saber se choveria. Depois baixou os olhos

para Arnie, oferecendo

-

lhe um largo e gentil sorriso, para mim demasiado

semelhante ao anterior sorriso astuto que me dirigira.







Est

ou pedindo trezentos





disse



, mas você me parece um bom

rapaz. Deixo por duzentos e cinqüenta para você.







Deus do céu!





exclamei.



Não obstante, ele sabia quem era o seu pato, como sabia exatamente

aumentar a barreira entre nós. Nas palavras de meu avô,



LeBay não tinha

caído ontem de um caminhão de feno.







Está bem





disse ele, bruscamente.





Se quiser, é assim. Tenho

meu programa das quatro e meia para ver. Beira da Noite. Nunca perco,

se depender de mim. Tive um bom papo com vocês, rapazes. Adeus.



Arni

e dirigiu

-

me um olhar tão dorido e raivoso que recuei um passo.

Depois foi atrás do velho e o segurou pelo cotovelo. Conversaram. Não

ouvi tudo, porém vi mais do que suficiente. O orgulho do velho ficara

ferido. Arnie estava ansioso e se desculpando. O vel

ho apenas queria fazer

Arnie entender que não suportava ver insultado o carro que o conduzira

através de seus anos dourados. Arnie concordou. Pouco a pouco, o velho

permitiu que ele o reconduzisse de volta. E, de novo, senti algo

conscientemente amedrontad

or em relação a ele... era como se um frio

vento de novembro pudesse pensar. Não consigo palavras melhores para

expressá

-

lo.







Se ele disser mais uma só palavra, lavo as mãos disto tudo





disse LeBay, apontando um polegar calejado e chifrudo para mim.







El

e não dirá, ele não dirá





assegurou Arnie, apressadamente.





Trezentos, foi o que disse?







Sim, acho que foi...







O preço combinado foi de duzentos e cinqüenta!





falei bem alto.



Arnie pareceu aflito, temendo que o velho se fosse de novo, mas

LeBay não qu

eria arriscar

-

se. O peixe agora estava quase fora d'água.







Sim, acho que duzentos e cinqüenta está bem





concedeu LeBay.



Tornou a olhar para mim e vi que estávamos de acordo





ele não ia

comigo e nem eu com ele. Para meu crescente horror, Arnie puxou a




ca

rteira e começou a manusear seu interior. Houve silêncio entre nós três.

LeBay era um mero espectador. Espiei para um garotinho que tentava

matar

-

se em um skate verde

-

vômito. Um cão latiu em algum lugar. Duas

garotas com ar de estarem na oitava série passa

ram rindo muito e

apertando uma pilha de livros contra os bustos em formação. Restava

-

me

apenas uma esperança de que Arnie se visse fora daquilo: faltava um dia

para o pagamento. Com tempo, até mesmo vinte e quatro horas, aquela

febre selvagem passaria. Ar

nie começava a recordar

-

me Toad, Toad Hall.



Quando tornei a olhar para eles, Arnie e LeBay fitavam duas notas

de cinco e seis de um dólar





aparentemente, tudo que ele tinha na

carteira.







Que tal um cheque?





sugeriu Arnie. LeBay sorriu friamente e

nada d

isse.







É um cheque bom





protestou Arnie.



Claro que era. Havíamos passado todo o verão trabalhando para

Carson Brothers, na extensão da I

-

376, aquela que, na opinião dos nativos

da área de Pittsburgh, jamais seria finalmente terminada. Às vezes, Arnie

diz

ia que a Penn

-

DOT tinha começado a apostar no trabalho da I

-

376

pouco depois que a Guerra Civil terminara. Não que qualquer um de nós

tivesse alguma queixa; muitos jovens trabalharam naquele verão em troca

de salários de escravos, ou não trabalharam em abs

oluto. Estávamos

fazendo um bom dinheiro, inclusive em hora extra. Brad Jeffries, o capataz,

se mostrara francamente duvidoso em aceitar um garoto como Arnie, mas

por fim concordara que ele podia ser usado como sinaleiro; a jovem que

planejara contratar fi

cara grávida e fugira para casar

-

se. Assim, Arnie se

iniciara como sinaleiro em junho, mas aos poucos fora passando para o

trabalho mais pesado, no que mostrava muita coragem e determinação.

Era o primeiro emprego de verdade que já tivera e não queria estr

agar

tudo. Brad ficara um tanto impressionado e, inclusive, o sol de verão

contribuíra para amenizar um pouco as erupções cutâneas de Arnie.

Talvez fosse o ultravioleta.







Tenho certeza de que seu cheque é bom, filho





disse LeBay





mas meu negócio é feito



a dinheiro. Procure entender.



Eu não sabia se Arnie entendera, mas eu entendia. Seria fácil demais

sustar o pagamento de um cheque local, se aquele Plymouth comido de

ferrugem soltasse uma biela ou explodisse um pistão, a caminho de casa.










Pode telefonar



para o banco





disse Arnie, começando a

desesperar

-

se.







Negativo





disse LeBay, coçando o sovaco acima do escabroso

colete.





Vão dar cinco e meia. Os bancos já fecharam há muito tempo.







Fica como um sinal, então





disse Arnie, estendendo os

dezesseis d

ólares. Positivamente, agia como maluco. Talvez seja difícil

acreditar

-

se que um cara, com idade quase suficiente para votar, em

quinze minutos ficasse tão enredado com um velhote anônimo. Eu mesmo

achava difícil acreditar. Somente Roland D. LeBay parecia

não ter

problemas a respeito e suponho que fosse devido à idade, quando já tinha

visto tudo. Só mais tarde cheguei a crer que aquela sua estranha segurança

podia originar

-

se de outras fontes. De qualquer modo, se já havia corrido

em suas veias algum leite

de gentileza humana, há muito se transformara

em coalhada azeda.







Preciso ter um sinal de dez por cento, pelo menos





declarou

LeBay. O peixe estava fora d'água; em mais um momento, iria para a

cesta.





Se me der os dez por cento, reservarei o carro por v

inte e quatro

horas.







Dennis





pediu Arnie



, pode me emprestar nove pratas até

amanhã?



Eu tinha doze na carteira e nenhum lugar particular aonde ir. Dia

após dia espalhando areia e cavando trincheiras para bueiros, haviam

feito maravilhas para quando che

gasse a hora de treinar futebol, mas eu

não tinha mais nenhuma vida social. Ultimamente, nem mesmo vinha

assaltando as defesas do corpo de minha namorada chefe de torcida, no

estilo a que ela se acostumara. Estava rico, mas solitário.







Venha até aqui e ve

remos





falei.



LeBay franziu o cenho, mas sabia

-

se preso à minha intervenção,

quisesse ou não. Seu anelado cabelo branco agitou

-

se de um lado para

outro, à brisa ligeira. Manteve uma das mãos possessivamente sobre o

capô do Plymouth.



Caminhei com Arnie até



meu carro, um Duster 75, estacionado na

esquina. Passei o braço pelos ombros dele. Por algum motivo, lembrei

-

me

do dia chuvoso que havíamos passado em seu quarto, quando não

tínhamos mais de seis anos





os desenhos animados saltitavam na tela




em preto

-

e

-

b

ranco de um antigo aparelho de TV, enquanto coloríamos

com lápis de cor velhos, guardados em uma lata de café serrilhada. A

imagem me deixou triste e um tanto amedrontado. Compreendam, há

dias em que seis anos me parece uma idade excelente, isto porque a

l

embrança dura, de fato, apenas 7,2 segundos.







Você tem o dinheiro, Dennis? Eu devolvo amanhã de tarde.







Sim, tenho





respondi



, mas, pelo amor de Deus, o que está

fazendo, Arnie? Aquele pilantra é totalmente inválido, não vê? Ele não

precisa de dinheiro



e você não é uma instituição de caridade.







Não compreendo. De que está falando?







Ele está se aproveitando de você. Faz isso pelo simples prazer da

coisa. Se levar o carro à Darnell's, não conseguirá nem cinqüenta dólares

por peças. Aquilo é um monte de

bosta!







Não. Não é não.



Sem a pele ruim, meu amigo Arnie pareceria absolutamente normal.

Contudo, Deus dá a todos pelo menos um traço bom, acho eu, e em Arnie

eram os olhos. Por trás das lentes, que em geral os obscureciam, seus

olhos mostravam um belo e

inteligente cinza, a cor das nuvens em um

nublado céu de outono. Podiam ser quase incomodamente agudos e

perscrutadores quando surgisse algo que lhe interessasse, mas agora

estavam distantes e sonhadores.







Não é nenhum monte de bosta





insistiu ele.



Foi q

uando comecei realmente a compreender que ali havia mais do

que a súbita decisão de Arnie em ter um carro. Ele nunca demonstrara o

menor interesse por um, antes; contentava

-

se em rodar no meu,

contribuindo para a gasolina ou apertando o pedal de suas três

marchas. E

agora não era como se precisasse de um carro, a fim de sair sozinho; que

eu soubesse, Arnie jamais tivera um encontro com garotas na vida.

Tratava

-

se de algo diferente. Era amor ou coisa assim.







Pelo menos





argumentei





deixe que ele ligue o m

otor para

você, Arnie. E que levante o capô. Tem uma poça de óleo debaixo do

motor. O bloco bem que pode estar partido. Se quer saber, acho que...







Pode emprestar os nove?






Os olhos dele estavam fixos nos meus. Desisti. Tirei minha carteira e

entreguei

-

lhe



os nove d

ólares.







Obrigado, Dennis





disse ele.







O funeral é seu, cara.



Ele nem ouviu. Juntou meus nove aos seus dezesseis e voltou para

junto de LeBay, ao lado do carro. Estendeu

-

lhe o dinheiro e o velho o

contou cuidadosamente, molhando o polegar.







S

ó vou segurá

-

lo por vinte e quatro horas, compreenda





disse

LeBay.







Sim, senhor. Assim está ótimo





respondeu Arnie.







Vou até em casa, passar um recibo





disse o velho.





Como é

mesmo o seu nome, soldado? Arnie sorriu ligeiramente.







Cunningham. Arnold

Cunningham.



LeBay grunhiu um assentimento e cruzou seu gramado maltratado

at

é a porta dos fundos. A porta externa era uma daquelas engraçadas

estruturas de alumínio, com uma floreada letra no centro





um L

maiúsculo, no caso.



A porta bateu atr

ás dele.







O

sujeito é esquisito, Arnie. O sujeito é um fodido esqui...



Arnie n

ão estava mais ali. Sentara

-

se atrás do volante do carro. Em

seu rosto havia a mesma expressão enérgica.



Dei a volta at

é a frente e descobri o fecho do capô. Puxei

-

o e o capô

subiu, com um g

rito enferrujado que me fez pensar nos efeitos sonoros

ouvidos naqueles discos de casas mal

-

assombradas. Fragmentos metálicos

voaram para baixo. A bateria era uma velha Allstate e os terminais

estavam tão cobertos de corrosão esverdeada que não se poderia

dizer

qual o positivo e o negativo. Puxei o filtro de ar e olhei sombriamente para

um carburador de quatro difusores, tão negro como uma galeria de mina.



Baixei o cap

ô e fui para o lugar onde Arnie continuava, agora

deslizando a mão ao longo da borda do pa

inel de instrumentos, por sobre

o velocímetro, calibrado para uma marcação totalmente absurda de 120

milhas por hora. Os carros teriam realmente atingido tal velocidade?










Acho que o bloco do motor está trincado, Arnie. Acho mesmo.

Este carro é uma droga,

meu amigo. Uma droga total. Se está querendo

rodas, por duzentos e cinqüenta podemos encontrar coisa muito melhor

do que isto. Falo sério. Muito melhor.







Ele tem vinte anos de idade





replicou Arnie.





Sabe que um

carro é oficialmente uma antigüidade, qua

ndo tem vinte anos de idade?







Claro





falei.





O pátio de ferro

-

velho atrás da Darnell's está

repleto de antigüidades oficiais, está entendendo?







Dennis...



A porta bateu. LeBay estava de volta. N

ão adiantava; qualquer

discussão posterior não teria sentid

o. Posso não ser o humano mais

sensível, mas quando os sinais são fortes o bastante, consigo captá

-

los.

Aquilo era algo que Arnie decidira ser preciso fazer e eu não iria dissuadi

-

lo. Aliás, creio que ninguém conseguiria dissuadi

-

lo.



Com um floreio, LeBay

estendeu

-

lhe o recibo. Escrito em uma folha

comum de bloco, em uma aracn

óide, e ligeiramente trêmula, caligrafia de

velho, havia o seguinte: Recebido de Arnold Cunningham, $25,00, como

sinal e reserva por vinte e quatro horas de Christine, um Plymouth 1958

.

Abaixo, ele assinara seu nome.







O que significa isto de Christine?





perguntei, pensando ter lido

errado ou não entendido bem.



Os l

ábios de LeBay estreitaram

-

se e seus ombros se ergueram um

pouco, como se esperasse que rissem dele... ou como se me desaf

iasse a

isso.







Christine





explicou





é como sempre chamei o carro.







Christine





repetiu Arnie.





Gostei. E você, Dennis?



Agora ele falava em batizar a maldita coisa. Aquilo estava passando

dos limites.







O que acha, Dennis, você gostou?







Não





respondi

.





Se tem que dar um nome a isso, Arnie, por

que não o chama de Problema? Ele pareceu magoar

-

se com isso, mas eu

pouco me importava. Voltei para meu carro, a fim de

esper

á

-

lo, desejando

que antes houvesse tomado um caminho diferente, na volta para casa.








A



P

RIMEIRA

D

ISCUSSÃO



Diga apenas aos seus amigos marginais l

á fora,



Que voc

ê não tem tempo para dar um passeio!



(Conversa mole!)



N

ão responda!







The Coasters





Levei Arnie de carro at

é sua casa e entrei com ele para um pedaço

de bolo e um copo de leite, ant

es de seguir para a minha. Foi uma decisão

da qual me arrependi prontamente.



Arnie morava na Laurel Street, situada em uma tranq

üila zona

residencial, no lado oeste de Libertyville. Em geral, Libertyville é quase

que integralmente tranqüila e residencial.

Nada de grande estilo, como o

subúrbio vizinho de Fox Chapei (onde a maioria das residências se

compõe de propriedades como aquelas que costumamos ver todas as

semanas em Columbo), mas também não é como Monroeville, com seus

quilômetros de ruas comerciais,



depósitos de pneus vendidos com

desconto e sujos empórios de livros. Por aqui não temos nenhuma

indústria pesada; trata

-

se, principalmente, de uma comunidade

-

dormitório para a vizinha Universidade. Sem suntuosidade, mas pelo

menos uma espécie de concentra

ção de cérebros.



Arnie estivera calado e pensativo, durante toda a caminhada para

casa; tentei distra

í

-

lo, mas ele não se deixou distrair. Perguntei

-

lhe o que

pretendia fazer com o carro.







Ajeitá

-

lo





respondeu, em voz ausente, tornando a ficar em

silênci

o.



Bem, ele tinha jeito para isso; eu n

ão questionava o assunto. Era bom

com ferramentas, podia ouvir e concentrar

-

se. Suas mãos eram sensíveis e

ágeis com mecanismos; somente quando estava perto de outras pessoas,

em especial garotas, é que elas ficavam d

esajeitadas e inquietas,

procurando estalar os nós dos dedos ou enfiar

-

se nos bolsos, quando não




(pior do que tudo) se encaminhavam para o rosto e deslizavam pela

acidentada paisagem das bochechas, queixo e testa, chamando a atenção

para esses pontos.



Ele

podia ajeitar o carro, mas o dinheiro que ganhara nesse ver

ão era

reservado para a Universidade. Nunca tivera um carro antes e pensei que

talvez não imaginasse a maneira sinistra como carros velhos podem sugar

dinheiro. Eles o sugam, como se imagina que um



vampiro suga o sangue.

Arnie evitaria os custos da mão

-

de

-

obra na maioria dos casos, fazendo o

trabalho ele mesmo, porém só o conserto das peças isoladas quase o

mataria, antes de chegar ao fim.



Disse

-

lhe algumas dessas coisas, mas ele preferiu ignorar

-

me

. Tinha

o olhar ainda distante e sonhador. Eu n

ão saberia dizer em que pensava.



Michael e Regina Cunningham estavam em casa





ela decifrava

uma daquelas séries intermináveis de quebra

-

cabeças idiotas (este era a

respeito de seis mil rodas denteadas e engre

nagens diferentes, sobre um

fundo absolutamente branco





e me deixaria arrancando os cabelos em

quinze minutos) e ele ouvia música na sala.



N

ão demorou muito, comecei a desejar que tivesse desistido do bolo

e do leite. Arnie contou a eles o que fizera, mos

trou o recibo e os dois

imediatamente subiram pelas paredes.



Compreendam, Michael e Regina eram criaturas da Universidade

at

é o âmago. Procuravam ser bem

-

sucedidos e, para eles, isto significava

protestar. Haviam protestado em favor da integração, no iníci

o dos anos

60, passaram para o Vietnã e, quando desistiram, havia Nixon, questões

de equilíbrio racial nas escolas (podiam citar capítulo e versículos do caso

Alan Bakke, até pegarmos no sono), violência policial e brutalidade

paternal. Depois, foram os di

scursos





toda aquela discurseira. Estavam

quase tão envolvidos nisso, como nos protestos. Pareciam sempre

dispostos a tomar parte em sessões pela noite inteira, tratando das mais

variadas questões, desde o programa espacial a conferências estudantis

em de

safio às autoridades acadêmicas, ou mesmo de um seminário sobre

possíveis alternativas

de combust

íveis fósseis. Só Deus sabe como

conseguiam tempo para tantas "linhas quentes"





números de telefone

para estuprados, drogados, para crianças fujonas que queri

am conversar

com um amigo, bem como o bom, o velho DISQUE

-

AJUDA, para onde os

suicidas podiam ligar e ouvir uma voz compreensiva dizendo não faça

isso, chapa, você tem um compromisso social com a Espaçonave Terra.




Com vinte ou trinta anos lecionando em uma



Universidade, o sujeito está

pronto para a discussão, da mesma forma que os cães de Pavlov estavam

prontos para sair quando ele tocava a campainha. Acredito que até se

chegue a gostar disso.



Regina (eles insistiam em que eu os chamasse por seus primeiros

nomes) tinha quarenta e cinco anos e era simp

ática, atraente de uma

forma um tanto fria e semi

-

aristocrática





isto é, conseguia parecer

aristocrática, mesmo usando jeans, o que fazia a maior parte do tempo.

Sua área era Inglês mas, naturalmente, quando se



atinge um nível

universitário, isso nunca é bastante: é como dizer "América" se alguém lhe

pergunta de onde você é. Ela se refinara nisso e estava calibrada, como o

"blip" de uma tela de radar. Especializara

-

se em poetas primitivos ingleses,

tendo apresen

tado tese sobre Robert Herrick.



O neg

ócio de Michael era História. Tinha uma aparência tão lutuosa

e melancólica, como a música que saía de sua flauta, embora luto e

melancolia não fossem uma parte normal de sua estrutura. Por vezes, ele

me fazia pensar no



que Ringo Star supostamente havia dito, quando os

Beatles vieram à América pela primeira vez, e certo repórter, em uma

entrevista à imprensa, perguntou

-

lhe se ele era realmente tão triste quanto

parecia. "Não", replicou Ringo, "é só o meu rosto." Michael

era assim.

Além do mais, seu rosto fino e os óculos grossos que usava combinavam

para emprestar

-

lhe uma leve aparência de caricatura de professor, em

uma inamistosa charge editorial. Seu cabelo começava a diminuir e ele

usava um pequeno cavanhaque anelado.







Oi, Arnie





disse Regina, quando entramos.





Olá, Dennis.,



Naquela tarde, foi essa a

última coisa cordial que ela disse para nós

dois. Respondemos "Oi" e passamos ao nosso bolo com leite. Sentamos no

canto reservado ao café da manhã. O jantar estava em

andamento no

forno e, lamento dizer, o cheiro era francamente repelente. Regina e

Michael tinham andado flertando com o vegetarianismo durante algum

tempo e, naquela noite, o aroma dava a impressão de que ela preparava

uma boa e velha torta de algas ou coi

sa assim. Esperei que não me

convidassem para ficar.



A m

úsica da flauta cessou e Michael veio para a cozinha. Usava

bermudas, recortadas de uma calça jeans e tinha um ar de quem acaba de

receber a notícia da morte de seu melhor amigo.










Estão atrasados, ra

pazes





disse.





Algo errado?



Abriu a geladeira e come

çou a vistoriar seu interior. Talvez a torta

de algas também não lhe fosse tão agradável ao olfato.







Comprei um carro





disse Arnie, cortando outro pedaço de bolo.







Você fez o quê?





exclamou sua mãe

no outro aposento,

imediatamente.



Ela se levantou depressa demais e houve uma batida seca, quando

suas coxas colidiram solidamente contra a beira da mesa de jogo, onde

resolvia seus quebra

-

cabe

ças. O baque foi seguido pelo ruído cascateado

de peças caindo

ao chão. Foi quando comecei a pensar que seria melhor

ter ido direto para casa.



Michael Cunningham se voltara da geladeira para fitar o filho,

segurando uma ma

çã em uma das mãos e uma embalagem de papelão

com iogurte natural na outra.







Você está brincando







disse, e por alguma absurda razão, pela

primeira vez notei que seu cavanhaque, usado desde mais ou menos 1970,

estava ficando um bocado grisalho.





Arnie, você está brincando, não?

Diga que é uma brincadeira.



Regina entrou, alta e semi

-

aristocr

ática, al

ém de infernalmente

furiosa. Esquadrinhou de perto o rosto de Arnie e soube que ele não

estava brincando.







Você não pode comprar um carro





falou.





De que está falando,

afinal? Só tem dezessete anos!



Arnie olhou lentamente, do pai junto

à geladeira, para



a mãe parada

à porta que levava à sala de estar. Havia uma expressão teimosa e

decidida em seu rosto, algo que eu nunca vira antes, que me lembrasse.

Pensei que, se usasse aquela expressão com mais freqüência na escola, os

colegas da cantina não se mostra

riam tão ávidos em massacrá

-

lo.







A verdade é que se enganam





respondeu ele.





Posso comprar

um carro sem qualquer problema. Claro, à prestação seria impossível, mas

uma compra em dinheiro não oferece problema algum. Naturalmente,

registrar um carro aos d

ezessete anos é uma questão totalmente diferente.

Para isso, eu precisaria de sua permissão.






Os dois o fitavam com surpresa, inquietação e crescente raiva.

Quando percebi a última, experimentei uma profunda sensação de dor no

estômago. Apesar de todas as s

uas idéias liberais e comprometimentos

com os trabalhadores das fazendas, as esposas maltratadas, mães solteiras

e o resto, eles manipulavam Arnie completamente. E Arnie se deixava

dirigir.







Não me parece legal, falar com sua mãe dessa maneira





disse

Mic

hael. Recolocou o iogurte no lugar, conservou a maçã e fechou

lentamente a porta da geladeira.





Você é muito novo para ter um carro.







Dennis tem um





disse Arnie prontamente.







Bem, puxa! Como está ficando tarde!





falei.





Eu já devia estar

chegando em.



casa! Devia estar chegando neste momento! Eu...

-







O que os pais de Dennis fazem e o que nós fazemos são coisas

muito diferentes





disse Regina Cunningham. Eu jamais ouvira sua voz

soar tão fria. Nunca.





E você não tem o direito de fazer semelhante coisa



sem consultar seu pai e a mim sobre...







Consultar vocês?





rugiu Arnie, de repente.



Derramou o leite. Havia enormes veias em seu pescoço, estiradas

como cordas. Regina recuou um passo, boquiaberta. Eu podia apostar que

o filho

-

patinho

-

feio nunca lhe rugir

a daquela forma, em toda a sua vida.

Michael ficara estupidificado. Estavam tendo um gostinho do que eu já

provara





por motivos que só ele saberia explicar, Arnie finalmente

conseguira ter algo que realmente desejava. E que Deus se apiedasse de

quem ficas

se em seu caminho.







Consultar vocês? Eu sempre consultei vocês em cada maldita

coisa que já fiz! Em tudo havia uma reunião para discutir e quando era

algo que não me interessava fazer, vocês venciam por dois contra um! Só

que agora não estamos em nenhuma

reunião para discutir o assunto.

Comprei um carro... e está acabado!







Pois eu não acho que esteja acabado





disse Regina.



Seus lábios se tinham afilado e, curiosamente (ou talvez não), ela

deixara de parecer tão semi

-

aristocrática; era agora como a Rainha



da

Inglaterra ou de algum lugar, com jeans e tudo. Michael estava fora da

situação, dali por diante. Parecia tão surpreso e desgostoso como eu e, por

um instante, senti uma bruta pena do homem. Ele nem ao menos podia ir




para casa jantar e se ver livre daq

uilo: já estava em casa. Ali se

desenrolava uma crua luta pelo poder, entre a velha guarda e a jovem

guarda. Tudo acabaria sendo decidido da mesma forma de antes, com

uma monstruosa exibição de amargura e aspereza. Aparentemente,

Regina estava disposta àqu

ilo, mesmo que não fosse este o caso de

Michael. Eu, no entanto, não queria tomar parte em nada. Levantei

-

me e

caminhei para a porta.







Você deixou que ele fizesse isto?





perguntou Regina. Olhou

para mim com arrogância, como se nunca tivéssemos rido junto

s, feito

bolos juntos ou participado juntos de acampamentos familiares.





Dennis,

estou surpresa com você.



Aquilo me atingiu. Eu sempre gostara da mãe de Arnie, porém

nunca chegara a confiar inteiramente nela, pelo menos desde que

acontecera algo, quando e

u tinha uns oito anos.



Eu e Arnie tínhamos ido de bicicleta até o centro da cidade, para

uma matinê no sábado. Quando voltávamos, ele caíra da bicicleta, em

uma manobra para evitar um cachorro, e machucara bastante a perna.

Levei

-

o para casa de carona em m

inha bicicleta, e Regina foi com ele ao

pronto

-

socorro, onde o médico deu meia dúzia de pontos. Então, por

algum motivo, depois que tudo terminou e se soube que Arnie ia ficar

perfeitamente bom, Regina se voltou contra mim e desandou com sua

língua afiada.



Pregou

-

me um sermão como se fosse sargento

-

chefe. Ao

terminar, eu tremia dos pés à cabeça e estava a ponto de chorar





que

diabo, tinha apenas oito anos e havia um bocado de sangue. Não posso

recordar capítulo e versículos de todo o falatório, mas a sensa

ção

generalizada que ficou comigo era perturbadora. Que me lembre, ela

começou por acusar

-

me de não ter tomado conta dele direito





como se

Arnie fosse muito mais novo e não quase da minha idade





e terminou

dizendo (ou parecendo dizer) que aquilo devia te

r acontecido era comigo.



Agora, a situação parecia repetir

-

se





Dennis, você não tomou

conta dele direito





e aquilo me irritou. Minha desconfiança quanto a

Regina talvez fosse apenas parte da coisa e, para ser inteiramente sincero,

talvez apenas a menor p

arte. Quando somos crianças (e, afinal de contas,

dezessete anos não são apenas o limite extremo da infância?), tendemos a

ficar ao lado de outras crianças. Um forte e infalível instinto nos diz que,

se não derrubarmos alguns muros e arrombarmos alguns por

tões, nossos




pais





com a melhor das intenções





ficariam satisfeitos nos mantendo

para sempre no cercado para bebês.



Fiquei zangado, mas disfarcei o melhor que pude.







Eu não o deixei coisa nenhuma





respondi.





Ele quis comprar e

comprou.





Antes, eu pod

ia ter contado que Arnie apenas dera um sinal,

mas não faria mais isso. Agora, eu empinava as costas.





A verdade é que

tentei convencê

-

lo a não comprar.







Duvido que tenha tentado com insistência





atacou Regina.



Ela bem poderia ter encerrado a frase, diz

endo: Você não me engana,

Dennis. Sei que os dois estavam de combinação nisto. Havia manchas

vermelhas nas maçãs de seu rosto e os olhos dela atiravam faíscas. Estava

procurando fazer com que me sentisse novamente um garoto de oito anos

e não se saía mal n

a história. No entanto, mantive minha posição.







Ora, pensando bem, afinal não foi uma coisa tão terrível assim.

Ele comprou o carro por duzentos e cinqüenta dólares e...







Duzentos e cinqüenta dólares?





explodiu Michael.





Que

espécie de carro se consegu

e por duzentos e cinqüenta dólares?



Seu anterior e incômodo desligamento





se é que existira, e não o

simples choque, ao som da tranqüila voz de seu filho, erguida em

protesto





desaparecera. O preço do carro é que o despertara. E ele olhou

para Arnie com

tão aberto desdém que me senti mal. Eu gostaria de ter

filhos um dia e, se os tiver, espero poder deixar fora de meu repertório

aquela particular expressão.



Fiquei dizendo para mim mesmo que não me alterasse, que aquilo

não era da minha conta, que não havi

a motivos para me irritar... porém o

bolo que comera se grudara no meio de meu estômago, em uma grande

bola pegajosa, e sentia a pele fervendo. Os Cunningham tinham sido

minha segunda família, desde que eu era garotinho, e podia sentir dentro

de mim todos

os aborrecidos sintomas físicos de uma disputa familiar.







Podemos aprender muito sobre carros, quando consertamos um

já velho





argumentei. De repente, soava para mim mesmo como uma

imitação maluca de LeBay.





E é preciso um bocado de trabalho, antes

mesm

o que fique bom para rodar na rua. (Se chegar a ficar, pensei.) Pode

-

se encarar isso como... como um hobby.







Eu encaro como loucura





disse Regina.






De súbito, eu só queria ir embora. Creio que, se as vibrações

emocionais ali dentro não estivessem tão pesa

das, até acharia graça

naquilo. De certa forma, passara a defender o carro de Arnie, quando

decidi que era um despropósito seguir em frente.







Pensem o que quiserem





murmurei



, mas me deixem fora

disto. Vou para casa.







Ótimo!





exclamou Regina, com aspe

reza.







Muito bem





disse Arnie, em voz inexpressiva. Levantou

-

se.





Vou dar o fora desta merda. Regina engoliu em seco e Michael piscou,

como se tivesse sido esbofeteado.







O que foi que disse?





bufou Regina.





O que foi que... ?







Não sei por que estão t

ão irritados





respondeu Arnie, em uma

voz distante, controlada



, mas não vou ficar aqui sentado ouvindo um

monte de besteiras de cada um. Você quis que eu fizesse os cursos do

colégio. Estou fazendo.





Ele olhou para a mãe.





Quis que eu entrasse

para o

clube de xadrez, em vez de ficar na banda da escola: muito bem,

estou lá também. Consegui atravessar dezessete anos sem envergonhá

-

la

no clube de bridge ou ir parar na cadeia.



Os dois estavam olhando para ele, de olhos esbugalhados, como se

uma das paredes



da cozinha tivesse ganho lábios subitamente e começasse

a falar.



Arnie os encarou, seus olhos eram estranhos, brancos e perigosos.







Estou dizendo a vocês que vou ter esse carro. É só isso.







Arnie, o seguro...





começou Michael.







Pare com isso!





gritou



Regina.



Ela não queria começar a falar sobre os problemas específicos,

porque esse seria o primeiro passo no caminho para uma possível

aceitação. Sua única idéia era esmagar a rebelião sob o calcanhar, rápida e

completamente. Há momentos em que os adultos



nos aborrecem de tal

forma, que eles jamais compreenderão; creio que vocês sabem disso. Eu

vivia um desses momentos e isso só fez com que me sentisse pior. Quando

Regina gritou com o marido, pude vê

-

la vulgar e assustada, ao mesmo

tempo. E, como gostava d

ela, desejaria nunca tê

-

la visto de um jeito ou de

outro.






Ainda assim, permaneci parado à porta, querendo ir embora, mas

doentiamente fascinado pelo que acontecia





a primeira discussão em

grande escala que já presenciara na família Cunningham, talvez a ún

ica.

Sem dúvida, aquilo era uma caretice, marcando no mínimo dez, na escala

Richter.







É melhor você ir, Dennis, enquanto resolvemos isto





disse

Regina, carrancuda.







Certo





falei



, mas acho que estão fazendo tempestade num

copo d'água. Esse carro... Re

gina... Michael... se vocês o vissem... talvez vá

de zero a trinta em vinte minutos, se chegar a se mover...







Dennis! Vá embora! Eu fui.



Quando entrava em meu Duster, Arnie saía pela porta dos fundos,

aparentemente afirmando sua intenção de ir embora. Os

pais o seguiram,

agora parecendo preocupados e também infelizes. Eu podia entender um

pouco o que eles sentiam. Fora tudo tão repentino como um ciclone,

descendo de um claro céu azul.



Liguei o motor e dei marcha à ré, até a rua sossegada.

Evidentemente, mu

ita coisa acontecera, desde que nós dois havíamos

saído do trabalho às quatro, duas horas atrás. Então, eu estava faminto a

ponto de comer quase qualquer coisa (exceto torta de algas). Agora, meu

estômago estava tão embrulhado que por pouco não devolvia tu

do quanto

fora engolido.



Quando parti, eles três estavam parados na entrada para carros, em

frente de sua garagem para dois automóveis (o Porsche de Michael e a

camionete Volvo de Regina estavam enfiados lá dentro





eles têm seus

carros, pensei, com certa

maldade; estão pouco ligando), ainda discutindo.



É isso aí, pensei, um tanto triste e aborrecido. Eles o derrotarão,

LeBay embolsará os vinte e cinco dólares de Arnie e aquele Plymouth 58

ficará em seu gramado por outros mil anos. Os pais de Arnie já tinha

m

feito coisas semelhantes com ele. Porque Arnie era um perdedor. Até

Regina e Michael sabiam disso. Ele era inteligente, e quando se conseguia

varar seu exterior tímido e desconfiado, ficava divertido, amável e... dócil,

acho eu. Dócil, exatamente o termo



que faltava. Dócil, mas um perdedor.



Seus pais sabiam disso, tão bem como os soquetes

-

brancas da

cantina, que implicavam com ele aos gritos pelos corredores e esfregavam




polegares em seus óculos. Eles sabiam que Arnie era um perdedor e o

derrotariam. Foi

o que pensei. Só que, desta vez, estava enganado.





A



M

ANHÃ

S

EGUINTE



Meu velho disse "Filho,



Me dê uma carona para eu ir beber,



Se você ainda dirige aquele



Lincoln envenenado. "







Charlie Ryan





Na manhã seguinte, passei pela casa de Arnie às 6:30 e apenas p

arei

junto ao meio

-

fio, não querendo entrar, mesmo imaginando que seus pais

ainda estariam na cama





na noite anterior houvera demasiadas

vibrações negativas flutuando naquela cozinha, para que me sentisse

tentado pelo costumeiro café com biscoitos, antes

de ir trabalhar.



Arnie demorou quase cinco minutos para sair e comecei a pensar se

ele não cumprira a ameaça de ir realmente embora. Então a porta dos

fundos se abriu e ele veio descendo pela entrada de carros, a marmita do

almoço balançando contra sua per

na.



Ele entrou no carro, bateu a porta e disse:







Vamos rodando, Jeeves.



Este era um dos chistes padronizados de Arnie, quando estava de

bom humor.



Comecei a rodar e olhei para ele cautelosamente, quase decidido a

falar alguma coisa, mas em seguida decidin

do ser melhor esperar que ele

começasse... se é que tinha alguma coisa para dizer.



Durante bastante tempo, pareceu que ele não tinha. Fizemos a maior

parte do caminho para o trabalho sem qualquer conversa entre nós, a não

ser o som da WMDY, a estação local



de rock e soul. Arnie marcava o

compasso distraidamente, batendo na perna.



Por fim, ele disse:










Lamento que você tenha se envolvido naquilo a noite passada,

cara.







Está tudo certo, Arnie.







Nunca lhe ocorreu





disse ele, abruptamente





que os pais não

p

assam de crianças desenvolvidas, até que os filhos os empurrem para

que se tornem adultos? Geralmente esperneando e chorando?



Sacudi a cabeça.







Vou lhe dizer o que penso





continuou ele. Estávamos agora

chegando ao local da construção; o trailer da Garson



Brothers ficava a

apenas duas rampas além. Naquela manhã, o trânsito era leve e sonolento.

O céu tinha uma suave cor de pêssego.





Acho que uma das funções de

ser pai é destruir os filhos.







Parece bastante racional





respondi.





Os meus estão sempre

quer

endo destruir

-

me. Esta noite, mamãe esgueirou

-

se com um

travesseiro e o segurou contra meu rosto. Na véspera, foi papai, correndo

atrás de mim e de minha irmã com uma chave de fenda.



Eu estava brincando, mas me perguntei o que Michael e Regina

diriam, se p

udessem ouvir nossa conversa.







A princípio, sei que parece um tanto louco





disse Arnie,

imperturbável



, mas muita coisa é esquisita, antes de começarmos a

considerá

-

las. Complexo de pênis. Conflitos edipianos. O sudário de

Turim.







Para mim, é tudo best

eira





respondi.





Você teve uma

discussão com seus pais, só isso.







Acredito nisso, realmente





disse Arnie, com ar pensativo.





Não que eles soubessem o que faziam; não acredito nisso. E sabe por quê?







Diga.







Porque assim que se tem um filho, a gente t

em certeza de que irá

morrer. Quando temos um filho, vemos nossa própria sepultura.







Sabe de uma coisa, Arnie?







O quê?







Acho que isso é uma merda de macabro. Nós dois explodimos em

gargalhadas.










Não falei nesse sentido





replicou ele.



Paramos no local

de estacionamento e desliguei o motor. Ficamos ali,

ainda por um momento.







Eu disse a eles que não seguiria mais os cursos do colégio





declarou Arnie.





Disse que me matricularia em T.V. Do começo ao fim.



T.V. era treinamento vocacional. A mesma espécie

de coisa feita

pelos garotos dos reformatórios para menores, exceto, naturalmente, que

eles não voltam para casa à noite. Seguem o que se poderia chamar de

programa compulsório de internato.







Arnie...





comecei, sem saber bem como continuar. A forma

como

aquilo brotara do nada me dava a impressão de um capricho.





Você ainda é menor, Arnie. Eles têm que assinar o seu programa...







Claro, eu sei disso





respondeu Arnie. Sorriu para mim sem

humor e, àquela claridade fria da manhã, pareceu ao mesmo tempo mais



velho e muito, muito mais jovem... algo assim como uma criança cínica.





Eles têm o poder de cancelar todo o meu programa para o outro ano, se

quiserem, trocando

-

o por um de sua preferência. Querendo, podem

matricular

-

me em Economia Doméstica e Mundo da M

oda. A lei diz que

podem. Entretanto, não há nenhuma lei dizendo que podem me obrigar a

fazer o que quiserem.



Aquilo me abriu os olhos





quero dizer, mostrou a que distância ele

fora. Como era possível que um calhambeque caindo aos pedaços chegara

a signif

icar tanto para ele e tão depressa? Nos dias seguintes, essa

pergunta ficou insistindo comigo de maneiras diferentes, como eu sempre

imaginara que seria um desgosto recente. Quando Arnie disse a Michael e

Regina que ia ficar com o carro, falava sério. Ele

seguira diretamente para

aquele lugar onde eram mais fortes as suas expectativas e avançara com

uma impiedosa diligência que me surpreendia. Não creio que táticas

menores funcionassem com Regina, mas a verdade é que Arnie conseguira

surpreender

-

me. De fato

, ele me surpreendera um bocado. O que fervia

por baixo daquilo era que, se Arnie passasse seu último ano em T.V., a

universidade seria jogada pela janela. E, para Michael e Regina, isso era

uma impossibilidade.







Quer dizer que... então eles desistiram?






E

ra quase como extorquir

-

lhe as respostas, porém eu não podia

deixar as coisas assim, enquanto não soubesse tudo.







Não dessa maneira. Eu disse que encontraria um lugar para

guardar o carro e que não tentaria submetê

-

lo a uma vistoria ou registro

sem a apro

vação deles.







Acha mesmo que vai levar a melhor nisto?



Ele esboçou um breve e soturno sorriso, ao mesmo tempo confiante

e amedrontado. Era o sorriso de um operador de escavadeira, baixando a

lâmina de um Cat D

-

9, diante de um barranco especialmente difíci

l.







Levarei





respondeu Arnie.





Quando quero, eu levo a melhor.

E sabem de uma coisa? Acreditei que ele levaria mesmo.





A

RNIE

S

E

C

ASA



Recordo o dia



Quando o escolhi entre todo aquele ferro

-

velho,



Eu podia dizer que ele era ouro,



Debaixo daquela camada de



ferrugem,



E sem batidas...







The Beach Boys





Podíamos ter duas horas de trabalho extra naquela noite de sexta

-

feira, mas não quisemos. Recolhemos nossos cheques no escritório,

descemos até a filial de Libertyville do Banco de Empréstimos e Poupança

de Pit

tsburgh e os descontamos. Depositei a maior parte do meu em uma

conta de poupança, deixei cinqüenta na conta corrente (ter uma conta

corrente fazia com que me sentisse inquietantemente adulto





imagino

que a sensação se apague com o tempo) e fiquei com vin

te em dinheiro.



Arnie retirou todo o seu cheque em dinheiro vivo.







Tome





disse ele, estendendo

-

me uma nota de dez.










Não





respondi.





Fique com ela, cara. Vai precisar de cada

centavo, antes de terminar aquela lanternagem.







Aceite





insistiu ele.





Eu

pago minhas dívidas, Dennis.







Guarde o dinheiro. Sinceramente.







Aceite.



Ele estendia a nota, inexoravelmente. Apanhei

-

a, mas o obriguei a

ficar com o dólar que sobrava. Arnie não queria aceitar.



Ao cruzarmos a cidade em direção ao terreno da casa de LeBa

y,

Arnie ficou mais agitado, tocando o rádio alto demais, marcando um

improvisado compasso primeiro batendo nas coxas, depois no painel de

instrumentos. Foreigner começou a cantar

"Dirty White Boy

".







É a história da minha vida, Arnie meu chapa





falei.



El

e riu, muito alto e por muito tempo. Agia como homem esperando

que a mulher tenha um bebê. Por fim, percebi que estava assustado,

temendo que LeBay houvesse vendido o carro, fora do combinado.







Fique calmo, Arnie





falei.





Ele está lá.







Estou calmo, est

ou calmo





disse, oferecendo

-

me um largo,

brilhante e falso sorriso. Naquele dia, sua pele estava pior do que nunca, e

me perguntei (não pela primeira, nem pela



última vez) como se sentiria

sendo Arnie Cunningham, encurralado atrás daquele rosto gotejante,



de

segundo a segundo, minuto a minuto e...







Ora, pare de suar! Está agitado como se tivesse borrado as calças,

antes mesmo de chegarmos lá!







Não estou suando





disse ele.



Batucou outro nervoso compasso no painel de instrumentos,

justamente para me prova

r que não estava nervoso.

"Dirty White Boy"

, de

Foreigner, foi substituído por

"Jukebox Heroes"

, também cantado por ele.

Era um anoitecer de sexta

-

feira e o

Block Party Weekend



já começara, em

FM

-

104. Quando recordo aquele ano, meu último ano escolar, tenh

o a

sensação de que poderia medi

-

lo em quarteirões de rock... e uma

ascendente, uma fantástica sensação de terror.







O que significa isso exatamente?





perguntei.





O que há de

mais nesse carro?






Ele ficou olhando para Libertyville Avenue sem dizer nada, du

rante

um tempão. Depois desligou o rádio com um gesto rápido, cortando o vôo

de Foreigner pelo meio.







Não sei ao certo





respondeu.





Talvez seja porque, pela

primeira vez, desde que fiz onze anos e comecei a ficar com espinhas,

tenha visto uma coisa aind

a mais feia do que eu. Não é o que queria que

eu dissesse? Isto não o deixa em uma categoriazinha elegante?







Ei, Arnie, o que há?





falei.





Este aqui é o Dennis, lembra

-

se de

mim?







Claro que me lembro





replicou ele.





E ainda somos amigos,

certo?







Cer

to, pela última vez que chequei. Mas o que tem isso a ver

com...







Significa que não precisamos mentir um para o outro. Pelo menos,

é o que penso. Portanto, quero lhe dizer, talvez nem tudo seja legal. Sei o

que sou. Sou feio. Não faço amigos com facilidad

e. De certa forma...

afugento as pessoas. Não é minha intenção, mas acontece. Você entende?



Assenti com certa relutância, Como ele dissera, éramos amigos e isso

significava que as mentiras e tolices deviam ser reduzidas ao mínimo.



Ele assentiu de volta, co

m naturalidade.







Outras pessoas





disse, para então acrescentar,

cautelosamente



, você por exemplo Dennis, nem sempre entendem o

que isto significa. Quando a gente é feio e os outros riem de nós, a maneira

como vemos o mundo se modifica. E muito difícil

manter o senso de

humor. É uma coisa que se gruda por dentro. Às vezes, até é difícil

permanecer lúcido.







Bem, eu posso entender isso, mas...







Não





disse ele, calmo.





Você não pode entender. Pensa que

pode, mas não pode. Não mesmo! Mas você gosta de mi

m, Dennis...







Eu adoro você, cara





falei.





Sabe muito bem disso.







Talvez





respondeu ele



, e fico satisfeito. Se gosta de mim, é

porque sabe que existe algo mais... qualquer coisa por baixo das espinhas

e de meu rosto imbecil...










Seu rosto não é imbe

cil, Arnie





discordei.





Pode ser esquisito,

mas não imbecil.







Foda

-

se





disse ele, sorrindo.







Foda

-

se também o pangaré que vai montar, Cavaleiro da

Montanha.







De qualquer modo, aquele carro é assim. Há qualquer coisa por

baixo dele. Algo mais. Algo me

lhor. Eu sinto, é só isso.







Sente?







Exato, Dennis





disse ele, tranqüilo.





Eu sinto.



Dobrei para Main Street. Estávamos chegando à casa de LeBay. De

repente, tive uma idéia absolutamente idiota. E se o pai de Arnie tivesse

convocado alguns de seus amigo

s ou alunos para irem à casa de LeBay e

comprar aquele carro, tirando

-

o de seu filho? Poder

-

se

-

ia dizer que seria

um toque maquiavélico, só que a mente de Michael Cunningham era mais

do que ligeiramente tortuosa. Sua especialidade era História Militar.







E

u vi aquele carro e senti tal

atração

por ele... Nem mesmo para

mim sei explicar bem como foi, mas...



A voz se extinguiu, aqueles olhos cinzentos e sonhadores pareciam

ver o futuro.







Eu vi que poderia melhorá

-

lo





concluiu.







Consertá

-

lo, quer dizer, não

é?







Sim... bem, não. Assim, seria muito impessoal. A gente conserta

mesas, cadeiras, essas coisas. O cortador de grama, quando não quer

funcionar. E carros comuns.



Talvez ele tivesse visto minhas sobrancelhas erguidas. De qualquer

modo, deu uma risada





u

ma risadinha defensiva.







Certo, percebo como a coisa soa





disse.





Nem mesmo gostaria

de colocar em palavras, porque sei como soa, mas você é um amigo,

Dennis. E isto significa um mínimo de conversa fiada. Não acredito que

aquele seja um carro comum. Não



sei por que penso assim, mas... é o que

penso.



Abri a boca para dizer algo que mais tarde poderia lamentar, algo

sobre tentar olhar as coisas de outra forma ou mesmo evitar um




comportamento obsessivo. Entretanto, naquele exato momento, dobramos

a esquina

e entramos na rua de LeBay.



Arnie encheu os pulmões de ar, em uma inspiração rude e dolorida.



No gramado de LeBay, havia um retângulo ainda mais amarelado,

mais pelado e feio do que o resto do terreno. Perto de uma extremidade

do retângulo, havia uma manch

a de óleo com aparência doentia, que

mergulhara no solo, matando tudo que ali crescera antes. Aquele pedaço

retangular de terreno era tão infernalmente extenso que, acho, quem

olhasse para ele por muito tempo ficaria cego.



Era ali que estivera o Plymouth 5

8, no dia anterior.



O chão continuava lá, mas o Plymouth se fora.







Arnie





falei, quando encostei o carro no meio fio



, vá com

calma. Não se descontrole, pelo amor de Deus!



Ele não me deu a menor atenção e até duvido que me tivesse ouvido.

Seu rosto fica

ra lívido. As equimoses que o cobriam tornaram

-

se

purpúreas, ganhando relevo. Antes mesmo que eu freasse, ele já

escancarava a porta de meu Duster, no lado do passageiro, e mergulhava

para fora.







Arnie...







Foi meu pai





disse ele, com raiva e desgosto.





Posso farejar

aquele filho da mãe em

tudo

isto!



Disparou em seguida, correndo pelo gramado até a porta de LeBay.



Saí do carro e corri atrás dele, refletindo que aquela merda nunca

mais teria fim. Mal podia acreditar que acabara de ouvir Arnie

Cunningham c

hamar Michael de filho da mãe.



Arnie erguia o punho para martelar a porta, quando ela se abriu.

Roland D. LeBay, em pessoa, surgiu à vista. Agora usava uma camisa

sobre o colete para as costas. Olhou para o rosto enfurecido de Arnie com

um sorriso benignam

ente cobiçoso.







Olá, filho





disse.







Onde está ele?





perguntou Arnie, fora de si.





Nós fizemos um

negócio! Droga, fizemos um negócio! Entregou

-

me um recibo!










Baixe a fervura





disse LeBay. Então me viu, parado junto ao

último degrau, com as mãos enfia

das nos bolsos.





O que há de errado

com seu amigo, filho?







O carro sumiu





falei.





É o que há de errado com ele.







Quem o comprou?





gritou Arnie.



Eu nunca o vira tão enfurecido. Se tivesse uma arma naquele

momento, creio que a teria encostado à têmpora



de LeBay. Fiquei

fascinado, mesmo sem querer. Aquilo era como se um coelho tivesse

ficado subitamente carnívoro. Que Deus me perdoe, mas cheguei a pensar,

em um relance, se Arnie não teria um tumor no cérebro.







Quem o comprou?





repetiu LeBay brandamente

.





Até agora,

ninguém, filho. Bem, você deu um sinal pelo carro. Eu o levei para a

garagem, eis tudo. Coloquei o pneu sobressalente e troquei o óleo.



O velho empertigou

-

se e então ofereceu

-

nos um sorriso

absurdamente magnânimo.







Você é um grande sujeito





falei.



Arnie o fitou com incerteza, depois girou bruscamente a cabeça para

a porta fechada da modesta garagem para um carro, anexada à casa por

um corredor coberto. Um corredor que, como tudo o mais na propriedade

de LeBay, já vira melhores dias.







Por o

utro lado, não quis deixá

-

lo aqui fora, já que você tinha

dado um sinal de compra





disse ele.





Um ou dois caras desta rua

podiam criar problemas. Certa noite, um garoto atirou uma pedra em meu

carro. Oh, claro, tenho alguns vizinhos saídos diretamente da



B.E.P.







O que é isso?





perguntei.







É a Brigada dos Espíritos de Porco, filho.



Ele varreu o lado oposto da rua com um maligno olhar de caçador à

espreita, abrangendo os carros simples e econômicos que agora tinham

retomado do trabalho para casa, as cria

nças brincando de pique e pulando

corda, as pessoas sentadas à porta de casa e bebericando, à primeira brisa

da noite fria.







Eu gostaria de saber quem jogou aquela pedra





disse ele, em

voz branda.





Sim, senhor, eu gostaria de saber quem foi.






Arnie pigar

reou.







Sinto muito ter

-

lhe falado daquela maneira.







Não tem importância





respondeu LeBay vivamente.





Gosto

de ver um sujeito exigir o que é seu... ou quase seu. Trouxe o dinheiro,

garoto?







Sim, trouxe.







Muito bem, entrem. Você e seu amigo também. Vou



passar um

recibo de compra em seu nome e tomaremos um copo de cerveja para

comemorar.







Não, obrigado





falei.





Eu fico aqui fora, se não se importa.







Isso é com você, filho





disse LeBay... e me piscou o olho.



Até hoje não sei bem o que significaria aq

uela piscadela. Os dois

entraram e a porta bateu, fechando

-

se atrás deles. O peixe caíra na rede e

agora ia ser escamado.



Sentindo

-

me deprimido, caminhei pelo corredor coberto até a

garagem e tentei abrir a porta. Ela deslizou para cima com facilidade e

as

pirei os mesmos odores já sentidos, quando abrira a porta do Plymouth,

na véspera: óleo, estofamento antigo, o calor acumulado de um longo

verão.



Ancinhos e alguns velhos apetrechos de jardim alinhavam

-

se ao

longo de uma parede. Na outra, uma mangueira vel

híssima, uma bomba

de bicicleta e um antigo saco de golfe, cheio de tacos enferrujados. No

meio da garagem, com a proa virada para a saída, estava Christine, o carro

de Arnie, parecendo ter um quilômetro de comprimento naquela época,

em que os próprios Cad

illacs davam uma idéia de comprimidos e

semelhantes a caixotes. A confusa teia de aranha de rachaduras a um lado

do pára

-

brisa captou a claridade, transformando

-

a em um prateado sujo.

Um garoto com uma pedra





tinha dito LeBay



, ou talvez um ligeiro

acide

nte, ao voltar para casa, vindo de uma reunião com os VFW (os

veteranos de guerras no estrangeiro), após uma noite bebendo uísque

misturado a cerveja e contando histórias sobre a Batalha do Bulge ou de

Pork Chop Hill. Os bons e velhos tempos, quando um hom

em podia ver a

Europa, o Pacífico e o misterioso Oriente de trás da mira de uma bazuca.

Quem podia saber... e o que importava? De qualquer modo, não ia ser

fácil encontrar um pára

-

brisa para reposição tão grande como aquele.






E nem ia ser barato.



Oh, Arnie!



pensei. Cara, você está indo muito fundo.



O pneu que LeBay trocara descansava contra a parede. Agachei

-

me

sobre as mãos e os joelhos, para uma espiada debaixo do carro. Uma

recente mancha de óleo começava a formar

-

se ali, negra contra o fantasma

acastanha

do de outra mais antiga e mais larga, que se infiltrara no

cimento, durante um período de anos. Aquilo não diminuiu minha

depressão. Sem dúvida, o bloco do motor devia estar rachado.



Dei a volta até o lado do motorista e, ao segurar o volante, avistei

uma

lata de lixo no canto mais distante da garagem. Por sobre a borda,

assomava uma enorme garrafa de plástico. As letras SAPPH eram visíveis

acima da borda.



Grunhi. Muito bem, ele trocou o óleo. Quanta gentileza. Retirara o

velho





o que quer que houvesse sob

rado dele





e despejara alguns

quartos de Sapphire Motor Oil. É o troço que se consegue a 3 dólares e

cinqüenta em Mammoth Mart, por lata de cinco galões reciclados. Roland

D. LeBay era um verdadeiro príncipe, sem dúvida. Roland D. LeBay era

um sujeito for

midável.



Abri a porta do carro e deslizei para trás do volante. Agora, o cheiro

na garagem não parecia tão pesado ou tão carregado com impressões de

desuso e fracasso. O volante era amplo e vermelho





um volante de

confiança. Tornei a olhar para aquele esp

antoso velocímetro, aquele

velocímetro calibrado, não para 70 ou 80, mas todo o caminho até 120

milhas por hora. Não havia a marcação por quilômetro, em pequenos

números vermelhos, abaixo das milhas; quando aquele bebê rodara para

fora da linha de montagem

, a idéia do sistema métrico ainda não ocorrera

a ninguém em Washington. Tão pouco vi qualquer grande 55 em

vermelho no velocímetro. Naquele tempo, a gasolina saía por 29,9 o galão,

talvez menos, se em sua cidade estivesse em prática o preço de guerra. Os

embargos ao petróleo árabe e as penalidades quanto ao limite de

velocidade, ainda estavam a quinze anos de distância.



Os bons e velhos tempos,

pensei, e tive que sorrir um pouco. Remexi

no lado esquerdo do assento, embaixo, e encontrei o pequeno console co

m

o botão que movia o banco para diante e para trás, para cima e para baixo

(se ainda funcionava, claro). Mais poder para você, como se diz por aí.

Havia um condicionador de ar (com

toda certeza,

aquilo não funcionava),




controle para velocidade de cruzeiro



e um enorme rádio com botões de

apertar e montanhas de cromados





AM apenas, é claro. Em 1958, a FM

era principalmente um deserto vazio.



Segurei o volante com as duas mãos e algo aconteceu.



Mesmo hoje, depois de muito refletir, não imagino exatamente o qu

e

fosse. Uma visão, talvez







mas se fosse, talvez não tivesse grande

importância. Acontece que, por um momento, aquele estofamento rasgado

parecia ter desaparecido. Agora estava inteiro, desprendendo um cheiro

agradável de vinil... ou talvez aquele cheiro

fosse de couro verdadeiro. As

partes gastas da direção haviam sumido; o cromado piscava alegremente

à claridade noturna do verão, entrando pela porta da garagem.



Vamos sair daqui e dar uma volta, garotão,

Christine pareceu sussurrar,

em meio ao quente silê

ncio estivai da garagem de LeBay.

Vamos rodar por

aí.



Então, só por um instante, pareceu que

tudo

mudara. Aquela

horrorosa confusão de rachaduras no pára

-

brisa sumira





ou era esta a

impressão. O pequeno trecho do gramado de LeBay, que eu podia ver dali,

n

ão estava amarelado, ralo e maltratado, mas ficara de um verde

exuberante e farto, recentemente aparado. A calçada mais além estava

cimentada de fresco, sem uma fenda no piso à vista. Eu vi (pensei ou

sonhei ter visto) um motor de Cadillac 57 à minha frent

e. Aquele cavalo

empinado GM era de um verde

-

hortelã, não havia o menor salpico de

ferrugem na lataria, os pneus eram enormes, de banda branca, com calotas

refletindo mais que espelhos. Um Cadilac do tamanho de um iate, por que

não? A gasolina era quase tã

o barata como a água da torneira.



Vamos sair daqui e dar uma volta, garotão... Vamos rodar por aí.



Claro, por que não? Eu podia ligar o motor e rumar para o centro da

cidade, em direção ao antigo ginásio que ainda estava de pé





ele só se

incendiaria seis

anos mais tarde, em 1964





e eu poderia ligar o rádio,

para ouvir Chuck Berry cantando

"Maybelline"

ou os Everlys em "

Wake up

little Susie".

Talvez Robin Luke, gemendo "

Susie Darling

'. E então, eu...



E então saí daquele carro, o mais depressa que pude. A

porta se

abriu com um infernal rangido enferrujado e arranhei fundo o cotovelo,

em uma das paredes da garagem. Empurrei a porta para que se fechasse

(falando francamente, eu nem queria tocar nela) e então fiquei lá parado,

contemplando o Plymouth que, salv

o algum milagre, logo pertenceria a




meu amigo Arnie. Esfreguei o osso arranhado do cotovelo. Meu coração

batia aceleradamente.



Nada. Não havia cromados novos nem novo estofamento. Ao

contrário, havia uma profusão de amassaduras e ferrugem, faltava um

farol



dianteiro (detalhe que, na véspera, me passara despercebido) e a

antena do rádio se inclinava em um ângulo esquisito. Mais aquela poeira,

o cheiro sujo de velhice.



Naquele momento, decidi que não gostava do carro de meu amigo

Arnie.



Saí da garagem, olhand

o constantemente para trás por sobre o

ombro





sei lá por quê, mas não gostava daquilo às minhas costas. Sei

que pode parecer absurdo, mas era como me sentia. E lá estava o carro,

com o radiador amassado e enferrujado, sem nada de sinistro e nem

mesmo estr

anho, apenas um velho automóvel Plymouth, com uma

etiqueta adesiva de inspeção, que caducara em 1º de junho de 1976 muito

tempo atrás.



Arnie e LeBay saíam da casa. Arnie tinha na mão um pedaço de

papel, que deduzi ser seu recibo de compra. As mãos de LeBay



estavam

vazias; ele já fizera o dinheiro desaparecer.







Espero que desfrute bastante da máquina





dizia LeBay,

fazendo

-

me pensar em um gigolô muito idoso, engambelando um rapaz

muito novo. Senti uma onda de pura aversão por ele... ele com sua

psoríase no

crânio e seu suado colete ortopédico.





Creio que a desfrutará.

Com o tempo.



Seus olhos ligeiramente remelosos encontraram os meus, fixaram

-

se

neles por um segundo e depois deslizaram de volta a Arnie.







Com o tempo





repetiu.







Sim, senhor, tenho certeza

disso





respondeu Arnie, alheiamente.

Moveu

-

se para a garagem como um sonâmbulo e ficou parado, olhando

seu carro.







As chaves estão nele





disse LeBay.





Terá que levá

-

lo daqui.

Compreende, não?







E o motor dará partida?










Deu partida ontem para mim, à no

ite





disse LeBay, mas seus

olhos se voltaram para o horizonte. Depois em um tom de quem lavou as

mãos em todo aquele negócio, acrescentou:





Seu amigo aqui deve ter

algum cabo no porta

-

mala.



Bem, para dizer a verdade, eu

tinha

o cabo no porta

-

mala, porém

não gostei muito de LeBay ter adivinhado isso. Não gostei que ele

adivinhasse, porque... Suspirei de leve. Porque não queria ser envolvido

no futuro relacionamento de Arnie com o calhambeque que havia

comprado. No entanto, estava me vendo ser arrastado par

a aquilo, passo a

passo.



Arnie cessara inteiramente a conversa. Caminhou para a garagem e

entrou no carro. O sol do fim da tarde agora batia em cheio sobre o carro e

vi a pequena nuvem de poeira que subiu quando Arnie se sentou, e sacudi

automaticamente os



meus fundilhos. Por um instante, ele ficou apenas

parado diante do volante, as mãos segurando

-

o frouxamente, e senti que

minha inquietação voltava. De certa forma, era como se o Plymouth o

tivesse engolido. Disse a mim mesmo para parar com aquilo, que não



havia nenhuma maldita razão para que continuasse agindo como uma

menininha imbecil da sétima série.



Então, Arnie inclinou

-

se ligeiramente. O motor começou a dar

partida, depois morreu. Virando

-

me, atirei um olhar irritado e acusador

para LeBay, porém ele

voltara a estudar o céu, como que em busca de

chuva.



Aquele motor não ia pegar, não ia pegar de maneira alguma. Meu

Duster estava em ótimo estado, mas os dois carros que eu tivera antes

eram calhambeques (calhambeques

recauchutados

e nenhum deles

pertencen

do à mesma categoria de Christine), portanto, ficara bem

familiarizado com aquele som nas manhãs frias de inverno, aquele lento e

cansado ruído desconjuntado, indicando que a bateria arranhava o fundo

do barril.



Rurr

-

rurr

-

rurr... rurr... ru

rr

... ru

rr

... ru

rr...







Não se preocupe, Arnie





falei.





Não vai pegar nunca.



Ele nem mesmo ergueu a cabeça. Desligou e tornou a girar a chave

na ignição. O motor resmungou, com dolorosa e difícil lentidão.

Encaminhei

-

me para LeBay.










Não podia tê

-

lo deixado trabalhar o

tempo suficiente para

carregar um pouco a bateria, pelo menos?





perguntei.



LeBay me fitou com seus olhos remelentos e amarelados, sem nada

dizer. Depois começou a perscrutar novamente o céu, pesquisando chuva.







O mais provável é que nem tenha chegado a t

rabalhar. Talvez

você tenha arranjado uns dois amigos que o ajudaram a empurrá

-

lo até a

garagem. Se é que um velho imbecil como você tem amigos.



Ele baixou os olhos para mim.







Você não sabe tudo, filho





disse.





Ainda nem aprendeu a

enxugar atrás das ore

lhas. Quando tiver passado por duas guerras, como

eu...







Suas duas guerras que se fodam!





repliquei deliberadamente.



Caminhei para a garagem, onde Arnie continuava tentando ligar o

motor de seu carro. Pensei que seria mais fácil secar o Atlântico com um

canudinho de palha ou ir até Marte em um balão de ar quente.



Rurr... rurr... rurr...



Logo o último ohm, o último erg, seriam sugados daquela velha

bateria da Sears, não restando senão o mais desanimador de todos os sons

automotrizes, ouvidos tão comumente

em estradas secundárias

encharcadas de chuva e auto

-

estradas desertas: o clique estéril e

monótono do solenóide, seguido por um terrível som semelhante a um

chocalho.



Abri a porta do lado do motorista.







Vou apanhar meus cabos





falei. Ele ergueu os olhos.







Acho que ele vai pegar para mim





respondeu.



Senti meus lábios se distenderem em um largo sorriso de dúvida.







De qualquer modo, vou buscar os cabos.







Está bem, já que você quer





Arnie respondeu com ar ausente.

Então, em uma voz quase inaudível, acres

centou:





Vamos, Christine! O

que me diz?






No mesmo instante, aquela voz despertou em minha cabeça e

tornou a falar:

Vamos sair daqui e dar uma volta, garotão... Vamos rodar por aí...

e estremeci.



Ele tornou a girar a chave. Esperei o clique seco do solenói

de e o

chocalhar que logo engasgaria. No entanto, o que ouvi foi o lento

estertorar do motor, de repente ganhando velocidade. O motor pegou,

ficou assim um instante, depois morreu. Arnie girou a chave novamente.

O motor trabalhou mais depressa. O arranque

soava tão alto como uma

bomba usada, mas em bom estado, naquele confinado espaço da garagem.

Sobressaltei

-

me. Arnie continuou quieto, perdido em seu próprio mundo.



A essa altura, eu já teria praguejado umas duas vezes, apenas para

dar força, para ajudar a

máquina:

Vamos, filha da puta,

sempre é uma boa

pedida;

Pegue, porra!

também tem seus méritos e, às vezes, apenas um

bom e saudável

merda

-

PEGUE!

realiza o milagre. A maioria dos caras que

conheço faria o mesmo; penso que isto é apenas uma das coisas que

ap

rendemos com nosso pai.



O que nos fica da mãe, em geral, são conselhos práticos e insistentes:

se cortar as unhas dos pés duas vezes por mês, não ficará com tantos

buracos nas meias; largue uma coisa no chão, e não vai saber onde ela está;

coma sua cenoura

, porque faz bem





mas é com o pai que aprendemos as

palavras mágicas, os talismãs do poder. Se o carro não pega, xingue

-

o... e

certifique

-

se de que o xingamento seja no feminino. Se recuássemos sete

gerações, provavelmente veríamos um de nossos tataravós

xingando a

maldita cadela daquele burro que parou na metade da ponte em que se

pagava pedágio, em algum lugar do Sussex ou de Praga.



Arnie, entretanto, não xingou em absoluto. Murmurou baixinho:







Vamos, boneca, o que me diz?



Girou a chave. A máquina estre

meceu duas vezes, o arranque

tornou a soar e então pegou. Era um som horrível, como se quatro dos oito

êmbolos houvessem tirado folga naquele dia, mas o motor continuou

funcionando. Eu mal podia acreditar, porém não pretendia ficar por ali e

discutir o cas

o com Arnie. A garagem se enchia rapidamente de fumaça

azul e vapores. Fui para fora.







Afinal, o motor pegou direitinho, não foi?





disse LeBay.





E

você não precisará arriscar sua preciosa bateria.






Ele deu uma cusparada. Não pude pensar em algo como resp

osta.

Para ser franco, fiquei um pouco constrangido.



O carro saiu lentamente da garagem, parecendo tão absurdamente

comprido que dava vontade de rir, chorar, fazer qualquer coisa. Era difícil

acreditar que pudesse ser tão grande. Parecia uma ilusão de ótic

a. E Arnie

ficara ainda menor, atrás do volante.



Ele arriou o vidro da janela e acenou para mim. Tínhamos que gritar,

para que nossas vozes fossem ouvidas





era outro detalhe sobre Christine,

a garota de Arnie: tinha uma voz extremamente alta e rouca, que

exigiria

um pronto controle. O que sobrara do sistema exaustor, ao qual se poderia

adaptar um silencioso, não passava de um monte de rendilhado

ferruginoso. Desde que Arnie tomara posição ao volante, a pequena caixa

registradora na seção de automóveis de m

eu cérebro já totalizara as

despesas em cerca de seiscentos dólares





nisto não incluído o pára

-

brisa

estilhaçado. Só Deus sabia quanto poderia custar aquela reposição.







Vou levá

-

lo para a Darnell's!





gritou Arnie.





Seu anúncio no

jornal diz que posso e

stacioná

-

lo nos boxes traseiros por vinte dólares a

semana!







Arnie, vinte dólares por semana em um daqueles boxes dos

fundos é demais!





gritei em resposta.



Aí vinha mais roubalheira contra os jovens e inocentes. A Garagem

de Darnell fica contígua a um te

rreno baldio de quatro acres, ocupado por

automóveis usados, sob o falsamente animador nome de

Darnell's Used

Auto Parts





Peças Usadas de Carro do Darnell. Eu estivera lá algumas

vezes, uma delas a fim de comprar um acionador de arranque para o meu

Duster

, outra em busca de um carburador recondicionado para o Mercury

que havia sido meu primeiro carro. Will Darnell era um sujeito grande e

gordo como um porco, que bebia um bocado e fumava compridos

charutos, um atrás do outro, embora se dissesse que sua cond

ição de

asmático não era das melhores. Ele declarava odiar quase todo

adolescente dono de carro em Libertyville... embora isso não o privasse de

fazer negócios com eles e enrolá

-

los.







Eu sei





berrou Arnie, acima do barulhento motor



, mas será

apenas por



uma semana ou duas, até eu encontrar um lugar mais barato.

Não posso levá

-

lo para casa do jeito como está, Dennis. Papai e mamãe

iam armar uma discussão dos diabos!






Sem a menor dúvida, ele tinha razão. Abri a boca para dizer

qualquer coisa mais





talvez p

edir

-

lhe para acabar com aquela loucura,

antes que fosse tarde. Então, tornei a fechá

-

la. O negócio estava feito. Por

outro lado, eu não queria mais competir com aquele barulhento cano de

descarga e muito menos ficar ali, enviando para os pulmões um bocado



da

empesteada fumaceira de carbono que o carro cuspia para fora.







Está bem





falei.





Irei atrás de você.







Boa idéia





disse ele, sorridente.





Vou por Walnut Street e

Basin Drive. Prefiro ficar fora das ruas principais.







Certo.







Obrigado, Dennis.



Ele



baixou novamente a transmissão hidramática e o Plymouth

saltou um metro para diante, quase se desconjuntando. Arnie desacelerou

um pouco e Christine soprou vento e terra para os lados. O Plymouth

desceu a entrada para carros de LeBay, até a rua. Quando Ar

nie puxou o

freio, somente uma lanterna traseira se acendeu. Minha calculadora

automotiva mental somou impiedosamente mais cinco dólares.



Ele girou o volante para a esquerda e manobrou para a rua. Os

remanescentes do silencioso arranharam ferruginosamente

o ponto mais

baixo da calçada. Arnie deu mais combustível e o carro rugiu como um

refugiado de uma convenção Democrata em Philly Plains. Do outro lado

da rua, as pessoas se debruçavam na entrada das casas ou chegavam à

porta, para verem o que estava aconte

cendo.



Resfolegando e grunhindo, Christine rodou pela rua, a uns quinze

quilômetros horários, expelindo espessas e fedorentas nuvens de azulado

óleo queimado, que ficavam suspensas no ar e então se diluíam

lentamente, ao suave anoitecer de agosto.



No sinal

, uns quarenta metros adiante, o motor afogou. Um garoto

passou pelo calhambeque em seu Raleigh e, até meus ouvidos, chegou seu

grito insolente, debochado:







Leve pro ferro

-

velho,

mister!



O punho fechado de Arnie assomou fora da janela. Seu dedo médio

ergu

eu

-

se no ar, quando fez o gesto obsceno para o guri. Mais uma

primeira vez. Eu nunca tinha visto Arnie fazer aquilo para ninguém, em

toda a minha vida.






O arranque uivou, o motor tossiu e pegou. Desta feita, houve toda

uma série de sons chocalhantes. Era co

mo se alguém começasse a disparar

uma metralhadora em Laurel Drive, Libertyville, EUA.



Alguém logo chamaria os tiras, denunciando desordem na via

pública e eles enquadrariam Arnie, por dirigir um veículo não

-

registrado

e não

-

vistoriado





bem como, talvez,

pela provocação em público

também. Em casa, a situação não iria ficar exatamente uma beleza.



Houve o eco de um tiro final





que reverberou pela rua abaixo

como a explosão de um morteiro





e então o Plymouth virou à esquerda,

para Martin Street, o que o lev

aria à Walnut, uns dois quilômetros acima.

O sol que se punha transformou ligeiramente em ouro a vetusta lataria

vermelha, quando o carro desapareceu de vista. Vi que Arnie tinha o

cotovelo dobrado sobre a janela.



Virei

-

me para LeBay, revoltado novamente,

disposto a dizer

-

lhe

mais algumas palavras ásperas. Confesso que estava fervendo por dentro.

No entanto, o que vi me tirou prontamente aquela idéia da cabeça.



Roland D. LeBay estava chorando.



Era horrível e grotesco, lamentável acima de tudo. Quando estava



com nove anos, tínhamos um gato chamado Capitão Beefheart, que foi

atropelado por um caminhão da Limpeza Urbana. Nós o levamos ao

veterinário





mamãe precisou dirigir devagar, porque chorava e não

conseguia ver direito, enquanto eu estava no banco traseir

o, com o

Capitão Beefheart. Ele estava em uma caixa e eu lhe dizia que o

veterinário ia salvá

-

lo, que tudo ia ficar bem, mas mesmo um garotinho

cabeça oca de nove anos como eu podia ver que nunca mais tudo ia ficar

novamente certo para o Capitão Beefheart,



porque algumas de suas tripas

estavam para fora, havia sangue saindo de seu ânus, fezes na caixa e em

seu pêlo, e ele estava morrendo. Tentei afagá

-

lo e ele me mordeu a mão,

bem nas peles sensíveis entre o polegar e o indicador. Foi uma dor forte e

aument

ou aquela sensação de pena. Eu nunca mais sentira nada igual,

desde então. Não que eu me queixasse, compreendam; não creio que as

pessoas sintam isso muitas vezes. Se alguém experimentar muitas dessas

sensações, é levado para fazer cestas no hospício.



LeBa

y estava de pé em seu relvado careca; não muito distante do

lugar em que aquela enorme mancha de óleo havia desfolhado tudo.

Puxara um lenço enorme e, de cabeça baixa, enxugava os olhos com ele.




As lágrimas brilhavam gordurosas em suas faces, mais como suo

r, do que

lágrimas verdadeiras. Seu pomo

-

de

-

adão subia e descia.



Virei a cabeça, para não ter de vê

-

lo chorando e, por acaso, meus

olhos se fixaram em sua garagem para um carro. Antes ela parecera

entulhada





com os apetrechos ao longo da parede, claro, po

rém

principalmente por causa daquele imenso carro velho, com seus faróis

dianteiros duplos, o pára

-

brisa panorâmico e o capô de um acre. Agora, as

coisas encostadas à parede serviam apenas para acentuar o vazio essencial

da garagem, boquiaberto como uma bo

ca desdentada.



Aquilo era quase tão horrível quanto LeBay. No entanto, quando

olhei de novo, o velho filho da puta já se controlara





bem, quase. Parara

de enxugar os olhos e enfiara o lenço no bolso traseiro de suas práticas

calças de velho. O rosto, cont

udo, continuava desolado. Muito desolado.







Bem, aí está





comentou, em voz roufenha.





Fiquei sem a

minha máquina, filho.







Eu só queria que meu amigo pudesse dizer a mesma coisa





repliquei.





Se soubesse o problema que ele vai ter com seus velhos, por

c

ausa daquela lata enferrujada...







Saia daqui!





ordenou o velho.





Você parece um maldito

carneiro! É só béé, béé, béé, que ouço saindo de sua goela! Acho que

aquele seu amigo sabe muito mais do que você. Vá ver se ele precisa de

ajuda!



Desci o gramado at

é meu carro. Não queria ficar por ali, perto de

LeBay, nem mais um segundo.







É só béé, béé, béé!





gritou ele as minhas costas, rabugentamente,

fazendo

-

me pensar naquela antiga canção dos Youngbloods:

Sou um cara

de uma só nota, nela toco tudo o que posso

.





Você não sabe metade do que

pensa que sabe!



Entrei em meu carro e afastei

-

me dali. Ao dobrar para a Martin

Street, olhei para trás ainda uma vez e o vi de pé em seu terreno, com o sol

brilhando em sua calva.



Da maneira como aconteceram as coisas, LeBay



estava certo. Eu não

sabia metade do que imaginava saber.






C

OMO

C

HEGAMOS À

D

ARNELL

'

S



Tenho um calhambeque 34



E o chamamos de biruta,



Compreendam, n

ão tem nada de jovem,



At

é já é bem velho, mas ainda muito bom...







Jan and Dean





Desci pela Martin até Walnut



e dobrei para a direita, em direção a

Basin Drive. Não demorei muito a emparelhar com Arnie. Ele havia

parado junto ao meio

-

fio e a tampa do capô de Christine estava erguida.

Um macaco de automóvel, tão velho que quase parecia ter sido usado

outrora para

trocar rodas dos carroções Conestoga, jazia contra o

empenado pára

-

choque traseiro. O pneu traseiro da direita estava murcho.



Freei atrás dele, e mal tinha saído do carro quando uma mulher

nova saiu de sua casa em nossa direção, esgueirando

-

se por entre um

a boa

coleção de objetos de plástico fincados em sua grama (dois flamingos cor

-

de

-

rosa, quatro ou cinco patinhos enfileirados atrás da grande mãe pata e

um poço dos desejos bastante apresentável, com flores de plástico

brotando do balde de plástico). A mul

her precisava urgentemente de

orientação dos Vigilantes de Peso.







Não podem deixar esse lixo aqui!





avisou, mascando boa

quantidade de chicletes.





Não podem deixar esse lixo parado diante da

nossa casa, espero que saibam disso.







Foi apenas um pneu vazi

o, madame





disse Arnie.





Vou tirar o

carro daqui, assim que...







Não pode deixá

-

lo aí e espero que saiba disso!





insistiu ela,

como que em louca circularidade.





Meu marido logo estará chegando e

não quer nenhuma lata velha diante da casa.







Não é uma l

ata velha!





exclamou Arnie, e algo em seu tom a fez

recuar um passo.







Não fale comigo nesse tom de voz, filho





disse insolentemente

aquela obesa rainha do

be

-

bop.





Não é preciso muita coisa para meu

marido ficar furioso!










Escute aqui





começou Arnie.



Era a mesma voz inexpressiva e perigosa que usara quando Michael

e Regina tinham começado a discutir com ele. Agarrei

-

lhe o ombro com

força. Não havia necessidade de mais confusão.







Obrigado, madame





falei.





Tiraremos o carro daqui em um

instante. Vamos



dar um jeito nele tão depressa, que nem vai acreditar.







Acho melhor





disse ela, e então apontou um polegar para o

meu Duster.





E o

seu

carro está parado diante da entrada da minha

garagem.



Fiz meu carro recuar. Ela espiou a manobra e depois também recu

ou

sacolejando para a casa, onde um garotinho e uma garotinha se

espremiam na porta. Também eram gorduchos. Cada um deles comia um

belo e nutritivo sanduíche.







O que foi, mãe?





perguntou o garotinho.





O que foi com o

carro daquele homem, mãe? O que foi?







Cale a boca!





ordenou a rainha do

be

-

bop,

empurrando as duas

crianças para dentro. Sempre gostei de ver pais esclarecidos como aquela

mulher; isso me enche de esperanças no futuro. Virei

-

me para Arnie.







Muito bem





falei, dizendo a única coisa intelig

ente em que

pude pensar



, no fundo, foi apenas um pneu furado, Arnie. Certo?



Ele sorriu aereamente.







Estou com um probleminha, Dennis





disse.



Eu sabia qual era o seu problema: não tinha sobressalente. Arnie

tornou a puxar a carteira





dava pena vê

-

lo fa

zendo aquilo





e olhou em

seu interior.







Preciso de um pneu novo





continuou.







Claro, acho que precisa. Um recauchutado...







Nada de recauchutados. Não é assim que quero começar.



Fiquei calado, mas olhei para meu Duster. Tinha dois recauchutados

nele e d

ecidi que eram ótimos.







Quanto acha que custariam um Goodyear ou Firestone novos,

Dennis?






Dei de ombros e consultei a pequena calculadora automotiva. Ela

concluiu que Arnie talvez conseguisse um pneu simples, sem banda

branca, por uns trinta e cinco dólar

es. Ele puxou duas notas de vinte da

carteira e as estendeu para mim.







Se for mais, com o imposto e tudo, pagarei a diferença.





Olhei

para ele com tristeza.







Quanto sobrou de seu pagamento da semana, Arnie? Seus olhos

estreitaram

-

se, desviando

-

se dos me

us.







O bastante





respondeu.



Decidi tentar mais uma vez





lembrem

-

se de que eu tinha apenas

dezessete anos, ainda acreditando que devemos mostrar aos outros como

agir melhor.







Você não conseguiria tomar parte em um jogo de pôquer de um

níquel





falei.





Enfiou neste carro o que ganhou em toda a semana.

Esvaziar a carteira vai ser um gesto muito familiar para você, Arnie. Por

favor, cara. Reflita bem!



Seus olhos eram pétreos. Eu nunca lhe vira antes aquela expressão e,

embora talvez me considerem o mais in

gênuo adolescente da América,

não me lembrava de tê

-

la visto em

qualquer outro

rosto. Estava surpreso e

desalentado





era como se, de repente, descobrisse que procurava ter

uma conversa racional com um indivíduo simplesmente lunático. Mais

tarde, tornei a

ver tal expressão e imagino que o mesmo lhes tenha

sucedido. Hermetismo absoluto. É a expressão facial do sujeito ao qual

dizemos que a mulher a quem ama o anda corneando pelas costas.







Pare com isto, Dennis





disse ele. Levantei as mãos, exasperado.







Es

tá bem! Está bem!







E também não precisa ir ver o maldito pneu, se não quiser.





Ainda aquela expressão pétrea, obstinada em seu rosto, e estupidamente

inflexível, posso jurar.





Eu dou um jeito!



Eu ia responder, e bem poderia ter dito algo bem desaforado,



mas

aconteceu que olhei para a esquerda. As duas criancinhas roliças estavam

lá, nos limites de seu gramado. Montadas em dois velocípedes idênticos,

gêmeos, com os dedos manchados de chocolate. Olhavam para nós,

solenes.










Não precisa se exaltar, cara





f

alei.





Vou arranjar o pneu.







Só vá se quiser mesmo ir, Dennis





disse ele.





Sei que já está

ficando tarde.







Está esfriando





respondi.







Moço?





chamou o garotinho, lambendo o chocolate dos dedos.







Mamãe disse que esse carro é um cocô.







Isso mesmo





ecoou a garotinha.





Cocô

-

bosta.







Cocô

-

bosta





disse Arnie.





Ora, isto é muito inteligente, não é,

crianças? Sua mãe é filósofa?







Não





respondeu o garotinho.





Ela é Capricórnio. Eu sou Libra.

Minha irmã é...







Volto o mais depressa que puder





falei,

desajeitadamente.







Certo.







Fique calmo.







Não se preocupe. Não vou agredir ninguém.



Corri para meu carro. Enquanto deslizava para trás do volante, ouvi

a garotinha perguntar a Arnie, bem alto:







Por que a sua cara é tão suja, moço?





Dirigi uns dois quilô

metros até JFK Drive que





segundo minha

mãe, criada em Libertyville





havia sido o centro de uma das zonas mais

apreciadas da cidade, na época em que Kennedy fora assassinado, em

Dallas. Talvez tivesse dado azar, rebatizar Barnswallow Drive em

homenagem a

o Presidente morto, porque desde os primeiros anos da

década de 60 a área nos arredores da rua degenerara para uma faixa ex

-

urbana. Havia um cinema

drive

-

in,

um McDonald's, um Burger King, um

Arby's e o Big Twenty Lanes. Havia ainda uns oito ou dez postos

de

gasolina, uma vez que a JFK Drive leva à Pennsylvania Turnpike, auto

-

estrada com pedágio.



Conseguir o pneu de Arnie devia ser coisa de minutos, mas os dois

primeiros postos onde parei eram daqueles de auto

-

serviço, que nem ao

menos vendem óleo, mas apen

as gasolina; tinham uma garota com ar de




retardada atrás de uma cabine de vidro à prova de bala, dessas que ficam

sentadas diante de um console de computador, lendo um

National

Enquirer e

mascando um punhado de goma, suficientemente grande para

asfixiar um

a mula do Missouri.



O terceiro era um posto Texaco, com uma liquidação de pneus. Pude

comprar para Arnie um pneu comum que se encaixaria em seu Plymouth

(eu não conseguia chamar o carro de Christine e nem pensar nele





nela?





por aquele nome), por apenas

vinte e oito e cinqüenta, mais o

imposto, porém só havia um sujeito trabalhando lá





e tinha que colocar

o pneu novo no aro de roda de Arnie, ao mesmo tempo em que bombeava

gasolina. A operação durou mais de quarenta e cinco minutos. Ofereci

-

me

para bombea

r a gasolina em seu lugar, enquanto ele ajeitava o pneu, mas

o sujeito disse que o patrão o mataria, se soubesse disso.



Quando finalmente pude colocar o pneu montado em meu porta

-

mala, pagando duas pratas ao cara pelo serviço, as primeiras luzes do

crepúsc

ulo se tinham transformado nas primeiras sombras de um

purpúreo anoitecer. Cada arbusto lançava sombras alongadas e

aveludadas e, ao rodar devagar subindo a rua, vi as últimas luzes do dia

espalhando

-

se quase horizontalmente, através do espaço entulhado de



lixo entre o Arby's e o boliche. Aquela claridade, tanto ouro flutuante no

céu, chegava a ser terrível, em sua estranha e inesperada beleza.



Fiquei surpreso pelo sufocante pânico que me subiu da garganta

como fogo seco. Era a primeira vez que experimentav

a tal sensação

naquele ano





aquele longo e estranho ano



, porém não seria a última.

Entretanto, é difícil explicar, inclusive, defini

-

la. Tinha algo a ver com a

certeza de ser 11 de agosto de 1978, de que no mês seguinte eu passaria

para meu último perío

do letivo no ginásio e que, quando as aulas

recomeçassem, aquilo significaria o final de uma longa e tranqüila fase de

minha vida. Eu me preparava para ser adulto, e via isso de algum

modo





tinha certeza de vê

-

lo, pela primeira vez, naquela maravilhosa,

m

as de certa forma antiga exibição de luminosidade dourada, flutuando

além da passagem entre o campo de futebol e um restaurante de segunda.

Compreendi que o que realmente assusta a gente sobre crescer: é que

paramos de experimentar a máscara da vida, começ

ando a experimentar

uma outra. Se ser criança quer dizer aprender a como viver, então, ser

adulto significa aprender a como morrer.






A sensação passou, mas em sua esteira eu me senti estremecido e

melancólico. Nenhuma das duas sensações fazia parte do meu e

u habitual.



Quando retornei a Basin Drive, via

-

me repentinamente alheio aos

problemas de Arnie e procurando enfrentar os meus





idéias sobre

tornar

-

me adulto, que tinham desembocado naturalmente em idéias como

universidade, viver fora de casa e tentar entr

ar para o time de futebol na

State, disputando minha posição com mais sessenta pessoas qualificadas,

em vez de apenas dez ou doze. Então, talvez a gente diga: 'Grande droga,

Dennis, tenho algumas novidades para você: um bilhão de chineses

vermelhos pouco e

stão se lixando se você entrar para o primeiro time,

como calouro universitário.' Muito justo. Estou apenas querendo dizer

que tais coisas pareciam francamente reais pela primeira vez... e

francamente aterradoras. Por vezes, a mente nos leva em viagens com

o

essa, mesmo que não queiramos.



Ver que o marido da rainha do

be

-

bop já

chegara em casa e que ele e

Arnie estavam quase frente a frente, parecendo dispostos a desgraçar tudo

a qualquer segundo, não contribuiu em nada para modificar meu ânimo.



Os dois garo

tinhos continuavam escarranchados solenemente em

seus velocípedes, os olhos viajando de modo alternado de Arnie para

Papai e de novo para Arnie, como espectadores de alguma apocalíptica

partida de tênis, em que o juiz abate alegremente o derrotado com um t

iro.

Pareciam esperar o momento de combustão, quando Papai achataria meu

esquelético amigo e transformaria seu corpo quebrado em gelatina.



Freei rapidamente e saí do carro, quase correndo para eles.







É o que lhe estou dizendo!





rugiu Papai.





Estou lhe d

izendo

que quero isso fora daqui e agora mesmo!



O homem tinha um enorme nariz achatado, repleto de veias

arrebentadas. As bochechas afogueadas eram cor de tijolo novo e, acima

da camisa de trabalho em sarja cinzenta, veias encordoadas sobressa

íam

no pescoç

o.







Não vou dirigir em cima do aro





disse Arnie.





Já lhe falei isso.

O senhor não dirigiria, se o carro fosse seu.







Dirigirei

você

sobre o aro, Cara de pizza!





exclamou Papai, sem

dúvida querendo mostrar a seus filhos como a gente grande resolve seus

problemas, no Mundo Real.





Não vai estacionar seu horroroso




calhambeque envenenado em frente da minha casa. Não me provoque,

garoto, ou vai sair machucado!







Ninguém vai sair machucado





falei.





Vamos, senhor. Dê

-

nos

algum tempo.



Os olhos de Arnie se vol

taram agradecidos para mim e percebi o

quanto estivera amedrontado





quão amedrontado ainda estava. Sempre

um pária, ele sabia que existia algo em si mesmo





só Deus sabia o quê





que fazia certo tipo de indivíduo querer acabar com ele. Devia estar certo

d

e que isso ia acontecer novamente





mas agora ele enfrentava o perigo.



Os olhos do homem pousaram em mim.







Mais um





disse, como que admirado por existirem tantos

imbecis no mundo.





Querem que acabe com os dois? É o que querem?

Pois acreditem, eu posso f

azer isso.



Sim, eu conhecia o tipo. Dez anos antes, teria sido um dos caras no

col

égio que achavam muito divertido arrancar os livros dos braços de

Arnie, quando ele seguia para sua sala de aulas, ou atirá

-

lo no chuveiro

com todas as roupas no corpo, depoi

s da educação física. Nunca

mudavam, aqueles caras. Apenas ficavam mais velhos e ganhavam um

câncer pulmonar, ao fumarem tantos Luckies, quando não eram vítimas

de uma embolia cerebral aos cinqüenta e três ou coisa assim.







Ninguém está querendo provocá

-

lo







falei.





Ele está com um

pneu arriado, pelo amor de Deus! Nunca teve um pneu arriado?







Quero esses dois fora daqui, Ralph!



A mulher com focinho de porco estava de p

é na entrada. Sua voz era

aguda e excitada. Aquilo era ainda melhor que o

Phil Donahue S

how.

Outros vizinhos tinham

-

se aproximado para ver os acontecimentos e

tornei a pensar, com grande angústia, que se já não tivessem chamado os

tiras, alguém logo os chamaria.







Nunca tive um pneu arriado e nem deixei um calhambeque em

pedaços diante da cas

a de alguém, durante três horas





disse Ralph, bem

alto.



Seus l

ábios estavam repuxados para trás e pude ver a saliva

brilhando em seus dentes, à claridade do sol que se punha.







Foi uma hora





repliquei, tranqüilo



, se tanto.










Não me venha com suas graci

nhas, garoto





disse Ralph. Não

estou interessado. E não gosto de vocês. Trabalho para viver. Volto para

casa cansado e não tenho tempo para discussões. Quero que tirem isso

daqui e

agora!







Tenho um sobressalente em meu porta

-

mala





falei.





Se, ao

menos,



pudéssemos colocá

-

lo...







E se o senhor tivesse um pouco de compostura





começou Arnie,

irritado.



Aquilo quase fez efeito. Se havia alguma coisa que o nosso chapa

Ralph n

ão ia admitir diante dos filhos, era ser chamado de sem

compostura. Avançou para Arni

e. Não sei como a coisa terminaria





com

Arnie na cadeia, talvez, seu precioso carro apreendido





mas de algum

modo fui capaz de erguer a mão e agarrar a de Ralph pelo pulso. O

encontro das duas provocou um nítido som de tapa, dentro do crepúsculo.



A garot

inha com focinho de porco debulhou

-

se em lamurientas

l

ágrimas.



O garotinho com focinho de porco ficou montado em seu veloc

ípede,

com o queixo quase batendo no peito.



Arnie, que sempre se esgueirava como um fantasma pela

área de

fumar da escola, nem ao meno

s se encolheu. Em verdade, parecia

querer

que aquilo acontecesse.



Ralph se voltou contra mim, os olhos esbugalhados de f

úria.







Muito bem, merdinha





disse.





Você primeiro! Sustive sua

mão, pressionando

-

a.







Vamos com calma, cara





falei, em voz baixa.





O pneu está em

meu porta

-

mala. Dê

-

nos cinco minutos para mudá

-

lo e sair de sua vista.

Por favor.



Pouco a pouco, foi diminuindo a pressão para suster

-

lhe a mão. Ele

olhou para os filhos, a garotinha choramingando, o garotinho de olhos

arregalados, e isso pa

receu decidi

-

lo.







Cinco minutos





assentiu. Olhou para Arnie.





Teve muita sorte

por eu não chamar a polícia. Essa coisa não foi vistoriada e também está

sem a placa de licença.






Esperei que Arnie dissesse algo também inflamado e acabasse de

vez com a trég

ua, mas talvez ele não houvesse esquecido tudo quanto

sabia sobre prudência.







Obrigado





disse.





Sinto muito ter

-

me exaltado.



Ralph grunhiu e enfiou a camisa de volta nas calças, em pequenos

gestos bruscos. Tornou a olhar para os filhos.







Vão para casa!







vociferou.





O que estão fazendo aqui?

Querem que lhes dê um chuta

-

bunda? Céus, que família criativa, pensei.

Pelo amor de Deus, não dê um chuta

-

bunda neles, Papai





os dois podem

fazer cocô

-

bosta nas calças.



As crianças voaram para junto da mãe, abando

nando os velocípedes.







Cinco minutos





repetiu Ralph, encarando

-

nos malignamente.



Mais tarde, nessa noite, quando estivesse batendo um papo com os

rapazes, poderia contar

-

lhes como fizera o seu papel, mantendo os limites

entre a geração das drogas e do se

xo. Sim, senhor, rapazes, eu disse a eles

para tirarem a droga daquele lixo da frente da minha casa, antes que eu

lhes desse um chuta

-

bunda. E, podem acreditar, eles voaram como se

tivessem os pés em fogo e os traseiros doloridos. Então, ele acenderia um

L

ucky. Ou um Camel.



Pusemos o macaco de Arnie debaixo do pára

-

choque. Arnie mal

movera a alavanca umas três vezes quando o macaco se partiu em dois.

Fez um som poeirento quando se dividiu e a ferrugem esvoaçou em torno.

Arnie me fitou, seus olhos humildes e



doridos ao mesmo tempo.







Não se incomode





falei.





Usaremos o meu.



Já começava a escurecer. Meu coração ainda batia acelerado e a boca

estava amarga, pela confrontação com o Grande Chefão de Basin Drive,

119.







Sinto muito, Dennis





disse Arnie, em voz

baixa.





Não tornarei

a envolvê

-

lo nisto.







Esqueça. Vamos logo colocar esse pneu.



Usamos o meu macaco para levantar o Plymouth (por vários e

terríveis segundos pensei que o pára

-

choque traseiro fosse desconjuntar

-

se,

em um rangido de metal podre, e retira

mos o pneu avariado. Colocamos o

novo, apertamos as porcas mais ou menos e então arriamos o carro. Foi




um alívio imenso vê

-

lo novamente equilibrado sobre a rua; a maneira

como o pára

-

choque empenado se inclinara debaixo do macaco chegara a

assustar

-

me.







P

ronto





disse Arnie, encaixando a antiga e amassada calota

sobre as porcas.



Fiquei olhando para o Plymouth e, de repente, voltou a sensação

que eu experimentara na garagem de LeBay. Senti isso quando observei o

novo Firestone na traseira direita. A banda n

egra ainda conservava um

dos adesivos do fabricante e as vivas marcas de giz amarelo, da apressada

calibragem no posto de gasolina.



Estremeci ligeiramente





mas era impossível transmitir a fantástica

sensação que me dominava. Era como se eu tivesse visto u

ma serpente

quase pronta a livrar

-

se da pele antiga, uma serpente que já se desfizera

de parte dessa pele, revelando o que havia de novo e cintilante por baixo...



Ralph estava de pé à entrada de sua casa, espiando para nós. Em

uma das mãos segurava um gote

jante hambúrguer com Pão Maravilha. A

outra mão enrolava

-

se em torno de uma lata de cerveja.







Simpático, ele, não?





murmurei para Arnie, quando joguei seu

macaco espatifado no porta

-

mala do Plymouth.







Um grande sujeito





murmurou Arnie, em resposta.



Bas

tou isso e começamos a rir contidamente, da maneira que ríamos,

ao superar uma situação tensa. Arnie jogou o pneu velho dentro do porta

-

malas, em cima do macaco, depois ficou rindo alto, com as mãos sobre a

boca. Ele parecia um garoto, apanhado em flagrant

e, na investida contra o

pote da geléia. Só em pensar nisso, comecei a rir com vontade agora.







De que estão rindo, seus vadios?





rugiu Ralph. Ele desceu os

degraus da entrada.





Hein? Querem rir com a cara virada do avesso por

um instante? Posso mostrar

como se faz, acreditem!







Saia daqui

depressa





falei para Arnie.



Corri de volta a meu Duster. Nada conseguia conter nosso riso

agora, as gargalhadas saíam naturalmente. Joguei

-

me no banco da frente e

liguei a chave, me torcendo de rir. À minha frente, o P

lymouth de Arnie

entrou em movimento com um rugido e uma espessa, fedorenta nuvem

de descarga azul. Mesmo acima da barulheira, eu conseguia ouvir suas

risadas incontidas, um som que beirava a histeria.






Ralph investiu através do gramado, ainda segurando o h

ambúrguer

gotejante e a lata de cerveja.







De que estão rindo, seus vadios? Hein?







Seu, seu careta! Quadradão!





gritou Arnie, triunfante, partindo

entre uma chocalhante fuzilaria de estouros.



Pisei no acelerador e tive que manobrar bruscamente, para evita

r

Ralph que, agora, aparentemente, partia para o homicídio. Eu continuava

rindo, porém não era mais um riso satisfeito, se é que chegara a sê

-

lo





era um som agudo e arquejante, quase como um grito.







Eu mato você, vagabundo!





rugiu Ralph.



Tornei a pisar n

o acelerador e, desta feita, quase engatei na traseira

de Arnie. Fiz a Ralph o mesmo gesto obsceno que Arnie fizera aquela

tarde, depois gritei:







Enfie!



Então, ele começou a correr atrás de nós. Tentou emparelhar e, por

alguns segundos, seus pés ressoaram



na calçada. Depois parou,

respirando com dificuldade e grunhindo.







Que dia mais louco!





exclamei em voz alta, algo amedrontado

pela trêmula e lacrimosa qualidade de minha voz. O gosto amargo me

voltara à boca.





Que dia mais infernalmente louco!





Em Ham

pton Street, a Garagem de Darnell era uma construção

alongada, com as laterais em folhas de zinco corrugado e um teto

enferrujado, também de zinco corrugado. Na fachada havia uma tabuleta

com letras ensebadas onde se lia: POUPE SEU DINHEIRO! SEU

KNOW

-

HOW,

NOSSAS FERRAMENTAS! Mais abaixo, em letras menores, lia

-

se:

Vaga na Garagem, Alugada por Semana, Mês ou Ano.



O depósito de automóveis velhos ficava atrás da Darnell's. Era uma

área com o comprimento de um quarteirão, encerrada entre muros

formados por lâmi

nas do mesmo zinco corrugado, com metro e meio de

altura, o indiferente assentimento de Will Darnell aos regulamentos do

Conselho de Zoneamento da Cidade. Não que houvesse alguma forma de

o Conselho fazer Will Darnell andar na linha, nem porque dois dos tr

ês

membros do Conselho de Zoneamento eram seus amigos. Em Libertyville,




Will Darnell conhecia todos que lhe interessavam. Era um daqueles tipos

encontrados em qualquer cidade, grande ou pequena, que se

movimentam silenciosamente por trás de qualquer número



de cenários.



Eu ouvira dizer que ele estava envolvido no ativo tráfico de drogas

entre os alunos do Ginásio de Libertyville e do Ginásio Darby. Também

ouvira dizer que era bem conhecido entre os escroques importantes de

Pittsburgh e Filadélfia. Eu não acr

editava nessa história





pelo menos,

penso

que não acreditava



, mas sabia que quem quisesse fogos de

artifício, bombas de segunda mão ou foguetes de qualidade inferior para o

Quatro de Julho, Will Darnell tinha para vender. Por meu pai, também

ficara sabe

ndo que Will fora acusado doze anos antes, quando eu era

apenas um guri de cinco anos, de ser um dos chefes de uma quadrilha de

carros roubados, que se estendia daquela nossa parte do mundo para leste,

até a Cidade de Nova Iorque e em toda a longitude para



cima, até Bangor,

no Maine. Finalmente, as acusações foram retiradas. No entanto, meu pai

dizia ter certeza de que Will Darnell devia estar atolado até as orelhas em

outras bandalheiras, o que quer que fosse, desde roubo da carga de

caminhões, a falsifica

ção de antigüidades.



Fique longe daquele lugar, Dennis,

dissera meu pai. Isto fora um ano

antes, não muito depois de eu ter adquirido meu primeiro calhambeque e

investido vinte dólares no aluguel de um dos boxes da Garagem Faça

-

você

-

mesmo, de Darnell, para



tentar trocar o carburador, em uma

experiência que terminara em total fracasso.



Eu devia ficar longe daquele lugar





mas lá estava, penetrando pela

entrada principal, atrás de meu amigo Arnie, depois do escurecer, nada

restando do dia senão uma mancha ave

rmelhada de fornalha no horizonte.

Os faróis dianteiros iluminaram um número suficiente de peças de carro

rejeitadas, destroços inaproveitáveis e sucata por toda parte, o que me

deixou mais deprimido e cansado do que nunca. Lembrei que não havia

telefonado



para casa e que meus pais certamente estariam se perguntando

em que diabo de lugar eu estaria.



Arnie rodou até uma imensa porta de garagem, com um cartaz ao

lado, dizendo BUZINE PARA ENTRAR. Uma claridade esmaecida

brotava de uma janela coberta de sujeira

, ao lado da porta





havia

alguém em casa





e mal contive um impulso de debruçar

-

me para fora

do carro e dizer a Arnie para levar o Plymouth até minha casa, por aquela

noite. Tive uma visão de nós dois dando com Will Darnell e seus




companheiros inventarian

do televisões coloridas contrabandeadas ou

repintando Cadillacs roubados. Os garotos detetives chegam a Libertyville.



Arnie ficou quieto, sem buzinar ou fazer coisa alguma. Eu já me

dispunha a sair e perguntar

-

lhe o que havia, quando ele caminhou até

onde

eu estacionara. Mesmo àquela débil claridade do lusco

-

fusco, ele

parecia profundamente constrangido.







Quer buzinar para mim, Dennis?





pediu, com humildade.





Parece que a buzina de Christine não funciona.







Claro.







Obrigado.



Buzinei duas vezes e, após u

ma pausa, a enorme porta da garagem

se ergueu, com um ruído chocalhante. O próprio Will Darnell estava

parado lá, com a pança sobrando acima do cinto. Acenou

impacientemente para que Arnie entrasse.



Manobrei meu carro, colocando

-

o de frente para a saída e

entrei

também.



O interior era imenso, abobadado e terrivelmente silencioso no fim

do dia. Havia pelo menos uns sessenta compartimentos para carros, cada

um equipado com sua própria caixa de ferramentas, aparafusada por

baixo, a fim de que os amadores com c

arros avariados, mas sem

ferramentas, fizessem eles mesmos os consertos. O teto era alto, cruzado

por vigas nuas e parecendo oscilantes.



Havia avisos pregados por toda parte: TODAS AS FERRAMENTAS

DEVEM SER INSPECIONADAS ANTES DE SUA PARTIDA e MARQUE

ANTECI

PADAMENTE SUA HORA PARA O ELEVADOR e SOLICITE

UM MANUAL DE MOTORES e NÃO ADMITIMOS LINGUAGEM

IMPRÓPRIA E PALAVRÕES. Vi dúzias de outros





para cada canto que

me virasse, um aviso parecia saltar em minha direção. Um enorme

homem

-

aviso era Will Darnell.







Bo

xe vinte! Boxe vinte!





gritou Darnell para Arnie, em sua voz

irritante e resfolegante.





Ponha o carro lá e desligue o motor, antes que

fiquemos todos asfixiados!



"Todos" parecia ser um grupo de homens em uma enorme mesa de

jogo, no canto mais distante. F

ichas de pôquer, cartas de baralho e

garrafas de cerveja espalhavam

-

se por sobre a mesa. Eles observavam a




nova aquisição de Arnie, com expressões que variavam da aversão ao

divertimento.



Arnie dirigiu o Plymouth para o boxe vinte, estacionou

-

o e desligou

o motor. Uma fumaceira azulada foi expelida para o imenso e cavernoso

recinto.



Darnell se virou para mim. Usava uma camisa branca semelhante a

um velame e calças cáqui marrons. Enormes rolos de gordura

destacavam

-

se em seu pescoço e caíam em babados, abaix

o do queixo.







Garoto





disse ele, naquela mesma voz resfolegante



, se

vendeu para ele aquele pedaço de merda, devia ter vergonha do que fez.







Não fui eu que vendi.





Por alguma absurda razão, senti que

devia justificar

-

me com aquela baleia, de uma forma



como jamais fizera

com meu pai.





Até procurei convencê

-

lo a cair fora do negócio.







Devia ter sido mais insistente.



Ele caminhou até Arnie, que então saía do carro. Arnie bateu a porta;

a ferrugem caiu em flocos, do painel oscilante daquele lado, em um f

ino

chuveiro vermelho.



Com ou sem asma, Darnell caminhava com os movimentos

graciosos e quase femininos do homem que é gordo há muito tempo e vê

um longo futuro de obesidade pela frente. E gritava para Arnie, antes

mesmo que meu amigo se virasse de frente,



com ou sem asma. Penso que

se poderia dizer ser ele um homem que não se deixava abater pela doença.



Como os caras na área de fumantes da escola, como Ralph, da Basin

Drive, ou como Buddy Repperton (penso que logo estaremos falando a

seu respeito), ele log

o sentia uma aversão por Arnie





era um caso de

antipatia à primeira vista.







Muito bem, esta foi a última vez que ligou essa merda mecânica

aqui dentro, sem o cano de descarga!





berrou ele.





Se o pegar fazendo

isso, será posto na rua, entendido?







Está

bem.





Arnie parecia pequenino, cansado e exaurido. Fosse

qual fosse a selvagem energia que o impelira até então, agora havia

desaparecido. Senti pena, uma pena ligeira, ao vê

-

lo daquele jeito. Eu...



Darnell não o deixou ir em frente.










Você quer um cano d

e descarga, que custa dois e cinqüenta a

hora, se fizer uma reserva antecipada. E vou lhe dizer uma coisa, neste

exato momento, que vai ter que decorar, meu amiguinho. Não sou

obrigado a ficar com merda nenhuma de vocês, garotos. Não sou. Este

lugar é para



caras trabalhadores, que precisam manter os carros andando

e botar pão na mesa, não para garotos ricos de universidade, que querem

sair apostando corridas no Orange Belt. É proibido fumar aqui dentro. Se

quiser uma tragada, tem que ir lá para trás, no dep

ósito.







Eu não fum...







Não me interrompa, garoto. Não me interrompa e nem venha

bancar o espertinho





disse Darnell.



Estava agora em pé diante de Arnie. Sendo mais alto e mais largo,

encobria meu amigo inteiramente.



Comecei a ficar irritado de novo. Na v

erdade, podia sentir meu

corpo gemer de protesto contra o barbante de ioiô em que minhas

emoções haviam estado, desde nossa chegada à casa de LeBay, quando

vimos que o maldito carro não estava mais sobre o gramado.



Adolescentes são uma classe tiranizada; a

pós alguns anos,

aprendemos a nossa própria versão de uma rotina de Pai Tomás quanto a

inimigos da gente, como Will Darnell.

Sim, senhor; não senhor; está bem;

fique certo.



Agarrei repentinamente o braço de Darnell.







Senhor?



Ele girou para mim. Descobri q

ue, quanto maior a minha antipatia

por adultos, mais apto me sinto a tratá

-

los por Senhor.







O que é?







Aqueles homens lá estão fumando. Seria melhor dizer a eles que

parem.



Apontei para os sujeitos à mesa de pôquer. Eles haviam distribuído

cartas para uma



nova mão. A fumaça pairava acima da mesa, em um halo

azulado. Darnell fitou os companheiros, depois olhou para mim. Seu rosto

era muito solene.







Está querendo ajudar seu amigo a ser mandado embora daqui,

Júnior?










Não





respondi.





Não, senhor.







Então,

feche sua matraca!



Voltando

-

se para Arnie, ele pousou as mãos carnudas sobre os

quadris avantajados e bem acolchoados.







Conheço um cara desagradável assim que o vejo





disse ele



, e

acho que estou vendo um, neste exato momento. Estou de olho em você,

gar

oto. Banque o engraçadinho comigo, uma só vez, e eu o farei cair

sentado sobre o traseiro, pouco importando quanto tenha pago adiantado!



Uma fúria cega subiu de meu estômago para a cabeça, fazendo

-

a

latejar. Por dentro, suplicava a Arnie para dizer àquele

gordo imbecil que

não chateasse, queria que ele o agredisse e depois corresse com seu

calhambeque para fora dali, o mais depressa possível. Claro que os

companheiros de pôquer de Darnell se meteriam e nós provavelmente

terminaríamos aquela maravilhosa noit

e no pronto

-

socorro do Hospital

Comunitário de Libertyville, enquanto nos costurariam a cabeça... mas

aquilo quase que valia a pena.



Arnie,

pedi mentalmente,

diga a ele que se foda e vamos dar o fora daqui.

Revide, Arnie! Não deixe que ele pise em você! Nã

o seja um perdedor, Arnie





se

enfrentou sua mãe, pode enfrentar também esse filho da puta. Faça isso apenas

esta vez, não seja um perdedor!



Arnie ficou calado por muito tempo, cabisbaixo, para então dizer:







Sim, senhor.



Foi tão baixo, que era quase inaud

ível. Como se ele estivesse

sufocado.







Como disse?



Arnie ergueu a cabeça. Tinha o rosto lívido. Os olhos estavam

marejados de lágrimas. Não agüentei olhar para aquilo. Doía demais.

Virei

-

me. Os jogadores de pôquer tinham parado de jogar e observavam

os ac

ontecimentos que se desenrolavam no boxe vinte.







Eu disse "sim, senhor"





repetiu Arnie, com voz trêmula.



Era como se tivesse assinado alguma terrível confissão. Tornei a

olhar para o carro, o Plymouth 58, estacionado ali, quando deveria estar

no depósito



de ferro

-

velho dos fundos, com o restante dos destroços




inúteis e enferrujados de Darnell





e o odiei novamente, pelo que estava

causando a Arnie.







Muito bem, caiam fora





disse Darnell.





Já fechamos.



Arnie caminhou cegamente, aos tropeções. Teria avanç

ado em linha

reta para uma pilha de velhos pneus carecas, se eu não o agarrasse pelo

braço e o guiasse. Darnell seguiu em direção contrária, rumando para a

mesa de pôquer. Quando chegou lá, disse algo aos outros, em sua voz

chiada. Todos riram grosseiramen

te.







Estou bem, Dennis





falou Arnie, como se eu lhe tivesse

perguntado. Os dentes estavam cerrados e o peito se movia em rápidas,

fundas inspirações.





Estou bem, me solte. Está tudo certo comigo.



Larguei seu braço. Cruzamos a porta e Darnell berrou para



nós:







E não me traga seus amigos vagabundos para cá ou o ponho para

fora daqui! Um dos outros acrescentou, em concordância:







E deixe sua droga em casa!



Arnie encolheu

-

se. Era meu amigo, porém eu o odiava quando se

encolhia daquele jeito. Escapamos para

a fria escuridão do exterior. A

porta chocalhou, quando foi arriada às nossas costas. Foi assim que

levamos Christine para a Garagem de Darnell. Um bocado divertido, não?





N

O

L

ADO DE

F

ORA



Estou com um carro e alguma gasolina,





Diga a todos que podem puxar

meu saco...







Glenn Frey





Entramos em meu carro e rodei para fora do pátio da garagem. Não

sei como, mas estava passando de nove da noite. Como o tempo voa,

quando a gente está se divertindo! Uma meia

-

lua já pairava no céu. Isso e

as luzes alaranjadas, no

parque de estacionamento do Monroeville Mall,

bastavam para eclipsar quaisquer possíveis estrelas cadentes a que se

pudesse fazer um pedido.






Rodamos os dois ou três primeiros quarteirões em silêncio total.

Então, de repente, Arnie desatou em um pranto furi

oso. Eu achava que ele

iria chorar, mas a força de seu choro assustou

-

me. Tentei intervir.







Arnie...



Desisti na hora. Ele ia chorar, até a vontade passar. As lágrimas e

soluços brotaram em um jato estridente e amargo, descontroladamente





Arnie já esgotar

a sua quota de controle para o dia. A princípio, pareceu

-

me ser apenas uma reação; eu sentia mais ou menos a mesma coisa, só que

minha raiva subira para a cabeça, fazendo

-

a latejar como um dente

cariado, e para o estômago, que se enovelava doentiamente.



Si

m, de início pensei que fosse tão

-

somente uma espécie de reação,

uma liberação espontânea e, no começo, talvez assim acontecesse. No

entanto, após um ou dois minutos, percebi que era muito mais do que isso,

que a coisa ia muito mais fundo. Então, comecei a



decifrar palavras, entre

os sons que ele emitia. Poucas a princípio, depois séries delas.







Eles me pagam!





gritou ele, engroladamente, entre os soluços.





Vou mostrar àqueles fodidos filhos da puta que vão me pagar, Dennis, farei com

que se arrependam,

os cretinos vão engolir... ENGOLIR... ENGOLIR!







Pare com isso





falei, assustado.





Esqueça, Arnie.



Arnie não queria esquecer. Começou a dar com os punhos no painel

de instrumentos acolchoado de meu Duster, com força bastante para

marcá

-

lo.







Eles me paga

m, você vai ver!



À claridade pálida da lua e de uma lâmpada em um poste próximo,

seu rosto parecia devastado e feroz. Naquele momento, Arnie era como

um estranho para mim. Estava longe, caminhando por algum dos frios

lugares do universo, que um Deus amante



de gracejos reserva para

pessoas como ele. Eu não o conhecia mais. Não queria conhecê

-

lo. Limitei

-

me a ficar ali, sentado, impotente e esperando pela volta do Arnie que eu

conhecia. Após um momento, ele voltou.



As palavras histéricas confundiram

-

se novame

nte com soluços. O

ódio se fora e ele apenas chorava. Era um som alto, penetrante e

desnorteado.



Fiquei parado ao volante do carro, não muito certo sobre o que

deveria fazer, mas desejando estar em outro lugar, qualquer lugar,




experimentando sapatos na Tho

m McAn's, preenchendo uma solicitação

de crédito em uma loja que vendesse com desconto, parado diante de um

cubículo de banheiro pago, com diarréia e sem um centavo no bolso.

Qualquer lugar, cara. Não precisava ser Monte Cario. Acima de tudo,

fiquei ali de

sejando ser mais velho. Desejando que ambos fôssemos mais

velhos.



Isto, no entanto, era fugir aos acontecimentos. Eu sabia o que fazer.

Relutantemente, contra a vontade, deslizei no assento, passei os braços em

torno dele e o abracei. Podia sentir seu rost

o, quente e febril, esmagado

contra meu peito. Ficamos assim por talvez uns cinco minutos. Depois o

levei de carro para casa. Então, fui para casa também. Nenhum de nós

dois comentou o assunto mais tarde, aquilo de abraçá

-

lo daquele jeito.

Ninguém passou p

ela calçada e nos viu estacionados junto ao meio

-

fio. Se

aparecesse alguém, sem dúvida pensaria que éramos um casal de

gays.

Dentro do carro, eu o abraçara e tentara demonstrar minha estima mais

que podia, perguntando

-

me como era possível eu ser o único am

igo de

Arnie Cunningham. Porque naquele momento, acreditem, eu não queria

ser seu amigo.



Não obstante, havia algo





percebi naquele momento, embora de

maneira muito vaga





talvez Christine se tornasse amigo





amiga?





dele. Não estava bem certo se gostava

disso, embora naquele longo e

alucinado dia houvéssemos passado os mesmos maus pedaços por causa

do Plymouth.



Quando paramos junto à calçada fronteira à sua casa, perguntei:







Tudo bem com você, cara? Ele forçou um sorriso.







Sim, está tudo bem.





Fitou

-

me



com tristeza.





Sabe de uma

coisa? Você deveria procurar outro tipo de caridade para fazer. Fundo

Cardíaco. Sociedade do Câncer. Qualquer coisa.







Ora, vá caindo fora!







Você sabe o que estou dizendo.







Se quer dizer que é um chorão, qual a novidade?



A lu

z da entrada foi acesa. Michael e Regina dispararam para fora,

sem dúvida querendo verificar se éramos nós ou a Polícia Estadual, vindo

comunicar

-

lhes que seu filho único fora atropelado na auto

-

estrada.







Arnold?





chamou Regina, em voz estridente.










É me

lhor dar o fora, Dennis





disse Arnie, sorrindo agora com

mais honestidade.





Você não precisa desta merda.





Saiu do carro e

disse obedientemente:





Olá, mamãe. Olá, papai.







Onde foi que esteve?





perguntou Michael.





Deixou sua mãe

terrivelmente preocup

ada, rapazinho!



Arnie tinha razão. Eu podia dispensar a cena. Olhei para trás, pelo

espelho retrovisor, apenas de relance, e o vi parado na calçada, parecendo

solitário e vulnerável





e então os dois o abraçaram e o guiaram de volta

ao ninho de 60.000 dóla

res. Na certa, lançavam sobre ele toda a influência

de sua última jornada paterna





o Treinamento para Eficiência Paterna, e

sabe

-

se lá o que mais. Michael e Regina eram absolutamente racionais

nesse sentido, aí estava a coisa. Haviam desempenhado papel

fu

ndamental para que Arnie se tornasse como era, mas eram racionais

demais para perceber isso.



Liguei o rádio na FM

-

104, onde continuava o

Block Party Weekend e

peguei Bob Seger e a Silver Builet Band cantando '

Still the Same'.

Aquilo

estava horrendamente pe

rfeito demais e passei para o jogo dos Phillies.



Os Phillies perdiam. Ainda bem. Combinava com o resto.





P

ESADELOS



Sou um corredor de estrada, meu bem,



E você não pode me alcançar.



Sim, sou um corredor de estrada, meu bem,



E você não consegue emparelhar co

migo.



Venha para cá e corra,



Querida, querida, você verá.



Chegue mais perto, meu bem! Pare atrás!



Vou jogar poeira nos seus olhos!







Bo Diddley








Quando cheguei em casa, papai e minha irmã estavam sentados na

cozinha, comendo sanduíches de açúcar mascavo. C

omecei

imediatamente a sentir fome e recordei que nem ao menos jantara.







Por onde andou, chefe?





perguntou Elaine.



Nem levantou os olhos da revista que lia





16, Creem

ou

Tiger Beat,

não sei qual era. Começara a chamar

-

me de chefe desde que eu descobrira



Bruce Springsteen, um ano antes, e ficara fanático. Evidentemente, aquele

tratamento era com a finalidade de irritar

-

me.



Aos quatorze anos, Elaine deixava a meninice para trás e se

transformava em uma futura beldade americana





alta, cabelos escuros e

olh

os azuis. Entretanto, no final daquele verão de 1978, era uma

adolescente agressiva, como uma multidão de tantos outros. Começara

com Donny e Marie Osmond aos nove anos, apaixonando

-

se por John

Travolta aos onze (cometi o erro de chamá

-

lo de John Revolta c

erto dia, e

ela me arranhou tanto que quase precisei levar um ponto no rosto





afinal, acho que eu merecia). Aos doze, ela gamou por Shaun. Depois foi

Andy Gibb. Só ultimamente vinha demonstrando gostos mais sinistros:

roqueiros da barulhenta música eletrô

nica, como Deep Purple e Styx, um

grupo novo.







Estive ajudando Arnie a levar o carro dele





falei, tanto para

meu pai, como para ela. Era mais do que isso, de fato.







Aquele asqueroso





suspirou Ellie, virando uma página de sua

revista.



De repente, senti

um súbito e espantoso ímpeto de arrancar a revista

de suas mãos, rasgá

-

la em duas e jogar

-

lhe os pedaços na cara. Isso me

deixou perceber, exatamente, como a tensão daquele dia fora mais forte

do que tudo o mais. Na verdade, Elaine não achava Arnie asquero

so; ela

apenas aproveitava qualquer oportunidade para irritar

-

me. Enfim, talvez

eu tivesse ouvido Arnie ser chamado de asqueroso vezes demais, nas

últimas horas. As lágrimas dele ainda secavam no peito de minha camisa

e é possível que também me sentisse um



pouco asqueroso.







O que "Beijinho" esteve fazendo estes dias, queridinha?





perguntei

-

lhe docemente.





Escrevendo algumas cartas de amor para

Erik Estrada? "Oh, Erik, eu morro por você, meu coração dispara como

louco, a cada vez que penso em seus lábios

grossos e melosos esmagando

os meus..."










Você é um animal





disse ela, friamente.





Um animal, é isso

que você é!







E não conheço ninguém melhor.







Está legal.



Ela pegou o sanduíche de açúcar mascavo, a revista, e disparou

bruscamente para a sala de estar

.







Não deixe essa coisa cair no chão, Ellie





avisou papai,

prejudicando um pouco sua retirada. Fui até a geladeira, mas rejeitei um

salsichão e um tomate, que não me agradaram muito. Havia



também meia embalagem de queijo pasteurizado, mas eu exagerara

ta

nto naquela porcaria quando na escola primária que, aparentemente,

esse exagero eliminara meu desejo por ele. Preferi meio litro de leite para

acompanhar meu sanduíche e abri uma lata de sopa Campbell com carne

picada.







Ele conseguiu?





perguntou papai.



M

eu pai é assessor tributário para a H & R Block. Como autônomo,

faz outros trabalhos sobre impostos. Antigamente era contador em tempo

integral para a maior firma de arquitetura de Pittsburgh, mas sofreu um

ataque cardíaco e deixou o cargo. É um excelente

sujeito.







Sim, conseguiu.







E você achou tão ruim como antes?







Pior ainda. Onde está mamãe?







Estudando





disse ele.



Seus olhos encontraram os meus e quase começamos a rir

sufocadamente. Olhamos, para outras direções logo em seguida,

envergonhados





embo

ra o fato de nos envergonharmos não ajudasse

muito. Minha mãe está com quarenta e três anos e trabalha como

higienista dentária. Durante muito tempo não trabalhou em sua

especialidade, mas voltou a ela quando papai teve o ataque cardíaco.



Quatro anos antes

, ela concluíra ser uma escritora latente e começou

a compor poemas sobre flores e a escrever contos sobre doces velhinhos

no outono de suas vidas. De vez em quando ficava francamente realista e

escrevia uma história sobre uma jovem tentada a "arriscar

-

se"

, mas então




decidia ser muito melhor que ela continuasse Pura para o Leito Nupcial.

Naquele verão, matriculara

-

se em um curso rápido para escritores, em

Horlicks





onde Michael e Regina lecionavam, lembrem

-

se





e

colecionava todos os seus temas e contos em



um livro a que dera o nome

de Rascunhos de Amor e Beleza.



Vocês podem estar pensando (e parabéns, se pensaram) que nada há

de engraçado sobre uma mulher que consegue manter um emprego,

cuidar da família e, ao mesmo tempo, desejar algo novo, querer expandi

r

um pouco seus horizontes. Claro que estão certos nisso. Também poderão

pensar que eu e meu pai tínhamos todos os motivos para envergonhar

-

nos,

que não passávamos de uma dupla de porcos discriminadores grunhindo

em nossa cozinha e, mais uma vez, têm toda

razão. Não quero discutir

este ponto, embora diga que, se tivessem sido obrigados a ouvir

constantes leituras extraídas de Rascunhos de Amor e Beleza, como eu e

papai





e também Elaine





poderiam compreender um pouco melhor a

origem de nossas risadinhas su

focadas.



Bem, ela foi e é uma excelente mãe. Creio que também tem sido uma

grande esposa para meu pai





pelo menos, nunca o ouvi queixar

-

se e ele

tampouco já passou toda a noite fora de casa, bebendo



, de maneira que

tudo quanto posso alegar em nossa defe

sa é que nunca rimos diante dela,

nenhum de nós dois. É uma desculpa esfarrapada, bem sei, porém melhor

do que nada. Nós não a magoaríamos, por nada do mundo.



Apertei a mão contra a boca, tentando estancar o riso. Papai pareceu

subitamente engasgado com se

u pão e o açúcar mascavo. Ignoro o que ele

pensava, mas o que eu tinha em mente era um artigo mais ou menos

recente, intitulado "Jesus Tinha um Cão?".



Somando

-

se ao que já acontecera naquele dia, isso era quase demais.



Fui até os armários em cima da pia e

peguei um copo para o leite.

Quando olhei para trás, papai já se controlara e isso me ajudou a

controlar

-

me também.







Você parecia meio aborrecido quando entrou





disse ele.





Está

tudo bem com Arnie, Dennis?







Tranqüilo





respondi, despejando a sopa em um

a frigideira, que

coloquei sobre o fogo.





Ele acabou de comprar um carro, uma boa droga,

mas está legal.






Claro que Arnie não estava legal, mas há certas coisas que não nos

dispomos a contar a nossos pais, pouco importando o quanto eles tenham

tido êxito n

a grande tarefa americana da paternidade.







Certas pessoas só enxergam as coisas quando as vêem com os

próprios olhos





disse ele.







Bem, espero que ele enxergue logo





falei.





Deixou o carro na

Darnell's, a vinte por semana, porque seus pais não deixaram



que o

estacionasse em casa.







Vinte por semana? Apenas por um boxe? Ou um boxe e

ferramentas?







Só o boxe.







Isto é um assalto!







Exato





respondi, percebendo que meu pai não entendera o

comentário como uma oferta para que Arnie estacionasse o carro em no

ssa

casa.







Quer jogar uma rodada de

cribbage?



*







Acho que sim





respondi.







Anime

-

se, Dennis! Não pode cometer erros por outras pessoas.







Sim, acho que tem razão.



Jogamos três ou quatro rodadas de

cribbage,

todas ganhas por ele





meu pai geralmente ganh

a, a menos que esteja muito cansado ou tenha

bebido uns dois drinques. De qualquer modo, não me incomodo. As vezes

que o derroto ficam valendo mais. Jogamos

cribbage

e mamãe apareceu

pouco depois, alegre, com os olhos brilhantes, parecendo jovem demais

par

a ser minha mãe, com o livro de contos e rascunhos apertado contra o

busto. Beijou meu pai





não o beijo leve costumeiro, mas um beijo de

verdade que, de repente, me fez perceber que eu devia estar em outro

lugar.



Ela fez as mesmas perguntas sobre Arnie e

seu carro, algo que

rapidamente começava a tornar

-

se o ponto alto das conversas naquela

casa, desde que Sid, irmão de mamãe, ficara arruinado e pedira um

                                        

             



*



Jogo de cartas (N.T.)






empréstimo a papai. Repeti a mesma lengalenga. Depois subi para meu

quarto. Eu me movia vagarosamente,



com a impressão de que papai e

mamãe tinham assuntos pessoais para cuidar... embora essa fosse uma

questão em que nunca me concentrara muito, como certamente vocês

compreenderão.



Elaine estava em seu quarto, ouvindo sua nova coleção de sucessos.

Pedi que

baixasse um pouco o volume, porque queria dormir. Ela me

espichou a língua. Eu não ia admitir aquilo, em absoluto. Entrei e fiz

-

lhe

cócegas, até ela dizer que ia vomitar. Falei, vá em frente, vomite, a cama é

sua





e fiz mais cócegas ainda. Ela então assum

iu sua expressão de "por

favor, Dennis, não ria de mim, porque isto é

terrivelmente

importante", e

ficando muito solene perguntou se era mesmo verdade que se podia atear

fogo a peidos. Carolyn Shambliss, uma de suas amigas, dissera ser

possível, mas Caroly

n mentia sobre quase

tudo.



Respondi

-

lhe que perguntasse a Milton Dodd, seu namoradinho

com cara de pênis. Foi quando Elaine ficou furiosa e tentou agredir

-

me,

perguntando por que você sempre tem que ser tão

nojento.

Dennis? Então

eu disse sim, era verdade

que se podia atear fogo a peidos, mas

aconselhei

-

a a não tentar. Fiz

-

lhe um ligeiro afago (o que se tornara

bastante raro em mim





aquilo sempre me deixava sem jeito,

depois

que

ela ficara com

seios,

de modo que

preferia as cócegas) e depois fui para meu

q

uarto.



Enquanto me despia, pensei: afinal, o dia não terminou tão ruim.

Por aqui há gente que me considera um ser humano, e também a Arnie.

Vou chamá

-

lo para vir amanhã ou no domingo. Ficaremos por aí, talvez

vejamos os Phillies jogando pela TV, podemos ai

nda nos divertir com um

jogo de damas idiota ou outra coisa qualquer, até mesmo o infalível jogo

de siga

-

a

-

pista, e nos livramos dessa sensação esquisita. Voltaremos a nos

sentir decentes outra vez.



Fui para a cama com tudo decidido na cabeça e devia ter p

egado no

sono em seguida, mas não foi assim. Eu não estava legal e sabia disso. As

coisas começaram a acontecer e, às vezes, não sabemos que droga elas são.



Motores. Eis aí algo mais, sobre a gente ser um adolescente. Há

todas aquelas máquinas e, de algum

modo, terminamos com as chaves de

ignição para uma delas, damos partida, mas ignoramos que merda

poder

ão ser ou o que se supõe que façam. Existem apenas pistas, mais

nada. O negócio da droga é assim, da mesma forma que o negócio da




bebida e o negócio do se

xo, por vezes outros negócios também





um

emprego de verão que gera um novo interesse, uma viagem, um curso no

colégio. Máquinas. Eles nos dão as chaves, algumas pistas e dizem: dê

partida, veja o que acontece, e, às vezes, isso pode levar

-

nos para uma

vid

a boa e satisfatória, mas em outras nos coloca direitinho na auto

-

estrada para o inferno, deixando

-

nos triturados e sangrando pela pista

afora.



M

áquinas.



Enormes. Como os motores 382, que eles costumavam colocar

naqueles carros antigos. Como Christine.



Fiq

uei acordado no escuro, virando

-

me de um lado para outro, at

é o

lençol desprender

-

se, ficar amarfanhado e embolado, enquanto eu

pensava em LeBay dizendo: O

nome da máquina é Christine.

De alguma

forma, Arnie captara o sentido da coisa. Quando éramos crianç

as,

havíamos tido patinetes e depois bicicletas. Dei um nome para a minha,

porém Arnie nunca batizou a sua





dizia que nomes eram para gatos,

cachorros e peixes. Só que isso fora antes, não agora. Agora ele chamava

aquele Plymouth de Christine e, pior aind

a, tratava

-

a sempre no feminino.



Eu n

ão gostava daquilo, embora sem saber por quê.



At

é meu pai falara no caso como se, em vez de comprar um

estropiado calhambeque, Arnie tivesse casado. Não era bem assim. De

modo algum. Seria?



Pare o carro, Dennis. Volte..

. Quero olhar para ela outra vez.



T

ão simples assim.



Sem nenhuma pondera

ção, e isso era incomum em Arnie, que em

geral costumava ponderar tudo cuidadosamente





sua vida o tinha

tornado dolorosamente cônscio do que acontecia a caras como ele, quando

ficavam



um pouco tocados e faziam algo (poxa!) no impulso do momento.

Desta vez, no entanto, ele agira como o homem que conhece uma corista,

envolve

-

se em um namoro tempestuoso, para terminar de ressaca e esposa

nova, na manhã de segunda

-

feira.



Aquilo tinha sido.

.. bem... como amor

à primeira vista.



N

ão importa, pensei. Começaremos tudo outra vez. Começaremos

amanhã. Então, obteremos alguma perspectiva sobre isto.






Por fim, peguei no sono. E sonhei.



A uivante rota

ção de um motor de arranque na escuridão.



Sil

êncio.



O motor de arranque uivando novamente.



O motor em funcionamento, morrendo, depois pegando.



A m

áquina correndo na escuridão.



Ent

ão, os faróis acesos, faróis enormes, faróis duplos e antigos, varando

-

me

como uma lanterna de mão contra o vidro.



Eu estava para

do aporta da garagem de LeBay e Christine l

á dentro





uma

nova Christine, sem nenhum amassado ou salpico de ferrugem. O pára

-

brisa

incólume, sombreado para um azul polarizado no alto. Do rádio brotavam os sons

rítmicos de Dale Hawkins em "Susie

-

Q "





uma v

oz de uma época morta,

impregnada de aterrorizante vitalidade.



O motor murmurando palavras de pot

ência, através de silenciosos duplos,

em envoltórios de vidro. Não sei como, eu sabia haver uma caixa de mudança

Hurst no interior e caixas de ligação Feully:

o óleo Quaker State acabara de ser

trocado





era agora de clara cor ambarina, o sangue vital automotivo.



Os limpadores de p

ára

-

brisa se ergueram de repente, uma coisa estranha,

porque não há ninguém atrás do volante, o carro está vazio.







Vamos garotão. Vam

os dar uma volta. Vamos rodar.



Sacudo a cabe

ça. Não quero entrar lá. Tenho medo de entrar lá. Não quero

dar uma volta. De repente, o motor começa a acelerar e morrer, acelerar e morrer;

é um som faminto, aterrador, como um cão feroz em uma correia fraca...



e eu

quero andar... porém meus pés parecem pregados ao pavimento gretado da calçada.







É a última chance, garotão.



E antes que eu possa responder





ou mesmo pensar em uma resposta







o guincho terrível da borracha desligando

-

se do concreto e Christine i

nveste

contra mim, seu radiador escancarado como uma boca aberta, cheio de dentes

cromados, os faróis ofuscantes...





Grito e acordo na escuridão morta das duas da madrugada,

assustado com o som de minha voz, o ruído apressado de pés descalços

correndo pelo



corredor assustando

-

me ainda mais. Minhas mãos




aferravam punhados do lençol. Puxei

-

o, estava todo embolado no meio da

cama. Um suor escorregadio envolvia meu corpo.



No fundo do corredor, Ellie gritou: "O que foi isso?", em seu próprio

terror.



A luz de meu



quarto iluminou tudo e lá estava mamãe, em uma

curta camisola que revelava mais do que ela permitiria, exceto na mais

extrema emergência. Logo atrás dela, papai amarrava o cinto do roupão,

fechado sobre absolutamente nada.







O que foi, meu bem?





pergunto

u mamãe.



Tinha os olhos arregalados e assustados. Eu não recordava a última

vez em que me chamara "meu bem" daquele jeito





aos quatorze anos?

Doze? Talvez dez? Não sei dizer.







Dennis?





chamou papai.



Então, surgiu Elaine mais atrás, depois entre eles, tr

emendo.







Voltem para a cama





falei.





Foi apenas um sonho. Nada mais.







Nossa!





disse Elaine, chocada pelo respeito à hora e à

ocasião.





Deve ter sido um verdadeiro filme de horror. Não foi, Dennis?







Sonhei que você tinha casado com Milton Dodd e veio



morar

comigo





respondi.







Não aborreça sua irmã





disse mamãe.





O que foi, Dennis?







Não me lembro.



De repente, percebi que o lençol era uma confusão, que havia um

tufo de pêlos púbicos aparecendo. Ajeitei tudo depressa, entre culpados

pensamentos de ma

sturbação, polução noturna e sabe

-

se mais lá o que,

martelando minha cabeça. Um deslocamento total. Nos primeiros dois ou

três vertiginosos momentos, eu nem mesmo tinha certeza se era grande ou

pequeno





havia apenas aquela imagem terrível, sombria e onipo

tente do

carro investindo para diante, um pouquinho a cada vez que o motor

funcionava, recuando, avançando de novo, o capô vibrando acima do

motor, o radiador semelhante a dentes de aço...



É a última chance garotão

.



Em seguida, a mão fria e seca de mamãe e

stava em minha testa, em

busca de febre.










Está tudo bem, mamãe





falei.





Não foi nada. Apenas um

pesadelo.







E você não se lembra...







Não. Esqueci tudo agora.







Fiquei assustada





disse ela, depois dando uma risadinha

trêmula.





Você só saberá o quanto

a gente se assusta, quando um de

seus filhos gritar no escuro.







Hum, nem me fale nisso





disse Elaine.







Vá para a cama, garotinha





disse papai, dando um tapinha leve

em sua nádega.



Ela obedeceu, não parecendo muito satisfeita. Talvez, superado o

medo in

icial, esperasse que eu tivesse um acesso de histeria. Isso lhe daria

um bom motivo de comentários, enfiada em seu sutiã de treinamento, no

programa matinal de discussões sobre o fato.







Você está bem mesmo?





perguntou mamãe.





Está, benzinho?



Aquela pala

vra novamente, trazendo antigas lembranças de joelhos

esfolados, ao cair de meu carrinho vermelho; seu rosto inclinado para

minha cama era o mesmo que eu vira nos febris acessos de todas aquelas

doenças infantis





caxumba, catapora, um ataque de escarlatin

a. Dando

-

me uma vontade absurda de chorar. Eu tinha nove anos e trinta e cinco

quilos em seu colo.







Claro que estou





respondi.







Muito bem





disse ela.





Deixe a luz acesa. Ajuda um pouco.



Com um último e hesitante olhar para meu pai, ela se foi. Eu tinh

a

algo para me deixar confuso





a idéia de que minha mãe jamais tivera

um pesadelo. Deve ser uma daquelas coisas que nunca nos ocorrem. E

quaisquer que fossem seus pesadelos, nenhum deles se transmitiria para

os Rascunhos de Amor e Beleza.



Papai se sentou

na beira da cama.







Não se lembra mesmo do que foi? Meneei a cabeça.







Deve ter sido horrível, para fazê

-

lo gritar daquele jeito, Dennis.






Seus olhos se fixavam nos meus, perguntando gravemente se

haveria alguma coisa que ele devesse saber. Quase lhe contei







o carro,

era o maldito carro de Arnie, Christine, a Rainha da Ferrugem, com vinte

anos de idade, aquela velharia fodida. Quase contei. Entretanto, sei lá

como, aquilo ficou engasgado em minha garganta, quase como se, falando,

eu traísse meu amigo. O bom



e velho Arnie, a quem um Deus amante de

gracejos decidira espancar com umas boas varadas.







Tudo bem





disse ele, e beijou meu rosto.



Pude sentir sua barba, diminutas cerdas espetando e que s

ó brotam

à noite. Senti também seu cheiro de suor e seu amor. Fi

z

-

lhe um afago

brusco e ele me afagou de volta.





Quando me vi sozinho, fiquei com o abajur da cabeceira aceso,

temendo voltar a dormir. Deitado de costas, peguei um livro, sabendo que

meus velhos estavam acordados em seu quarto, perguntando

-

se se eu

estari

a envolvido em alguma esp

écie de confusão ou se envolvera alguém

mais





talvez a chefe de torcida com corpo espetacular





em qualquer

tipo de problema.



Decidi que dormir era uma impossibilidade. Ficaria lendo at

é o dia

clarear e tiraria um cochilo na tarde



do dia seguinte, de preferência na

parte mais monótona do futebol. E, assim pensando, adormeci e acordei

na manhã seguinte, com o livro fechado e caído no chão, ao lado da cama.





P

RIMEIRAS

M

UDANÇAS



Eu lhe direi o que faria se tivesse dinheiro,



Eu iria

à c

idade e compraria um ou dois Mercurys,



Compraria um Mercury para mim



E cruzaria esta estrada para cima e para baixo.







The Steve Miller Band








Pensando que Arnie fosse aparecer naquele sábado, fiquei

perambulando pela casa





aparei a grama, limpei a garagem

, até mesmo

lavei todos os três carros. Mamãe observou com algum espanto toda

aquela diligência e, à hora do almoço de cachorro

-

quente com salada de

verduras, comentou que talvez eu devesse ter pesadelos com mais

regularidade.



Eu não queria telefonar para

a casa de Arnie, depois de todo aquele

desagradável ambiente que havia presenciado, mas quando chegaram as

preliminares do jogo e ele não apareceu, ganhei coragem e liguei. Regina

atendeu e, embora estivesse fazendo uma boa imitação do nada

-

mudou,

imaginei



detectar uma recente frieza em sua voz. Aquilo me entristeceu.

Seu único filho fora seduzido por uma velha e pelancuda prostituta

chamada Christine e seu cúmplice devia ter sido o velho chapa Dennis.

Talvez ele tivesse, inclusive, alcovitado o negócio. Ar

nie não estava em

casa, disse Regina. Estava na garagem de Darnell. Fora para lá desde nove

da manhã.







Oh!





murmurei, sem jeito.





Oh, poxa, eu não sabia disso.





Minha voz soava mentirosa e, pior ainda, eu a

sentia

mentir.







Não mesmo?





replicou Regina

, em sua nova voz fria.





Adeus,

Dennis.



O fone emudeceu em minha mão. Fiquei olhando para ele durante

um instante, depois o coloquei no gancho.



Papai se aboletara diante da TV, com sua frouxa bermuda púrpura,

calçando sapatos de lona e com seis latas de c

erveja na geladeira portátil a

seu lado. Os Phillies estavam tendo um dia ótimo, encurralando Atlanta

inteiramente. Mamãe saíra para visitar uma colega (acho que uma lia seus

rascunhos e poemas para a outra, exaltando

-

se juntas). Elaine fora para a

casa de



sua amiga Delia. Estava tudo quieto; lá fora, o sol brincava de

pique com algumas nuvens brancas. Papai me passou uma cerveja, o que

só faz quando se sente extraordinariamente bem

-

humorado.



Não obstante, o sábado ainda parecia desinteressante. Fiquei

pens

ando em Arnie, que não estava vendo o jogo ou aproveitando os raios

do sol, nem ao menos aparando a grama em sua casa e ficando com os pés

esverdeados. Arnie, nas sombras oleosas da Garagem Faça

-

Você

-

Mesmo

de Will Darnell, às voltas com aquela silenciosa b

anheira enferrujada,

enquanto homens gritavam e ferramentas caíam no cimento com




penetrante som metálico, a broca de ar comprimido afrouxando velhos

parafusos, a voz resfolegante e a tosse asmática de Will Darnell...



Que merda, eu estaria

enciumado? O

que

significava aquilo?



No sétimo turno do jogo, levantei

-

me e caminhei para a saída.







Aonde vai?





perguntou meu pai.



Isso mesmo, para onde eu ia? Para lá? Ficar espiando Arnie,

grudado a ele, ouvindo as implicâncias de Will Darnell? Procurando mais

uma dose



de sofrimento? Droga! Arnie já era um cara crescidinho.







A lugar nenhum





respondi.



Achei uma embalagem de biscoito na caixa do pão, cuidadosamente

empurrada para o fundo. Apanhei

-

a com certo prazer lúgubre, sabendo o

quanto Elaine ficaria enfurecida, ao



vir procurá

-

la durante um dos

comerciais de

Animada Noite de Sábado

e nada mais encontrar ali.



Voltei para a sala de estar. Sentei

-

me, filei outra cerveja de papai e

comi o biscoito de Elaine, inclusive rasgando a embalagem de papelão.

Ficamos vendo os Ph

illies acabarem com Atlanta. ("Deram uma surra

neles, Denny", eu podia ouvir meu avô, falecido cinco anos antes, dizendo

com sua voz esganiçada de velho, "uma surra pra valer!") e não pensei

mais em Arnie Cunningham.



Não muito.



Na tarde seguinte, ele apare

ceu em sua velha e desconjuntada

bicicleta de três velocidades, quando eu e Elaine jogávamos croqué no

gramado dos fundos. Ela insistia em acusar

-

me de estar roubando o jogo.

Vestia um

short,

cortado de calças velhas. Sempre o usava quando "estava

tendo su

as regras mensais". Minha irmã sentia grande orgulho daquelas

regras, que vinha tendo regularmente nos últimos quatorze meses.







Olá





disse Arnie, surgindo por uma esquina da casa.





Vocês

devem ser o Monstro da Lagoa Negra e a Noiva do Frankenstein, ou

D

ennis e Ellie.







O que você acha, cara?





falei.





Pegue um taco.







Não estou mais jogando





disse Elaine, deixando cair o seu taco

de jogar croqué.





Ele rouba ainda mais do que você.

Homens!



Depois que ela se foi, Arnie disse, em voz trêmula e afetada:










É a primeira vez que ela me chama de homem, Dennis.



Caiu de joelhos, com uma expressão de exaltada adoração no rosto.

Comecei a rir, Arnie sabia ser divertido, quando queria. Aquele era um

dos motivos de apreciá

-

lo tanto. Uma espécie de segredo, compreend

a.

Acho que ninguém mais percebia aquilo, além de mim. Certa vez, ouvi

falar de um milionário que roubara um Rembrandt e o guardara em seu

porão, onde ninguém mais podia vê

-

lo, além dele. Eu podia entender esse

sujeito. Não digo que Arnie fosse um Rembrand

t ou algum campeão de

inteligência, mas compreendia a atração de saber sobre algo bom... algo

que era bom, mas permanecendo em segredo.



Divertimo

-

nos com o croqué por alguns momentos, não jogando

para valer, mas tirando o máximo proveito de nossas boladas.



Finalmente,

uma bola atravessou a cerca viva até o quintal dos Blackfords e, após eu

ter rastejado até lá para recuperá

-

la, desistimos de jogar. Ficamos sentados

nas cadeiras do quintal. Dentro em pouco, Jay Hawkins Miador, nosso

gato substituto do Capitã

o Beefheart, deslizou furtivamente da porta, sem

dúvida esperando encontrar algum bom esquilinho, que assassinaria lenta

e malevolamente. Seus olhos verde

-

âmbar cintilaram à luz da tarde, agora

nublada e quieta.







Pensei que você viesse ver o jogo ontem





falei.





Foi uma boa

partida.







Estive na Darnell's





disse ele.





De qualquer modo, ouvi o jogo

pelo rádio.





Sua voz elevou

-

se três oitavas e fez uma boa imitação de

meu avô:





"Deram uma surra neles! Uma surra pra valer, Denny!".



Ri e assenti. Naquele d

ia, havia algo nele parecendo diferente talvez

fosse apenas por causa da claridade, bastante forte, mas ainda assim

sombria e crepuscular. Em primeiro lugar, Arnie parecia cansado, estava

com olheiras





mas, ao mesmo tempo, a pele estava um pouco melhor do



que ultimamente. Andara bebendo um bocado de Cocas no trabalho,

mesmo sabendo que não devia, é claro, mas incapaz de resistir à tentação,

de vez em quando. Seus problemas de pele tendiam a surgir em ciclos,

como na maioria dos adolescentes, dependendo do

estado de ânimo. No

caso de Arnie, contudo, os ciclos geralmente iam de ruim para pior, e

retornavam ao ruim.



Talvez fosse apenas a claridade.







O que fez no carro?





perguntei.










Não muita coisa. Troquei o óleo. Dei uma espiada no bloco do

motor. Enfim, n

ão está rachado, Dennis. LeBay ou alguém mais deixou o

bujão de drenagem em algum lugar ao longo da linha, eis tudo. Um

bocado do óleo velho tinha vazado para fora. Tive sorte em não soltar um

pistão, dirigindo na tarde de sexta

-

feira.







Como conseguiu hor

a com o elevador? Pensei que era preciso

uma reserva antecipada. Seus olhos desviaram

-

se dos meus.







Não houve problema





disse, mas havia desapontamento em sua

voz.





Fiz uns dois favores para o Sr. Darnell.



Abri a boca para perguntar que tipo de favores,



mas decidi que n

ão

queria saber. Provavelmente, os "dois favores" se reduziriam apenas a

uma ida à Schirmer's Lanchonete, na primeira esquina, a fim de trazer café

puro para os

habitués

da garagem, ou então juntar várias partes de carros

usados, para vend

a posterior. O que não me interessava era envolver

-

me

na extremidade Christine da vida de Arnie





e isso incluía saber como ele

estava se saindo (ou não saindo) na garagem de Darnell.



Havia ainda algo mais





uma sensação de perda. Eu não conseguia

definir

muito bem tal sensação, ou não queria defini

-

la. Hoje, posso

afirmar que se tratava da maneira como nos sentimos quando um amigo

nosso se apaixona por uma vagabunda experiente e metida a sebo. A

gente não gosta da vagabunda e, em noventa e nove por cento d

os casos,

ela também não vai com a nossa cara, de maneira que nos limitamos a

fechar a porta para aquele compartimento da antiga amizade. Feita a coisa,

tanto podemos esquecer o assunto... como descobrir que o amigo nos

esqueceu, em geral com entusiástica

aprovação da vagabunda.







Vamos ao cinema





disse Arnie, inquieto.







O que está passando?







Bem, há um daqueles violentos filmes Kung

-

fu, no State Twin, o

que acha disso?

Hiii

-

iah!





Ele fingiu dar um selvagem chute de caratê em

Jay Hawkins Miador, e o gato



saltou para longe como uma flecha.







Parece bom. Bruce Lee?







Não. Outro cara.







Como é o nome dele?










Não sei. Punhos Perigosos. Mãos Voadoras Mortais. Talvez seja

Genitais Furiosos, sei lá. O que me diz? Quando voltarmos, podemos

contar as partes mais v

iolentas para Ellie e fazê

-

la vomitar.







Está bem





falei.





Isto, se ainda pudermos entrar, pagando

uma prata cada um.







Claro. Podemos entrar até as três.







Vamos embora.



Fomos. Afinal, era um filme de Chuck Norris, n

ão ruim de todo.



Na segunda

-

feira, co

ntinuamos a constru

ção do alongamento da

Interestadual. Esqueci meu sonho. Aos poucos, percebi que não

continuaria vendo Arnie tanto tempo como antes; de novo, era como nos

sentimos se vamos perdendo contato com um cara recém

-

casado. Por

outro lado, meu ne

gócio com a chefe de torcida começou a esquentar.

Havia também outra coisa que esquentava como o diabo





por várias

noites, levei

-

a das corridas de submarinos no

drive

-

in

para casa, sentindo

os colhões latejarem de tal modo, que mal podia caminhar.



Nesse

í

nterim, Arnie passava na Darnell's a maioria do tempo livre,

depois que saía do trabalho.





BUDDY



REPPERTON



E eu sei, pouco importa quanto custe,



Oooooh, aquele duplo exaustor



Faz o meu motor berrar,



E o meu carro ent

ão terá



Uma descarga Cadillac.







Moon Ma

rtin





Nossa

última semana de trabalho corrido, antes do início das aulas,

foi a que precedeu o Dia do Trabalho. Quando passei pela casa de Arnie

para apanhá

-

lo aquela manhã, ele apareceu com uma enorme mancha




negro

-

azulada em torno de um olho e um feio cor

te na parte superior da

face.







O que houve com você?







Não quero falar sobre isso





respondeu ele, carrancudo.







tive que explicar tanto a meus pais, que quase fiquei maluco.



Atirou sua maleta do lanche no assento traseiro e mergulhou em um

sombrio sil

êncio, que durou todo o trajeto até o trabalho. Alguns

companheiros o interrogaram sobre o corte, mas Arnie apenas deu de

ombros.



Nada comentei ao voltarmos para casa; apenas liguei o r

ádio e fiquei

entregue a mim mesmo. E talvez ficasse sem jamais ouvir a



história, se não

houvesse sido "atacado" por aquele seboso ítalo

-

irlandês chamado Gino,

pouco antes de deixarmos a Main Street para trás.



Naquela

época, Gino estava sempre me atocaiando





ele podia

esgueirar

-

se através do vidro fechado de um carro e reali

zar a façanha. O

estabelecimento Gino's Fine Italian Pizza (Deliciosa Pizza Italiana do Gino)

fica na esquina da Main com Basin Drive, e sempre que eu via o anúncio

com a pizza elevando

-

se no ar, com todos aqueles ii pontilhados por copos

de bebida (aquilo



piscava noite adentro, como é que se pode fugir?), sentia

a cilada funcionando novamente. Aquela noite, minha mãe estaria em

aula, isto significando que teríamos um jantar de sobras em casa. A

perspectiva não me deixava nem um pouco alegre. Eu e meu pai n

ão

éramos muito chegados a cozinhar e, quanto a Ellie, seria capaz até de

queimar água pura.







Vamos comer uma pizza





falei, manobrando para o pátio de

estacionamento do Gino's.





O que me diz? Uma bem grande e

gordurosa, cheirando como sovacos.







Que vio

lência, Dennis!







Sovacos

limpos





emendei.





Vamos.







Negativo. Estou de caixa baixa





disse Arnie, em um murmúrio.







Eu pago. Pode até ficar com aquelas horríveis e fodidas enchovas

em sua metade. E então, vamos?







Dennis, acho que eu não...







Com uma Pep

si





acrescentei.










Pepsi me acaba com a pele, você sabe disso.







Sim, eu sei. Um copo

grande

de Pepsi, Arnie.



Seus olhos cinzentos iluminaram

-

se pela primeira vez no dia.







Um copo

grande





repetiu.





Olha só! Você é mesmo pão

-

duro,

Dennis.







Dois, se pre

ferir





falei.



Era uma grande pedida, francamente





como oferecer barras de

chocolate à mulher gorda do circo.







Dois





ele disse, apertando meu ombro.





Dois copões de Pepsi,

Dennis!





Arnie começou a estirar

-

se no assento, com as duas mãos em

torno da ga

rganta e gritando:





Dois! Depressa! Dois! Depressa!



Eu ria tanto que quase embiquei com o carro para cima da parede

cinzenta de concreto. Quando sa

ímos de meu Duster, pensei, por que ele

não beberia duas sodas? Sem dúvida, andou afastado delas

ultimamente

.

A pequena melhora que eu percebera em seu rosto, naquele domingo

nublado de duas semanas atr

ás, agora era definitiva. Ele continuava

exibindo uma profusão de caroços e crateras, mas nem tantos estavam





perdoem

-

me, mas preciso dizer





gotejando. Arnie pa

recia melhor,

também em outros sentidos. Um verão inteiro trabalhando na estrada o

tinha bronzeado profundamente e o deixara na melhor forma física que já

estivera na vida. Assim, pensei que ele merecia sua Pepsi. Ao vencedor os

despojos.



O Gino's

é dirigi

do por um cara italiano formidável, chamado Pat

Donahue. Em sua caixa registradora, ele tem um adesivo dizendo MÁFIA

IRLANDESA, serve cerveja verde no Dia de São Patrício (em 17 de março

a gente nem pode chegar perto do Gino's, e uma das pedidas na vitrola



automática é Rosemary Clooney cantando "Quando os Olhos Irlandeses

Sorriem") e impressiona com um chapéu

-

coco reto que, em geral, usa

empurrado bem para trás.



A vitrola autom

ática é um antigo modelo Wurlitzer, com a parte

frontal em forma de bolha, um rem

anescente dos finais dos anos 40, e

todos os discos





não apenas Rosemary Clooney





têm etiquetas pré

-

históricas. Talvez seja a última vitrola automática do país em que se

consegue três músicas por uma moeda de 25 centavos. Nas raras ocasiões

em que fumo u

m baseado, é sobre o Gino's que fantasio





vejo

-

me




entrando lá, pedindo três pizzas caprichadas, uma garrafa de Pepsi e seis

ou sete daqueles doces de chocolate feitos em casa, especialidade de Pat

Donahue. Entào, imagino

-

me apenas sentado ali e devorando

tudo,

enquanto daquela vitrola sai uma firme torrente de Beach Boys e Rolling

Stones.



Entramos, fiz o pedido e ficamos sentados, vendo os tr

ês cozinheiros

de pizza jogando a massa no ar e tornando a pegá

-

la. Estavam trocando

amenidades em espirituoso estil

o italiano, como: "Vi você a noite passada

na pista de dança do Shriners's, Howie, quem era aquela coisa desajeitada

que estava com seu irmão?". "Oh,

ela?



Era sua irmã."



Quero dizer, parecia algo como Velho Mundo, como se pode

ag

üentar?



As pessoas entravam



e sa

íam, muitas delas estudantes de meu

colégio. Dentro em breve tornaria a vê

-

las pelos corredores e senti uma

repetição daquela forte nostalgia antecipada, aquela sensação de medo.

Em minha cabeça, ouvia o sinal de ir para casa, porém de algum modo

aque

le prolongado uivo soava como um alarma.

Lá vamos nós de novo,

Dennis, esta é a última vez, porque depois deste ano terá que aprender a ser adulto.

Eu podia ouvir as portas de armários batendo com força no vestiário,

ouvia o firme

ka

-

chonk, ka

-

chonk, ka

-

ch

onk

dos atacantes, cujas bastonadas

perturbavam os adversários mais fracos, e também ouvia Marty Bellerman

gritar rigorosamente: "Vamos em frente. Pedersen! Não esqueça disso!

Vamos em frente! É melhor dizer a esses cretinos dos gêmeos Bobbsey que

se separ

em!". O cheiro seco da poeira de giz na sala de aula, na Ala de

Matemática. O som das máquinas de escrever, nas grandes salas de aulas

de secretariado, no segundo andar. O Sr. Meecham, o diretor, fazendo os

comunicados do fim do dia, em sua voz monótona e

exigente. O almoço

ao ar livre, nas arquibancadas do campo de esportes, quando o tempo era

bom. Uma nova safra de calouros, parecendo desajeitados e perdidos. E,

tudo encerrado, a gente caminha corredor abaixo, vestindo aquele enorme

roupão de banho púrpur

a





e pronto. Terminou o ginásio. Liberam

-

nos

para um mundo inimaginável.







Você conhece Buddy Repperton, Dennis?





perguntou Arnie,

despertando

-

me de meu sonho. Nossa pizza já chegara.







Buddy o quê?







Repperton.






O nome era familiar. Trabalhei no meu lado



da pizza e me forcei a

recordar, enquanto isso. Lembrei, ap

ós um momento. Eu havia tido uma

discussão com ele, quando era ainda um dos desajeitados e pequenos

calouros. Acontecera em um baile de confraternização. A banda tirava

uma folga e eu esperava na

fila de bebidas, para conseguir uma soda.

Repperton empurrou

-

me, dizendo que calouros tinham que esperar, até

que todos os mais adiantados tivessem suas bebidas. Ele era então um

segundanista do ginásio, grande e corpulento, um significativo

segundanista.

Tinha um queixo em forma de lanterna, cabelos negros,

espessos e gordurosos, e olhos pequeninos, muito juntos. Entretanto,

aqueles olhos não eram totalmente estúpidos, deixando entrever um

desagradável brilho de inteligência. Repperton era um daqueles tipo

s que

passam a maior parte do tempo no ginásio na área de fumar.



Eu ousara emitir a her

ética opinião de que, na fila de bebidas, nada

significava ser veterano. Repperton convidou

-

me a ir lá fora com ele. A

esta altura, a fila se desfizera, tornando a organ

izar

-

se em um daqueles

cautelosos porém ansiosos pequenos círculos, que geralmente prenunciam

uma briga.



Uma recepcionista apareceu então, pondo um final naquilo.

Repperton prometeu que me pegaria, mas nunca o fez. Aquele havia sido

meu único contato com e

le, exceto quando via seu nome de vez em

quando na lista de detidos no final do dia, convocando

-

os para uma ida à

secretaria do colégio. Parecia

-

me que ele fora suspenso umas duas vezes,

além disso





e quando tal acontece, em geral é um bom sinal de que o

sujeito não fazia parte da Liga de Jovens Cristãos.



Contei a Arnie meu único contato com Repperton e ele assentiu

abatido. Tocou a equimose em torno do olho, que agora adquiria uma

horrível tonalidade esverdeada.







Foi ele.







Foi Repperton quem fez isso em



seu rosto?







Hum

-

hum.



Arnie contou que conhecia Repperton dos cursos de Mecânica de

Motores. Uma das ironias da perseguida e evidentemente infeliz vida

escolar de Arnie era o fato de seus interesses e aptidões o encaminharem

precisamente para um contato d

ireto com o tipo de gente que sentia ser




seu obrigatório dever chutar para fora o recheio dos Arnie Cunningham

deste mundo.



Quando estava no segundo ano secundário, fazendo um curso

chamado Motores Fundamentais (que nada mais era senão o simples e

velho Me

cânica de Motores 1, antes que a escola conseguisse do governo

federal um bom dinheiro para treinamento vocacional), um garoto

chamado Roger Gilman fizera Arnie pôr para fora toda a merda que tinha

no corpo. Sei que isso é francamente vulgar, porém não exi

ste forma mais

delicada e elegante de expor o fato. Gilman o fez espirrar o recheio. Foi

uma surra tão contundente





que Arnie precisou faltar dois dias à escola,

enquanto Gilman tirava uma semana de férias





cortesia da direção.

Atualmente, Gilman estava

preso, acusado de roubo de automóvel. Buddy

Repperton fizera parte do círculo de amigos de Roger Gilman e, de certa

forma, herdara a liderança de seu grupo.



Para Arnie, ir à aula na Classe de Motores, era como visitar uma

zona despoliciada. Então, se conse

guia sobreviver, corria todo o trajeto até

a outra extremidade da escola, com seu tabuleiro de xadrez debaixo do

braço, para uma reunião ou jogo no clube de xadrez.



Recordo a vez em que fui a um torneio de xadrez da cidade, em

Squirrel Hill, certo dia do a

no anterior, e então vi algo que, para mim,

simbolizava a esquizofrênica vida escolar de meu amigo. Lá estava ele,

inclinado gravemente sobre seu tabuleiro, em meio àquele profundo e

palpável silêncio que é, principalmente, o que se ouve em tais ocasiões.

Após uma longa e meditativa pausa, ele moveu a pedra, com a mão tão

profundamente impregnada de graxa e óleo que nem mesmo uma lixa

conseguiria limpar.



Claro está, que nem todos os colegas de curso eram contra ele; havia

muitos rapazes que não se metiam, p

orém muitos deles permaneciam em

seus próprios e firmes círculos de amigos ou permanentemente

indiferentes. Os que se reuniam em grupos fechados, em geral provinham

da zona mais pobre de Libertyville (e não me venham dizer que

estudantes secundários não se



portam de acordo com a zona da cidade de

onde se originam; eles se portam), sendo tão sérios e calados, que se

poderia cometer o engano de classificá

-

los como imbecis. Em sua maioria,

pareciam remanescentes de 1968, com cabelos compridos amarrados em

rabo

s

-

de

-

cavalo, seus

jeans

e camisetas tingidos, mas, em 1978, nenhum




desses caras queria derrubar o governo; eles queriam crescer e tornar

-

se

Mr. Goodwrench

1

.



E as salas de aulas profissionalizantes ainda são o destino final de

alunos desajustados e durões,



que não só freqüentavam a escola





ela

lhes servia como prisão. Então, agora que Arnie mencionava o nome de

Repperton, pude pensar em vários caras que circulavam em torno dele,

como um sistema planetário. Em sua maioria, andavam pelos vinte anos e

continu

avam lutando para terminar os estudos. Don Vandenberg, Sandy

Galton, "Penetra" Welch. O verdadeiro nome de "Penetra" era Peter, mas

os outros o chamavam assim, porque era visto farejando os concertos de

rock

em Pittsburgh, à espera de conseguir entrar.



Bud

dy Repperton se tornara dono de um Camaro azul, com dois

anos de fabricação, que havia capôtado umas duas vezes para fora da Rota

46, perto do Parque Estadual das Squantic Hills





segundo Arnie, ele o

adquirira de um dos companheiros de pôquer de Darnell.

A máquina

estava legal, porém

a carroceria mostrava amplamente os tristes efeitos da

capo

tagem. Repperton o levara para a garagem de Darnell, uma semana

após Arnie ter levado Christine, embora Buddy costumasse rondar por lá

ainda antes disso.



Nos primeiros



dois dias, Repperton parecera n

ão ter dado por Arnie

em absoluto. E Arnie, naturalmente, ficava muito feliz em não ser

percebido. Entretanto, Repperton mantinha

-

se em boas relações com

Darnell, parecendo não haver qualquer problema para conseguir

ferramen

tas muito requisitadas que, em geral, só eram acessíveis em

termos de reserva.



Ent

ão, Repperton começara a envolver

-

se com Arnie. Quando

voltava da vendedora automática de Coca ou do banheiro, derrubava e

espalhava por todo o piso do boxe de Arnie uma caix

a cheia de acessórios,

chave inglesa e juntas esféricas que ele estava usando. Ou então, se Arnie

tinha um café em sua prateleira, Repperton dava um jeito de atingi

-

lo com

o cotovelo e derramá

-

lo. Depois soltava um "Bem... me descuuuulpe...!",

como Steve M

artin, com seu largo sorriso perverso no rosto. Darnell, em

                                        

             



1



Elemento especializado, em uma oficina mecân

ica e postos de serviço, com estágio em

fábricas de automóveis e apto, entre outras coisas, a orientar o cliente sobre consertos em

seu veículo, reposição de peças genuínas e orçamento definitivo do trabalho. (N.T.).






seguida, berrava para Arnie recolher todos aqueles acessórios, antes que

algum deles sumisse por um ralo no chão ou coisa assim.



Em breve, Repperton se desviava de seu caminho para dar um

vigoroso



tapa nas costas de Arnie, acompanhado por um estrondoso:

"Como est

á se saindo, Cara de Cona?".



Arnie suportou aqueles ataques com o estoicismo do sujeito que j

á

viu algo igual antes, que já passou por tudo aquilo. Provavelmente,

esperava que Buddy Reppert

on se cansasse de amolá

-

lo ou que

encontrasse alguma outra vítima para substituí

-

lo. Havia ainda uma

terceira possibilidade, quase boa demais para acontecer





sempre havia a

esperança de que Buddy fosse justamente afetado por alguma coisa e

desaparecesse d

o cenário, como seu velho companheiro Roger Gilman.



Ent

ão, a coisa chegara às vias de fato, na tarde do último sábado.

Arnie estava lubrificando o carro, principalmente porque ainda não

acumulara fundos suficientes para as centenas de outros reparos que o

Plymouth exigia. Repperton aproximou

-

se, assobiando alegremente, com

uma Coca e um saco de amendoins em uma das mãos, um macaco de mão

na outra. Ao passar pelo boxe vinte, moveu brusca e vigorosamente o

macaco à altura da cintura e quebrou um dos faróis di

anteiros de

Christine.







Arrebentou

-

o em pedacinhos





contou

-

me Arnie, sobre nossa

pizza.



Ent

ão, mostrando no rosto uma exagerada expressão de tragédia,

Buddy Repperton dissera: "Oh, poxa, veja só o que fiz! Bem... me

descuuuulpe...".



Aquilo, entretanto, e

ra o m

áximo que Arnie podia suportar. O

ataque a Christine desencadeou as ações que ele ainda não fora capaz de

liberar





impeliu

-

o à retaliação. Deu a volta ao Plymouth, com os punhos

fechados, e atacou às cegas. Em um livro ou filme, talvez ele houvesse

esmurrado Repperton certeiramente, derrubando

-

o ao chão para uma

contagem de nocaute. Uma contagem até dez.



N

ão obstante, isso raramente acontece na vida real. Arnie nem

mesmo conseguiu chegar perto do queixo de Repperton. Atingiu

-

lhe

apenas a mão, derruba

ndo ao chão o saco de amendoins e despejando a

Coca

-

Cola inteiramente no rosto e camisa de Repperton.










Muito bem, seu filho da puta!





bradou Repperton. Parecia

quase comicamente surpreso.





Vou virar seu traseiro pelo avesso!



Avan

çou para Arnie empunhand

o o macaco. Vários dos outros

homens se aproximaram às carreiras e um deles disse a Repperton que

largasse o macaco e brigasse sem vantagens. Repperton atirou o macaco

para um lado e avançou.







Darnell não tentou pôr um fim à briga?





perguntei a Arnie.







Ele não estava lá, Dennis. Desapareceu uns quinze minutos ou

meia hora antes de tudo começar. Como se

soubesse

o que ia acontecer.



Arnie contou que Repperton havia feito a maior parte do estrago

logo de sa

ída. Primeiro o olho preto; o corte no rosto (feito



pelo anel do

colégio, adquirido por Repperton durante um de seus vários últimos anos

como veterano) aconteceu logo em seguida.







Além de várias outras coisas mais





acrescentou Arnie.







Que outras coisas?



Est

ávamos sentados em uma das cabinas do fundo. Ar

nie olhou em

torno, para certificar

-

se de que ninguém olhava para nós, e então ergueu a

camiseta. Respirei de maneira sibilante, quando vi aquilo. Era um terrível

pôr

-

do

-

sol em equimoses





amarelas, vermelhas, purpúreas, marrons





cobrindo

seu peito e est

ô

mago. Estavam apenas começando a esmaecer.

Não consegui entender como ele pudera ir trabalhar, massacrado daquele

jeito.







Tem certeza de que ele não lhe quebrou alguma costela, cara?





perguntei.



Eu estava francamente horrorizado. O olho preto e o corte d

o rosto

eram caf

é pequeno, perto de toda aquela coisa. Já vira o resultado de

brigas no colégio, estivera metido em algumas, porém agora contemplava

as conseqüências de uma surra em regra, pela primeira vez na vida.







Certeza absoluta





disse Arnie, com ca

lma.





Tive sorte.







Se teve!



Arnie n

ão contou muito mais, porém um garoto que eu conhecia,

chamado Randy Turner, estava lá e me contou o sucedido com mais

detalhes, quando as aulas começaram. Segundo ele, Arnie podia ter




apanhado muito mais, porém avançar

a para Buddy com muito mais

empenho e muito mais furioso do que ele esperara.



De fato, disse Randy, Arnie saltara para Buddy Repperton como se o

diabo lhe tivesse jogado um punhado de pimenta no traseiro. Seus bra

ços

se moviam como pás de moinho, os punhos



estavam em todos os lados.

Ele gritava, praguejava e babava. Tentei imaginar o quadro e não pude





em vez disso, via apenas Arnie socando meu painel de instrumentos, com

força apenas para deixar marcas, gritando que eles pagariam.



Arnie fizera Repperton r

ecuar at

é o meio da garagem, com o nariz

sangrando (mais por puro acaso, do que por boa pontaria), tendo

-

lhe

esmurrado o peito com tal violência que ele começou a tossir,

engasgando

-

se e terminando por perder o interesse em liquidar meu

amigo.



Buddy se vir

ara, segurando a garganta e tentando vomitar. Arnie

assestara um pontap

é nos fundilhos de Repperton, com sua bota de

trabalho de biqueira de aço, derrubando

-

o espalhafatosamente sobre a

barriga e os braços. Repperton ainda arquejava e segurava a garganta c

om

uma das mãos, o nariz jorrava sangue aos borbotões e (novamente,

segundo Randy Turner) Arnie parecia disposto a chutar o filho da puta

até acabar com ele quando Will Darnell magicamente reapareceu,

gritando em sua voz resfolegante que parassem com aquel

a merda,

parassem aquela merda, aquela

merda.







Arnie pensava que a briga estava para acontecer





falei a

Randy.





Pensou que fosse coisa combinada.



Randy deu de ombros.







Talvez fosse. Podia ser. Engraçado foi a maneira como Darnell

apareceu, quando Reppe

rton começou realmente a perder.



Uns sete sujeitos agarraram Arnie e o afastaram. A princ

ípio, ele

lutou como um demônio para libertar

-

se, gritando que o soltassem,

gritando que se Repperton não pagasse o farol quebrado, ele o mataria.

Depois se deixou sub

jugar, espantado e sem consciência de como podia

ter acontecido aquilo: Repperton caído e ele ainda de pé.



Repperton finalmente levantou

-

se, a camiseta branca suja de poeira

e graxa, o nariz ainda borbulhando sangue. Mergulhou na dire

ção de

Arnie. Randy co

ntou que mais parecia um ensaio de mergulho, quase por




amor às aparências. Outros sujeitos o contiveram e o afastaram dali.

Darnell aproximou

-

se de Arnie, dizendo que lhe entregasse a chave de sua

caixa de ferramentas e desse o fora.







Céus, Arnie! Por que



não me telefonou na tarde de sábado? Ele

suspirou.







Estava deprimido demais.



Terminamos nossa pizza e comprei uma terceira Pepsi para ele. Esse

tipo de refrigerante

é um veneno para a pele, mas um alívio para a

depressão.







Não sei se ele me mandou dar o



fora por aquele sábado ou para

sempre





comentou Arnie, quando voltávamos para casa.





O que você

acha, Dennis? Será que ele me chutou de lá definitivamente?







Você disse que ele lhe pediu a chave da caixa de ferramentas.







Exato, exato, foi o que ele fez

. Nunca fui chutado de

nenhum lugar

antes.

Arnie dava a impressão de que ia chorar.







Seja como for, aquele lugar é uma droga. E Will Darnell é um

filho da puta.







Acho que seria estupidez tentar continuar lá





disse ele.





E

mesmo que Darnell me deixe vol

tar, Repperton continua lá. Eu acabaria

brigando com ele outra vez e...



Comecei a cantarolar baixinho o tema de

Rocky.







Vá para o inferno, você e o garanhão que monta, Cavaleiro da

Montanha





disse ele, sorrindo ligeiramente.





Eu lutaria

realmente

com

el

e. Só que Repperton pode atacá

-

la novamente com aquele macaco,

quando eu não estiver lá. E, se fizesse isso, não creio que Darnell o

impedisse.



Como não respondi, talvez Arnie pensasse que eu era de sua mesma

opinião. Entretanto, não me entrava na cabeça q

ue seu velho calhambeque

enferrujado, aquele Plymouth Fury, fosse o alvo principal. E, se Repperton

não pudesse completar sozinho a demolição do alvo principal, bastaria

pedir ajuda a seus amigos





Don Vandenberg, "Penetra" Welch, etc.

Calcem suas botas fe

rradas, rapazes, vamos ter uma boa diversão esta

noite.






Ocorreu

-

me que eles poderiam acabar com ele. Não apenas arrasá

-

lo,

mas

matá

-

lo

mesmo. Sujeitos como eles às vezes fazem isso. As coisas

apenas passam de um certo limite e algum garoto termina morto. V

olta e

meia, a gente lê isso nos jornais.





... deixá

-

la?







Como?



Eu não seguira o fio de sua conversa. Mais acima, a casa de Arnie

estava à vista.







Perguntei se você tinha alguma idéia sobre onde eu poderia

deixá

-

la.



O carro, o carro, o carro, era tudo so

bre o que ele falava. Arnie

começava a soar como um disco rachado. E, pior ainda, era sempre ela, ela,

ela. Era inteligente o bastante para sentir sua crescente obsessão por ela





ele, maldição, ele



, mas não dava pela coisa. Nem se mancava.







Arnie





fal

ei.





Escute aqui, cara. Você tem coisas mais

importantes com que se preocupar, em vez de espremer os miolos

imaginando onde vai deixar o carro. Onde o guardará. Quero saber onde

você vai se guardar.







Como? De que está falando?







Pergunto o que fará, se B

uddy e seus capangas decidirem que vão

fazer você dançar.



Seu rosto subitamente adquiriu uma expressão consciente





tão

subitamente que dava medo ver. Consciente, impotente e sofrido. Era um

rosto que eu podia reconhecer, pois o vira nos noticiários, quand

o tinha

apenas oito ou nove anos





o rosto de todos aqueles soldados de pijamas

negros que tinham feito o diabo com o mais bem equipado e aguerido

exército do mundo.







Farei o que puder, Dennis





disse ele.





L

E

B

AY

M

ORRE



Não tenho carro e isso me corta o co

ração,








Mas tenho um motorista e já é um começo...







Lennon e McCartney





Tinham começado a passar o filme

Nos Tempos da Brilhantina

e levei

a chefe de torcida para vê

-

lo, aquela noite. Achei uma chatura, mas ela

adorou. Fiquei lá, vendo aqueles adolescente

s completamente irreais,

dançando e cantando (se eu quisesse adolescentes

realistas





bem, mais

ou menos





veria O

Balanço das Horas,

em alguma reapresentação), de

modo que minha mente se desligou do filme. De repente, fui acometido

por uma súbita idéia, c

omo às vezes costuma acontecer quando não

estamos concentrados em nada particular.



Desculpei

-

me e fui até o saguão, para usar o telefone público. Liguei

para a casa de Arnie, com rapidez e segurança. Decorara o número dele

desde que andava pelos oito anos,



ou coisa assim. Podia ter esperado até o

filme terminar, mas aquela idéia me pareceu diabolicamente boa, para

esperar tanto tempo. O próprio Arnie atendeu.







Alô?







Aqui é Dennis, Arnie.







Oh, Dennis!



Sua voz era tão inexpressiva e alheia que fiquei um po

uco assustado.







Você está bem, Arnie?







Como? Oh, claro que estou. Pensei que você tivesse levado

Roseanne ao cinema.







É do cinema que estou ligando.







Então, o filme não deve ser tão legal assim





disse Arnie, com

aquela voz ainda monótona, monótona e t

errível.







Roseanne está achando um barato.



Pensei que aquilo arrancasse o riso de Arnie, mas houve apenas

aquele silêncio paciente, aguardando.







Escute





falei



, encontrei a resposta.







Que resposta?







LeBay





respondi.





LeBay é a resposta.










Le...





d

isse ele, em voz estranha e aguda... para então silenciar

novamente. Aquilo começava a ser mais do que um susto para mim. Eu

nunca o vira desse jeito.







Exatamente





insisti.





LeBay. LeBay tem uma garagem e me

veio a idéia de que ele comeria um sanduíche

de rato morto se a margem

de lucro fosse suficientemente alta. Se você o procurar oferecendo uma

base, digamos, de dezesseis ou dezessete pratas por semana...







Muito engraçado, Dennis.



A voz de Arnie era gélida e odiosa.







Arnie, o que... Ele desligou.



Fi

quei parado, contemplando o fone e me perguntando que diabo

estava acontecendo. Alguma nova investida de seus pais? Teria ele

voltado à garagem e descoberto um novo dano em seu carro? Ou...



Uma súbita intuição





quase uma certeza





me colheu de súbito.

Rec

oloquei o fone no gancho e caminhei para o balcão onde vendiam

doces e pipocas e perguntei se tinham o jornal daquele dia. A garota que

atendia finalmente o pescou e voltou a estourar sua goma de mascar,

enquanto eu folheava a parte final do jornal, onde p

ublicam os obituários.

A garota me vigiava, talvez querendo ter certeza de que eu não usaria o

jornal para alguma estranha perversão ou possivelmente o comesse.



Nada encontrei





ou foi o que imaginei a princípio. Então, virando

a página, vi o cabeçalho. VE

TERANO DE LIBERTYVILLE FALECE AOS

71 ANOS. Havia uma foto de Roland D. LeBay em seu uniforme do

Exército, parecendo vinte anos mais jovem e com olhos muito mais vivos

do que nas ocasiões em que eu e Arnie o tínhamos visto. A notícia era

breve. LeBay falece

ra subitamente, na tarde de sábado. Deixava um irmão,

George, e uma irmã, Márcia. Os serviços funerários estavam marcados

para terça

-

feira, às duas da tarde.



Subitamente.



Nas notícias de falecimentos, sempre lemos: "após prolongada

enfermidade," "após brev

e enfermidade" ou "subitamente". Subitamente

pode significar qualquer coisa, desde embolia cerebral a uma eletrocussão

na banheira. Recordei algo que tinha feito a Ellie, quando ela não passava

de um bebê





teria uns três anos, talvez. Eu quase a matara de



susto, com

um boneco de molas. A mão de Dennis, seu grande irmão mais velho,




girava a pequena manivela que produzia música. Nada mau. Muito

interessante. E de repente





ploft!

De dentro da caixa saltava aquele

sujeito de rosto risonho e feio nariz de ganc

ho, quase lhe atingindo o olho.

Ellie abriu um berreiro e disparou em busca da mãe, enquanto eu ficava lá,

olhando sombriamente para o boneco que oscilava de um lado para outro,

sabendo que provavelmente seria repreendido, sabendo que

provavelmente

merecia



ser repreendido





eu sabia antecipadamente que o

boneco a assustaria, brotando da música daquele jeito, de repente, com

um terrível ruído.



Brotando tão subitamente.



Devolvi o jornal e fiquei lá, olhando apaticamente para os cartazes

que anunciavam PRÓXIMA



ATRAÇÃO e PARA BREVE.



Tarde de sábado.



Subitamente.



É engraçado como as coisas às vezes acontecem. Minha repentina

idéia havia sido de que talvez Arnie pudesse levar Christine de volta para

o lugar de onde viera, pagando a LeBay por isso. Agora, no entant

o,

LeBay estava morto. De fato, morrera no mesmo dia da briga de Arnie

com Buddy Repperton





o mesmo dia em que Buddy estraçalhara o farol

de Christine.



Tive imediatamente um retrato irracional de Buddy Repperton

movimentando aquele macaco





e, no mesmo ex

ato momento,

o olho de

LeBay espirra sangue, ele emborca de pernas para o ar e, subitamente,

muito subitamente...



Pare com isso, Dennis,

me adverti.

Pare com...



Então, em algum lugar lá no fundo de minha mente, algum ponto

perto do centro, uma voz sussurro

u:

Vamos garotão, vamos rodar por aí





e

silenciou.



A garota atrás do balcão explodiu sua goma de mascar e disse:







Você está perdendo o fim do filme. É a melhor parte.







Oh, sim, obrigado.



Comecei a caminhar para a porta do cinema e então mudei o rumo,

di

reto ao bebedouro. Minha garganta estava muito seca.






Antes de terminar de beber, as portas se abriram e todos começaram

a sair. Além e acima de suas cabeças em movimento, pude ler o nome dos

participantes do filme. Roseanne surgiu à vista, olhando em torno



à minha

procura. Atraiu muitos olhares de admiração e os devolveu com

simplicidade, naquele seu jeito sonhador e contido.







Den

-

Den





disse ela, tomando meu braço. Ser chamado Den

-

Den

não é a pior coisa do mundo, ter os olhos inutilizados por um rubro

ati

çador de brasas ou uma perna amputada por uma serra elétrica deve

ser muito mais terrível, mas nunca me importei muito com aquilo.





Onde é que você esteve? Perdeu o final do filme. E o fim é...





... a melhor parte





completei para ela.





Sinto muito. Houv

e

uma necessidade fisiológica. Aconteceu quando menos esperava.







Vou te contar tudinho, se me levar até a beira do rio, por um

momento





disse ela, pressionando meu braço contra o lado macio de seu

seio.





Se estiver querendo conversar, lógico.







Foi um f

inal feliz?



Ela sorriu para mim, os olhos grandes e doces, um pouco

atordoados, como sempre. Segurou meu braço ainda mais apertadamente

contra o seio.







Muito feliz





disse.





Gosto de finais felizes. E você?







Adoro





respondi.



Eu devia estar pensando na

promessa de seus seios, mas a verdade é

que voltara a concentrar

-

me em Arnie.



Naquela noite, tive um sonho novamente, porém neste Christine era

velha





não, não apenas velha; era anciã, um terrível carro de carroceria

desmantelada, algo que se esperaria ve

r em um baralho Tarot: em vez do

Homem Enforcado, o Carro Morto. Algo que se poderia quase acreditar

ser tão velho como as pirâmides. O motor rugia, morria e expelia uma

fedorenta fumaça azulada de óleo queimado.



Ele não estava vazio: Roland D. LeBay estav

a refestelado ao volante.

Seus olhos abertos eram vítreos e mortos. A cada vez que o motor pegava,

a carroceria carcomida de ferrugem vibrava, Christine se sacudia como

uma boneca de trapos. Seu crânio descascado assentia, para diante e para

trás.






Então, o

s pneus deram seu grito terrível, o Plymouth saltou da

garagem para cima de mim e, ao fazer isso, a ferrugem dissolveu

-

se, os

vidros antigos e rachados ficaram cristalinos, os cromados cintilaram com

selvagem frescor e os velhos pneus carecas subitamente f

loresceram em

carnudos Firestones de banda branca, cada reentrância da banda de

rolamento parecendo tão funda como o Grand Canyon.



Ele estrondeou para mim, os faróis despejando círculos brancos de

ódio, e então ergui as mãos, em um gesto estúpido e inútil

de defesa,

pensando:

Céus, essa fúria interminável...





Acordei.



Não gritei. Naquela noite, sufoquei o grito na garganta.



Com grande esforço.



Sentei

-

me na cama, uma poça fria de luar batia em um pedaço do

lençol e pensei:

Falecido subitamente...



Nessa noite

, não consegui tornar a dormir tão depressa.





O



F

UNERAL



Rabo

-

de

-

peixe branco, de ponta a ponta,



E roda como algo do paraíso aqui na terra,



Bem, cara, quando eu morrer,



Jogue meu corpo na traseira



E me leve para o ferro

-

velho em meu Cadillac.







Bruce Spring

steen





Brad Jeffries, nosso capataz de turma na estrada, andava pelos

quarenta e tantos anos, era careca, atarracado, permanentemente

queimado de sol. Gostava muito de gritar





principalmente quando

estávamos atrasados nos prazos de construção





mas era um



bocado




legal como pessoa. Fui procurá

-

lo na folga do café, para saber se Arnie

pedira algumas horas livres ou a tarde inteira.







Ele pediu duas horas, para ir a um enterro





disse Brad. Tirou os

óculos de aros metálicos e massageou os pontos vermelhos que



haviam

deixado, nos lados do nariz.





Bolas, não vá

pedir

também... vou perder

vocês dois no fim da semana, de qualquer jeito, e todos os imbecis ficam

aqui.







Tenho que pedir, Brad.







Por quê? Quem é o cara? Cunningham disse que ele lhe vendera

um carro,



foi tudo. Céus, nunca pensei que alguém fosse ao enterro de um

vendedor de carros usados, além dos parentes.







Não era um vendedor de carros usados, apenas um cara. Arnie

está tendo problemas nessa área, Brad. Acho que eu devia estar com ele.



Brad suspiro

u.







Certo. Certo, certo, certo! Pode tirar uma folga, de uma às três,

como ele. Se concordar em trabalhar durante a hora do almoço e ficar até

as seis, na sexta

-

feira.







Tudo bem, Brad. Obrigado.







Vou fazer de conta que trabalharam o horário normal





dec

larou

Brad.





Se alguém da Penn

-

DOT, em Pittsburgh, descobrir, minha cabeça

vai rolar.







Ninguém descobrirá.







Será uma pena perder vocês dois, rapaz.



Pegou o jornal e procurou a parte esportiva. Vindo de Brad, aquilo

era um elogio e tanto.







Foi um bom ve

rão para nós também.







Fico satisfeito em saber, Dennis. Agora dê o fora daqui e me deixe

ler o jornal. Obedeci.



Era uma da tarde quando peguei carona em uma niveladora até o

barracão principal da construção. Ar

n

ie estava lá dentro, pendurando seu

capacete



amarelo e vestindo uma camisa limpa. Olhou para mim com

espanto.










Dennis! O que está fazendo aqui?







Vim me aprontar para um enterro





falei.





O mesmo que você.







Não





disse ele prontamente.



Naquela palavra, encerrava

-

se tudo





os sábados que não passa

va

mais em casa, a frieza de Michael e Regina ao telefone, a maneira como ele

se portara, quando lhe ligara do cinema



, fazendo

-

me perceber o quanto

me isolara de sua vida e como aquilo acontecera da mesma forma como

LeBay tinha morrido. Subitamente.







Si

m





falei.





Sonhei com o sujeito, Arnie. Está me ouvindo?

Eu

sonhei

com ele. Vou ao enterro. Podemos ir juntos ou separados, mas eu

vou também.







Não estava brincando, estava?







Quê?







Quando ligou para mim, do cinema. Ainda não sabia que ele

estava morto

, sabia?







Droga! Acha que eu ia brincar com uma coisa dessas?







Não





respondeu ele, mas demorou um pouco.



Só respondeu depois de refletir cautelosamente. Via a possibilidade

de todas as mãos agora se voltarem contra ele. Will Darnell agira assim,

bem com

o Buddy Repperton. Imagino que também seu pai e sua mãe.

Contudo, não se tratava somente deles, nem mesmo principalmente deles,

porque nenhum era a causa primordial. Era o carro.







Você sonhou com ele?







Sonhei.



Ele ficou parado, segurando a camisa limpa,

meditando naquilo.







O jornal disse Cemitério de Libertyville Heights





comentei

finalmente.





Vai pegar o ônibus ou prefere ir comigo?







Vou com você.







Boa idéia.








Postamo

-

nos em uma elevação, um pouco acima da cerimônia à

beira da sepultura, não ousando



ou não querendo descer e juntar

-

nos ao

punhado das pessoas ali presentes. Ao todo, eram menos de uma dúzia,

metade composta de velhos sujeitos vestindo uniformes que pareciam

velhos e cuidadosa

mente preservados





quase se podia sentir o cheiro da

naftali

na. O ataúde de LeBay estava em deslizadores sobre a sepultura.

Havia uma bandeira sobre ele. As palavras do pregador chegaram até nós,

levadas pela brisa quente de um final de agosto: "O homem é como a relva,

que cresce e depois é aparada, o homem é como

a flor, que desabrocha na

primavera e esmaece no verão, o homem é amor, e ama o que desaparece.



Terminada a cerimônia, a bandeira foi removida e um homem

aparentando mais de sessenta anos jogou um punhado de terra sobre o

caixão. Pequenos fragmentos saltit

aram e caíram na fossa abaixo. O

noticiário do óbito dizia que ele deixara um irmão e uma irmã. Aquele

devia ser o irmão; a semelhança não era espantosa, mas existia.

Evidentemente, a irmã não comparecera; ali havia apenas homens, em

torno do buraco no chã

o.



Dois dos sujeitos da Legião Americana dobraram a bandeira em

formato de quepe e um deles a entregou ao irmão de LeBay. O pregador

pediu ao Senhor para abençoá

-

los e guardá

-

los, que Seu rosto fulgurasse

sobre eles e lhes desse paz. Em seguida, todos come

çaram a dispersar

-

se.

Olhei em torno, procurando Arnie, porém ele não estava mais ao meu

lado. Tinha

-

se afastado um pouco e o vi de pé sob uma árvore. Havia

lágrimas em suas faces.







Você está bem, Arnie?





perguntei.



Tive absoluta certeza de não ter visto



uma só maldita lágrima

vertida pelos que circundavam a sepultura. Pensei que, se Roland D.

LeBay soubesse que Arnie Cunningham seria o único a derramar lágrimas

por ele, na cerimônia simples junto à sepultura, em um dos mais

anônimos cemitérios do oeste d

a Pensilvânia, bem poderia ter rebaixado

cinqüenta pratas do preço de seu nojento carro. Afinal de contas, Arnie

ainda estaria pagando cento e cinqüenta a mais do que o calhambeque

valia.



Ele limpou o rosto com as palmas das mãos, em um gesto quase

selvage

m.







Estou ótimo





disse.





Vamos.










Está bem.



Pensei que ele se referia à hora de irmos embora, porém Arnie não

caminhou para onde eu estacionara meu Duster, começando, em vez disso,

a descer a elevação. Comecei a perguntar

-

lhe aonde ia, mas fechei a boca

;

eu o conhecia bem, sabia que pretendia falar com o irmão de LeBay.



O irmão estava parado com dois daqueles sujeitos com tipo de

Legionários, conversando tranqüilamente, com a bandeira debaixo do

braço. Usava o terno do homem que se aproxima da aposentado

ria, com

um rendimento insuficiente. Era um tecido com fino listrado azul, os

fundilhos ligeiramente brilhantes. A gravata aparecia com a ponta

amarrotada e a camisa branca estava amarelada no colarinho.



Ele nos viu chegando.







Com licença





disse Arnie



,



mas o senhor é o irmão do Sr.

LeBay, não?







Sim, sou eu mesmo.



Ele fitou Arnie de modo inquisitivo e, pensei, um tanto desconfiado.

Arnie estendeu a mão.







Meu nome é Arnold Cunningham. Conheci seu irmão

ligeiramente. Comprei um carro dele, não faz muito

tempo.



Quando Arnie estendeu a mão, LeBay a procurou

automaticamente





entre homens americanos, o único gesto que parece

mais arraigado do que o aperto de mão é observar a braguilha, para

certificar

-

se de que o zíper foi fechado, após a saída de um toalete



público.

Entretanto, quando Arnie acrescentou que comprara um carro de LeBay, a

mão vacilou no trajeto. Por um momento, pensei que não ia haver

qualquer aperto de mãos, que ele recuaria com a sua, deixando a de Arnie

boiar no vazio.



Entretanto, ele não fe

z tal coisa... pelo menos, não de todo. Apertou

superficialmente a mão de Arnie e depois a soltou.







Christine





disse ele, em voz inexpressiva. Sim, a semelhança do

parentesco era patente: na maneira como as sobrancelhas formavam uma

prateleira acima dos

olhos, na forma do queixo, nos olhos de um azul

-

claro. Este homem, no entanto, tinha o rosto mais suave, quase gentil;

duvido que um dia fosse ficar com a aparência magra e astuta de Roland




D. LeBay.





Na última notícia sua que me enviou, Rollie disse que

a

vendera.



Deus meu, também ele usava o maldito pronome feminino. E

Rollie!

Era difícil imaginar LeBay, com seu crânio pelado e o fedorento colete

ortopédico, sendo Rollie para alguém. Seu irmão, contudo, pronunciara o

diminutivo na mesma voz seca e indife

rente. Não havia amor naquela voz,

pelo menos nenhum que eu pudesse captar.



LeBay prosseguiu:







Meu irmão não escrevia com freqüência, Sr. Cunningham, mas

tinha uma tendência a vangloriar

-

se. Eu desejaria ter para ele uma palavra

mais delicada, porém creio



que não existe. Em seu bilhete, Rollie falava do

senhor como um "pato" e disse que lhe passara o que considerava "um

conto

-

do

-

vigário".



Fiquei de boca aberta. Virei

-

me para Arnie, quase esperando outro

acesso de fúria. Seu rosto, contudo, não se modificou



em absoluto.







Um conto

-

do

-

vigário





disse brandamente





é sempre a opinião

do espectador. Acredita nisso, Sr. LeBay?



LeBay riu... com certa relutância, observei.







Este é meu amigo. Estávamos juntos, no dia em que comprei o

carro. Fui apresentado e apert

ei a mão de George LeBay.



Os soldados já se tinham ido. Nós três, eu, Arnie e LeBay,

entreolhamo

-

nos desconfortavelmente. LeBay passou a bandeira do irmão

de uma para a outra mão.







Posso ser

-

lhe útil em alguma coisa, Sr. Cunningham?





perguntou LeBay fina

lmente. Arnie pigarreou.







Eu estava pensando na garagem





disse por fim.





Compreenda,

estou consertando o carro, tentando deixá

-

lo em condições de rodar

novamente pelas ruas. Meus pais não o querem em nossa casa e, desta

forma, eu estava pensando se...







Nada feito.







... talvez pudesse alugar a garagem.







O assunto está fora de discussão. De fato, é...










Eu pagaria vinte dólares por semana





disse Arnie.





Até vinte

e cinco, se quiser. Pestanejei. Arnie se portava como um menino, preso em

areia movediça,



que decide divertir

-

se comendo alguns bombons com

arsênico.







Impossível.





LeBay parecia cada vez mais constrangido.







Apenas a garagem





disse Arnie, sua calma começando a

fraquejar.





Apenas a garagem onde o carro

estava antes.







Não é possível





disse



LeBay.





Ainda esta manhã, registrei a

casa com os corretores da Century 21, Libertyville Realty e Pittsburg

Homes. Eles ficaram incumbidos de mostrá

-

la...







Claro, dentro de algum tempo, mas até lá...







...e eu não gostaria de tê

-

lo na propriedade. Compr

eende, não?





Ele se inclinou ligeiramente para Arnie.





Por favor, não me interprete

mal. Nada tenho contra adolescentes em geral... Se tivesse, provavelmente

estaria agora em um hospício, porque lecionei no ginásio de Paradise Falls,

Ohio, durante quase

quarenta anos, e você me parece um cortês e

inteligente exemplo do gênero adolescente. De qualquer modo, tudo

quanto pretendo fazer aqui, em Libertyville, é vender a casa e dividir

qualquer que seja o produto obtido, com minha irmã em Denver. Quero

ver

-

me

livre daquela casa, Sr. Cunningham, e também livre da vida de

meu irmão.







Entendo





disse Arnie.





Faria muita diferença se eu lhe

prometesse cuidar da propriedade? Aparar a grama? Repintar as portas e

janelas? Fazer pequenos reparos? Tenho muito jeito pa

ra essas coisas.







Ele é realmente bom nisso





falei.



Para Arnie, seria bom recordar, mais tarde, que eu estivera do seu

lado... mesmo não estando.



Já contratei um homem para ficar de olho

por lá e fazer um pequeno trabalho de conservação. Aquilo soava

pl

ausível mas, de repente, tive certeza absoluta de que era mentira. E

Arnie sabia também, pensei.







Está certo. Sinto muito sobre seu irmão. Ele parecia um... um

homem de grande força de vontade.



Quando Arnie disse isso, recordei o momento em que me virara

e

tinha visto LeBay com compridas e gordurosas lágrimas nas faces.

Bem, aí

está. Fiquei sem a minha máquina, filho.










Força de vontade?





LeBay sorriu cinicamente.





Oh, sim. Ele

era um filho da mãe com força de vontade.





Pareceu não notar o ar

chocado de



Arnie.





Com licença, senhores. Creio que o sol perturbou um

pouco o meu estômago.



Começou a caminhar. Ficamos parados, não muito longe da

sepultura, vendo

-

o afastar

-

se. LeBay parou subitamente e o rosto de Arnie

iluminou

-

se, sem dúvida pensando que o hom

em mudara de idéia de

repente. Por um momento, LeBay ficou parado sobre a grama, a cabeça

baixa, na postura de quem reflete profundamente. Então tomou a

caminhar para nós.







Se quer um conselho, esqueça aquele carro





disse a Arnie.





Venda

-

o. Se ninguém o



quiser comprar inteiro, venda

-

o por peças. E se

ninguém se interessar assim mesmo, leve para o ferro

-

velho. Faça isso, o

mais rápido possível. Como quem se livra de um vício. Creio que você

seria mais feliz.



Ficou olhando para Arnie, esperando que ele dis

sesse alguma coisa,

mas não houve resposta. Meu amigo apenas o encarou fixamente. Seus

olhos tinham aquela peculiar e estranha tonalidade que adquiriam

quando a mente de Arnie estava decidida em alguma coisa, os pés bem

firmes no chão. LeBay entendeu e ass

entiu. Pareceu angustiado e um

pouco indisposto.







Bom dia, senhores. Arnie suspirou.







Bem, suponho que isto encerra tudo.



Olhou para Lebay que se afastava, com certo ressentimento.







Certo





concordei, esperando soar mais infeliz do que me sentia.



Era o

sonho. Eu não gostava da idéia de Christine novamente

naquela garagem. Era semelhante demais ao meu sonho.



Em silêncio, começamos a caminhar de volta para meu carro. LeBay

piscou para mim. Os dois LeBays tinham piscado para mim. Tomei uma

súbita, impulsiva



decisão





só Deus sabe como as coisas podiam ter sido

muito diferentes, se eu não tivesse seguido meu impulso.







Ei, cara





falei.





Tenho que dar uma mijada. Será só um ou

dois minutos, certo?







Certo





disse ele, mal erguendo os olhos.






Continuou caminha

ndo, com as mãos enfiadas nos bolsos e os olhos

cravados no chão. Caminhei para a esquerda, onde um pequeno e discreto

aviso, com uma flecha ainda menor, indicava o trajeto para os toaletes.

Entretanto, quando escalei a primeira elevação e fiquei fora da v

ista de

Arnie, dobrei para a direita e corri para o pátio de estacionamento.

Alcancei George LeBay quando ele deslizava lentamente para trás do

volante de um diminuto Chevette, com um adesivo Hertz colado no pára

-

brisa.







Sr. LeBay!





chamei, arquejante.





Sr. LeBay!





Ele ergueu os

olhos, curiosamente.





Desculpe

-

me





falei.





Sinto muito incomodá

-

lo

novamente.







Não tem importância





respondeu ele



, mas continuo firme no

que disse a seu amigo. Não posso deixá

-

lo guardar o carro na garagem.







Faz muito be

m





falei.



Suas espessas sobrancelhas se elevaram.







Aquele carro





continuei



, aquele

Fury,

não gosto dele. Ele

continuou a olhar para mim, sem dizer nada.







Não creio que aquele carro tenha feito bem a meu amigo. Talvez,

em parte seja porque... Oh, eu n

ão sei como dizer...







Está com ciúmes?





perguntou ele, brandamente.





O tempo

que seu amigo passava com você agora é dedicado a... Christine?







Bem, acho que é isso





falei.





Somos amigos há muito tempo...

Só que... bem, não creio que se trate apenas di

sso.







Não?







Não.





Olhei em torno, para ver se avistava Arnie e, nesse meio

tempo, consegui concatenar os pensamentos.





Por que disse a ele para

levar o carro ao ferro

-

velho e esquecê

-

lo? Por que disse que era como um

vício?



Ele ficou calado e receio qu

e nada tivesse a dizer





pelo menos, não

a mim. Então, quase baixo demais para eu ouvir, perguntou:







Tem certeza de que isto é da sua conta, filho?







Não sei.





De repente, parecia muito importante fitá

-

lo nos

olhos.





No entanto, eu me preocupo com Arnie

, entende? Não quero vê

-




lo sofrer. Aquele carro já lhe trouxe problemas. Não quero que a situação

fique pior.







Venha a meu hotel esta noite. Fica logo depois da Western

Avenue, na saída da 376. Acha que pode encontrar?







Ajudei a compactar os lados da ram

pa





falei, estendendo

-

lhe as

mãos.





Ainda tenho bolhas.



Sorri, mas ele não correspondeu ao sorriso.







Rainbow Hotel. Há dois, na cabeceira daquela saída. O meu é o

mais barato.







Obrigado





falei, desajeitadamente.





Ouça, acha mesmo que...







Talvez não

seja da sua conta, da minha, nem da de ninguém





disse LeBay, em sua voz macia de professor, tão diferente do selvagem

cacarejo de seu falecido irmão (porém, de certo modo, tão fantasticamente

similar).



(e este é o melhor cheiro do mundo... excetuando talv

ez o de uma cona)







No entanto, vou lhe dizer uma coisa





prosseguiu ele.





Meu

irmão não era um bom homem. Em minha opinião, a única coisa que ele

realmente amou na vida foi esse Plymouth Fury que seu amigo comprou.

Portanto, o assunto deve ser entre eles

, apenas entre eles, pouco importa o

que me diga ou o que eu lhe possa dizer.



Ele sorriu para mim. Não era um sorriso agradável e, naquele

instante, pareceu

-

me ver Roland D. LeBay espiando através de seus olhos.

Fiquei arrepiado.







Filho, você talvez ainda



seja jovem demais para buscar sabedoria

nas palavras de alguém, preferindo as suas próprias, porém eu lhe digo

isto: o inimigo é o amor.





Assentiu lentamente para mim.





Exatamente.

Os poetas se enganam com o amor, de maneira contínua e por vezes

deliber

adamente. O amor é o velho carniceiro. O amor não é cego. O amor

é um canibal com visão extremamente apurada. O amor é como os insetos:

sempre faminto.







E o que ele come?





perguntei, inconscientemente.



Não tinha idéia de perguntar coisa alguma. Cada part

e minha,

exceto a boca, considerava insana toda aquela conversa.










A amizade





disse George LeBay.





Ele come a amizade. Se

fosse você, Dennis, eu agora me prepararia para o pior.



Fechou a porta do Chevette com um pluft! macio e ligou seu motor

de máquina

de costura. O carro afastou

-

se, deixando

-

me parado no final

do piso acimentado. De repente, lembrei que Arnie podia avistar

-

me

vindo daqueles lados e então saí dali o mais depressa que pude.



Enquanto me afastava, refleti que os coveiros, enterradores,

enge

nheiros perpétuos ou fosse lá que nome tivessem nos dias atuais,

naquele momento deviam estar baixando o caixão de LeBay à sepultura. A

terra atirada por George LeBay no final da cerimônia estaria dispersa

sobre a tampa, à maneira de uma cartada vitoriosa.



Tentei afastar a

imagem, porém outra ainda pior a substituiu: Roland D. LeBay, dentro do

ataúde forrado de seda, envergando seu melhor terno e sua melhor roupa

de baixo





sem

o nauseabundo e encardido colete ortopédico,

naturalmente.



LeBay estava debaixo

da terra, LeBay estava em seu caixão, com as

mãos cruzadas sobre o peito... e por que eu tinha tanta certeza de haver

em seu rosto um largo e debochado sorriso?





U

M

H

ISTÓRICO DE

F

AMÍLIA



Não ficou sabendo em Needham?



A Rota 128 está em suas linhas de força.

..



É tão frio aqui no escuro.



É tão excitante no escuro...



-



Jonathan Richmond e os Modern Lovers





O Rainbow Hotel era bastante ruim, sem dúvida. Tinha apenas um

andar, a pavimentação do pátio de estacionamento estava rachada e duas

das letras no anúncio d

e néon estavam avariadas. Era exatamente o tipo

de lugar onde se espera encontrar um idoso professor inglês. Sei o quanto

isto pode parecer deprimente, porém é a pura verdade. E, no dia seguinte,




ele devolveria seu carro à Agência Hertz, no aeroporto, para



em seguida

tomar o avião de volta a casa, em Paradise Falls, Ohio.



O Rainbow Hotel parecia uma enfermaria geriátrica. Havia vários

grupos sentados do lado de fora de seus aposentos, nas espreguiçadeiras

de jardim que a gerência fornecia para tal finalidad

e, cruzados os joelhos

ossudos, as meias brancas puxadas para cima, sobre as canelas peludas.

Todos os homens tinham uma aparência de alpinistas envelhecidos, eram

magricelas e rijos. Em sua maioria, as mulheres desabrochavam com a

macia gordura do pós

-

cin

qüenta, uma gordura sem esperanças de

desaparecer. Desde então, comecei a perceber a existência de hotéis que

parecem cheios apenas de pessoas com mais de cinqüenta anos como se

eles ficassem sabendo desses lugares através de um Telefone de

Emergência para



Idosos, mas Decentes. Traga a sua Histerectomia e

Próstata Dilatada para o Não

-

Tão

-

Cênico Rainbow Hotel. Sem Televisão,

mas Temos Dedos Mágicos, Apenas 25 Centavos a Injeção. Não vi

qualquer pessoa jovem no exterior das unidades e, a um lado, o

enferrujad

o equipamento do

playground

permanecia vazio, os balanços

lançando compridas sombras imóveis no chão. Em cima, um arco

-

íris de

néon, justificando o nome do lugar (Rainbow), arqueava

-

se sobre o

anúncio. Zumbia como um punhado de moscas presas em uma garrafa

.



LeBay estava sentado fora da Unidade 14, com um copo na mão.

Caminhei até lá e troquei um aperto de mão com ele.







Gostaria de um refrigerante?





perguntou ele.





No escritório

há uma máquina automática que os fornece.







Não, obrigado





respondi.



Peguei

uma das espreguiçadeiras que vi diante de uma unidade

vazia e me sentei ao lado dele.







Então, deixe

-

me contar

-

lhe o que posso





disse ele, em sua voz

culta e suave.





Sou onze anos mais novo que Rollie e um homem que

ainda está aprendendo a envelhecer.



Re

mexi

-

me desajeitadamente no assento e não disse nada.







Éramos quatro





disse ele.





Rollie o mais velho, eu o mais novo.

Nosso irmão Drew morreu na França, em 1914. Ele e Rollie fizeram

carreira no Exército. Fomos criados aqui, em Libertyville. Só que, na

quela,

época, Libertyville era muito, muito menor, compreenda, apenas uma




aldeia. Pequena o bastante para ter seus endinheirados e seus párias. Nós

pertencíamos aos párias. Éramos uma família pobre. Gente sem iniciativa.

Do lado errado dos trilhos. Escolha



o clichê.



Ele deu uma risadinha contida e despejou mais cerveja em seu copo.







Em verdade, só consigo recordar uma coisa constante sobre a

infância de Rollie, afinal, ele estava no quinto ano quando nasci mas é algo

de que me lembro perfeitamente.







O que



é?







Sua raiva





disse LeBay.





Rollie estava sempre furioso.

Irritava

-

se por ter de ir à escola com roupas velhas, irritava

-

se por nosso

pai ser um bêbado que não conseguia manter um emprego fixo em

nenhuma das metalúrgicas, irritava

-

se por nossa mãe não



conseguir fazer

com que nosso pai deixasse de beber. Ficava também irritado com as três

crianças menores





Drew, Márcia e eu



, pois tornávamos a pobreza

insustentável.



Ele estendeu o braço para mim e arregaçou a manga da camisa, a

fim de mostrar

-

me os du

ros e esbranquiçados tendões de seu braço de

velho, jazendo logo abaixo da superfície da pele luzidia e estirada. Uma

cicatriz alastrava

-

se do cotovelo até o pulso, onde finalmente se desfazia.







Isto foi um presente de Rollie





disse.





Eu tinha três anos



e ele

quatorze. Eu brincava com alguns blocos de madeira pintados, que fingia

serem carros e caminhões, na calçada diante de uma casa, quando ele

apareceu, a caminho da escola. Imagino que eu estivesse em seu caminho.

Ele me empurrou, ganhou a calçada e e

ntão voltou, para empurrar

-

me de

novo. Caí com o braço sobre as estacas pontiagudas do gradil que cercava

um punhado de plantas e girassóis, que minha mãe insistia em chamar de

"jardim". Sangrei o bastante para assustá

-

los até as lágrimas todos eles,

excet

o Rollie, que se limitou a ficar gritando: "De agora em diante, fique

fora do meu caminho, seu maldito imbecil, fique fora do meu caminho,

ouviu?".



Fascinado, contemplei a antiga cicatriz que agora parecia tortuosa,

porque o pequeno e rechonchudo braço de

três anos, no decorrer dos anos,

se transformara naquele outro, um braço de velho, magro e reluzente,

para o qual então olhava. Um ferimento que fora uma feia cratera

expelindo sangue, em algum momento de 1921, alongara

-

se pouco a




pouco naquela prateada pr

ogressão de marcas, como degraus de escada

de mão. O ferimento se fechara, mas a cicatriz... se espalhara.



Um terrível e impotente estremecimento sacudiu

-

me por dentro.

Recordei Arnie, esmurrando o painel de instrumentos de meu carro, Arnie

gritando roucam

ente que ia fazê

-

los pagar, que eles pagariam, eles

pagariam.



George LeBay olhava para mim. Ignoro o que viu em meu rosto,

mas baixou a manga lentamente e, quando a abotoou com firmeza sobre a

cicatriz, foi como se tivesse fechado as cortinas sobre um pass

ado quase

intolerável.



Ele bebericou mais cerveja.







Quando meu pai chegou em casa aquela noite, estivera em uma

das bebedeiras a que chamava de "caçar um emprego", e ouviu o que

Rollie tinha feito, quase lhe arrancou a pele com uma bruta surra. Rollie,

en

tretanto, não se retratava. Chorava, mas não se retratava.





LeBay

sorriu de leve.





Por fim, aterrorizada, minha mãe gritou para meu pai

acabar com aquilo, antes que o matasse. As lágrimas rolavam pelo rosto

de Rollie, mas ainda assim, ele não se retratav

a. "Ele estava em meu

caminho", dizia, por entre as lágrimas. "E se ficar no meu caminho outra

vez, torno a fazer a mesma coisa e ninguém pode impedir

-

me, nem

mesmo você, seu maldito velho beberrão!". Então meu pai lhe bateu no

rosto, fazendo seu nariz san

grar, e Rollie caiu no chão, com o sangue

fluindo por entre seus dedos. Minha mãe gritava, Márcia chorava, Drew

estava encolhido a um canto e eu berrava em desespero, amparando o

braço enfaixado. Pois Rollie continuava dizendo: "Eu farei a mesma coisa,

seu



beberrão

-

beberrão

-

maldito

-

velho

-

beberrão!".



Sobre nós, as estrelas começavam a despontar. Uma mulher idosa

saiu de uma unidade mais abaixo, apanhou uma mala surrada em um

Ford e a levou para seus aposentos. Um rádio tocava em algum lugar. Não

estava sinto

nizado para os

rocks

em FM

-

104.







É daquela sua fúria inesgotável que mais me lembro





repetiu

LeBay, com voz macia.





Na escola, ele brigava com todos que

zombavam de suas roupas ou da maneira como seu cabelo era coitado. Ele

brigava com qualquer um, se

s

uspeitasse

que queria fazê

-

lo de vítima. Era

suspenso vezes sem conta. Por fim, saiu da escola e entrou para o Exército.






"Os anos 20 não foram uma boa época para alguém estar no Exército.

Não havia dignidade, promoções, divisas e condecorações. Não havia

n

obreza. Ele vagou de base em base, primeiro no Sul, depois no Sudoeste.

Recebíamos uma carta mais ou menos de três em três meses. Ele

continuava furioso. Enfurecia

-

se contra os que chamava de 'bostas'. Tudo

acontecia por culpa dos 'bostas'. Os bostas não l

he davam a promoção que

merecia, os bostas tinham cancelado uma licença, os bostas não

conseguiam achar o próprio traseiro, com as duas mãos e uma lanterna.

Em duas ocasiões, pelo menos, os bostas o puseram atrás das grades.



"O Exército o suportou, porque

ele era um excelente mecânico,

conseguia manter rodando os velhos e decrépitos veículos que eram tudo

quanto o Congresso permitia que tivessem."



Constrangido, vi

-

me pensando em Arnie novamente





Arnie, que

era tão hábil com as mãos.



LeBay inclinou

-

se para

diante.







Mas o talento era apenas outra fonte para a cólera de Rollie, meu

rapaz. Uma cólera que só terminou quando ele comprou aquele carro, que

agora é de seu amigo.







O que quer dizer?



LeBay deu uma risadinha seca.







Rollie consertou caminhões de combo

io do Exército, carros dos

grandões do Exército, veículos para suprimento de armas do Exército.

Consertou

bulldozers e

manteve rodando os automóveis oficiais, com cuspo

e arame de enfardar. Certa vez, quando um congressista

-

visitante

apareceu para visitar

Fort Arnold, a oeste do Texas, e teve um problema

com seu carro, o oficial

-

comandante de Rollie, que estava louco para

causar boa impressão, ordenou

-

lhe que consertasse o luxuoso Bentley do

sujeito. Oh, claro, recebemos uma carta de quatro páginas sobre aq

uele

"bosta" em particular, uma arenga de quatro páginas, destilando o ódio e

o veneno de Rollie. Era de admirar que as palavras não queimassem o

papel.



"Todos aqueles veículos... e Rollie nunca teve um carro seu, senão

após a Segunda Guerra Mundial. Mesmo



então, o único que pôde adquirir

foi um velho Chevrolet, que mal podia correr e estava corroído pela




ferrugem. Nos anos 20 e 30 mal havia dinheiro suficiente, e durante os

anos de guerra ele estava ocupado demais, procurando manter

-

se vivo.



"Permaneceu na



oficina mecânica por todos aqueles anos e

consertou milhares de veículos para os bostas, sem nunca possuir um, que

fosse todo seu. Era novamente como estar em Libertyville. Nem mesmo o

velho Chevrolet conseguia amenizar a sensação ou o velho Hudson

Hornet



usado que ele comprou, um ano depois de casado."







Casado?







Ele não lhe contou isso, contou?





disse LeBay.





Ficaria

satisfeito rememorando incessantemente suas experiência no Exército suas

experiências na guerra e suas intermináveis confrontações com o

s bostas,

enquanto você e seu amigo pudessem ouvi

-

lo, sem pegar no sono... e ele

com a mão em seu bolso, apalpando

-

lhe a carteira o tempo todo. Rollie

não se daria ao trabalho de falar

-

lhes sobre Verônica ou Rita.







Quem foram elas?







Verônica foi sua espo

sa





disse LeBay.





Casaram

-

se em 1951,

pouco antes de Rollie partir para a Coréia. Poderia ter ficado em Stateside,

compreenda. Estava casado, a mulher esperava um filho e ele se

aproximava da meia

-

idade. No entanto, preferiu ir.



LeBay contemplou pensativ

amente o equipamento sem uso do

play

-

ground.







Foi bigamia, entenda. Em 1951, ele tinha quarenta e quatro anos e

já era casado. Casado com o Exército. E com os bostas.



LeBay tornou a calar

-

se. Seu silêncio tinha algo mórbido.







O senhor está bem?





pergunt

ei por fim.







Estou





disse ele.





Apenas pensava. Tinha maus pensamentos

sobre os mortos.





Olhou para mim com serenidade, exceto no tocante

aos olhos, que pareciam sombrios e magoados.





Compreenda, meu

rapaz, tudo isso me dói muito. Como disse que se ch

amava? Não quero

ficar aqui sentado, contando todas estas tristes e velhas cantigas para

alguém que não posso chamar pelo primeiro nome. Seria Donald?







Dennis





falei.





Escute, Sr. LeBay...







Dói mais do que eu poderia imaginar





prosseguiu ele.





No

ent

anto, já que começamos, vamos terminar, não? Só vi Verônica duas




vezes. Ela era da Virgínia Ocidental. Perto de Wheeling. Era o que se

poderia chamar uma sulista do interior e não muito inteligente. Rollie foi

capaz de dominá

-

la e não lhe dava valor, o que



parecia ser seu desejo. No

entanto, creio que ela o amava, pelo menos, até acontecer aquela coisa

horrível com Rita. Quanto a Rollie, não acredito que se tenha realmente

casado com uma mulher. Ele se casou com uma espécie de... muro das

lamentações.



"As c

artas que nos mandava... bem, você deve lembrar que ele

deixou a escola muito cedo. Aquelas cartas mal escritas significavam um

tremendo esforço para meu irmão. Eram a sua ponte suspensa, sua novela,

sua sinfonia, seu grande esforço. Não creio que as escre

vesse para livrar

-

se

do veneno que tinha no coração. Acho que as escrevia para transmiti

-

lo.



"Então, quando teve Verônica, as cartas cessaram. Ele agora contava

com dois ouvidos permanentes, não precisava mais preocupar

-

se conosco.

Suponho que tenha escrit

o para ela, nos dois anos que ficou na Coréia. Em

todo esse período, recebi apenas uma, e creio que Márcia recebeu duas.

Ele não ficou feliz com o nascimento da filha, em começos de 1952; houve

apenas um comentário azedo sobre ter em casa mais uma boca par

a

alimentar e a queixa de que os bostas arrancavam dele um pouco mais."







Ele nunca subiu de posto?





perguntei.



No ano anterior, eu tinha visto parte de um longo seriado para a TV,

uma daquelas novelas de televisão, chamado

A Antiga Águia. No

dia

seguinte

, encontrando uma brochura da história no

drugstore,

comprei

-

a

esperando uma boa novela de guerra. Acabei lendo sobre guerra e paz e

fiquei com algumas idéias novas sobre as Forças Armadas. Uma delas,

que a velha questão de promoções realmente continuava f

luindo, nos

tempos de guerra. Era

-

me difícil compreender como LeBay permanecera

no Exército desde inícios da década de 20, atravessara duas guerras e

ainda era um reles meganha, quando Ike se tornou presidente.



LeBay riu.







Ele era como Prewitt, em

A Um Pa

sso da Eternidade.

Quando

avançava de posto, depois era rebaixado por alguma coisa,

insubordinação, insolência ou embriaguez. Já lhe disse que ele foi detido?

Uma das vezes foi quando urinou na terrina do ponche, no Clube dos

Oficiais em Fort Dix antes de

uma reunião. Ele pegou apenas dez dias por

este desacato; acho que eles amoleceram, acreditando que aquilo não




passasse de uma brincadeira de bêbado, exatamente como alguns dos

próprios oficiais, sem dúvida, já tinham feito como membros de

associações estu

dantis... eles não faziam, não

podiam

fazer a menor idéia

sobre o ódio e mortal desprezo que jaziam por trás daquele gesto.

Contudo, imagino que, a essa altura, Verônica poderia ter contado a eles.



Olhei para meu relógio. Nove e quinze da noite. LeBay esti

vera

falando por quase uma hora.







Meu irmão voltou da Coréia em 1953; foi quando viu a filha pela

primeira vez. Imagino que a tenha contemplado por um ou dois minutos,

para em seguida devolvê

-

la à esposa e ir remendar seu velho Chevrolet

pelo resto do dia

... entediado, Dennis?







Não





respondi, e era verdade.







Durante todos aqueles anos, a única coisa que Rollie desejava

realmente era ter um carro novo em folha. Não um Cadillac ou um

Lincoln; ele não queria nivelar

-

se à classe superior, aos oficiais, aos

bostas.

Meu irmão queria um Plymouth novo, talvez um Ford ou um Dodge.



"Verônica escrevia de vez em quando, contando que eles passavam a

maior parte de seus domingos à procura de vendedores de carros, onde

quer que Rollie estivesse servindo. Ela e o bebê a

boletavam

-

se no velho

Hornet que meu irmão possuía no momento e Verônica lia pequenos

livros de histórias para Rita, enquanto Rollie visitava pátios empoeirados,

um atrás do outro, falando com vendedor após vendedor, discutindo

sobre compressão e cavalos d

e força, cabeçotes e relação de engrenagens...

Às vezes, penso na garotinha crescendo com o fundo musical daquelas

flâmulas açoitadas pela ventania ardente de meia dúzia de blindados do

Exército, e não sei se devo rir ou chorar.



Meus pensamentos voltaram n

ovamente para Arnie.







O senhor diria que ele estava obcecado?







Sim, eu diria isso. Rollie começou a dar dinheiro a Verônica para

ela guardar. Além de sua impossibilidade de ser promovido em sua

carreira além de suboficial, meu irmão tinha um problema com



o álcool.

Não era um alcoólatra, mas mergulhava em bebedeiras periódicas, a cada

seis ou oito meses. E, terminada a bebedeira, lá se fora o dinheiro que

conseguira economizar. Nunca tinha certeza de onde o gastara.






"Supostamente, cabia a Verônica pôr um p

aradeiro nisso. Era um

dos motivos pelos quais casara com ela. Iniciada a fase da bebedeira,

Rollie exigia que ela lhe entregasse o dinheiro. Ameaçou

-

a com uma faca,

certa vez, ferindo

-

lhe a garganta. Fiquei sabendo disso por minha irmã,

que volta e meia f

alava com ela ao telefone. Verônica não entregou o

dinheiro que, naquela época





1955





chegava a cerca de oitocentos

dólares, lembre

-

se do carro, meu bem', disse ela, com a ponta da faca

encostada ao pescoço. 'Se gastar o dinheiro em bebida, nunca terá aq

uele

carro novo'."







Acho que ela o amava





falei.







É possível. Entretanto, não fique com a romântica suposição de

que o amor de Verônica modificou Rollie de algum modo. A água pode

furar a pedra, mas somente após centenas de anos. Pessoas são mortais.



El

e pareceu vacilar, quanto a acrescentar algo mais naquele sentido,

e decidiu contra. O lapso me pareceu peculiar.







De qualquer modo, Rollie nunca as agrediu





disse ele.





Lembre

-

se, ainda, de que ele estava bêbado, quando encostou a faca na

garganta da e

sposa. Hoje em dia, há um terrível falatório nas escolas sobre

drogas, e não sou contra isso, porque acho obsceno pensar em crianças de

quinze e dezesseis anos andando por aí cheias de droga, mas continuo

acreditando que o álcool é a mais vulgar, a mais pe

rigosa droga que já se

inventou... e é legal.



"Quando meu irmão finalmente deixou o Exército, em 1957,

Verônica tinha posto de lado pouco mais de mil e duzentos dólares.

Adicionável a isto, havia uma substancial pensão de invalidez, pelo

problema que ele f

icou nas costas. Rollie moveu céus e terras por essa

pensão e venceu, segundo disse.



"Assim, finalmente havia dinheiro. Compraram a casa que você e

seu amigo visitaram; mas antes mesmo que fosse considerada a idéia de

uma moradia, naturalmente havia o carr

o. O carro era sempre primordial.

As visitas aos vendedores de automóveis atingiram o auge. Por fim, ele

escolheu Christine. Recebi uma longa carta a respeito. Era um cupê

esporte Fury, ele me forneceu todos os detalhes e números em sua carta.

Não me lembr

o deles, mas garanto como seu amigo poderia citar as

estatísticas vitais de Christine, ponto por ponto."







Suas medidas





falei.






LeBay sorriu, sem o menor humor.







Exato, suas medidas. Lembro

-

me de Rollie ter escrito que o preço

afixado era pouco abaixo de



3.000 dólares, mas ele "pechinchou", segundo

disse, até chegar a 2.100 com o vendedor. Fez a encomenda, pagou dez

por cento como entrada e, quando o carro chegou, saldou o resto da

dívida em dinheiro vivo... notas de dez e de vinte dólares.



"No ano seguin

te, Rita, que então estava com seis anos, morreu

asfixiada." Saltei na cadeira e quase a derrubei. Aquela voz macia de

professor era acariciante e eu estava cansado, quase chegara a cochilar. A

última frase fora como um balde de água fria em meu rosto.







S

im, foi exatamente isso





disse ele, vendo meu ar assustado e

questionador.





Eles tinham estado "motorando" o dia inteiro. Isso havia

substituído as expedições à caça de carros. "Motorando." Foi a palavra que

ele escolheu para tais excursões. Tirara

-

a de

uma daquelas músicas de

rock

and roll

que estava sempre escutando. Todos os domingos, os três saíam

"motorando". Havia bolsas para lixo nos assentos traseiro e dianteiro. A

garota não podia deixar nada cair no piso. Não podia fazer nenhuma

sujeira. Ela apr

endera bem a lição. Ela...



LeBay recaiu novamente naquele pensativo e peculiar silêncio, para

então prosseguir.







Rollie mantinha os cinzeiros limpos. Sempre. Era um fumante

inveterado, mas batia a cinza do cigarro fora da janela, em vez de dentro

do cinze

iro. Quando terminava de fumar, jogava o toco de cigarro

também pela janela. Se tivesse alguém com ele que usasse o cinzeiro,

assim que terminava a corrida retirava o cinzeiro e o limpava com um

lenço de papel. Lavava o carro duas vezes por semana e aplica

va polidor

duas vezes ao ano. Ele próprio o consertava, alugando tempo em uma

garagem local.



Perguntei

-

me se a garagem não seria a Darnell's.







Naquele particular domingo, pararam em um

stand

de beira de

estrada para alguns hambúrgueres, a caminho de casa.



Sabe como é, não

havia nenhum McDonald's naqueles tempos, apenas

stands à

beira da

estrada. E o que aconteceu foi... bastante simples, imagino...






Novamente aquele silêncio, como se ele procurasse decidir sobre o

que devia contar

-

me ou como separar de suas



especulações o que

realmente sabia.







Ela se engasgou com um pedaço de carne





disse ele por fim.





Quando a menina começou a sufocar

-

se e levou as mãos à garganta, Rollie

parou o carro e desceu com ela. Então, deitou

-

a de costas, tentando extrair

o que a



sufocava. Claro, hoje existe um novo método, a Manobra Heimlich,

que funciona bastante bem, em situações semelhantes. De fato, uma jovem

estudante para professora salvou um menino que se asfixiava na cantina

de minha escola, ainda o ano passado, empregand

o a Manobra Heimlich.

Só que, naquele tempo...



"Minha sobrinha morreu à beira da estrada. Acho que foi uma

horrenda, assustadora maneira de morrer."



Sua voz retomara aquela sonolenta cadência professoral, porém eu

não sentia mais sono. Em absoluto.







Ele t

entou salvá

-

la. Acredito nisso piamente. Como também

acredito que foi somente a má sorte que a fez morrer. Rollie estivera em

um ambiente desumano por muito tempo e não creio que amasse

demasiadamente a filha, se é que a amava. Contudo, em questões mortais

,

algumas vezes a falta de amor pode ser uma graça salvadora. Por vezes, o

necessário é apenas a desumanidade.







Mas não daquela vez





falei.







Por fim, ele a virou de cabeça para baixo, segurando

-

a pelos

tornozelos, com isto esperando fazê

-

la vomitar. Ach

o que tentaria uma

traqueotomia com seu canivete, se tivesse a mais leve idéia de como agir.

Só que, evidentemente, ele não sabia como. Ela morreu.



"Márcia, o marido e os filhos foram ao funeral. Eu também. Aquela

foi nossa última reunião familiar. Na ocas

ião, pensei que ele teria vendido

o carro. Estranhamente, fiquei um tanto desapontado. Aquele carro

figurara tanto nas cartas de Verônica e nas poucas escritas por Rollie, que

eu já o considerava quase um membro da família deles. Entretanto, Rollie

não o v

endera. Foram nele à Igreja Metodista de Libertyville, e Christine

estava polida... reluzente... e odiosa. Estava

odiosa.





LeBay se virou e

olhou para mim.





Pode acreditar nisso, Dennis?"



Tive que engolir em seco, antes de poder responder.










Sim, posso





respondi. LeBay assentiu soturnamente.







Verônica estava no assento do passageiro, como uma boneca de

cera. O que quer que ela tivesse sido, o que quer que houvesse em seu

íntimo, desaparecera. Rollie tivera o carro, ela tivera a filha. Não se

limitou a c

horar a perda. Morreu.



Fiquei quieto, tentando imaginar





procurando pensar no que faria,

se fosse eu. Minha filha começa a engasgar e sufoca no banco traseiro de

meu carro, depois morre à beira da estrada. Eu me desfaria daquele carro?

Por quê? Não havia

sido o

carro

que a matara, mas sim aquilo que a

sufocara, um pedaço de hambúrguer e a bebida, obstruindo sua traquéia.

Então, por que desfazer

-

me do carro? Restava apenas a leve questão de

que não poderia mais olhar para ele, nem mesmo pensar nele, sem hor

ror

e tristeza. Ei, cara, um urso se queixa da floresta?







O senhor o interrogou a respeito?







Claro que sim. Márcia estava comigo. Foi depois da cerimônia. O

irmão de Verônica viera de Glory, na Virgínia Ocidental, e a levou para

casa, após o serviço fúne

bre à beira da sepultura, ela estava em uma

espécie de profundo torpor, afinal.



"Ficamos sozinhos com ele, eu e Márcia. Aquela foi a verdadeira

reunião. Perguntei

-

lhe se pretendia desfazer

-

se do carro. Ficara

estacionado logo atrás do carro fúnebre que tro

uxera sua filha para o

cemitério, o mesmo cemitério em que Rollie foi sepultado hoje. Era

vermelho e branco... a Chrysler nunca ofereceu o Plymouth Fury 1958

naquelas cores; Rollie o conseguira com tal pintura, por encomenda.

Estávamos a uns quinze metros

dele e tive uma estranha sensação... a mais

estranha

ânsia...

de afastar

-

me ainda mais, como se ele pudesse ouvir

-

nos."







O que disse o senhor?







Perguntei

-

lhe se ia vender o carro. Em seu rosto surgiu aquela

expressão dura e obstinada que eu conhecia tão

bem, desde os tempos de

criança. Era a mesma expressão de quando me atirara contra o gradil

pontiagudo. A expressão que mostrara ao chamar meu pai de beberrão,

mesmo depois dele lhe ter feito o nariz sangrar. Rollie respondeu, 'Eu

seria louco se o vendesse

, George. Christine só tem um ano de uso e rodou

somente 11.000 milhas. Sabe que nunca se consegue o preço adequado em

uma venda, a menos que um carro tenha mais de três anos'.






"Respondi: 'Se isto significa uma questão de dinheiro para você,

Rollie, alguém



roubou o que restou de seu coração e colocou uma pedra

no lugar. Quer que sua esposa veja esse carro todo dia? Que

ande

nele?

Deus do céu, homem!'



"Aquela expressão não se modificou. Não, até ele contemplar o

automóvel, estacionado ao sol... junto ao carr

o funerário. Foi o único

momento em que suas feições se suavizaram. Recordo que me perguntei

se ele algum dia olhara para Rita daquele jeito. Não creio que o tenha feito.

Não estava nele ser assim."



LeBay ficou calado por um instante, antes de continuar.







Márcia disse para ele a mesma coisa. Sempre o temera, mas

naquele dia estava mais fora de si do que amedrontada... havia recebido

as cartas de Verônica, lembre

-

se, sabia o quanto a cunhada adorava a filha.

Disse para ele que, quando alguém morre, queima

-

s

e o seu colchão,

doam

-

se suas roupas ao Exército da Salvação, seja como for, aquilo fica

liquidado de algum modo, para que os vivos possam seguir em frente. Ela

lhe disse que Verônica nunca mais poderia seguir em frente, enquanto o

carro onde a filha morre

ra continuasse na garagem.



"Com aquele seu jeito sarcástico e hediondo, Rollie perguntou se

queria que encharcasse seu carro de gasolina e acendesse um fósforo, só

porque sua filha morrera sufocada. Minha irmã começou a chorar e

respondeu que era uma excel

ente idéia. Por fim, tomei

-

a pelo braço e a

levei dali. Não houve mais diálogo com Rollie, naquela época ou mais

tarde. O carro era dele e ele ficaria insistindo em conservá

-

lo durante três

anos, antes de poder vendê

-

lo, falaria sobre as milhas rodadas até



ficar

roxo, mas o simples fato acima de tudo era que pretendia mantê

-

lo,

porque assim queria.



"Márcia e os seus voltaram de ônibus para Denver e, que me conste,

nunca mais tornou a ver Rollie e nem mesmo escreveu

-

lhe um bilhete.

Não foi ao sepultamento de



Verônica."



A esposa dele. Primeiro a filha, depois a esposa. De certa forma, eu

sabia que fora exatamente assim. Bangue

-

bangue. Uma espécie de

entorpecimento me subiu das pernas até a boca do estômago.







Ela morreu seis meses depois. Em janeiro de 1959.










Mas nada tinha a ver com o carro





falei.





Nada a ver com o

carro, certo?







Teve tudo a ver com o carro





disse ele, suavemente.



Eu não queria ouvir mais aquilo, pensei. Só que, naturalmente,

acabei ouvindo. Meu amigo era agora o dono daquele carro e, po

r causa

do carro, algo em sua vida ganhara proporções descomunais, algo que

jamais deveria ter acontecido.







Depois que Rita morreu, Verônica entrou em depressão.

Simplesmente, nunca se recuperou disso. Tinha alguns amigos em

Libertyville, e eles tentaram

ajudá

-

la... ajudá

-

la a encontrar seu caminho

novamente, como se diz. Contudo, ela não conseguiu encontrá

-

lo. De

maneira alguma.



"Fora isso, tudo ia muito bem. Pela primeira vez na vida, meu irmão

tinha bastante dinheiro. Tinha sua pensão do Exército, sua p

ensão por

incapacidade física, e conseguira um emprego de vigia noturno, na fábrica

de pneus lá para o lado oeste da cidade. Fui de carro até lá, depois do

enterro, porém não existe mais."







Ela foi à falência, faz uns doze anos





comentei.





Eu ainda era

criança. No lugar, existe hoje uma lanchonete de comida chinesa.







Eles estavam saldando as prestações da casa, na proporção de

dois pagamentos mensais. E, naturalmente, agora não tinham mais

nenhuma filhinha com que se preocupar. Para Verônica, no entanto

,

nunca houve a mínima possibilidade, o menor impulso para a

recuperação.



"Ela se dispôs ao suicídio com incrível sangue

-

frio, por tudo o que

consegui descobrir. Se houvesse manuais para aspirantes ao suicídio, ela

devia ser incluída, como exemplo a ser im

itado. Foi à loja Western Auto,

aqui na cidade, a mesma onde comprei minha primeira bicicleta, há

muitos e muitos anos, e comprou seis metros de mangueira de borracha.

Adaptou uma extremidade ao cano de descarga de Christine e colocou a

outra em uma das ja

nelas traseiras. Nunca tirara carteira de motorista,

mas sabia como ligar o motor. De fato, era tudo quanto precisava saber."



Apertei os lábios, molhei

-

os com a ponta da língua, e ouvi minha

voz, pouco mais que um roufenho lamento:







Acho que vou querer ag

ora aquela soda.










Talvez fosse melhor trazer uma para mim também





disse ele.





A soda me mantém acordado, sempre foi assim, mas acho que, de

qualquer modo, passarei acordado a maior parte desta noite.



Desconfiei que eu também. Fui apanhar as sodas no esc

ritório do

hotel e, quando voltava, parei a meio caminho, no pátio de

estacionamento. Ele era apenas uma sombra mais forte diante de sua

unidade no hotel, as meias brancas reluzindo como pequenos fantasmas.

Pensei:

Talvez o carro seja amaldiçoado. Talvez s

eja isso. Parece uma perfeita

história de fantasmas. Há um poste indicador mais adiante... próxima parada, a

Zona Crepuscular!



Bem, era ridículo, não?



Claro que era. Recomecei a caminhar. Nem carros nem pessoas

podiam ser amaldiçoados, isso era coisa de fi

lmes de terror, muito

interessante para uma noite de sábado no

drive

-

in,

porém nada tinha em

comum, absolutamente nada, com os fatos corriqueiros de vida diária, que

formam a realidade.



Entreguei a ele sua lata de soda e ouvi o resto da história, a qual

po

deria ser resumida em uma linha: e ele viveu infeliz para sempre.

Agora sozinho, Roland D. LeBay conservara sua pequena casa e o terreno,

como conservara o Plymouth 1958. Em 1965, pendurara seu quepe de

vigia e o relógio de ponto de trabalho. Mais ou menos



na mesma época,

abdicara de seus penosos esforços para manter Christine parecendo e

rodando como nova, deixara

-

a desandar, da mesma forma que alguém

pode deixar um relógio parar.







Quer dizer que o carro ficou estacionado lá fora?





perguntei.





Desde 196

5? Durante treze anos?







Não. Ele o deixou na garagem, claro





disse LeBay.





Os

vizinhos jamais admitiram um carro apenas se deteriorando, no gramado

de alguém. No campo, talvez, mas não em Suburbia, EUA.







Certo, mas estava lá fora, quando nós...







Eu se

i. Ele o colocou no gramado com um aviso À VENDA,

pregado na janela. Fiz perguntas a respeito. Estava curioso, então

perguntei. Na Legião. Em sua maioria, os antigos companheiros tinham

perdido o contato com Rollie, mas um deles contou que vira o carro no

gramado, pela primeira vez, em maio deste ano.






Eu ia dizer algo, mas me calei. Uma terrível idéia me viera à cabeça,

uma idéia que consistia simplesmente nisto:

Era muito conveniente.

Conveniente demais. Christine ficara naquela garagem escura durante

anos







quatro, oito, doze, talvez mais. Então





meses antes de eu e Arnie

passarmos por lá, de Arnie vê

-

lo





Roland LeBay subitamente o tirara da

garagem e pregara nele um aviso de À VENDA.



Mais tarde





muito mais tarde





consultei exemplares atrasados

dos jor

nais de Pittsburgh e do

Keystone,

o jornal de Libertyville. LeBay

nunca anunciara o Fury, pelo menos nos jornais, que geralmente é onde se

anuncia um carro que se quer vender. Ele apenas o deixou em sua rua

suburbana





nem mesmo era uma rua principal





e e

sperou que o

comprador aparecesse.



Naquele momento, não entendi inteiramente o resto do

pensamento





pelo menos, não de qualquer modo lógico e racional



,

mas já tivera suficiente daquilo, para sentir uma repetição daquela fria,

perturbadora sensação de me

do. Era como se ele soubesse que um

comprador estava a caminho. Se não em maio, então em junho. Ou julho.

Ou agosto. De algum modo, em breve.



Não, tal pensamento não me viera de maneira lógica ou racional. Em

vez disso, o que imaginei foi um quadro inteira

mente visceral: uma planta

carnívora, à beira de um pântano, com suas verdes mandíbulas abertas,

esperando que algum inseto pousasse nelas.



O inseto

exato.







Recordo ter pensado que ele talvez desistira temendo não ter

chance de ser aprovado no exame de mo

torista





falei por fim.





Quando o sujeito envelhece, eles exigem que faça um ou dois exames por

ano. A renovação da licença deixa de ser automática.



LeBay assentiu.







Isto me parece bem próprio de Rollie





comentou.





Contudo...







O quê?







Li em algum lu

gar, e não me lembro quem disse ou escreveu isso,

que existem "épocas" na existência humana. Chegada a "época da

máquina a vapor", uns doze homens inventaram máquinas a vapor.

Talvez apenas um deles tenha conseguido a patente ou o crédito nos

livros de His

tória, porém, de repente, lá estavam todas aquelas pessoas,




trabalhando em uma única idéia. Como explicar o fato? Apenas que é a

época da máquina a vapor.



LeBay tomou um gole de sua soda e olhou para o céu.







Chega a Guerra Civil e então, imediatamente, é

"época do navio

blindado de ferro". Depois vem a "época da metralhadora". A seguinte que

conhecemos é a "época da eletricidade", seguida pela "época do sem

-

fio".

Finalmente, a "época da bomba atômica" Como se todas essas idéias não

viessem de indivíduos, m

as de alguma grande onda de inteligência, que

flui permanentemente... alguma onda de inteligência que reside fora da

humanidade.



Ele me encarou.







Essa idéia me assusta e tenho pensado muito nisso, Dennis.

Parece haver qualquer coisa... bem, decididamente

não

-

cristã a respeito.







E, para seu irmão, havia a "época de vender Christine"?







É possível. No Eclesiastes, diz que há um tempo para tudo: tempo

para plantar e tempo para colher, tempo para a guerra e tempo para a paz,

tempo de abandonar o estilingue e

tempo de juntar pedras. Um negativo

para cada positivo. Portanto, se houve uma "época de Christine" na vida

de Rollie, deve ter havido também uma época de abandonar Christine.



"Se foi assim, ele deve ter sabido. Rollie era um animal, e os animais

ouvem per

feitamente seus instintos.



"É ainda possível que ele finalmente se cansasse dela", concluiu

LeBay.



Concordei que podia ser isso, principalmente porque me sentia

ansioso para encerrar o assunto, embora a explicação não me deixasse

plenamente satisfeito. Geo

rge LeBay não tinha visto aquele carro, no dia

em que Arnie gritara para eu voltar atrás. Contudo, eu o vira. O 58 não

parecia um carro que estivera repousando tranqüilamente em uma

garagem. Estava sujo de poeira e amassado, com o pára

-

brisa rachado, um



ra

-

choque entortado. Parecia um cadáver, que tivesse sido desenterrado

e deixado apodrecer ao sol.



Pensei em Verônica LeBay e estremeci.



Como se lesse meus pensamentos





parte deles, pelo menos



,

LeBay disse:










Pouco sei a respeito de como meu irmão viveu



ou se sentiu

durante seus últimos anos de vida, porém estou certo de uma coisa,

Dennis: quando ele achou, em 1965 ou seja lá quando foi, que era chegado

o momento de abandonar o carro, ele o abandonou. E quando achou que

era a hora de colocá

-

lo à venda, e

le o colocou à venda.



LeBay fez uma pausa.







Penso que nada mais tenho a lhe dizer... exceto quanto a acreditar,

sinceramente, que seu amigo seria mais feliz desfazendo

-

se daquele carro.

Olhei bem para ele, o seu amigo. No presente momento, não me pareceu

um jovem particularmente feliz. Estarei enganado?



Considerei a pergunta cuidadosamente. Não, felicidade não era e

nunca fora algo que se aplicasse a Arnie. No entanto, ele pelo menos

parecera contente, até ter começado a coisa com o Plymouth. Antes, era

co

mo se... tivesse alcançado um

modus vivendi

com a vida. Não era um

cara completamente feliz, mas dava para o gasto.







Não





respondi.





Não se enganou.







Não creio que o carro de meu irmão o faça feliz. Pelo contrário,

penso exatamente o oposto.





E, como

se tivesse lido meus pensamentos

alguns minutos antes, ele prosseguiu:





Não acredito em maldições, é

bom que saiba. Muito menos em fantasmas ou qualquer coisa

precisamente sobrenatural. Entretanto, acredito que emoções e eventos

possam ter uma certa... pr

olongada ressonância. Talvez as emoções

possam comunicar

-

se entre si, sob determinadas circunstâncias, caso tais

circunstância sejam suficientemente peculiares... da maneira como uma

caixa de leite adquire o sabor de certos alimentos muito condimentados,

q

ue foram deixados destampados na geladeira. Bem, pode ser apenas uma

fantasia ridícula de minha parte. Talvez fosse o caso de eu me sentir

melhor, sabendo que o carro em que minha sobrinha foi asfixiada e onde

minha cunhada suicidou

-

se tivesse sido prensad

o em um cubo de metal

sem valor. Talvez tudo quanto eu sinta seja uma sensação de decoro

ultrajado.







Sr. LeBay, o senhor disse que contratou alguém para cuidar da

casa de seu irmão, até que ela seja vendida. É verdade?



Ele se ergueu ligeiramente no assent

o.










Não, não é. Menti no impulso do momento. Não gostei da idéia

daquele carro de volta àquela garagem... como se houvesse reencontrado

o caminho de casa. Se existem emoções e sentimentos que permanecem

vivos, eles estarão lá, assim como na própria Christ

ine.





Então,

rapidamente, ele se emendou:





No

próprio

carro.





Não muito tempo depois, me despedi e segui meus faróis para casa,

através da noite, refletindo em tudo quanto LeBay me dissera. Perguntei

-

me se, para Arnie, faria alguma diferença contar

-

lhe q

ue uma pessoa

sofrera um acidente mortal em seu carro e outra, realmente, morrera

dentro dele. Eu sabia muito bem que não adiantava; à sua maneira, Arnie

podia ser tão obstinado quanto o próprio Roland LeBay. A encantadora

cena com seus pais, a respeito do



carro, demonstrara isso perfeitamente. O

fato de que ele continuava seguindo o curso de Mecânica de Motores, no

Ginásio de Libertyville, indicava a mesma coisa.



Pensei em LeBay dizendo:

Não gostei da idéia daquele carro de volta

àquela garagem... como se

houvesse reencontrado o caminho de casa.



Ele também dissera que o irmão levara o carro a algum lugar, a fim

de consertá

-

lo. Atualmente, existia em Libertyville apenas a Will Darnell's,

como garagem faça

-

você

-

mesmo. Poderia ter havido outra, nos anos 50,

ma

s eu não acreditava. No fundo, achava que Arnie estava consertando

Christine no lugar em que já tinha sido consertada antes.



Tinha

sido. Essa era a frase correta. Devido à briga com Buddy

Repperton, Arnie receava deixar o carro lá por mais tempo. Desta for

ma,

era possível que aquela via para o passado de Christine também estivesse

bloqueada.



E, naturalmente, não existem maldições. Mesmo a idéia de LeBay,

sobre emoções que se prolongam, era completamente absurda. Ele próprio

nem devia acreditar nisso. Exibir

a

-

me uma antiga cicatriz e usara a

palavra vingança. Sem dúvida, aquilo era bem mais próximo da verdade

do que qualquer falsa tolice sobrenatural. Sem dúvida.



Era isso. Eu tinha dezessete anos, iria para a universidade no ano

seguinte e não acreditava em c

oisas tais como maldições e emoções que

perduram, azedando o leite derramado dos sonhos. De modo algum

acreditava no poder do passado em estender suas horrendas mãos mortas

para os vivos.






Entretanto, agora sou um pouco mais velho.





M

AIS

T

ARDE

,



N

AQUELA

N

OIT

E



Quando eu estava motorando na montanha



Vi Maybelline em um Cupê de Ville,



Um Cadillac, disparando estrada afora,



Mas nada ultrapassava meu Ford V8...







Chuck Berry





Mamãe e Elaine já tinham ido dormir, porém papai estava acordado,

assistindo ao noticiári

o das 23 horas na TV.







Por onde andou, Dennis?





perguntou.







Jogando boliche





respondi.



A mentira veio natural e instintivamente a meus lábios. Não queria

que papai soubesse de nada daquilo. Embora fosse peculiar, não o era o

bastante para ser mais do q

ue moderadamente interessante. Pelo menos,

foi assim que racionalizei.







Arnie telefonou





disse ele.





Pediu que você ligasse, se voltasse

antes das onze e meia, mais ou menos.



Olhei para o meu relógio. Apenas onze e vinte. Entretanto, será que

já não tiv

era o bastante de Arnie e seus problemas para um dia?







E então?







Então, o quê?







Não vai telefonar para ele? Suspirei.







Está certo, acho que vou.



Fui até a cozinha, preparei um sanduíche de frango frio, enchi um

copo de Ponche Havaiano





um negócio espe

sso, mas eu adoro





e

disquei para a casa de Arnie. Ele mesmo atendeu, ao segundo toque.

Parecia alegre e excitado.










Dennis! Onde foi que esteve?







Jogando boliche





falei.







Escute, voltei à garagem de Darnell esta noite, sabe? E... escute só,

Dennis...

ele chutou Repperton! Repperton saiu e eu posso ficar!



Senti novamente aquele medo tomando forma em meu estômago.

Larguei o sanduíche. De repente, não o queria mais.







Arnie, acha que continuar lá é mesmo uma boa idéia?







O que quer dizer com isso? Reppert

on se foi. Não

acha

que é uma

boa idéia?



Pensei em Darnell, ordenando a Arnie que tirasse o carro de lá, antes

que poluísse sua garagem imunda. Darnell, dizendo a Arnie que não

explorava merda nenhuma de garotos como ele. Pensei na maneira

envergonhada com

o ele desviara os olhos, ao contar que conseguira hora

no elevador, para trocar seu óleo, fazendo "uns dois favores". Tive a

impressão de que Darnell talvez achasse divertido transformá

-

lo em seu

empregadinho de estimação. Sem dúvida, isso também divertiri

a bastante

os

habitués

e seus companheiros de pôquer. Arnie, vá buscar café, Arnie,

traga biscoitos, Arnie, mude os rolos de papel sanitário da privada e encha

o toalheiro com toalhas de papel.

Ei, Will, quem é o quatro olhos rondando lá

pelo banheiro?...

Oh, aquele? Seu nome é Cunningham. Os velhos dele lecionam

na universidade. Ele está aqui fazendo uma merda de curso de pós

-

graduação.

E

eles riram. Arnie se transformaria na piada local da garagem de Darnell,

em Hampton Street.



Pensei isso tudo, mas nada

disse. Achei que Arnie poderia muito

bem decidir se estava caminhando pela água ou pisoteando merda.

Aquilo não podia durar muito





ele era bastante esperto para ver. Bem,

assim esperava eu. Arnie era feio, mas não debilóide.







Se Repperton caiu fora, acho



que é uma excelente idéia





respondi.





Apenas pensei que a garagem de Darnell fosse uma medida

temporária. Quero dizer, vinte por semana, Arnie, é muita grana, sem

falar no aluguel de ferramentas, do elevador e tudo o mais.







Por isso pensei que seria fo

rmidável alugar a garagem do Sr.

LeBay





disse ele.





Achei que, mesmo pagando vinte e cinco por

semana, estaria em melhor situação.










Bem, isso é com você. Se pusesse um anúncio no jornal,

procurando vaga em uma garagem, aposto como...







Um momento, deixe

-

me terminar, Dennis





disse Arnie, ainda

excitado.





Quando fui lá esta tarde, Darnell me chamou de lado

imediatamente. Disse que lamentava o que Repperton fizera comigo.

Disse também que me julgara erradamente.







Darnell disse isso?



Acho que acreditei, m

as não confiei muito.







Exato. Perguntou se eu gostaria de trabalhar para ele, em horas

extras. Dez, talvez vinte horas por semana, durante as aulas. Separando

peças, manobrando o elevador, coisas assim. E posso ficar com o boxe por

dez dólares semanais, p

agando metade do aluguel pelas ferramentas e o

elevador. O que acha disso?



Pensei que era infernalmente bom demais, para ser verdade.







Veja bem onde põe o traseiro, Arnie.







O quê?







Meu pai diz que ele é um escroque.







Não vi o menor sinal disso por lá.

Acho que tudo não passa de

boato, Dennis. Darnell faz muito barulho, mas creio que é tudo.







Estou apenas dizendo para você ficar prevenido.





Passei o fone

para o outro ouvido e bebi um pouco de Ponche Havaiano.





Fique de

olhos bem abertos e caia fora de

pressinha, se a barra começar a ficar

pesada demais.







Está falando de alguma coisa específica?



Pensei nas vagas histórias sobre drogas e nas mais específicas sobre

carros roubados.







Não





respondi.





Apenas não confio nele.







Bem...





disse Arnie, hesita

nte. Pareceu refletir, mas retornou ao

tema original: Christine. Com ele, o tema sempre voltava a Christine.





De qualquer modo, vai ser legal, muito legal para mim, Dennis, se der

certo. Christine... está realmente mal. Consegui fazer algumas coisas nela,



mas para cada uma que faço, parece que tem mais quatro. Algumas que

ainda não sei resolver, mas vou aprender.










Hum

-

hum





falei, dando uma dentada no sanduíche.



Após minha conversa com LeBay, o entusiasmo por Christine, a

garota de Arnie, passara do zero

e penetrara em regiões negativas.







Ela precisa de um alinhamento das rodas dianteiras... Diabo, ela

precisa de pneus dianteiros novos, e novas sapatas de freios... anéis de

segmento... Posso tentar retificar os pistons... mas não conseguirei nada

disso co

m meu estojo de ferramentas Craftsman, de cinqüenta e quatro

pratas. Entende o que quero dizer, Dennis?



Era como se ele estivesse suplicando a minha aprovação. Com vazio

no estômago, lembrei

-

me de repente de um sujeito que tinha sido nosso

colega na escola

: Freddy Darlington, era o seu nome. Fred nada tinha de

excepcional, mas era um bom sujeito, com um senso de humor legal.

Então, conheceu uma prostituta de Penn Hills





estou querendo dizer

uma puta de verdade, a mais feliz em dar para todos, a maria

-

batal

hão,

escolha o seu pejorativo predileto. Tinha uma cara bronca e idiota, que me

fazia lembrar a traseira de um caminhão Mack, e não parava de mastigar

chicletes. O cheiro de Tutti

-

Frutti pairava em torno dela, numa nuvem

constante. Ficou grávida mais ou me

nos na época em que Freddy lhe

botou as mãos. De certa forma, sempre imaginei que ele a tivesse

apanhado, porque fora a primeira garota a deixá

-

lo ir até o fim. Aconteceu,

em seguida, que ele saiu da escola, arranjou emprego em um depósito, a

princesa teve



o bebê e Freddy apareceu com ela no baile de encerramento

do ginásio, no último mês de dezembro, querendo que tudo fosse o

mesmo, quando nada é mais o mesmo; e lá está ela, olhando para todos

nós, os rapazes, com aqueles olhos mortos e desdenhosos, as man

díbulas

subindo e descendo como as de uma vaca ruminando algo

particularmente saboroso, enquanto tínhamos que ouvir as novidades: ela

está de volta à pista de boliche, de volta à cantina de Libertyville, de volta

ao Gino's, andando de carro enquanto Freddy



trabalha, retornou ao

trabalho duro, dando para todos e divertindo a tropa. Sei que se costuma

dizer que um pau não tem consciência, mas eu lhe digo agora que certas

conas têm dentes, e então, ao olhar para Freddy, que parecia dez anos

mais velho, tive vo

ntade de chorar. Depois, quando Freddy falou sobre ela,

foi naquele mesmo tom suplicante que eu captava na voz de Arnie,

soando ao telefone em meu ouvido, naquele exato momento...

Vocês

gostaram mesmo dela, não foi, caras? Ela não é legal, caras? Não me sa

í tão mal,

hein, caras? Quero dizer, talvez seja apenas um pesadelo e logo estarei acordado,

certo? Certo? Certo?










É claro que entendo





falei ao telefone.





Tem razão, Arnie.



Toda aquela horrível, nojenta história de Freddy Darlington levara

talvez dois

segundos passando por meu cérebro.







Ótimo





disse ele, aliviado.







Apenas veja onde mete o traseiro, cara. E isto vale dobrado, para

quando voltar às aulas. Fique longe de Buddy Repperton.







Certo. Pode apostar que sim.







Arnie...







O quê?



Fiz uma pausa.

Queria perguntar

-

lhe se Darnell mencionara alguma

coisa sobre Christine ter estado antes em sua oficina, se a reconhecera.

Ainda mais, eu queria dizer

-

lhe o que acontecera à Sra. LeBay e sua

filhinha, Rita. Só que não pude. Ele adivinharia imediatamente de



onde

viera a informação. E, em seu estado emocional sobre o maldito carro,

poderia muito bem pensar que eu estivera agindo por trás de suas costas e,

de certo modo, fora isso mesmo. Contar tudo a ele talvez significasse o fim

de nossa amizade.



Eu já me en

chera de Christine, mas ainda me preocupava com Arnie.

Isto significava que aquela porta devia ser fechada para sempre. Nada

mais de andar me esgueirando e fazendo perguntas. Nada mais de

sermões.







Nada





respondi.





Ia apenas dizer que você parece ter

en

contrado um lar para sua banheira enferrujada. Parabéns.







Está comendo alguma coisa, Dennis?







Estou: um sanduíche de frango. Por quê?







Porque está mastigando em meu ouvido. É grosseiro demais.



Comecei a mastigar o mais ruidosamente que pude. Arnie imito

u

arrotos. Começamos a rir e aquilo foi bom





era como nos velhos tempos,

antes de seu casamento com aquele maldito e fodido carro.







Você é um filho da mãe, Dennis.







Certo. Aprendi com você.







Viado





disse ele e desligou.








Terminei o sanduíche e o Ponch

e Havaiano, lavei o prato e o copo e

voltei para a sala, disposto a tomar uma ducha e ir para a cama. Estava

exausto.



A certa altura de minha conversa ao telefone, ouvira a TV ser

desligada, o que me fez supor que papai tivesse subido. Não subira.

Continua

va ali, em sua poltrona reclinável, com a camisa aberta. Um tanto

desconcertado, reparei como os pêlos de seu peito estavam ficando

grisalhos, a maneira como o abajur de leitura, ao lado dele, penetrava

através de seus cabelos e mostrava o rosado do couro

cabeludo. O cabelo

estava rareando ali. Meu pai não era mais uma criança. Com maior

desconcerto ainda, refleti que em mais cinco anos, à época em que,

teoricamente, eu terminaria a faculdade, ele estaria com cinqüenta anos e

ficando calvo, o estereótipo do



guarda

-

livros. Cinqüenta anos em cinco, se

antes não caísse duro, com outro ataque cardíaco. O primeiro não tinha

sido grave





nenhuma cicatriz miocardiana, respondeu ele certa vez,

quando lhe perguntei. Entretanto, ele não tentara dizer que seria

imprová

vel um segundo ataque. Eu sabia dessa possibilidade, mamãe

sabia e ele também. Somente Ellie ainda o considerava invulnerável





mas eu não percebera uma pergunta em seus olhos, uma ou duas vezes?

Eu tinha quase certeza disso.



Falecido subitamente.



Senti os



cabelos se eriçarem em minha cabeça.

Subitamente.

Retesando

-

se em sua mesa de trabalho, apertando o peito.

Subitamente.

Deixando cair a raquete na quadra de tênis. Ninguém gosta de ter tais

pensamentos sobre o próprio pai, mas às vezes eles aparecem. Deus



sabe

que sim.







Não pude deixar de ouvir parte do que falou





disse ele.







É mesmo?





falei, prudentemente.







Arnie Cunningham meteu o pé em um balde de algo quente e

sujo, Dennis?







Eu... eu não tenho certeza





falei, lentamente.



Bem, afinal de contas, o



que eu tinha para confirmar? Noções vagas,

nada mais.










Quer falar a respeito?







Agora não, papai, se você não se importa.







Está bem





disse ele.





No entanto, se... como você disse ao

telefone, se a barra ficar muito pesada, pelo amor de Deus, quer me c

ontar

o que estiver acontecendo?







Certo, contarei.







Muito bem.



Comecei a caminhar para a escada e estava quase lá, quando ele me

deteve, ao dizer:







Fiz a contabilidade de Will Darnell e suas declarações de imposto

de renda durante quase quinze anos, voc

ê sabe.



Virei

-

me para ele, francamente surpreso.







Não. Eu não sabia.



Meu pai sorriu. Era um sorriso. Eu nunca o vira antes, podia

imaginar que mamãe o vira apenas algumas vezes e minha irmã talvez

nunca. Poder

-

se

-

ia pensar, a princípio, que fosse uma espé

cie de sorriso

sonolento, mas uma observação melhor diria que nada tinha de

sonolento





era cínico, rude e totalmente consciente.







Pode ficar de boca fechada sobre uma coisa, Dennis?







Posso





falei.





Acho que posso.







Não adianta apenas achar que pode.







Está bem. Eu posso.







Ótimo. Fiz a contabilidade de Darnell até 1975 e então ele

contratou Bill Upshaw, lá de Monrolville.



Meu pai me fitou atentamente.







Eu não diria que Bill Upshaw é um escroque, mas posso dizer

que seus escrúpulos são bastante transp

arentes para que se leia um jornal

através deles. E, no ano passado, ele comprou uma casa em Sewickely, no

estilo Tudor inglês, valendo 300 mil dólares. Pagamento à vista.



Fez um gesto para nossa casa, com um pequeno aceno do braço

direito e o deixou cair

de novo em seu colo. Ele e mamãe a tinham




comprado no ano em que nasci, por 62 mil dólares





agora devia valer

uns 150 mil





e só recentemente tinham conseguido resgatar a última

promissória do banco. Tivemos uma festinha no quintal, no fim do verão

passad

o. Papai acendeu a churrasqueira, espetou o pequeno papel rosa na

ponta do espeto mais comprido e cada um de nós teve a chance de segurá

-

lo sobre as brasas, até ele desaparecer por completo.







Nada de Tudor inglês por aqui, hein, Dennis?





comentou.







Esta



casa é legal





falei. Recuei e sentei

-

me no sofá.







Eu e Darnell nos separamos amistosamente





prosseguiu meu

pai



, não que eu me preocupasse muito com ele, em termos pessoais.

Sempre o achei um vigarista.



Assenti de leve, porque gostava daquilo; express

ava meus

sentimentos sobre Will Darnell, melhor do que qualquer palavrão.







No entanto, há toda uma diferença entre um relacionamento

pessoal e um relacionamento profissional. Deve

-

se aprender bem depressa

nesse assunto, ou a gente desiste e passa a vender



escovas e vassouras de

porta em porta. Nosso relacionamento profissional era bom, enquanto

durou... porém não durou muito. Então, decidi acabar com aquilo.







Não compreendo.







Havia sempre dinheiro aparecendo





disse ele.





Grandes

quantidades de dinheiro

, sem uma procedência limpa. A pedido de

Darnell, investi em duas sociedades anônimas, Aquecimento Solar

Pensilvânia e Gráfica Nova Iorque, que pareciam as firmas mais falsas

dentre todas que eram de meu conhecimento. Por fim, procurei

-

o, porque

queria ter



todas as minhas cartas na mesa. Comuniquei

-

lhe qual era a

minha opinião profissional: se houvesse uma auditoria do pessoal do

Imposto de Renda ou do Estado da Pensilvânia, era bem provável que ele

tivesse muitas explicações a dar e que logo eu estaria sab

endo demais para

lhe ser útil.







O que ele disse?







Começou a ficar inquieto





respondeu meu pai, ainda

mostrando aquele sorriso sonolento e cínico.





Na minha profissão, a

gente fica familiarizado com os sinais da inquietação, aos trinta e oito anos,

mais



ou menos... quero dizer, se formos bons no que fazemos. E eu não

sou dos piores. A intranqüilidade começa com o sujeito perguntando se




estamos satisfeitos com o trabalho, se o pagamento é suficiente. Se

respondemos que gostamos do trabalho mas, sem dúvida

, podíamos estar

ganhando mais, o sujeito nos encoraja a contar o que nos está pesando nas

costas: a casa, o carro, o colégio dos filhos, talvez uma esposa que goste de

roupas um pouco mais elegantes do que o orçamento doméstico permite...

Você entende?







Uma sondagem, certo?







É mais como apalpar

-

nos





disse ele, e então riu.





Pois bem, a

dança é semelhante a um minueto, ponto por ponto. Há todos os tipos de

frases, de passos e pausas. Depois que o sujeito confessa quais as cargas

financeiras de que gosta

ria de livrar

-

se, ele começa perguntando que tipo

de coisas gostaria de ter. Um Cadillac, uma casa de verão nas Catskills ou

Poconos, talvez um barco.



Sobressaltei

-

me ao ouvi

-

lo, sabendo o quanto meu pai sonhava com

um barco





era o que mais desejava naque

la época





por duas vezes,

fora com ele a marinas, ao longo do lago Rei George e do lago

Passeeonkee, em tardes ensolaradas de verão. Perguntava o preço dos

iates menores e eu vira um brilho cobiçoso em seus olhos. Agora,

começava a entender. Estavam fora

do nosso alcance. Sua vida talvez

tivesse tomado um rumo diverso se ele não tivesse de pensar em uma

universidade para os filhos, por exemplo.







E você recusou?





perguntei. Meu pai deu de ombros.







Já no início da conversa, deixei bem claro que não queria



dançar.

Antes de mais nada, porque isso significaria envolver

-

me mais com ele em

nível pessoal e, como disse, considerava

-

o um trapaceiro. Por outro lado,

tais sujeitos são fundamentalmente ignorantes no tocante a números, um

dos motivos pelos quais muito

s deles foram apanhados por sonegação de

impostos. Eles acham que a gente pode camuflar um rendimento ilegal.

Estão certos disso.





Papai riu.





Enfiaram na cabeça essa idéia mística

de que podemos lavar dinheiro como lavamos roupas, quando tudo

quanto pod

emos realmente fazer é um malabarismo, até que isso

desmorone e nos caia na cabeça.







Foram esses os motivos?







Dois ou três deles.





Papai me fitou dentro dos olhos.





Não sou

nenhum maldito trapaceiro, Dennis.






Houve um momento de instantânea comunicação

entre nós





ainda

agora, quatro anos mais tarde, fico arrepiado ao pensar nisso, embora não

possa afirmar que sou capaz de transmitir a vocês a sensação. Não porque

ele me tratasse como igual aquela noite, pela primeira vez; não porque

estivesse me mostran

do o ansioso cavaleiro errante, ainda escondido

dentro do homem que, de cabeça baixa, lutava pela vida em um mundo

sujo e desonesto. Creio que o percebia como uma

realidade,

alguém que

existia muito antes de minha chegada ao palco, uma pessoa que tivera su

a

ração de sofrimento. Nesse momento, acho que poderia tê

-

lo imaginado

fazendo amor com minha mãe, ambos suados e esforçando

-

se pelo final





e não ficaria embaraçado.



Então ele baixou os olhos, esboçou um sorriso defensivo e fez aquela

voz seca e vigorosa

de Nixon, uma imitação em que era muito bom:







Vocês merecem saber se seu pai é um trapaceiro. Bem, eu não sou

um trapaceiro, podia ter aceitado o dinheiro, mas isso...

ha

-

rrrã...

teria sido

errado.



Ri alto demais, uma liberação da tensão





e senti o momen

to passar;

embora parte de mim não o desejasse, a outra parte queria isso era

demasiado intenso. Penso que ele devia sentir o mesmo.







Pssst! Vai acabar acordando sua mãe e ela fará o diabo conosco,

por ficarmos acordados até tão tarde.







Desculpe. Escute,



papai, você sabe em que ele está metido? Estou

falando de Darnell.







Naquele tempo eu não sabia e nem queria saber, porque então

seria uma parte da coisa. Tinha minhas idéias e ouvi algumas coisas.

Carros roubados, imagino. Não que Darnell os tenha levado



para aquela

garagem da Hampton Street; ele não é totalmente imbecil, e só mesmo um

idiota sujaria o prato onde come. Talvez esteja também envolvido em

contrabando.







Armas e munições?





perguntei, em voz algo rouca.







Nada tão romântico. Se eu fosse capaz



de adivinhar, diria que

principalmente cigarros... cigarros e bebidas, os dois velhos e infalíveis

produtos. O contrabando é como um delírio. Talvez um carregamento de

fornos de microondas ou televisões coloridas, de vez em quando, se o

risco for baixo. O



suficiente para mantê

-

lo ocupado durante tantos anos.






Papai me fitou com ar grave.







Ele tem enfrentado bem os riscos e teve sorte por muito tempo,

Dennis. Bem, nesta cidade, talvez não precisasse realmente de sorte. Se

tudo fosse exatamente como em Lyber

tyville, acho que ele poderia

continuar para sempre ou, pelo menos, até cair morto com um ataque do

coração, mas os rapazes dos impostos estaduais são cações, enquanto os

federais são as grandes baleias brancas. Ele teve sorte, mas qualquer dia os

agentes

vão cair em cima dele, como a Grande Muralha da China.







Você... você soube de alguma coisa?







Nem um sussurro. Aliás, não estou em posição de saber nada.

Acontece, apenas, que gosto muito de Arnie Cunningham e sei que você

anda preocupado com essa históri

a do carro.







Certo. Ele está... bem, ele não está se portando com muita lucidez

com relação a isso, papai. Tudo para Arnie é o carro, o carro, o carro.







Pessoas sem muitas chances tendem a agir assim





disse ele.





Às vezes é um carro, em outras uma namo

rada, uma carreira ou

instrumento musical, quando não, uma obsessão doentia por alguma

figura famosa. Tive um colega alto e feio, a quem chamávamos de

Cegonha. Com Cegonha, foi o trenzinho elétrico. Ele foi apaixonado por

trenzinhos desde o segundo grau, e



seu conjunto era quase a oitava

maravilha do mundo. Ele deixou Brown no segundo semestre de seu ano

de calouro. Estava com notas péssimas, e teve que escolher entre o colégio

e seus trens Lionel. Cegonha preferiu os trens.







O que aconteceu com ele?







Mat

ou

-

se em 1961





disse meu pai e levantou

-

se.





Minha

opinião é que pessoas decentes às vezes podem ficar cegas e nem sempre

por culpa delas. Talvez Darnell acabe deixando Arnie de lado. Passará a



-

lo apenas como outro cara qualquer, escorregando para bai

xo de seu

carro em um deslizador. Entretanto, se Darnell tentar usá

-

lo, olhe por ele,

Dennis. Não o deixe ser puxado para a dança.







Está bem, vou tentar, mas talvez não possa fazer grande coisa.







Hum

-

hum. Sei disso muito bem. Vai subir?







Claro.








Subimos



e, embora cansado como estava, fiquei muito tempo

acordado. Aquele fora um dia movimentado. Lá fora, um vento noturno

agitava suavemente um ramo contra o lado da casa e, muito distante, no

centro da cidade, ouvi garotos fazendo chiar os pneus no asfalto u

m som

que, dentro da noite, assemelhava

-

se ao gargalhar desesperado de uma

mulher histérica.





C

HRISTINE E

D

ARNELL



Ele soube de um casal



vivendo nos EUA,



Contou que eles trocaram seu bebê por um Chevrolet:



Falemos agora do futuro,



Esqueçamos o passado...







Elvis Costello





Entre trabalhar durante o dia no projeto da construção da estrada e

trabalhar em Christine à noite, Arnie não estivera muito tempo com seus

pais. As relações haviam ficado bastante tensas e desgastantes. O lar dos

Cunningham, que sempre for

a agradável e relaxante no passado, agora

era um campo armado. Esta é uma situação que muita gente lembra de

sua adolescência, imagino; talvez, gente demais. O adolescente é egoísta

bastante para considerar

-

se a primeira pessoa do mundo a descobrir certa

c

oisa em particular (geralmente é uma garota, mas nem sempre tem que

ser assim), e os pais são demasiado broncos e possessivos, têm medo de

soltar o cabresto. Ambos os lados pecam. Algumas vezes, isso se torna

doloroso e ultrajante





nenhuma guerra é tão su

ja e amarga como uma

guerra civil. Tal situação era particularmente penosa no caso de Arnie,

porque a separação acontecera muito tarde, seus pais já estavam

demasiado acostumados a manejar tudo à sua maneira. Não seria injusto

afirmar que haviam programado



a vida do filho.



Assim, quando Regina e Michael propuseram um fim de semana de

quatro dias em sua casa do lago, ao norte do Estado de Nova Iorque, antes

do reinicio das aulas, Arnie concordou, embora desejasse ardentemente




aqueles últimos quatro dias para



trabalhar em Christine. Passando cada

vez mais horas trabalhando, ele me contara como ia "mostrar a eles", ia

transformar Christine em um carro de verdade e "mostrar a todos eles". Já

planejara restaurar o vermelho brilhante e marfim original do Plymouth,



após terminado o trabalho na carroceria.



Contudo, lá se foi com os pais, determinado a ser obediente e afável

durante aqueles quatro dias inteiros e divertir

-

se com eles





em um fac

-

símile racional. Apareci em sua casa, na véspera de partirem, e fiquei

al

iviado ao perceber que ambos me tinham absolvido de culpa no assunto

do carro de Arnie (que ainda não tinham nem mesmo visto).

Aparentemente, haviam decidido ser aquilo uma obsessão particular. Para

mim, foi ótimo.



Regina estava ocupada, fazendo as malas.

Ajudei Arnie e Michael a

amarrarem sua velha canoa Oldtown na capota do Scout, o carro da

família. Terminado o trabalho, Michael sugeriu ao filho





com o ar de um

rei poderoso, concedendo um favor quase inacreditável a dois de seus

vassalos favoritos





que



ele entrasse e pegasse algumas cervejas para nós.



Fingindo a expressão e o tom de admirada gratidão, Arnie

respondeu que seria formidável. Ao afastar

-

se, piscou

-

me um olho.



Michael recostou

-

se contra o Scout e acendeu um cigarro.







Arnie já está se cansan

do dessa história do carro, Dennis?







Não sei





respondi.







Quer me fazer um favor?







Claro, se eu puder





respondi cauteloso.



Tinha certeza de que ele me pediria para procurar Arnie, bancar o

conselheiro e tentar convencê

-

lo a "parar com aquilo". No entan

to, ele

disse:







Se tiver tempo, vá até a Darnell's enquanto estivermos fora e veja

que tipo de progresso ele está fazendo. Fiquei interessado.







Por que esse interesse?



Mal fiz a pergunta, pensei imediatamente que fora bastante rude,

mas era tarde demais.










Porque desejo que ele seja bem

-

sucedido





disse Michael com

simplicidade e olhou para mim.





Oh, Regina continua absolutamente

contrária a isso. Se Arnie tiver um carro, significa que está crescendo. E, se

está crescendo, isso significa... bem, toda uma



série de coisas





terminou

ele, desajeitadamente.





Você poderia considerar

-

me também contra essa

história, porém isso foi antes. Claro, a princípio ele me pegou de

surpresa.... Tive visões de uma lata

-

velha estacionada diante de nossa casa,

até Arnie ir

para a universidade, ou dele asfixiando

-

se até a morte com o

cano de descarga, qualquer noite.



O pensamento de Verônica LeBay saltou em minha cabeça,

involuntariamente.







Agora, no entanto...





Michael deu de ombros, olhou para a

porta entre a garagem e a

cozinha, deixou o cigarro cair e o esmagou com

o salto.





Ele está visivelmente empenhado. Adquiriu um senso de

respeito próprio nesse assunto. Eu gostaria de, pelo menos, vê

-

lo pôr o

carro rodando.



Talvez ele percebesse algo em meu rosto, porque ao prosse

guir, o

tom era defensivo.







Não esqueci inteiramente o que significa ser jovem





disse.





Sei que um carro é importante para um rapaz como Arnie. Regina é que

não consegue ver isso tão claramente. Sempre teve a primeira e última

palavra e não se conforma

em ser passada para trás. Recordo que um

carro é importante... se um rapaz tem que sair com garotas.



Então, era assim que ele pensava. Encarava Christine como o meio

para uma finalidade, não a própria finalidade. Perguntei

-

me o que

pensaria, se lhe contass

e que a única idéia de Arnie era colocar aquele

Fury rodando e legalizado. Perguntei

-

me, também, se isso não o deixaria

um tanto ou quanto inquieto.



Ouvimos o baque da porta da cozinha ao se fechar.







Você daria uma espiada?







Está bem





respondi.





Se é o



que você quer.







Obrigado.



Arnie voltava com as cervejas.







O que estava agradecendo?





perguntou a Michael.






Falava em tom jovial e despreocupado, mas seus olhos se moveram

entre nós com rapidez, desconfiadamente. Tornei a reparar que sua pele

estava fica

ndo muito melhor e que seu rosto parecia ter

-

se revigorado.

Pela primeira vez,

Arnie e garotas

foram dois pensamentos que não me

pareceram mutuamente excludentes. Ocorreu

-

me que Arnie tinha um

rosto quase atraente, não como o de um peitudo salva

-

vidas, rei

-

do

-

baile

-

estudantil, porém de um modo diferente, interessante e suave. Ele jamais

seria o tipo de Roseanne, mas...







Por ele ajudar com a canoa





disse Michael, com naturalidade.







Ah.



Bebemos nossas cervejas e depois fui para casa. No dia seguinte, o

fel

iz trio partiu para Nova Iorque, presumidamente a fim de redescobrir a

unidade familiar, perdida durante o último terço daquele verão.





Um dia antes de eles voltarem, fui de carro até a garagem de

Darnell





tanto para satisfazer minha curiosidade como a de



Michael

Cunningham.



Situada à frente do depósito de carros velhos, este do comprimento

do quarteirão, a garagem parecia tão atraente à luz do dia, como na noite

em que havíamos trazido Christine





tinha todo o encanto de uma

ratazana morta.



Estacionei em

uma vaga diante da loja de acessórios que pertencia

também a Darnell





muito bem provida de peças, como cabeçotes Feully,

caixas de mudança Hurst e supercompressores Ram

-

Jett (para todos

aqueles trabalhadores que precisavam manter seus velhos carros rodand

o

a fim de poderem pôr pão na mesa, sem dúvida), para não mencionar

uma vasta seleção de compactos pneus e uma imensa variedade de calotas

especiais. Espiar pela janela da loja de acessórios para alta velocidade de

Darnell era como observar uma louca Disne

ylândia automotiva.



Afastei

-

me dali e cruzei o piso alcatroado para a garagem e para os

sons ruidosos de ferramentas, gritos, rajadas de metralhadoras das chaves

de boca pneumáticas. Um indivíduo de aparência desmazelada, com uma

surrada jaqueta de couro,

estava às voltas com uma velha bicicleta, junto a

um dos boxes da garagem, desmontando a tubuladora ou tornando a

montá

-

la. Havia um fundo arranhão interrompido, descendo por sua face




esquerda. As costas da jaqueta do sujeito exibiam uma caveira' usando

um

a boina verde e o fascinante lema MORRAM TODOS ELES E QUE

DEUS OS DIVIDA.



Fitou

-

me com olhos injetados de sangue, como um lunático

Rasputin, depois voltou a atenção para o que fazia. As ferramentas à sua

volta se dispunham em ordenação cirúrgica, havendo e

m cada uma,

estampadas a tinta, as palavras DARNELL'S GARAGE.



Lá dentro, o mundo se enchia do barulho reverberante e evocativo

de ferramentas e do som de homens trabalhando nos carros, gritando

palavrões para aquele em que trabalhavam. Sempre os palavrões

e sempre

do gênero feminino: "Vamos, sua filha da puta", "Afrouxe, sua cona",

"Venha cá, Rick, e me ajude a tirar fora esta racha".



Olhei em torno, procurando Darnell, mas não o vi em parte alguma.

Ninguém prestou muita atenção em mim, de maneira que camin

hei até o

boxe vinte, onde estava Christine, agora apontando o focinho para fora,

como se tivesse todo o direito de estar ali. No boxe à direita, dois caras

gordos, ambos vestindo camisas da associação de boliche, estavam

colocando um toldo na carroceria d

e uma camioneta

pickup,

que já vira

dias melhores. O boxe do outro lado estava deserto.



Quando me aproximei de Christine, senti que voltava aquele arrepio.

Não havia motivos para isso, mas era impossível controlá

-

lo





e, sem

pensar, movi

-

me um pouco para a



esquerda, em direção ao boxe vazio.

Não queria ficar na frente dela, de Christine.



Meu primeiro pensamento foi de que a pele de Arnie havia

melhorado ao mesmo tempo que a de Christine. O segundo, que ele

estava fazendo seus melhoramentos de modo curiosame

nte ao acaso...

quando, em geral, meu amigo costumava ser muito metódico.



A antena empenada e caída fora substituída por uma nova e

retilínea, que cintilava à luz das lâmpadas fluorescentes. Metade da grade

do radiador do Fury havia sido trocada; a outra m

etade continuava

amassada e salpicada de ferrugem. Havia também algo mais...



Caminhei ao longo do lado direito do carro, até o pára

-

choque

traseiro, com o cenho franzido.



Bem, era no outro lado, sem dúvida,

pensei.



Assim, dei a volta pelo outro lado, mas t

ambém não estava lá.






Fiquei em pé junto à parede dos fundos, ainda de cenho franzido,

procurando lembrar. Estava absolutamente certo de que quando vira

aquele carro no gramado de LeBay, com um aviso À VENDA colado ao

pára

-

brisa, havia um amassado enferruja

do, de bom tamanho, em um ou

outro lado do veículo, perto da traseira





a espécie de marca de batida

funda que meu avô sempre chamava de "coice de mula". Estávamos

rodando ao longo da estrada de pedágio, quando passamos por um carro

com um amassado enorme

em alguma parte da lataria. Vovô então disse:

"Ei, Denny, dê uma espiada naquilo! Foi um coice de mula!". Meu avô era

do tipo que sempre tem uma frase pronta para tudo.



Comecei a pensar que imaginara aquilo e abanei a cabeça de leve.

Aquilo era uma idéia s

em sentido. O amassado estivera lá, podia recordá

-

lo perfeitamente. Só porque não estava agora, não significava que nunca

estivera antes. Sem dúvida, Arnie fizera uma lanternagem no local, uma

excelente lanternagem, para fazê

-

lo desaparecer.



Exceto que...



Bem, não havia o menor

sinal

de que ele houvesse feito qualquer

coisa ali. No lugar não havia pintura, nenhuma massa cinzenta para

nivelar a superfície da lataria, qualquer mancha de tinta. Apenas o

vermelho opaco e o branco sujo de Christine.



No entanto,

havia um maldito

amassado ali!

Um amassado fundo e

coberto de poeira, em um ou outro lado do carro.



De qualquer modo, ele agora desaparecera.



Fiquei ali, entre a barulheira ensurdecedora de ferramentas e

maquinismos, sentindo

-

me muito solitário e, de repen

te, muito assustado.

Estava tudo errado, tudo louco. Ele substituíra a antena do rádio, quando

o cano de descarga praticamente se arrastava pelo chão. Substituíra

metade do radiador, mas não a outra. Falara comigo sobre um conserto

geral na traseira, mas d

entro do carro; substituíra o rasgado e empoeirado

estofamento do banco de trás por um outro, novo e brilhante. O

estofamento do banco dianteiro continuava um destroço empoeirado, com

uma mola assomando para fora, no banco do passageiro.



Não gostei daquilo



nem um pouco. Era loucura, sem nenhum traço

da meticulosidade de Arnie.






Algo me acudiu à mente, uma lembrança fugaz e, sem mesmo

analisá

-

la, fiquei atrás do carro e olhei para todo ele





não apenas para

um detalhe aqui e outro acolá, mas abrangendo tudo.

Então, consegui:

tudo se encaixava no lugar e o arrepio voltou.



Aquela noite, quando tínhamos levado Christine para a garagem. O

pneu arriado. A substituição. Eu olhara para o pneu novo no carro velho e

havia pensado que um pouquinho daquela velhice toda f

ora retirada, que

o automóvel novo





recente, cintilante, acabado de sair da linha de

montagem, em um ano quando Ike ainda era presidente e Batista

continuava mandando em Cuba





reaparecia um pouquinho, através

daquele pneu.



O que eu via agora era mais ou

menos isso... só que, em vez de um

mero pneu novo, havia todos os tipos de coisas





a antena, a grade do

radiador cintilando pela metade, um lado traseiro em reluzente vermelho

-

escuro, aquele novo estofamento no banco de trás.



Por sua vez, isto me fez reco

rdar algo da infância. Eu e Arnie

freqüentávamos a Escola Bíblica de Férias durante uma quinzena a cada

verão e, todos os dias, a professora contava uma história da Bíblia,

deixando

-

a por terminar. Então, ela dava a cada garoto uma folha em

branco de "pape

l mágico". Quando a gente passava a borda de uma

moeda ou o lado do lápis sobre o papel, de sua brancura ia gradualmente

emergindo uma ilustração





a pomba trazendo o ramo de oliveira para

Noé, as muralhas de Jerico desmoronando, coisas milagrosas assim.

A

quilo nos deixava fascinados, vendo as ilustrações irem surgindo pouco

a pouco. A princípio, apenas linhas flutuando no vazio... depois, essas

linhas se ligavam a outras... ganhavam coerência... ganhavam

significado.



Olhei para a Christine de Arnie com cre

scente horror, tentando

afugentar a sensação de que, nela, via algo terrivelmente similar àquelas

mágicas frustrações de milagres.



Tive vontade de espiar debaixo do capô.



De repente, parecia muito importante espiar o que havia lá.



Caminhei para a frente do



carro (não queria ficar diante dele, não

havia um bom motivo para isso, apenas eu não queria) e remexi no capô,

em busca do trinco. Não consegui abri

-

lo. Então, percebi que devia estar

dentro do carro.






Comecei a dar a volta, quando vi algo mais, algo que

me deixou

mais assustado ainda. Eu podia estar enganado sobre o coice de mula.

Sabia que não estava mas, pelo menos

tecnicamente..



Só que isto era completamente outra coisa.



A teia de aranha das rachaduras no pára

-

brisa diminuíra.



Estava positivamente meno

r.



Minha mente recuou at

é o dia, um mês atrás, quando eu

perambulara pela garagem de LeBay, a fim de dar uma espiada no carro,

enquanto Arnie entrava na casa para fechar negócio com o velho. Todo

lado esquerdo do pára

-

brisa era uma imensa teia de aranha de



rachaduras,

que se espraiavam de uma ziguezagueante fenda central, provavelmente

causada por uma pedrada.



Agora, a teia de aranha parecia menor e mais simples





por aquele

lado, era possível enxergar

-

se dentro do carro, o que eu não pudera fazer

antes, ti

nha certeza (apenas uma ilusão devido à luz, eis tudo, cochichou

minha mente).



No entanto, eu tinha que estar enganado





porque isso era

impossível. A gente substitui um pára

-

brisa, isto não é problema, havendo

dinheiro para a despesa. No entanto, fazer um

a teia de aranha de

rachaduras encolher...



Ri um pouco. Era um som tr

êmulo, e um dos sujeitos que trabalhava

com a lona da camioneta olhou para mim com curiosidade, em seguida

comentando algo com o companheiro. Era um som trêmulo, porém talvez

melhor do qu

e nenhum som. Claro que era a luz nada mais. Eu vira o

carro, pela primeira vez, com o sol brilhando em cheio sobre o pára

-

brisa

estilhaçado e o vira, pela segunda vez, nas sombras da garagem de LeBay.

Via

-

o, agora, sob a luz fluorescente daqueles tubos co

locados muito no

alto. Três momentos diferentes e, tudo somado, traduzia

-

se em uma ilusão

de ótica.



Ainda assim, eu queria olhar debaixo do cap

ô. Mais do que nunca.



Cheguei at

é o lado do motorista e sacudi a porta. Ela não se abriu.

Estava trancada. Claro

que estava: via abaixados todos os quatro botões

que trancavam as portas. Arnie não deixaria seu carro aberto ali, para que

alguém chegasse e ficasse remexendo em tudo. Repperton podia ter ido

embora, mas a espécie sordidus é uma erva daninha comum. Tornei



a rir.




O tolo e velho Dennis





mas agora meu riso soou ainda mais agudo e

trêmulo. Eu começava a sentir

-

me aéreo, como me sentia às vezes de

manhã, após ter fumado um pouco de erva além da conta.



Trancar as portas do Fury era uma atitude muito natural, cl

aro.

Exceto que, ao dar a volta ao carro pela primeira vez, julguei perceber

levantados todos os bot

ões que fechavam as portas.



De novo, caminhei lentamente para a traseira do carro. Aquela

velharia, pouco mais que uma carca

ça enferrujada. Eu não pensava e

m

nada específico





tenho certeza disso





exceto, talvez, que era como se

Christine soubesse que eu queria entrar e puxar a alavanca de liberação do

capô.



Ent

ão, por não querer que eu entrasse, o carro trancara as próprias

portas?



Francamente, era uma id

éi

a hilariante. Tão hilariante que tomei a rir

(várias pessoas agora olhavam para mim, de maneira como os outros

sempre olham para quem está sozinho e ri, sem qualquer motivo

aparente).



Foi quando aquela m

ão enorme caiu em meu ombro e me fez girar.

Era Darne

ll, com um toco apagado de charuto enfiado no meio da boca. A

outra extremidade estava molhada, com uma aparência lamentável. Ele

usava pequenos óculos com lentes até a metade, e os olhos atrás delas

eram friamente especulativos.







O que está fazendo, garo

to?





perguntou.





Isto aqui não é seu.



Os caras da camioneta olhavam avidamente para n

ós. Um deles

cutucou o outro e sussurrou algo.







É de um amigo meu





respondi.





Eu o trouxe para cá com ele.

Talvez se lembre de mim. Eu era aquele com o enorme tumor n

a ponta do

nariz e o...







Pouco me importa se vocês trouxeram o carro para cá em um

skate





disse ele.





Não lhe pertence. Guarde suas piadas sem graça e dê

o fora, garoto. Caia fora daqui!



Meu pai estava certo





ele era um miserável. E eu ficaria mais do

q

ue feliz em dar o fora dali; podia pensar em seis mil lugares, pelo menos,

onde preferiria estar, naquela antevéspera do fim das férias de verão. A

própria Caverna Negra, em Calcutá, seria superior. Não muito, mas




sempre superior. No entanto, o carro me pe

rturbava. Um monte de

coisinhas que, somadas, formavam uma baita erupção que precisava ser

coçada. Olhe por ele, meu pai dissera, e fora um bom conselho. O

problema é que eu não conseguia

-



acreditar no que via.







Meu nome é Dennis Guilder





falei.





Meu pa

i já fez sua

contabilidade, não foi?



Ele me fitou por um tempo imenso, sem qualquer express

ão em seus

olhinhos de porco. De repente, tive a impressão de que ia dizer que pouco

se lixava quem fosse meu pai, que era melhor eu

dar o fora dali e deixar

que aqu

eles homens continuassem consertando seus carros para poderem

continuar pondo p

ão em suas mesas. Et cetera.



Ent

ão, Darnell sorriu, mas o sorriso nem tocou seus olhos.







Você é o filho de Kenny Guilder?







Sou eu mesmo.



Ele deu tapinha no cap

ô do carro de Ar

nie com uma gorda e pálida

mão





havia dois anéis nos dedos e um deles parecia um diamante de

verdade. No entanto, o que pode saber um garoto como eu?







Sendo assim, acho que tudo está bem com você. Se for o filho de

Kenny. Por um segundo, pensei que ele i

a pedir minha identidade.



Os dois sujeitos do lado voltaram a trabalhar em sua camioneta e,

aparentemente, decidiram que nada mais transpiraria de interessante.







Vamos até o escritório, conversar um pouco





disse ele.



Virou

-

se e come

çou a caminhar, sem ao



menos olhar para trás.

Parecia certo de que eu o seguiria. Caminhava como um barco de velas

enfunadas, a camisa branca esvoaçando, com uma circunferência

impressionante de quadris e costas, inverossímil. Muitas pessoas gordas

sempre me afetam dessa maneir

a, com nítida impressão de

inverossimilhança, como se eu estivesse olhando para uma fantástica

ilusão de ótica. Acontece, no entanto, que provenho de uma longa linha de

pessoas magras. Para minha família, sou um peso

-

pesado.



Darnell fez uma pausa aqui e al

i, a caminho de seu escrit

ório, o qual

tinha uma parede envidraçada, dando para o interior da garagem. Fazia

-

me recordar ligeiramente o deus Moloch, sobre quem havia lido em

minha aula de Origens de Literatura





era o deus que se supunha capaz




de ver tudo,



com seu único olho vermelho. Darnell gritou para um sujeito

colocar o silencioso em seu cano de descarga, antes que ele o expulsasse

dali; gritou para outro indivíduo algo sobre como "as costas de Nicky o

estavam atrapalhando novamente" (isto provocou uma



série de ferozes e

ruidosas gargalhadas dos dois); berrou para outro que ajuntasse aquelas

fodidas latas de Pepsi

-

Cola, será que ele nascera em um monturo de lixo?

Aparentemente, Will Darnell nada sabia sobre o que minha mãe sempre

denominava "um tom norm

al de voz".



Eu hesitei por um momento, mas depois o segui. Acho que a

curiosidade matou o gato.





O escrit

ório dele era em estilo Primitivo Carburador Americano,

uma cópia de todo infecto escritório de garagem, de costa a costa, em um

país que corre sobre b

orracha e ouro ambarino. Havia um calendário

sebento com uma deusa loura em shorts curtíssimos e blusa aberta,

trepada em uma cerca, no campo. Havia placas ilegíveis de meia dúzia de

companhias que vendiam peças para carros. Pilhas de livros de

contabilida

de. Uma antiga máquina de somar. Havia uma foto





que

Deus nos perdoe!





de Will Darnell usando um fez e montado em uma

motocicleta miniatura, que parecia quase arriada sob seu corpo volumoso.

Havia ainda o cheiro de charutos há muito usados e de suor.



Dar

nell sentou

-

se em uma cadeira girat

ória, com braços de madeira.

A almofada gemeu debaixo dele, com um som cansado, mas conformado.

Ele se reclinou para trás. Tirou um fósforo da cabeça oca de um jóquei

negro de cerâmica. Depois o riscou em uma tira de lixa



que cobria uma

beirada da mesa e acendeu com ele o toco de charuto. Tossiu, fundo e

demoradamente, o peito largo e flácido sacudindo

-

se para cima e para

baixo. Diretamente atrás dele, pregado à parede, havia um quadro de

Garfield, o Gato. "Quer uma viagem



para a Cidade de Dentes Frouxos?",

perguntava Garfield, sobre uma pata erguida. Aquilo parecia uma perfeita

síntese de Will Darnell: Miserável na Residência Oficial.







Quer uma Pepsi, garoto?







Não, obrigado





falei.



Sentei

-

me na cadeira de espaldar reto,



oposta a ele. Darnell olhou

para mim





novamente aquele olhar frio e calculista





e então assentiu.










Como vai seu pai, Dennis? Continua às voltas com a Bolsa?







Vai muito bem. Quando lhe contei que Arnie trouxera o carro

para cá, ele logo se lembrou do s

enhor. Disse que Bill Upshaw é que faz

sua contabilidade agora.







Hum

-

hum. Um bom homem. Um bom homem. Não tanto quanto

seu pai, mas bom.



Assenti. Um silêncio caiu entre nós e comecei a sentir

-

me inquieto.

Will Darnell não parecia pouco à vontade, não olha

va para nada em

particular. Aquele frio olhar de apreciação nunca mudava.







Seu companheiro o mandou aqui para descobrir se Repperton foi

mesmo embora?





perguntou ele, tão de repente, que me sobressaltei.







Não





respondi.





De maneira nenhuma.







Bem, dig

a a ele que foi mesmo embora





prosseguiu Darnell,

ignorando o que eu acabara de dizer.





Um burro metido a sebo. Sempre

digo a eles, quando vêm com seu lixo para cá: andem na linha ou caiam

fora. Ele trabalhava para mim, fazendo um pouquinho disto e um

po

uquinho daquilo, mas talvez tenha pensado que era dono da chave de

ouro para a privada ou coisa assim. Um sabe

-

tudo

novato.



Ele começou a tossir novamente e demorou muito a parar o acesso

de tosse. Era um som doentio. Eu começava a sentir claustrofobia,

co

nfinado naquele escritório, mesmo com a janela se abrindo para a

garagem.







Arnie é um bom rapaz





disse Darnell finalmente, ainda me

avaliando com os olhos. Mesmo quando tossia, a expressão não

mudava.





Ele se vira muito bem. Sabe fazer as coisas.



Fazer

o quê? Eu quis perguntar, mas faltou coragem.



Darnell acabou contando. Excetuando

-

se o olhar frio, aparentemente

ele se sentia expansivo.







Ele limpa o chão, recolhe a tralha dos boxes da garagem no fim

do dia, mantém as ferramentas inventariadas, juntamen

te com Jimmy

Sykes... Preciso ter muito cuidado com as ferramentas por aqui, Dennis.

Elas costumam fugir quando viro as costas.





Ele riu e sua risada

transformou

-

se em um chiado.





Botei o Arnie também desmontando




peças, lá nos fundos. O garoto tem boas m

ãos. Boas mãos e mau gosto

para carros. Há anos não vejo uma carcaça pior do que aquele 58.







Acho que Arnie o encara como um passatempo





comentei.







Claro





disse Darnell, expansivamente.





Claro que sim. Até o

dia em que não quiser bancar o mandão com a

quilo, aqui dentro. Como

aquele imbecil, aquele Repperton. Bem, acho que não há muita

possibilidade disso por algum tempo, hein?







Penso que não. Aquele carro está um bocado ruim.







Que merda ele pretende fazer?





perguntou Darnell. Inclinou

-

se

para diante

, subitamente, os ombros enormes subindo até a raiz dos

cabelos. Franziu as sobrancelhas e os olhos desapareceram, exceto por

dois pequenos botões gêmeos.





Que merda ele pretende? Estive metido

nesse ramo a vida inteira e

nunca

vi ninguém consertar um car

ro da

maneira louca como ele está fazendo. Uma piada? Uma brincadeira?







Não estou entendendo





falei, embora estivesse, e perfeitamente

bem.







Pois eu lhe dou a dica





replicou Darnell.





O garoto traz o

carro para cá e, a princípio, faz nele tudo o que e

u esperava que fizesse.

Que diabo, ele não tem dinheiro escapando pelo traseiro, certo? Se tivesse,

não estaria aqui. Ele troca o óleo. Muda o filtro. Graxa, lubrificante, um

dia vi os dois Firestones novos que ele trouxe para as rodas dianteiras, a

fim de



combinarem com as duas traseiras.



Duas traseiras? Fiz a pergunta a mim mesmo e então concluí que ele

comprara três pneus novos, para combinarem com o original que eu lhe

levara, na noite em que trazíamos Christine para a garagem.







Então, um belo dia cheg

o aqui e vejo que ele substituiu os

limpadores de pára

-

brisa





continuou Darnell.





Nada estranho, exceto

que o carro não irá a lugar nenhum, com chuva ou com sol, durante muito

tempo. Depois, uma antena nova para o rádio e pensei: ele vai ficar

ouvindo o

rádio enquanto trabalha, arriando a bateria. Agora, o garoto me

vem com um novo assento coberto e metade da grade do radiador. Afinal,

o que significa tudo isto? Uma brincadeira?







Não sei





respondi.





Ele comprou as peças de reposição com o

senhor?










Não







disse Darnell, parecendo ofendido.





Não sei onde as

conseguiu. Aquela grade... não tem nem sinal de ferrugem! Ele deve ter

encomendado de algum lugar. Da Custom Chrysler, em Nova Jersey, ou

outro lugar semelhante. Só que... e a outra metade? Enfiada em



seu rabo?

Nunca ouvi falar de uma grade para radiador que chegasse em duas

partes.







Não sei de nada. Sinceramente. Ele esmagou o toco do charuto.







E não me venha dizer que não está curioso. Via a maneira como

olhava para aquele carro. Dei de ombros.







A

rnie não fala muito sobre ele





respondi.







Oh, não, aposto como não fala. É um filho da mãe de boca

fechada. No entanto, é um batalhador. Aquele Repperton apertou o botão

errado, quando se meteu com Cunningham. Se trabalhar legal este outono,

posso arranj

ar

-

lhe um emprego fixo para este inverno. Jimmy Sykes é um

bom garoto, mas não muito chegado ao departamento cerebral.





Seus

olhos me avaliaram.





Acha que ele é bom trabalhador, Dennis?







Arnie é legal.







Tenho um bocado de carros no fogo





comentou ele.







Um

bocado. Alugo caminhões sem grades na carroceria para sujeitos que

precisam transportar seus carrões envenenados até Filadélfia. Recolho a

tralha depois das corridas. Estou sempre necessitando de gente nesse

negócio. Bem, gente de confiança.



Comecei

a ter a desagradável suspeita de que estava sendo

convidado a dançar. Levantei

-

me precipitadamente, quase derrubando a

cadeira.







Tenho mesmo que ir andando





falei.





E... Sr. Darnell... ficaria

muito grato se não dissesse a Arnie que estive aqui. Ele é..

. um pouco

suscetível sobre o carro. Para ser franco, seu pai andava curioso e queria

saber como ele está se saindo.







O garoto tirou um monte de bosta da porta de casa, não foi?





O

olho direito de Darnell se fechou astutamente em algo que não era bem

uma



piscadela.





Seus velhos engolem alguns quilos de laxativo e depois

ficam em cima dele, de pernas bem abertas, não é assim?







Bem... o senhor sabe como é.










Pode apostar que sei.



Ele se levantou em um movimento flexível e bateu em minhas costas,

com força



bastante para fazer

-

me vacilar sobre os pés. Com ou sem

respiração chiada e tosse, ele era um sujeito forte.







Não direi nada





prometeu, caminhando comigo até a porta.



Sua mão continuava em meu ombro, o que me deixava nervoso e

também um pouco irritado.







Quero lhe confessar uma coisa que também me preocupa





falou.





Devo ver uns cem carros por aqui, a cada ano... bem, não tantos,

mas entende o que quero dizer, e preciso ficar de olho neles. Pois quase

juraria que já vi aquele antes. Quando não era a vel

haria que está agora.

Onde foi que o garoto o conseguiu?







Com um homem chamado Roland LeBay





respondi, pensando

no irmão de LeBay, ao me contar que ele próprio fazia a manutenção, em

alguma garagem do tipo faça

-

você

-

mesmo.





Está morto agora.



Darnell est

acou subitamente.







LeBay?

Rollie

LeBay?







Isso mesmo.







Do Exército? Reformado?







Exato.







É isso mesmo, raios! Durante seis, talvez oito anos, ele trouxe o

carro para cá, tão regular como um relógio. Depois parou de vir. Isso foi

há muito tempo. Aquele s

ujeito era um filho da puta. Se a gente

despejasse água fervendo por sua maldita garganta abaixo, ele mijaria

cubos de gelo. Não se dava com ninguém.





Darnell apertou meu ombro

com mais força.





Seu amigo Cunningham sabe que a mulher de LeBay

suicidou

-

se

naquele carro?







É mesmo?





exclamei, fingindo surpresa.



Eu não queria deixá

-

lo saber que meu interesse fora suficiente para

procurar o irmão de LeBay, após o funeral. Receava que Darnell pudesse

repetir a informação para Arnie





completa, com a fonte. Dar

nell me

contou a história toda. Primeiro a filha, depois a mãe.










Poxa!





tornei a exclamar, quando ele terminou.





Tenho

certeza de que Arnie não sabe disso. Vai contar a ele?



Aquele olhar avaliador novamente.







Você vai?







Não





respondi.





Não vejo moti

vos para contar.







Nem eu.





Ele abriu a porta, e o ar cheirando a graxa pareceu

quase purificado, depois da fumaça de charuto no escritório.





Aquele

filho da puta do LeBay, maldito seja! Espero que esteja oferecendo a face

direita e depois a esquerda lá

no inferno. E dando o traseiro.





Sua boca

se encurvou perversamente por um instante e depois ele olhou na direção

do boxe vinte, onde repousava Christine com sua velha pintura

enferrujada, a antena e metade da grade do radiador reluzindo de novas.







Essa

cadela

aqui outra vez





continuou ele, e então olhou para

mim.





Bem, dizem que o centavo falso sempre aparece, não é?







Sim, acho que dizem





respondi.







Até logo, garoto





disse, enfiando um novo charuto na boca.





Diga alô a seu pai por mim.







Eu direi.







E diga a Cunningham para ficar de olho naquele traste do

Rupperton. Tenho a impressão de que ele não aceita fácil uma derrota.







Eu também





falei.



Saí da garagem, parando uma vez a fim de olhar para trás





contudo, vista da claridade, Christine era pou

co mais do que uma sombra

entre sombras. O

centavo falso sempre aparece,

tinha dito Darnell. Fui para

casa com aquela frase na cabeça.





C

ALAMIDADES DO

F

UTEBOL



Aprender a tocar saxofone,



Só tocar o que eu gostar,



Beber uísque escocês






A noite inteira



E morre

r atrás do volante...







Steely Dan





As aulas começaram, e nada de importante aconteceu por uma

semana ou duas. Arnie não soube que eu estivera na garagem, o que me

alegrou, pois não creio que aceitasse a notícia com muita satisfação.

Darnell ficou de boca

fechada, como prometera (talvez por questões

pessoais). Telefonei para Michael certa tarde, depois das aulas, sabendo

que Arnie já teria ido para a garagem, e lhe contei que ele fizera alguma

coisa no carro, mas que este ainda estava longe de poder andar l

egalmente

pelas ruas. Comentei minha impressão de que seu filho apenas procurava

distrair

-

se na garagem. Michael acolheu as notícias com um misto de

alívio e surpresa. Isto encerrou a questão... por algum tempo.



Eu via Arnie de vez em quando, assim como al

go que entra em

nosso campo visual, pelo canto do olho. Ele perambulava pelos corredores,

tínhamos aulas de três matérias juntos e, por vezes, aparecia lá em casa,

depois das aulas ou nos fins de semana. Em certas ocasiões, parecia que

nada mudara realment

e, porém Arnie ficava mais tempo na Darnell's do

que em minha casa, e seguia para Philly Plains





a pista de corridas para

automóveis





nas noites de sexta

-

feira, juntamente com Jimmy Sykes, o

empregado meio idiota de Darnell. Lá corriam carros esportes e

outros

modelos de classe, envenenados, em sua maioria Camaros e Mustangs,

com todos os vidros retirados e com fechos corrediços. Arnie e Jimmy

Sykes os recolhiam ao caminhão de carroceria aberta de Darnell e

voltavam com o lixo recente para o cemitério de

automóveis.



Foi mais ou menos nessa época que Arnie machucou as costas. Não

foi nada sério





pelo menos, era o que dizia



, mas minha mãe percebeu

que havia algo errado com ele, quase em seguida. Arnie apareceu um

domingo para ver o jogo dos Phillies, que

naquele ano abriam caminho

para uma glória moderada, e durante o terceiro tempo levantou

-

se para

pegar um copo de suco de laranja para cada um de nós. Mamãe estava

sentada no sofá com papai, lendo um livro. Ergueu os olhos quando Arnie

retomava e disse:







Você está mancando, Arnie.






Penso ter visto uma expressão inesperada de surpresa no rosto dele,

por um ou dois segundos







um ar furtivo, quase culpado. Talvez me enganasse. Se

aconteceu,

um segundo depois havia desaparecido.







Acho que forcei as costas em P

lains, a noite passada





disse ele,

entregando

-

me o suco de laranja.





Jimmy Sykes deixou escorregar a

última das peças batidas que carregávamos, quando ela estava

praticamente em cima do caminhão. Pude vê

-

la escorregando para fora, e

então levamos umas du

as horas fazendo força para endireitar tudo.

Empurrei com as costas. Acho que não devia ter forçado tanto.



Parecia uma explicação muito minuciosa para um simples coxear,

porém eu talvez estivesse enganado sobre isso também.







Precisa ter mais cuidado com s

uas costas





disse mamãe,

severamente.





O Senhor...







Podemos ver o jogo agora, mãe?





falei.



...só lhe dá uma





concluiu ela.







Sim, Sra. Guilder





respondeu Arnie, obedientemente. Elaine

entrou na sala.







Ainda tem um resto de suco ou os dois cabeças

-

d

e

-

pepino

beberam tudo?







Por favor, me dê uma folga!





gritei.



Tinha havido uma grande jogada naquele segundo e perdi toda a

seqüência.







Não grite com sua irmã, Dennis





murmurou papai, das

profundezas de

The Hobbyist,

a revista que estava lendo.







Sobrou



muita coisa, Ellie





disse Arnie para ela.







Às vezes, Arnie





retrucou Elaine



, você me surpreende como

um ser quase humano. Ela foi para a cozinha.







Quase humano, Dennis!





sussurrou Arnie, aparentemente à

beira de lágrimas de gratidão.







Você ouviu i

sso? Quase

humaaaano!






Talvez seja apenas uma lembrança retrospectiva





ou a

imaginação





levando

-

me a crer que seu humor fosse forçado, irreal,

apenas uma fachada. Seja ou não verdadeira a recordação, o assunto sobre

suas costas encerrou

-

se, embora ele vol

ta e meia mancasse, durante aquele

outono.



Pessoalmente, eu andava muito ocupado. Havia rompido com a

chefe de torcida, mas em geral sempre encontrava alguém para uma volta

nas noites de sábado... se não estivesse esgotado pelo treino constante de

futebol.



O treinador Puffer nada tinha do miserável que era Will Darnell,

porém estava longe de ser uma flor; como metade dos treinadores de

ginásio nas cidades pequenas da América, ele moldava suas técnicas de

treinamento pelas do falecido Vince Lombardi, cujo le

ma principal era de

que ganhar não significava tudo, era

a única coisa.

Vocês ficariam

surpresos, se soubessem quanta gente





que deveria entender melhor do

assunto





acredita nessa mentira deslavada.



Um verão de trabalho para a Carson Brothers me deixara

em

excelente forma, e creio que poderia valer

-

me para toda a temporada





se

aquela houvesse sido uma temporada vitoriosa. Entretanto, por ocasião da

briga feia que eu e Arnie tivemos com Buddy Repperton, perto da área de

fumar, nos fundos da oficina





e cr

eio que aconteceu durante a terceira

semana de aula



, já era francamente visível que não teríamos uma

temporada de vitórias. Isso tornou extremamente difícil a convivência

com o treinador Puffer, porque em seus dez anos no Ginásio Libertyville

ele

jamais

tivera uma temporada de derrotas. Aquele foi o ano em que

Puffer teve que se sujeitar a uma amarga humildade. Foi uma dura lição

para ele... e também para nós.



Nosso primeiro jogo, contra os Tigres de Luneburg, foi em setembro.

Bem, Luneburg não passa de u

m vilarejo. Trata

-

se de uma merdinha de

ginásio rural no extremo oeste de nosso distrito, e durante meus anos no

Libertyville o grito de guerra costumeiro, após a convencida defesa de

Luneburg ter permitido mais um

touchdown,

um ponto para nós, era:

CONTEM

-

PRA

-

NÓS

-

COMO

-

É

-

BOSTA

-

DE

-

VACA

-

NO

-

SEU

-

PÉ!

Seguido

por um estrondoso, sarcástico aplauso:

HUUURRRAAAA,

LUUUUNEBURG!



Fazia vinte anos que Luneburg não conseguia derrotar um time de

Libertyville, mas nesse ano eles se levantaram e acabaram conosco




completament

e. Eu jogava na extrema

-

esquerda e, chegado o meio tempo,

estava moralmente convicto de que carregaria nas costas, pelo resto da

vida, cicatrizes de marcas de travas. O escore era então de 17

-

3. Terminou

com 30

-

10. A torcida do Luneburg delirava. Eles derr

ubaram as traves do

gol, como se aquele fosse um jogo pelo Campeonato Regional, e

carregaram nos ombros seus jogadores para fora do campo.



Nossa torcida, que viera em ônibus fretados especialmente para a

ocasião, ficou encolhida nas arquibancadas de visita

ntes, parecendo

perdida sob um forte e prematuro calorão de setembro. No vestiário,

atordoado e pálido, o treinador Puffer sugeriu que ficássemos de joelho e

rezássemos, pedindo orientação para as semanas vindouras. Percebi então

que a calamidade não termi

nara, que apenas começava.



Caímos sobre os joelhos doloridos, arranhados e cansados,

desejando apenas uma chuveirada que nos lavasse aquele cheiro de

derrota, enquanto ouvíamos Puffer explicar a situação a Deus, em uma

peroração de dez minutos, encerrada c

om a promessa de que faríamos a

nossa parte, se Ele fizesse a Sua.



Na semana seguinte, treinamos três horas diárias (em vez dos

costumeiros noventa minutos a duas horas), sob o sol escaldante. À noite,

eu caía na cama e sonhava com seus berros:

"Ataque aqu

ele otário! Ataque!

Ataque!".

Eu partia em desabalada carreira, até começar a sentir que

minhas pernas sofreriam uma decomposição espontânea (provavelmente,

no mesmo instante em que meus pulmões explodiriam em chamas).

Lenny Barongg, um de nossos

tailbacks

,

tivera um ataque brando de

insolação e, misericordiosamente





para ele, pelo menos foi dispensado

pelo resto da semana.



Eu só via Arnie quando ele aparecia para jantar comigo, meus pais e

Ellie nas noites de quinta ou sexta

-

feira. Às vezes aparecia para

ver um ou

dois jogos conosco, nas tardes de domingo, mas, além disso, perdi

-

o de

vista por completo





ou quase isso. Naquela época, andava ocupado

demais em arrastar minhas dores e sofrimentos até as salas de aula,

treinando e voltando para casa, a fim de

fazer os deveres de casa em meu

quarto.



Voltando às calamidades do futebol, acho que o pior de tudo era a

maneira como os outros olhavam para mim, Lenny e o resto do time pelos

corredores. Hoje em dia, esse "espírito de colégio" se compõe

principalmente de



besteiras inventadas pelos administradores de escolas,




ao recordarem o inferno das disputas de futebol nas tardes de sábado,

quando jovens, mas esquecendo convenientemente que muito disso

resultava de estarem bêbados, no cio ou as duas coisas. Quando há u

m

comício em favor da legalização da maconha, é possível ver

-

se um pouco

desse espírito de colégio. No entanto, em se tratando de futebol, basquete

ou atletismo, a maioria dos alunos não dá nenhuma banana. Estão todos

ocupados demais em conseguir entrar pa

ra a universidade, em chegar ao

ponto final com alguma garota ou procurando confusão. Muito ocupados,

em geral.



Ainda assim, ficamos acostumados à vitória





começamos a

acreditar que ela nos pertence por direito. Libertyville estivera formando

equipes venc

edoras por muito tempo; a última vez que o colégio havia

sido derrotado





pelo menos, até meu último ano lá





fora doze anos

antes, em 1966. Assim, na semana após a derrota para Luneburg, embora

não houvesse choro nem ranger de dentes, havia aqueles olhare

s atônitos

nos corredores e alguns comentários na habitual reunião da tarde de

sexta

-

feira, no final do sétimo tempo. Os comentários deixaram o

treinador quase púrpura e ele convidou aqueles "esportistas

-

de

-

meia

-

tigela e amigos

-

das

-

horas

-

boas" a aproveitar

em a tarde de sábado para

verem a reabilitação do século.



Não sei se os esportistas

-

de

-

meia

-

tigela e os amigos

-

das

-

horas

-

boas

apareceram ou não, mas eu estava lá. Jogávamos em casa e nossos

adversários eram os Ursos de Ridge Rock. Ridge Rock é uma cidade d

e

mineração e, embora os garotos que freqüentam o Ginásio de Ridge Rock

sejam caipiras, não são caipiras frouxos. São caipiras durões, ferozes e

decididos. No ano anterior, o time de futebol de Libertyville os vencera

por pouco, na disputa do título region

al, e um dos comentaristas

esportivos locais comentara que a vitória não acontecera porque o time de

Libertyville era melhor, mas porque sua torcida era mais animada. Posso

afirmar que isso também fez o treinador arrancar os cabelos.



De qualquer modo, aque

le foi o ano dos Ursos. Foram como um rolo

compressor contra nós. Fred Dann saiu do jogo com uma concussão, no

primeiro tempo. No segundo, Norman Aleppo foi levado para o Hospital

Comunitário de Libertyville com um braço quebrado. E, no último

período, os

Ursos marcaram três

touchdowns

consecutivos, dois deles como

punt returns.

O escore final foi de 40

-

6. Deixando de lado a falsa modéstia,

eu lhes confesso que marquei o sexto ponto. Entretanto, não ponho o

realismo ao lado da modéstia: o que tive foi sorte

.






Assim sendo... mais uma semana de infernal treinamento no campo.

Outra semana com o treinador gritando:

"Ataque aquele otário."

Certo dia,

treinamos durante quase quatro horas, e quando Lenny sugeriu ao

treinador que seria ótimo termos algum tempo de sob

ra para os trabalhos

de casa, cheguei a pensar





apenas por um instante





que Puffer ia

surrá

-

lo com o cinto. Ele passara a ficar jogando seu molho de chaves

constantemente, de uma das mãos para a outra, recordando

-

me o Capitão

Queeg, no filme

Motim.

Supon

ho que a maneira como você perde é um

indicador muito melhor para o caráter do que a forma como vence. Puffer,

que nunca vira um 0

-

2 em sua carreira de treinador, reagia com uma fúria

cega e inútil, como um tigre enjaulado e acuado pelos filhotes cruéis.



N

a tarde da sexta

-

feira seguinte





que seria 22 de setembro





foi

cancelada a reunião costumeira, durante os últimos quinze minutos do

sétimo tempo. Nenhum jogador se preocupava com aquilo; ficar ali de pé

e ser apresentado por doze gigantes chefes de torci

da, pela décima

milionésima vez, era bem tedioso. Nessa noite, fomos convidados pelo

treinador a voltar ao ginásio e ficamos duas horas vendo os filmes,

testemunhando nossa humilhação infligida pelos Tigres e Ursos, nos jogos

filmados. Talvez aquilo tivess

e a finalidade de levantar nosso moral,

porém eu fiquei apenas deprimido.



Nessa noite, antes de nosso segundo jogo do ano em casa, tive um

sonho singular. Não foi bem um pesadelo, não como aquele em que eu

acordara a casa com meus gritos, claro, mas ainda

assim foi...

desconfortável. Estávamos jogando contra os Dragões da cidade de

Filadélfia, e soprava um vento forte. Os sons dos gritos da torcida, a voz

estridente e distorcida de Chubby McCarhy, brotando do alto

-

falante,

quando anunciava os

downs

e

yards

do jogo, o próprio som dos jogadores

atacando

-

se entre si, tudo tinha um toque fantástico, que ecoava naquele

vento firme e constante.



Nas arquibancadas, os rostos apareciam amarelados e

estranhamente sombreados, como máscaras chinesas. As chefes de torcid

a

dançavam e cabriolavam como autômatos de corda. O céu tinha um

cinzento esquisito, coberto de nuvens. Estávamos apanhando em toda a

linha. O treinador gritava suas ordens, mas ninguém conseguia ouvi

-

lo.

Os Dragões afastavam

-

se de nós rapidamente e a bola



estava sempre com

eles. Lenny Barongg" parecia estar jogando em meio a uma dor terrível:

tinha a boca repuxada para baixo, em trêmula meia circunferência, como

uma máscara de tragédia.






Fui atacado, derrubado e atropelado. Fiquei caído, muito atrás da

linh

a de formação dos jogadores, encolhido, tentando recuperar a

respiração. Olhei para cima e lá, parada no meio da pista de atletismo,

atrás das arquibancadas dos visitantes, estava Christine. Novamente se

mostrava cintilante, como recém

-

saída da fábrica, pa

recendo ter deixado o

salão de exibição apenas uma hora antes.



Arnie estava sentado no teto do carro, as pernas cruzadas como

Buda, fitando

-

me inexpressivamente. Gritou alguma coisa para mim,

porém o ruído do vento quase sobrepujou o que dissera. Tive a im

pressão

de ouvir algo assim:

Não se preocupe, Dennis! Cuidaremos de tudo, portanto,

fique calmo! Está tudo sob controle!



Cuidariam de quê? Foi o que me perguntei, caído no campo de jogo

do sonho (que, por algum motivo, meu eu onírico transformara em pista

de corrida de cavalos), lutando para recuperar o fôlego, a cueca

penetrando cruelmente na junção das coxas, logo abaixo dos testículos.

Cuidariam de quê?



De quê?



Não houve resposta. Apenas o brilho malévolo dos faróis amarelos

de Christine, e Arnie sentado



tranqüilamente, de pernas cruzadas sobre a

capota, naquele vento forte e barulhento.





No dia seguinte, partimos para a luta novamente, em benefício do

bom e velho Ginásio de Libertyville. Não foi tão ruim como em meu

sonho





ninguém saiu ferido naquele sá

bado, e por um breve momento

do terceiro

quarter

até pareceu que teríamos uma chance





mas então

o

quarterback

da cidade de Filadélfia deu sorte com uns dois passes

longos





quando a situação começa a perigar,

tudo

dá errado





e

tornamos a perder.



Depois d

o jogo, o treinador Puffer limitou

-

se a ficar sentado no

banco. Não olhou para nenhum de nós. Restavam onze jogos em nosso

calendário, mas ele já era um homem derrotado.








E

NTRA

L

EIGH

,



S

AI

B

UDDY



Não lhe contei vantagem, meu bem,



Então, não me venha humilhar

,



Tenho as rodas mais velozes da cidade,



Quem quiser passar à frente, nem adianta tentar,



Porque também tenho asas, cara,



Minha máquina pode voar,



É o meu cupê endoidado,



Você nem sabe o que tenho...







The Beach Boys





Tenho absoluta certeza de que foi na t

er

ça

-

feira seguinte à nossa

derrota diante dos Dragões da cidade de Filadélfia que as coisas

começaram a agitar

-

se outra vez. Devíamos estar a 26 de setembro.



Eu e Arnie assistimos a tr

ês aulas juntos, sendo uma delas Tópicos

da História Americana, um curs

o seriado, no quarto período. Nas

primeiras nove semanas, o professor fora o Sr. Thompson, chefe do

departamento. Então, o tema era Duzentos Anos de Desenvolvimento e

Crise. Arnie dizia que aquela era a aula do tchau

-

tchau, porque ficava

justamente antes d

a hora do almoço e os estômagos da gente pareciam ter

coisas mais interessantes para fazer.



Terminada a aula daquele dia, uma garota aproximou

-

se de Arnie e

perguntou

-

lhe se tinha o trabalho de Ingl

ês para casa. Ele tinha. Folheou

com cuidado seu caderno d

e anotações e, enquanto isso, ela o observava

seriamente com olhos azul

-

escuros, nunca os desviando do rosto dele.

Tinha cabelos louro

-

escuros, cor de mel fresco





não do tipo refinado,

mas daquele que sai direto da colméia



, mantidos presos para trás por



uma fita azul, combinando com os olhos. Ao vê

-

la, meu estômago deu

uma reviravolta de felicidade. Depois que a garota terminou de copiar o

trabalho, Arnie olhou para ela.



Aquela n

ão era a primeira vez que eu via Leigh Cabot, é claro, ela

havia sido transf

erida de uma cidade em Massachusetts para Libertyville,

três semanas antes, de modo que já ficara conhecida. Alguém me contara




que seu pai trabalhava para a 3M, o pessoal que fabrica a fita adesiva

Scotch.



N

ão era a primeira vez também que eu reparava nela

, porque Leigh

Cabot era





usando os termos mais simples





uma bela garota. Em uma

obra de ficção, percebi que os escritores sempre inventam um pequeno

defeito aqui ou acolá nas mulheres e jovens que criam, talvez por

pensarem que a beleza real seja um est

ereótipo ou por acharem que um ou

dois senões tornam a dama mais real. Assim, a heroína é bonita, com

exceção do lábio inferior um pouco longo demais, ou apesar de ter o nariz

ligeiramente afilado. Talvez tenha o busto achatado. Sempre há alguma

coisa.



Com



Leigh, no entanto, era beleza pura. Tinha a pele clara e perfeita,

em geral com um toque de cor perfeitamente natural. Mediria um metro e

setenta, mais ou menos, alta para uma garota, mas n

ão em excesso, com

um corpo adorável





seios bonitos e firmes, uma



cinturinha que quase se

poderia contornar com as mãos (pelo menos, dava vontade de tentar),

quadris bem feitos, pernas bem torneadas. Uma garota bonita,

sexy,

de

belo corpo





artisticamente sem graça, imagino, sem o lábio inferior

demasiado longo, o nariz



afilado, uma reentrância ou saliência erradas em

algum lugar (nem ao menos um gracioso dentinho torto





ela devia ter

tido um excelente ortodontista, também), mas o caso é que ela

nada

tinha

de sem graça, quando a gente a contemplava.



Alguns caras j

á tinh

am dado em cima dela, mas haviam sido

delicadamente afastados. Imaginava

-

se que, provavelmente, Leigh Cabot

estava com dor

-

de

-

cotovelo por causa de algum sujeito de Andover,

Braintrese ou seja lá de onde viera, mas que o tempo a faria recuperar

-

se.

Em duas



das aulas a que eu assistira com Arnie, ela também estivera

presente, de maneira que minha idéia era apenas aguardar um pouco,

antes de tentar uma aproximação.



Agora, observando os olhares roubados entre os dois, quando Arnie

procurara o dever e depois, q

uando ela o anotava cuidadosamente,

perguntei

-

me se chegaria a ter chance daquela aproxima

ção. Então, ri para

mim mesmo. Arnie Cunningham, o próprio e velho Cara de Pizza e Leigh

Cabot. Era totalmente ridículo. Era...



O sorriso interior quase secou de repe

nte. Pela terceira vez





a

definitiva





eu percebia que a pele dele estava se curando sozinha, com

uma rapidez quase impressionante. As equimoses haviam desaparecido.




Algumas ainda tinham deixado mínimas cicatrizes reentrantes ao longo

das faces, é verdade

, mas se um cara tem feições fortes, aquelas pequenas

reentrâncias não parecem significar muito. De uma forma um tanto louca,

até parecem dar mais caráter.



Leigh e Arnie estudaram

-

se disfar

çadamente. Também estudei

Arnie disfarçadamente, perguntan

do

-

me qu

ando e como aquele milagre

acontecera. A luz do sol penetrava com força pelas janelas da sala do Sr.

Thompson, delineando claramente as linhas do rosto de meu amigo. Ele

parecia... mais velho. Como se tivesse vencido as equimoses e a acne, não

somente com

lavagens ou aplicações regulares de qualquer creme especial,

mas conseguindo algum meio de adiantar o relógio por três anos.

Também estava usando o cabelo de modo diferente





agora era mais

curto, e as costeletas que cismara de usar, desde que pudera culti



-

las

(uns dezoito meses atrás), tinham desaparecido.



Fiquei pensando naquela tarde encoberta, quando t

ínhamos ido ver

o filme Kung

-

fu de Chuck Norris. Fora a primeira vez em que eu notara

alguma melhora, concluí. Mais ou menos na época em que ele havia

c

omprado o carro. Sim, devia ser isso. Adolescentes do mundo, rejubilem

-

se! Resolvam dolorosos problemas de acne para sempre! Comprem um

carro velho e ele fará com que...



O sorriso interior, que voltara a aflorar, de repente azedou.



Comprem um carro velho e



ele far

á... o quê? Será que ele irá

modificar suas cabeças, suas maneiras de pensar, desta forma alterando o

metabolismo? Liberando o eu real? Tive a sensação de ouvir Stukey James,

nosso antigo professor de Matemática, sussurrando em minha cabeça seu

ins

istentemente repetido refrão:

Se seguirmos esta linha de raciocínio até o

amargo fim, senhoras e senhores, aonde isso nos levará?



Certo





aonde?







Obrigada, Arnie





disse Leigh, em sua voz doce e clara.



J

á havia copiado o dever de casa em seu caderno de ap

ontamentos.







Tudo bem





disse ele.



Os olhos dos dois se encontraram





agora entreolhavam

-

se, em vez

de se observarem furtiva

mente



, e até eu pude sentir a fagulha saltar.







Vejo você no sexto tempo





disse ela.






Depois se afastou, os quadris ondulando su

avemente sob uma saia

verde de tric

ô, os cabelos oscilando contra as costas do suéter.







O que tem você a ver com o sexto tempo dela?





perguntei.



Eu tinha tempo vago naquele per

íodo. Estudaria os corredores

fiscalizados pela terrível Srta. Raypach, a quem



todos nós chamávamos de

Sita. Rat

-

Pack (Trouxa

-

de

-

Ratos), só que nunca em presença dela, como é

fácil imaginar.







Cálculo





respondeu ele, naquela voz sonhadora e melosa, tão

diferente da que eu conhecia, que me provocou o riso. Arnie olhou para

mim, de c

enho franzido.







De que está rindo, Dennis?







Cal

-

Q

-

luuuu





respondi.



Revirei os olhos, agitei as m

ãos como asas e ri mais alto. Ele fingiu

que ia me esmurrar.







É bom tomar cuidado, Guilder





falou.







Desgrude, Cara de barata!







Eles botam você na univers

idade e vamos ver o que acontece ao

fodido time de futebol!



O Sr. Hodder, que ensina aos calouros os mais primorosos detalhes

gramaticais (e tamb

ém como masturbar

-

se, no dizer de certos

espirituosos), ia passando por nós nesse exato momento.







Cuidado com

sua linguagem nos corredores!





disse

significativamente para Arnie, franzindo o cenho.



Depois seguiu em frente, com uma pasta em uma das m

ãos e, na

outra, um hambúrguer apanhado na fila do almoço. Arnie ficou vermelho

como uma beterraba; sempre enrubescia



se um professor lhe

dizia alguma

coisa (tratava

-

se de uma rea

ção tão automática que quando estávamos no

primário acabava castigado por coisas que não fizera, apenas porque

parecia

culpado). Suponho que isso tenha algo a ver com a maneira como

foi criado p

or Regina e Michael





eu sou legal, você é legal, eu sou uma

pessoa, você é uma pessoa, nós nos respeitamos profundamente, e quando

alguém fizer algo errado sentiremos uma reação alérgica de culpa.

Acredito que isso faça parte da criação liberal de filhos

na América.










Cuidado com sua linguagem, Cunningham





falei.





Tu



envorvido

num monte

de probrema.

Ele começou a rir também. Descemos o

corredor reverberante de ruídos. As pessoas caminhavam



depressa de um lado para outro ou se apoiavam contra seus

arm

á

rios, comendo. Não se devia comer pelos corredores, mas muitos não

ligavam para isso.







Trouxe seu almoço?





perguntei.







Trouxe. Num saco de papel pardo.







Vá pegar. Vamos comer lá fora, nas arquibancadas.







A esta altura, ainda não se encheu daquele camp

o de futebol?





perguntou Arnie.





Se ficasse muito mais tempo deitado de barriga, no

sábado passado, acho que um dos zeladores o plantaria.







Não ligo. Vamos à forra essa semana. Além do mais, quero sair

daqui.







Certo. Encontro você lá fora.



Arnie afasto

u

-

se e rumei para meu arm

ário, a fim de pegar meu

almoço. Havia trazido quatro sanduíches, para começar. Desde que o

treinador iniciara suas sessões

-

maratonas de treinamento, eu vivia

faminto.



Segui ao longo do corredor, pensando em Leigh Cabot e em como

m

uita gente ficaria alvoro

çada se aqueles dois começassem a sair juntos.

Nos colégios, a sociedade é muito conservadora, como todos sabem. Nada

de grandes repressões, mas é assim. As garotas sempre usam as modas

mais loucas, os rapazes às vezes deixam o cab

elo chegar até o traseiro,

todos fumam uma maconhazinha ou cheiram um pouco de coca





mas

tudo não passa de uma camada externa de verniz, a defesa usada

enquanto fazemos experiências e procuramos imaginar o que acontecerá,

exatamente, em nossa vida. É como



um espelho





usado para refletir de

volta a luz do sol nos olhos de pais e professores, esperando confundi

-

los,

antes que nos tornem ainda mais confusos do que já estamos. No fundo, a

maioria dos estudantes de ginásio é quase tão careta como um bando de

b

anqueiros republicanos em uma reunião social da igreja. Há garotas que

podem ter todo álbum já produzido do conjunto Black Sabbath, mas se

Ozzy Osbourne for à escola que elas freqüentam e convidar uma delas




para sair, essa garota (e todas as suas amigas) s

eria capaz de arrebentar de

rir apenas ante tal idéia.



Agora sem espinhas, Arnie estava legal





de fato, parecia mais do

que isso. Contudo, nenhuma garota que freqüentasse a escola quando ele

ainda tinha o rosto em sua pior aparência aceitaria sair com ele

, creio eu.

De fato, não o viam como era agora, mas apenas a lembrança do que

Arnie havia sido. Com Leigh, no entanto, era diferente. Sendo uma aluna

transferida, não fazia idéia de como era horrível a aparência dele, em seus

três primeiros anos no Ginásio



de Libertyville. Bem, poderia ter uma

noção, se folheasse o

Libertonian

do ano anterior e visse a foto de Arnie no

clube de xadrez, mas, curiosamente, aquela mesma tendência republicana

certamente a faria passar por cima do detalhe. O

de agora é eterno





interrogue qualquer banqueiro republicano e ele lhe dirá que o mundo

deve ser governado exatamente assim.



Ginasianos e banqueiros republicanos... Em crian

ça, todos aceitamos

como fato consumado que tudo se modifica constantemente. Quando

adulto, o indivídu

o acredita seriamente que tudo irá mudar, pouco

importando o esforço para ser mantido o

status quo

(os próprios

banqueiros republicanos sabem disso





podem não gostar, mas sabem).

Apenas quando se é adolescente é que se fala o tempo todo em modificar,

mas

acreditando, no fundo do coração, que isso nunca acontece realmente.



Sa

í com minha gigantesca sacola de lanche na mão e caminhei em

diagonal pelo pátio de estacionamento, rumando para o edifício em que

ficavam as oficinas. É uma estrutura alongada, com lat

erais metálicas

corrugadas e pintadas de azul





em formato não muito diferente da

garagem de Will Darnell, porém muito mais limpa. Ali dentro ficam as

oficinas para trabalhos em madeira, as oficinas para mecânica de motores

e o departamento de artes gráfic

as. A área de fumar fica, em princípio, nos

fundos da edificação, mas nos dias de bom tempo, durante a folga para o

almoço, em geral se vê

alunos das oficinas alinhados em ambos os lados

do pr

édio, com suas botas de motoqueiros ou sapatos de biqueira,

reco

stados contra a parede, rumando e conversando com as namoradas.

Ou apalpando

-

as.



Nesse dia, n

ão havia uma alma no lado direito das oficinas, e isso

poderia ter

-

me alertado sobre algo anormal, mas não foi assim. Eu estava

concentrado em meus próprios e dive

rtidos pensamentos sobre Arnie e




Leigh, bem como na psicologia do Estudante Moderno do Ginásio

Americano.



A verdadeira

área de fumar





a área "designada" para fumar





fica

em um pequeno beco sem saída, atrás da oficina de mecânica de motores.

Além das ofic

inas, a cinqüenta ou sessenta metros de distância, está o

campo de futebol, dominado pelo grande painel elétrico da marcação de

pontos, com DURO NELES, TERRIERS, engalanando sua parte superior.



Havia um grupo de pessoas pouco al

ém da área de fumar, umas

vi

nte ou trinta, amontoadas em estreito círculo. Esse tipo de aglomeração

geralmente significa uma briga ou o que Arnie costuma chamar "puxa

-

empurra"





dois sujeitos, que não estão muito a fim de brigar, ficam

empurrando um ao outro, esmurrando

-

se nos ombros



com força, com isso

tentando proteger as respectivas reputações de machos.



Olhei para l

á, mas sem grande interesse. Não queria assistir a uma

briga, mas sim comer meu almoço e descobrir o que estava acontecendo

entre Arnie e Leigh Cabot. Se existisse algo



entre os dois, por menor que

fosse, isso talvez o livrasse daquela obsessão por Christine. Uma coisa era

certa: Leigh Cabot não tinha qualquer ferrugem na lataria.



Ent

ão, uma garota gritou e alguém mais bradou:







Ei, assim, não! Largue isso, cara!



Aquilo

n

ão soava muito normal. Mudei de rumo, para ver o que

havia. Abri caminho por entre o grupo apertado e vi Arnie no círculo, de

pé, com as mãos ligeiramente estiradas para diante, ao nível do peito.

Parecia assustado e pálido, mas não em pânico. Um pouco à

sua esquerda,

estava o seu saco de almoço, completamente achatado contra o solo. No

meio do saco, havia a impressão de uma sola de tênis. Em direção oposta a

Arnie, de

jeans

e camiseta justa sobre cada músculo e saliência do tórax,

estava Buddy Repperton.

Tinha um canivete de mola na mão direita e o

movia lentamente de trás para diante, à frente do rosto, como um mágico

fazendo passes místicos.



Buddy era alto e de ombros largos. Tinha cabelos longos e negros.

Usava

-

os amarrados atr

ás da cabeça, em rabo

-

de

-

c

avalo, com uma tira de

couro cru. As feições do rosto eram rudes e idiotas, com expressão

malévola. Sorria de leve. O que senti foi uma mistura covarde de puro

medo e angústia. Ele não parecia apenas idiota e malévolo, parecia louco.










Eu disse que ia pega

r você, cara





falou maciamente para Arnie.



Inclinou o canivete e o esgrimiu de leve no ar, na dire

ção de Arnie,

fazendo

-

o encolher

-

se um pouco. A lâmina retrátil tinha cabo de marfim,

com um pequeno botão cromado que o fazia saltar para fora ou recolher

-

s

e no punho. A lâmina parecia ter uns vinte centímetros de

comprimento





não era um canivete, em absoluto, mas uma maldita

baioneta.







Vamos, Buddy, marque ele!





gritou Dan Vandenberg

alegremente.



Senti a boca seca. Olhei para o garoto perto de mim, algum

calouro

careta, que eu n

ão conhecia. Ele parecia completamente hipnotizado, de

olhos arregalados.







Ei





falei. Como não olhasse para mim, cutuquei

-

o nas costelas

com o cotovelo.





Ei!

Ele saltou e olhou para mim aterrorizado.







Vá chamar o Sr. Casey. Está



almoçando na oficina de trabalhos

em madeira. Vá chamá

-

lo, agora mesmo!



Repperton olhou para mim, depois para Arnie.







Vamos, Cunningham





desafiou.





O que me diz, não está

querendo briga?







Largue o canivete primeiro, seu bosta





disse Arnie.



A voz era

perfeitamente calma. Bosta. Onde

é que eu ouvira aquilo

antes? Não fora dito por George LeBay? Sim, isso. Também ouvira a

palavra na boca de seu irmão.



Aparentemente, Repperton n

ão ligou muito. Enrubesceu e

aproximou

-

se mais de Arnie. Arnie girou, afastand

o

-

se. Pensei que

alguma coisa estava para acontecer ali, bem depressa





talvez daquelas

que exigem suturas e deixam cicatriz.







Vá chamar Casey,



!





falei para o calouro de jeito careta.



Ele se foi, mas pensei que, sem d

úvida, tudo já teria acontecido an

tes

do Sr. Casey chegar... a menos que eu pudesse retardar um pouco as

coisas.







Largue esse canivete, Repperton





falei. Seus olhos se voltaram

novamente para mim.










Você não sabe de nada





replicou.





O amigo de Cara de Cona.

Por que não vem tirar ele de



mim?







Você tem um canivete, mas ele não





falei.





Pelo meu manual,

isso faz de você uma fodida galinha covarde.



O vermelho de seu rosto aumentou. Agora, sua concentração se

rompera. Ele olhou para Arnie, depois para mim. Meu amigo dirigiu

-

me

um olhar de



pura gratidão





e moveu

-

se um pouco mais para perto de

Repperton. Não gostei daquilo.







Largue o canivete!





gritou alguém para Repperton.



Logo depois, alguém mais gritou também:

"Largue o

canivete!".

Então, todos começaram a cantar:

"Largue o

canivete,

l

argue o

canivete,

largue o

canivete!".



Repperton pareceu não gostar. Não se importava de ser o alvo das

atenções, mas aquele era o tipo errado de atenção. Seu olhar começou a

saltar nervosamente, primeiro para Arnie, depois para mim, em seguida

para os out

ros. Uma mecha de cabelo lhe caiu na testa e ele a jogou para

trás.



Quando tornou a olhar para mim, esbocei um movimento como se

fosse avançar para ele. O canivete girou agora em minha direção e Arnie

se moveu





moveu

-

se mais depressa do que eu poderia acr

editar. Foi

uma cutelada com a mão direita, em um golpe de caratê meio fajuto, mas

eficiente. Atingiu com força o pulso de Repperton e arrancou

-

lhe o

canivete da mão, fazendo

-

o cair com um som metálico no chão sujo.

Repperton abaixou

-

se, tentando recuperá

-

lo. Arnie cronometrou o

movimento com mortal precisão e, quando a mão de Repperton chegou ao

asfalto, pisou em cima dela. Com toda a força. Repperton gritou.



Don Vandenberg entrou rapidamente em cena. Com um tranco

brutal, atirou Arnie ao chão. Mal pensand

o no que fazia, entrei no círculo

e chutei o traseiro de Vandenberg com toda a força que tinha





levantei o

pé, em vez de arrastá

-

lo; chutei

-

o como chutaria uma bola.



Vandenberg, um cara alto e magro, que naquela época teria uns

dezenove ou vinte anos, com

eçou a gritar e saltitar, segurando os

fundilhos. Esqueceu toda sua idéia de socorrer Buddy, deixou de ser um

fator determinante na situação. Acho espantoso eu não ter aleijado




Vanderberg com aquele chute. Jamais chutei alguém ou alguma coisa com

tanta for

ça, e meus amigos, fiquem certos de que me senti ótimo.



De repente, um braço passou em torno de meu pescoço e havia uma

mão entre minhas pernas. Percebi o que ia acontecer, apenas um segundo

tarde demais para poder evitá

-

lo de todo. Meus colhões foram aper

tados

com firmeza e a dor espraiou

-

se, em um berro de pura agonia, subindo

das virilhas para o estômago, depois descendo até as pernas, tornando

-

as

tão frouxas e vacilantes, que quando o braço largou meu pescoço eu

simplesmente arriei como um trapo no piso



cimentado da área de fumar.







Gostou disso, cara de pica?





perguntou

-

me um sujeito

atarracado e de dentes estragados. Ele usava um daqueles pequenos e

delicados óculos com aros de arame, óculos que pareciam



absurdos em seu rosto grande e pesadão. Era "Pe

netra" Welch, outro

amigo de Buddy



De súbito o círculo de espectadores começou a diluir

-

se e ouvi uma

voz de homem gritando:







Afastem

-

se! Afastem

-

se,

imediatamente!

Vamos, rapazes, andando!

Andando, droga, estou mandando!



Era o Sr. Casey. Finalmente, Sr.

Casey.



Buddy Repperton recolheu seu canivete de mola do chão. Fez a

lâmina retrair

-

se e, com um gesto rápido, guardou

-

o no bolso traseiro da

calça. Tinha a mão arranhada e sangrando, com todos os sinais de que ia

inchar. Filho da puta miserável, pensei. De

sejei que aquela mão inchasse

como uma das luvas usadas pelo Pato Donald nas histórias em

quadrinhos.



"Penetra" Welch afastou

-

se de mim, olhou na direção em que soava

a voz do Sr. Casey e tocou delicadamente o canto da boca com o polegar.







Fica pra mais t

arde, cara de pica





disse.



Don Vandenberg agora dançava mais devagar, mas ainda esfregava

a parte afetada. Lágrimas de dor escorriam

-

lhe pelo rosto. Então, Arnie

estava ao meu lado, passando um braço ao redor de meu corpo, ajudando

-

me a levantar. Sua cami

sa estava um bocado suja, devido à queda, quando

Vandenberg o derrubara. Vi tocos de cigarros amassados contra os joelhos

de sua calça

jeans.










Você está bem, Dennis? O que foi que ele fez corn você?







Deu um apertãozinho em meu saco. Já estou melhor.



Pelo



menos, assim esperava. Se você é homem e já lhe deram um

bom apertão nos colhões alguma vez (e que homem não passou por isso?),

sabe o que estou dizendo. Se for mulher, não sabe





não pode saber. A

agonia inicial é apenas o começo; ela desaparece, substit

uída por uma

dorida e latejante sensação de pressão, que se enovela na boca do

estômago. Uma sensação que diz:

Ei, você! É bom estar aqui, rondando a boca

de seu estômago e fazendo com que você tenha vontade de vomitar o almoço e

borrar as calças ao mesmo

tempo! Acho que vou ficar por aqui algum tempo, certo?

Que tal uma meia hora ou coisa assim? Grande!

Levar um apertão nos colhões

não é um dos mais excitantes momentos da vida.



O Sr. Casey abriu caminho entre os espectadores que se

dispersavam e percebeu a



situação. Não era um sujeito grande, como o

treinador Puffer, nem mesmo parecia forte. Era de altura e idade

medianas, e começava a ficar careca. Os óculos enormes, de armação de

chifre, davam um ar conservador em seu rosto. Gostava de camisas

brancas e s

imples





sem gravata





e usava uma delas agora. Não era um

sujeito grande, mas impunha respeito. Ninguém o fazia de trouxa, porque

ele não tinha medo dos rapazes, aquele medo profundo que tantos

professores sentem. E os rapazes sabiam disso. Buddy e Don sa

biam.

"Penetra" também. Isso se refletia na maneira como baixaram os olhos e

moveram os pés inquietamente.







Dêem o fora





ordenou rispidamente o Sr. Casey, aos poucos

espectadores restantes. Eles começaram a afastar

-

se. "Penetra" Welch

decidiu dar o golpe



e acompanhá

-

los.





Você não, Peter





disse o Sr.

Casey.







Ora, Sr. Casey, eu não fiz nada





disse "Penetra".







Nem eu





emendou Don.





Por que está sempre acusando a

gente? O Sr. Casey aproximou

-

se de onde eu estava, ainda amparado por

Arnie.







Tudo bem c

om você, Dennis?



Finalmente eu estava conseguindo superar a crise





o que não

aconteceria, se uma de minhas coxas não tivessem bloqueado

parcialmente a mão de "Penetra". Assenti.






O Sr. Casey caminhou para onde Buddy Repperton, "Penetra" Welch

e Don Vandenb

erg se enfileiravam, zangados e remexendo os pés. Don

não estivera brincando, falara por todos eles. De fato, sentiam

-

se acusados.







Muito interessante, não?





disse finalmente o Sr. Casey.





Três

contra dois. É assim que costuma agir, Buddy? A desvantagem



não parece

importar

-

lhe muito.



Buddy ergueu o rosto, atirou a Casey um olhar maligno e enfurecido,

depois tornou a baixá

-

lo.







Foram eles que começaram. Esses dois.







Não é verdade...





começou Arnie.







Cale a boca, cara de cona





disse Buddy.



Ia acrescen

tar algo, mas antes que pudesse o Sr. Casey o agarrou e

atirou contra a parede dos fundos da oficina. Ali havia um pequeno aviso:

FUMAR SOMENTE AQUI. O Sr. Casey começou a bater Buddy

Repperton contra aquele aviso e, a cada vez que o sacudia, o aviso

balan

çava, como uma dramática marcação. Sacudia Repperton da maneira

como eu ou vocês sacudiríamos uma grande boneca de trapo. Acho que

tinha uma musculatura escondida em algum lugar.







Quer fechar sua bocarra?





disse ele, tornando a bater Buddy

contra o aviso

.





Vai

calar

esse boca ou vou ter de

limpá

-

la!

Porque não

vou ouvir coisas assim, ditas por

você,

Buddy!



Por fim, ele largou a camisa de Repperton, agora fora da calça,

mostrando seu estômago branco e sem cor. O Sr. Casey olhou para Arnie.







O que estava

dizendo?





perguntou.







Passei pela área de fumar a caminho das arquibancadas, onde ia

comer meu almoço





disse Arnie.





Repperton estava aqui, fumando

com seus amigos. Chegou para mim, arrancou o saco do almoço da minha

mão e o pisoteou. Esmagou

-

o.





Ele

pareceu prestes a dizer algo mais,

vacilou e desistiu.





Foi isso que começou a briga.



Entretanto, eu não ia deixar aquilo assim. Não sou dedo

-

duro nem

falador em circunstâncias normais. Repperton, contudo, aparentemente

decidira ser necessário mais do que



uma boa surra para vingar

-

se por ter

sido expulso da Darnell's. Poderia ter feito um buraco nos intestinos de

Arnie, talvez até o matasse.










Sr. Casey





falei.



Ele olhou para mim. Mais atrás, os olhos verdes de Buddy brilharam

malevolamente em minha direç

ão





era um aviso.

Fique de boca fechada,

isto é entre nós.

Até um ano antes, uma distorcida noção de orgulho

poderia forçar

-

me a fazer seu jogo e não ir em frente. Agora era diferente.







O que é, Dennis?







Ele está atrás de Arnie desde o verão. Tem um can

ivete e parecia

decidido a usá

-

lo.



Arnie olhava para mim, os olhos cinzentos opacos e herméticos.

Recordei quando ele chamara Repperton de bosta





a palavra de

LeBay





e senti um arrepio nas costas.







Seu fodido mentiroso!





gritou Repperton, dramaticament

e.





Não tenho canivete nenhum! Casey olhou para ele em silêncio.

Vandenberg e Welch agora pareciam muito pouco à vontade







assustados. Sua possível punição por aquele pequeno tumulto

progredira para além dos castigos





a que estavam acostumados





e da

sus

pensão





que já haviam experimentado





beirando os limites

extremos da expulsão.



Bastava eu dizer mais uma palavra. Pensei a respeito. Quase não

falei. No entanto, Arnie estava envolvido e ele era meu amigo. Além do

mais, eu não apenas

achava que

ele podia



usar aquele canivete







eu

sabia.

Falei.







É um canivete de mola.



Agora os olhos de Repperton não apenas brilharam, eles fulguraram,

prometendo o inferno, a danação e um longo período de inatividade,

fazendo tração para endireitar o corpo machucado.







É me

ntira dele, Sr. Casey





disse em voz rouca.





Ele está

mentindo, juro por Deus. O Sr. Casey nada disse. Virou

-

se lentamente

para Arnie.







Cunningham





perguntou



, Repperton puxou um canivete

para você?



A princípio, parecia que ele não ia responder. Depois

, em uma voz

tão baixa que mais parecia um suspiro, soltou:










Puxou.



O olhar cáustico de Repperton agora foi para nós dois.



Casey se virou para "Penetra" Welch e Don Vandenberg. Percebi

imediatamente uma mudança em seu método de resolver a situação.

Começa

ra a mover

-

se lenta e cautelosamente, como se testasse as próprias

pisadas com cuidado, antes de dar mais um passo. O Sr. Casey já havia

sentido as conseqüências.







Havia um canivete na briga?





perguntou a eles.



"Penetra" e Vandenberg olharam para os pés

e não responderam.

Seu gesto já era uma resposta suficiente.







Vire seus bolsos pelo avesso, Buddy





disse o Sr. Casey.







Uma merda que eu vou fazer isso!





exclamou Buddy, em voz

esganiçada.





Não pode me obrigar!







Se está querendo dizer que não tenho au

toridade, enganou

-

se





disse o Sr. Casey.





Se está querendo dizer que não posso virar seus

bolsos pelo avesso eu mesmo, se quiser, também enganou

-

se. Mas...







Muito bem, tente, tente!





gritou Buddy para ele.





Jogo você

através dessa parede, seu carequin

ha fodido!



Meu estômago contorcia

-

se, impotente. Eu odiava coisas como

aquela, horríveis cenas de confrontação





e nunca fizera parte de

nenhuma pior.



O Sr. Casey, no entanto, tinha a situação sob controle e não se

desviava de seu curso.







Mas, não farei i

sso





concluiu ele.





Você mesmo é que vai virar

seus bolsos pelo avesso.







Uma merda, se vou obedecer!





disse Buddy.



Estava de pé contra a parede dos fundos da oficina, de modo que o

volume no bolso da calça não aparecia. As fraldas da camisa pendiam em

duas abas amarrotadas sobre a frente do

jeans.

Seus olhos se moviam para

todos os lados, como os de um animal acuado.



O Sr. Casey se virou para "Penetra" e Don Vandenberg.










Vocês dois vão para o gabinete e fiquem lá até eu chegar





disse.





Não se atrevam



a ir para outro lugar, já estão com problemas de

sobra, para acrescentar mais um.



Os dois começaram a afastar

-

se lentamente, muito juntos, como por

medida de proteção. "Penetra" arriscou um olhar para trás. No prédio

principal soou o aviso de chamada para



as aulas. Todos começaram a

caminhar para lá, alguns deles envolvendo

-

nos em olhares curiosos.

Tínhamos perdido a hora do almoço, mas pouco importava. Eu não sentia

mais fome.



O Sr. Casey tornou a concentrar sua atenção em Buddy.







Você está dentro do col

égio agora





ele disse





e deve agradecer

a Deus por isso, porque se você está realmente com um canivete e se você

o sacou, isso é agressão à mão armada. Mandam você para a prisão por

causa disso.







Prove, prove que estou com um canivete





Buddy gritou.



Su

as bochechas chamejavam, a respiração saía em pequenos e

rápidos arquejos nervosos.







Se não virar seus bolsos para fora imediatamente, preencherei

uma ficha de dispensa para você. Depois vou chamar os tiras e, no minuto

em que puser os pés fora do portão

principal, eles o agarrarão. Percebe em

que enrascada se meteu?





Olhou severamente para Buddy.





Procuramos manter o nome desta casa





continuou



, mas se me forçar a

preencher uma dispensa, seu traseiro pertencerá a eles, Buddy. Se não

tiver um canivete

em seu poder, é claro que tudo estará certo com você,

mas se tiver e eles o encontrarem...



Houve um momento de silêncio. Nós quatro estávamos imóveis.

Achei que e

\

e não cederia, preferindo aceitar a dispensa e tentar enterrar

o canivete, rapidamente, em al

gum lugar. Então, deve ter percebido que

os tiras o procurariam e terminariam encontrando, porque o puxou do

bolso traseiro e o jogou no piso cimentado. O canivete bateu sobre o botão

de pressão. A lâmina soltou e cintilou malignamente ao sol da tarde: vin

te

centímetros de aço cromado!



Arnie olhou para ela e passou o dorso da mão sobre a boca.







Vá para o gabinete, Buddy





disse tranqüilamente o Sr. Casey



,

e espere até eu chegar lá.










O gabinete que se foda!





gritou Buddy. Sua voz era aguda e

histérica d

e raiva. O cabelo tornara a cair sobre a testa e ele o jogou para

trás.





O que vou fazer é dar o fora desse maldito chiqueiro!







Perfeitamente, tudo bem





disse o Sr. Casey.



A inflexão e excitamento de sua voz seriam os mesmos, se Buddy

lhe tivesse oferec

ido uma xícara de café. Compreendi, então, que Buddy

estava liquidado no Ginásio de Libertyville. Nada de suspensão ou três

dias de férias: seus pais receberiam pelo correio o rijo formulário azul de

expulsão, explicando por que ele fora expulso e informan

do sobre seus

direitos e opções legais quanto ao assunto.



Buddy olhou para mim e Arnie. Então sorriu.







Vocês me pagam





disse.





Ainda vamos ajustar contas. Vão

desejar nunca terem nascido, seus merdas.



Chutou o canivete e ele deslizou, girando e cintilan

do. Ele parou a

alguma distância e Buddy afastou

-

se, as travas nos tacões de suas botas de

motoqueiro dando estalidos e rangendo. O Sr. Casey se voltou para nós.

Tinha a expressão triste e fatigada.







Sinto muito





disse.







Está tudo bem





replicou Arnie.







Vocês querem cartões de dispensa? Posso preenchê

-

los para os

dois, se acharem melhor ficar em casa o resto do dia.



Olhei para Arnie, que sacudia a camisa para limpá

-

la. Ele abanou a

cabeça.







Não é preciso, está tudo bem





falei.







Certo. Preencherei ent

ão os cartões de atraso.



Fomos à sala do Sr. Casey e ele preencheu cartões de atrasados para

nossa aula seguinte, uma das que, por acaso, teríamos juntos





Física

Avançada. Quando entramos no laboratório de Física, um bocado de

gente olhou curiosamente par

a nós e ouvimos alguns cochichos.



A ficha de ausência da tarde circulou no final do sexto período.

Observei

-

a e vi os nomes de Repperton, Vandenberg e Welch, cada um

deles com um (S) após o nome. Pensei que eu e Arnie seríamos chamados




ao gabinete no fim d

as aulas, para contarmos o sucedido à Sra. Lothrop, a

chefe de disciplina. Não fomos.



Procurei Arnie depois das aulas, pensando que iríamos juntos para

casa em meu carro, a fim de comentarmos o caso, mas também me

enganei quanto a isso. Ele já se mandara p

ara a Garagem de Darnell, a fim

de trabalhar em Christine.





C

HRISTINE

O

UTRA

V

EZ NA

R

UA



Tenho um Ford Mustang 66, vermelho

-

cereja,



Com uma potência de 380 cavalos,



Compreenda, ele é potente demais



Para rastejar em rotas interestaduais.







Chuck Berry





De fat

o, só tive uma chance de falar com Arnie, depois da partida de

futebol do sábado seguinte. Também foi aquela a primeira vez que

Christine saiu para a rua, desde o dia em que ele a comprara.



O time foi para Hidden Hills, a uns vinte e cinco quilômetros de

d

istância, na viagem mais silenciosa que já vi, em nosso ônibus de

atividades escolares. Era como se rumássemos para a guilhotina e não

para uma partida de futebol. O próprio fato de a contagem deles (1

-

2) ser

ligeiramente melhor do que a nossa, era um fato

r que não levantava muito

o moral. Puffer, o treinador, ocupava o banco atrás do motorista, pálido e

silencioso, como se estivesse de ressaca.



Em geral, a viagem para uma partida em outro local era uma

combinação de caravana e circo. Um segundo ônibus, lot

ado com as

chefes de torcidas, a banda e todos os estudantes do Ginásio de

Libertyville que se alistassem como "torcedores" ("torcedores", meu Deus

do céu! quem acreditaria nisso, se não houvéssemos todos cursado o

ginásio?) rodava atrás do ônibus do time.



Após os dois ônibus, havia uma

fila de quinze ou vinte carros, em sua maioria repletos de adolescentes,

quase todos os veículos com DURO NELES, TERRIERS colado nos pára

-




choques, buzinando, de faróis acesos e todos aqueles detalhes que, sem

dúvida, vocês a

inda recordam de seus tempos escolares.



Naquela viagem, contudo, havia apenas o ônibus das chefes

-

de

-

torcida/banda (assim mesmo, nem inteiramente lotado quando, em um

ano vencedor, se você não se alistasse até terça

-

feira, não tinha chance de

ir) e três ou



quatro carros atrás dele. Os amigos dos bons tempos tinham

se mandado. Eu ia sentado no ônibus do time, perto de Lenny Barongg,

perguntando

-

me sombriamente se não me arrancariam a cueca naquela

tarde, e ignorando por completo que um dos poucos carros atrá

s de nós

era Christine.



Só a vi quando descemos do ônibus, no pátio de estacionamento do

Ginásio de Hidden Hills. A banda deles já estava no campo e ouvíamos

claramente a batida do bombo, amplificada de modo estranho, sob o céu

anuviado e sombrio. Aquele s

eria o primeiro sábado realmente bom para

futebol





frio, de céu fechado e outonal.



Já foi surpresa suficiente ver Christine estacionada ao lado do

ônibus da banda, mas quando Arnie saiu por um lado e Leigh Cabot pelo

outro, fiquei pasmo





e também um pouq

uinho enciumado. Ela usava

calças compridas justas de lã marrom e um pulôver branco de malha, os

cabelos alourados derramando

-

se maravilhosamente sobre os ombros.







Arnie!





chamei.





Ei, cara!







Oi, Dennis





respondeu ele, um pouco acanhado.



Eu percebia q

ue alguns jogadores saindo do ônibus também

estavam surpresos: ali estava Cunningham Cara de Pizza, com a

fascinante transferida de Massachusetts. Como, em nome de Deus,

aquilo

acontecera?







Como vai?







Bem





disse ele.





Conhece Leigh Cabot?







Sim, da sal

a de aulas





falei.





Oi, Leigh.







Oi, Dennis. Como é, vão vencer hoje? Baixei a voz para um

sussurro.







Vai ser um jogo combinado. Pode apostar o traseiro.



Arnie enrubesceu um pouco ao ouvir

-

me, mas Leigh levou a mão à

boca e deu uma risadinha.










Vamos fa

zer o possível, mas não sei dizer





continuei.







Torceremos por sua vitória





disse Arnie.





Até posso ver nos

jornais de amanhã: Transportado pelo Ar, Guilder Quebra o Recorde

de

Touchdown

da Associação.







Guilder Levado para o Hospital com Fratura de Crâ

nio, seria o

mais provável





repliquei.





Quantos rapazes vieram? Dez? Quinze?







Vai sobrar mais lugar nas arquibancadas para os que vieram





disse Leigh.



Ela tomou o braço de Arnie





acho que o surpreendendo e

agradando. Eu já gostava dela. Ela podia ser

uma garota sexualmente

provocante ou repugnante





em minha opinião, um bando de garotas

realmente bonitas é uma ou outra coisa



, mas ela não era nada disso.







Como vai o rodante?





perguntei, aproximando

-

me do carro.







Nada mau.



Arnie me seguiu, tentando

não rir de forma tão escandalosa. O

trabalho progredira e já havia muita coisa feita no Fury, de maneira que

não parecia mais tão absurdo e irremediável. A outra metade da grade

antiga e enferrujada do radiador fora substituída e desaparecera por

completo

o ninho de rachaduras no pára

-

brisa.







Você trocou o pára

-

brisa





comentei. Arnie assentiu.







E o capô.



O capô estava límpido, novo em folha, formando um chocante

contraste com as laterais pontilhadas de ferrugem. Era um vermelho vivo

de carro de bombeiros

. Aparência brilhante. Arnie o tocou

possessivamente e o toque se transformou em carícia.







Hum

-

hum. Eu mesmo o coloquei.



Algo daquilo penetrou em mim. Ele havia feito

tudo

sozinho, não?







Você disse que ia transformá

-

lo em peça de exposição





falei.





Ach

o que estou começando a acreditar.



Dei a volta, até o lado do motorista. A forração lateral das portas e

do piso continuava suja e surrada, mas agora o estofamento do banco

dianteiro fora substituído, bem como o do traseiro.










Vai ficar muito bonito





diss

e Leigh, mas havia uma nota falsa

em sua voz.



Seu tom não soara naturalmente brilhante e efervescente, como

quando estávamos falando sobre o jogo





e isso me fez observá

-

la. Um

olhar apenas foi suficiente. Ela não gostava de Christine. Adivinhei de

maneira



tão completa e absoluta, como se houvesse captado uma das

ondas cerebrais de Leigh no ar. Senti que faria o possível para gostar do

carro, porque gostava de Arnie. No entanto... ela não iria gostar

realmente

de Christine.







Quer dizer que já legalizou o c

arro para rodar na rua





falei.







Bem...





Arnie pareceu pouco à vontade.





Não consegui ainda.

A legalização completa.







O que quer dizer?







A buzina não funciona e, às vezes, as lanternas traseiras apagam,

quando piso no freio. Deve existir um curto em a

lgum lugar, mas até

agora ainda não descobri onde.



Olhei para o pára

-

brisa novo. Havia um adesivo recente de inspeção

sobre ele. Arnie seguiu meu olhar e conseguiu ficar constrangido e algo

agressivo ao mesmo tempo.







Will me arranjou o adesivo





explicou.







Ele sabe que o carro

está noventa por cento legal.

Além disso, pensei, você conseguiu sair com sua

garota, certo?







Não é perigoso, é?





perguntou Leigh.



A pergunta foi dirigida a nós dois. Ela franzira o cenho

ligeiramente





creio que captara a súbita

corrente fria entre Arnie e eu.







Não





respondi.





Creio que não. Quando estiver com Arnie e

ele na direção, estará em companhia do próprio anjo da guarda.



Meu comentário rompeu a estranha tensão que se formara. Do

campo chegou até nós um esganiçado disso

nante de metais, seguido pela

voz do instrutor da banda, perfeitamente nítida sob o céu carregado:







De novo, por favor! Isto é Rodgers e Hammerstein, não rock and ro

-

ool!

De novo, por favor!

Nós três nos entreolhamos. Eu e Arnie começamos a rir

e, após um



momento, Leigh riu também.






Ao fitá

-

la, tornei a sentir aquele ciúme momentâneo. Eu nada mais

queria senão o melhor para meu amigo Arnie, porém ela era realmente

alguma coisa





dezessete anos, caminhando para os dezoito, fascinante,

perfeita, saudável, viv

a para tudo em seu mundo. Roseanne era bonita à

sua maneira, porém Leigh a fazia parecer um bicho

-

preguiça tirando um

cochilo.



Foi então que comecei a querê

-

la? Que comecei a querer a garota de

meu melhor amigo? Sim, suponho que tenha sido. No entanto, eu

lhe juro,

nunca a teria assediado, se as coisas tivessem acontecido de modo

diferente. Apenas, eu não imaginava que pudessem ser diferentes. Talvez

fosse tão

-

somente uma questão de sentimentos.







É melhor irmos andando, Arnie, ou não encontraremos um bom

l

ugar nas arquibancadas dos visitantes





disse Leigh, com uma entonação

de grande dama.



Ele sorriu. Ela ainda lhe segurava o braço de leve, deixando

-

o

bastante desajeitado com aquilo. Por que não? Se fosse comigo, se tivesse

minha primeira experiência com u

ma garota daquelas, alguém tão bonita

como Leigh, já estaria três quartos apaixonado por ela. Desejei a ele o

melhor com ela. Gostaria que vocês acreditassem nisso, mesmo que não

acreditem em mais nada do que vou contar, daqui por diante. Se alguém

merecia



um pouco de felicidade, era Arnie.



O resto do time tinha ido para os vestiários dos visitantes, nos

fundos da ala do ginásio da escola, e agora Puffer mostrava a cabeça.







Será que pode nos favorecer com a sua presença, Sr. Guilder?





gritou ele.





Sei qu

e é pedir muito, mas espero que me perdoe, se tiver

algo mais importante a fazer. Se não tiver, poderia trazer seu rabo até este

vestiário?



Murmurei para Arnie e Leigh:







Isto é Rodgers e Hammerstein, não

rock and ro

-

ool





e corri na

direção do prédio. Cami

nhei para os vestiários





Puffer voltara para

dentro





e Arnie e Leigh afastaram

-

se para



as arquibancadas. A meio caminho para as portas, parei e voltei até

Christine. Aproximei

-

me dela em um círculo, ainda persistia aquele

absurdo preconceito contra camin

har à frente do carro.






Na traseira, vi uma placa de concessionário da Pensilvânia, mantida

no lugar por uma mola. Virei

-

a do outro lado e vi uma fita adesiva fosca,

com os dizeres: ESTA PLACA É DE PROPRIEDADE DA GARAGEM

DARNELL, LIBERTYVILLE, PA.



Deixei a

placa cair de volta e levantei

-

me, de cenho franzido. Então,

Darnell dera a Arnie um adesivo de inspeção, quando o carro ainda estava

longe de ter condições para trafegar; ele lhe emprestara uma placa de

concessionário, a fim de poder usar o carro e trazer



Leigh ao jogo. Além

do mais, deixara de ser "Darnell" para Arnie, que pouco antes o chamara

de "Will". Interessante, mas não muito confortador.



Perguntei

-

me se Arnie era idiota o bastante para pensar que os Will

Darnell do mundo algum dia prestavam favore

s por pura bondade.

Esperei que não fosse, mas não tinha certeza. Eu não tinha mais muita

certeza sobre Arnie. Ele mudara demais nas últimas semanas.



Nós pintamos o diabo no campo e conseguimos ganhar o jogo





como se viu mais tarde, foi um dos únicos dois



que ganhamos em toda a

temporada... embora eu não estivesse mais no time, quando ela terminou.



Não tínhamos direito algum de vencer: fomos para o campo já nos

sentindo derrotados e perdemos o lançamento. Os Hilmen Montanheses

(nome tolo para uma equipe, m

as o que há de tão inteligente em ser

conhecido como os

Terriers





cães de toca





se descemos a isto?)

avançaram quarenta metros em duas primeiras jogadas, penetrando em

nossa linha de defesa como queijo em goela de pato. Então, em sua

terceira jogada segu

ida, o zagueiro deles deixou a bola escapar. Gary

Tardiff a agarrou e rastejou sessenta metros para o escore, com um

enorme sorriso aberto no rosto.



Os Hilmen e seu treinador perderam a pose, protestando que a bola

estava impedida na linha do centro, mas o

s árbitros discordaram e

ganhamos por 6

-

0. De meu lugar no banco, eu podia olhar até as

arquibancadas dos visitantes e via que os poucos torcedores do

Libertyville estavam ficando alucinados. Acho que tinham todo o direito,

afinal era a primeira vez que le

vávamos a melhor em uma partida, em

toda a temporada. Arnie e Leigh sacudiam bandeirolas dos Terriers.

Acenei para eles. Leigh me viu, acenou de volta e depois cutucou Arnie.

Ele acenou também. Pareciam estar ficando muito íntimos, lá em cima, o

que me fez



sorrir.






Quanto ao jogo, não perdemos o entusiasmo, após aquela contagem

obtida na pura sorte. Havíamos conseguido para nós essa coisa mística, o

ímpeto





talvez pela última vez do ano. Não quebrei o recorde de

touchdown

da Associação, conforme Arnie previ

ra, mas fiz pontos três

vezes, uma delas em uma corrida de noventa metros, a mais longa que já

fizera. Chegado o meio tempo, a contagem era de 17

-

0 e o treinador se

tornara um novo homem. Ele entrevia uma grande reviravolta à nossa

frente, a maior arrancad

a na história da Associação. Claro está que era um

sonho louco, como se viu depois, porém ele tinha motivos para ficar

eufórico naquele dia, e gostei que assim fosse, como gostei do

aprofundamento da amizade de Arnie e Leigh.



O segundo tempo não foi tão bo

m; nossa defesa reassumiu a postura

cabisbaixa a maior parte do tempo, a mesma postura de nossos três

primeiros jogos, porém a contagem continuou bem a nosso favor.

Vencemos por 27

-

18.



O último quarto de hora ia pelo meio quando o treinador me

mandou sair

e entrou Brian McNally, que me substituiria no ano

seguinte





em realidade, ainda mais cedo do que isso, como se viu depois.

Tomei uma ducha, troquei de roupa e saí, no momento em que soava o

aviso para os dois últimos minutos de jogo.



O pátio de estaciona

mento estava repleto de carros, mas vazio de

gente. Uma gritaria selvagem vinha do campo, quando a torcida dos

Hilmen insistia com seu time para que fizesse o impossível, naqueles dois

últimos minutos da partida. Da distância em que me achava, tudo me

pare

cia tão sem importância, como indubitavelmente o era.



Caminhei em direção a Christine.



Lá estava ela, com sua lataria lateral pontilhada de ferrugem, o capô

novo e a traseira parecendo ter mil quilômetros de comprimento. Um

dinossauro dos soturnos dias do

bop

dos anos 50, quando todos os

milionários do petróleo eram do Texas e o dólar ianque tripudiava do iene

japonês, em vez de ser o contrário. De volta aos tempos em que Carl

Perkins cantava sobre calças três quartos cor

-

de

-

rosa e Johnny Horton

cantava sob

re dançar

-

se a noite inteira no piso de madeira dura de uma

espelunca, e o maior ídolo dos adolescentes no país era Edd "Kookie"

Byrnes.






Toquei em Christine. Tentei acariciá

-

la, como Arnie fizera. Queria

gostar daquele carro por causa de Arnie, como Leigh

havia feito.

Certamente, se alguém fosse capaz de forçar

-

se a gostar dele, esse alguém

era eu. Leigh conhecia Arnie a apenas um mês. Eu o conhecera a vida

inteira.



Deslizei a mão pela superfície enferrujada, pensando em George

LeBay, Verônica e Rita LeBay.



Em algum ponto de tais pensamentos, a

mão que supostamente devia acariciar fechou

-

se em um punho e esmurrei

subitamente o flanco de Christine, com quanta força pude, com violência

bastante para me machucar a mão e me fazer dar uma risadinha defensiva,

per

guntando

-

me que diabo eu pensava estar fazendo.



Ouvi o som de flocos de ferrugem desprendendo

-

se da lataria.



O som de um bombo, vindo do campo de futebol, como gigantesca

pulsação cardíaca.



O som de minhas próprias pulsações cardíacas.



Experimentei a porta



da frente.



Estava trancada.



Passei a língua pelos lábios e senti que estava assustado.



Era quase como se





aquilo era engraçado, era hilariante



, era

quase como se o carro não gostasse de mim, como se desconfiasse que eu

queria intrometer

-

me entre ele e

Arnie, como se soubesse que eu não

queria caminhar diante dele porque...



Tornei a rir, mas então recordei meu sonho e fiquei sério. Aquilo era

demais, para deixar

-

me sossegado. Não era Chubby McCarthy clamando

pelo rádio, claro, não em Hidden Hills, mas o

final daquilo provocou uma

sensação desagradável e fantástica de

déjà vu





o som dos gritos da

torcida, o som do contato de corpos acolchoados, o vento sibilando por

entre as árvores que pareciam recortadas, sob um céu encoberto.



O motor dispararia. O carr

o saltaria para diante, recuando,

avançando, recuando. E então os pneus chiariam, quando rugissem

diretamente para mim...



Afugentei o pensamento. Era tempo de parar de entulhar

-

me com

toda aquela merda idiota. Era tempo





mais do que tempo





de

controlar m

inha imaginação. Aquilo ali era um carro





não uma "ela" mas




um "ele", não realmente Christine, mas apenas um Plymouth Fury 1958,

que saíra de uma linha de montagem em Detroit, juntamente com mais

uns quatrocentos mil outros.



Isso funcionou... pelo menos t

emporariamente. Só para demonstrar

que não estava nem um pouco amedrontado, ajoelhei

-

me e espiei debaixo

do carro. O que vi lá era ainda mais louco do que a estranha maneira pela

qual o Plymouth estava sendo reconstruído no alto. Havia três

amortecedores n

ovos mas o quarto era uma ruína escura e suja de graxa,

parecendo ter estado ali desde sempre. O cano de descarga era tão novo

que ainda reluzia como prata, porém o silencioso tinha uma aparência de

meia

-

idade, pelo menos, enquanto que a junção do cano de

descarga se

mostrava em péssimo estado. Ao olhar para este último, pensei nas

emanações que poderiam passar para dentro do carro e isso me fez

novamente recordar Verônica LeBay. Porque emanações do cano de

descarga podem matar.



Elas...







O que está fazendo

, Dennis?



Creio que estava mais inquieto do que imaginava, porque me

levantei como uma flecha, o coração disparando no peito. Era Arnie. Ele se

mostrava frio e irritado.



Porque eu dava uma espiada em seu carro? Por que isso deveria deixá

-

lo tão

fora de si?



Uma boa pergunta. No entanto, era evidente que o deixara

furioso.







Examinava seu potente motor





falei, tentando aparentar

naturalidade.





Onde está Leigh?







Foi ao toalete





respondeu ele, encerrando este ponto. Os olhos

cinzentos permaneciam fixos em m

eu rosto.





Dennis, você é meu melhor

amigo, o melhor que já tive. Acho que me poupou uma viagem ao

hospital outro dia, quando Repperton puxou aquela faca para mim, mas

não gosto do que anda fazendo pelas minhas costas, Dennis. Você nunca

foi assim.



Houve

um tremendo rugido da torcida no campo





os Hillmen

tinham acabado de fazer o tento final do jogo, com menos de trinta

segundos de tempo restando.







Não sei de que diabo está falando, Arnie





respondi.






No entanto, sentia

-

me culpado. Culpado pela maneira co

mo me

sentira ao ser apresentado a Leigh, avaliando

-

a, desejando

-

a um

pouquinho





desejando a garota que, tão evidentemente, Arnie queria

para si. Contudo... fazer algo por trás de suas costas? Era isso que eu

estivera fazendo?



Suponho que ele poderia ter

encarado assim a questão. Eu estava

sabendo que seu irracional





interesse, obsessão, seja lá o que for



, sua

postura

irracional sobre o carro era o aposento trancado na casa de nossa

amizade, o lugar em que eu não poderia penetrar sem atrair todo tipo de



problemas. E, se ele não me surpreendera tentando arrombar a porta, pelo

menos me apanhara espiando pelo buraco da fechadura.







Acho que sabe

muito bem

do que estou falando





respondeu ele,

e não estava apenas irritado, mas enfurecido, conforme pude const

atar,

com certa apreensão.





Você, meu pai, minha mãe, estão todos me

espionando "para o meu bem", não é assim que se diz? Eles o mandaram à

Garagem de Darnell para bisbilhotar, não foi?







Escute aqui, Arnie, espere um pouco...







Cara, não pensou que eu ac

abaria descobrindo? Não disse nada

quando soube porque... bem, porque somos amigos. Só que não gosto

disso, Dennis. Tem que haver um limite e acho que o estou marcando. Por

que não deixa meu carro em paz e pára de se meter onde não foi chamado?







Em primei

ro lugar





respondi





não foram seu pai e sua mãe.

Michael me chamou de lado e pediu que desse uma espiada no que você

já tinha feito com o carro. Concordei, porque também estava curioso. Seu

pai sempre foi muito legal comigo. O que mais poderia responder

a ele?







Devia ter respondido "não".







Você não entende, Arnie. Ele está do seu lado. Sua mãe ainda

espera que tudo isto dê em nada, foi o que percebi, mas Michael tem

realmente esperança de que você ponha o carro rodando. Ele me disse isso.







Claro, era a



melhor maneira de convencer você.





Arnie estava

quase rosnando.





Na verdade, ele está interessado é em ter certeza de

que continuo atrapalhado com o carro. É só o que interessa a eles. Não

querem que eu cresça, porque então estariam enfrentando a própri

a

velhice.







Está sendo muito duro, cara.










Talvez você acredite nisso. Talvez o fato de vir de uma família

mais ou menos normal deixe você de miolo mole, Dennis. Eles me

ofereceram um carro novo quando eu tirasse o diploma, sabia?



Tudo o que eu devia faze

r era desistir de Christine, tirar A em todas

as matérias e concordar em matricular

-

me em Horlicks... onde os dois

poderiam manter

-

me sob sua vigilância direta por mais quatro anos.



Fiquei sem saber o que dizer. Aquilo era pura estupidez, claro.







Portanto

, fique fora disso, Dennis. É tudo quanto tenho a dizer.

Será melhor para nós dois.







De qualquer modo, não contei nada a ele





repliquei.





Falei

apenas que você estava consertando umas coisinhas, aqui e ali. Ele

pareceu ficar aliviado.







Oh, aposto que s

im!







Não fazia a menor idéia de que o carro estivesse quase no ponto

de poder rodar na rua. Mas falta ainda alguma coisa. Dei uma espiada por

baixo dele e vi que o cano de juntura da descarga está em terríveis

condições. Espero que esteja dirigindo com os



vidros arriados.







Não venha me dizer o que devo fazer! Conheço esse carro muito

melhor do que você!



Foi quando comecei a me encher daquilo. Não estava gostando do

rumo que o caso tomava





não queria discutir com Arnie, especialmente

agora, quando Leigh c

hegaria a qualquer momento



, mas pude sentir

alguém no compartimento cerebral do andar de cima, começando a

apertar aqueles botões vermelhos, um por um.







Talvez seja verdade





repliquei, controlando a voz



, mas não

estou muito certo sobre até que ponto

você conhece as pessoas. Will

Darnell lhe deu um adesivo de licença inadequado. Se você for apanhado,

Arnie, poderá perder seu certificado estadual de inspeção. Ele arranjou

também uma placa de concessionário. Por que Darnell fez isso, Arnie?



Pela primeira



vez, Arnie ficou na defensiva.







Eu já lhe disse. Ele sabe que estou trabalhando no carro.







Não seja imbecil! Aquele cara não daria uma muleta a um

caranguejo aleijado se não tirasse nisso algum proveito e você sabe.










Pelo amor de Deus, Dennis, quer faz

er o favor de ficar fora disso?







Escute aqui, cara





falei, dando um passo para ele.





Estou

pouco me lixando se você tem ou não um carro. Só não quero que se meta

em enrascadas por causa dele. Sinceramente.



Ele me fitou com incerteza.







E outra coisa: po

r que estamos aqui aos gritos, um para o

outro?





acrescentei.





Só porque espiei debaixo de seu carro, para ver

como o cano de descarga estava preso?



Enfim, aquilo não era tudo o que eu tinha feito. Não tudo. E penso

que ambos sabíamos disso.



No campo de

jogo, o tiro final soou com um "bangue" monótono.

Uma brisa ligeira começara a soprar e estava esfriando. Viramo

-

nos para o

som do tiro e avistamos Leigh, caminhando em nossa direção, trazendo

suas bandeirolas e as de Arnie. Ela acenou. Acenamos em respost

a.







Posso muito bem cuidar de mim, Dennis





avisou ele.







Está legal





respondi simplesmente.





Espero que possa.



De repente, senti vontade de perguntar

-

lhe até que ponto ia sua

amizade com Darnell. Foi uma pergunta que não pude fazer, porque

originaria u

ma discussão ainda mais amarga. Seriam ditas coisas que

talvez nunca mais fossem reparadas.







Claro que posso





disse ele.



Tocou seu carro e a expressão dura dos olhos suavizou

-

se.

Experimentei uma mistura de alívio e inquietação





alívio, por afinal não

a

cabarmos brigando, pois tínhamos conseguido controlar as palavras que,

se ditas, seriam o golpe final. Não obstante, tive a sensação de que não

fora fechado apenas um aposento em nossa amizade, mas toda uma

maldita ala. Ele rejeitara totalmente o que eu ti

nha para dizer e deixou

bem claras as condições para que nossa amizade continuasse: tudo estaria

bem, desde que eu não me atravessasse em seu caminho.



Se ele pudesse perceber, essa também era a atitude de seus pais. De

qualquer modo, Arnie teria que descob

rir isso em outra oportunidade.



Leigh chegou até nós, com gotas de chuva cintilando em seu cabelo.

Estava corada, os olhos brilhantes de boa saúde e saudável excitamento.

Exalava uma ingênua e não

-

testada sexualidade, que me deixou com a




cabeça ligeirament

e zonza. Não que eu fosse o objeto principal de sua

atenção





Arnie é que o era.







Como foi que terminou?





perguntou ele.







Vinte e sete a dezoito





disse ela, para acrescentar,

jovialmente:





Nós acabamos com eles. Onde estavam vocês dois?







Conversando

sobre carros, nada mais





falei.



Arnie dirigiu

-

me um olhar divertido





pelo menos, seu senso de

humor não havia desaparecido, juntamente com o senso comum. Pensei

que houvesse algum motivo de esperança, na maneira como olhava para

ela. Estava gamado por Le

igh, da cabeça aos pés. No momento, ainda era

uma queda lenta, mas certamente a velocidade aumentaria, com eles dois

saindo juntos. A pele de Arnie limpara completamente e sua aparência era

muito boa, apesar de um tanto intelectual, por causa dos óculos qu

e usava.

Não era o tipo de pessoa que se esperaria fosse do agrado de alguém

como Leigh Cabot; o que qualquer um imaginaria, era vê

-

la pendurada ao

braço da versão ginasial americana de Apolo.



As pessoas agora cruzavam o campo correndo, nossos jogadores e

os adversários, nossa torcida e a deles.







Apenas conversando sobre carros





repetiu Leigh, zombeteira.



Ergueu o rosto para Arnie e sorriu. Ele sorriu também, um sorriso

enternecido e satisfeito, que encheu meu coração de alegria. Bastava olhar

para ele e

eu poderia dizer que quando Leigh lhe sorria daquele jeito,

Christine era o assunto mais remoto em sua mente, ficava relegada ao seu

lugar exato, isto é, um meio de transporte.



Achei aquilo ótimo.





N

AS

A

RQUIBANCADAS



Ó Senhor, quer me comprar um Mercedes

-

Be

nz?



Todos os meus amigos dirigem Porsches,



Preciso ser compensado...







Janis Joplin








Nas primeiras duas semanas de outubro, vi Arnie e Leigh um

bocado de vezes pelos corredores, primeiro recostados contra seus

armários pessoais, o dele ou o dela, conversan

do antes do toque de ida

para casa; depois de mãos dadas; em seguida, saindo da escola enlaçados

pelos ombros. Tinha acontecido. No jargão escolar, eles estavam "saindo

juntos". Pensei que era bem mais do que isso. Pensei em como estavam

apaixonados.



Eu nã

o vira mais Christine desde o dia em que derrotamos o time de

Hidden Hills. Aparentemente, ela retornara à Darnell's para novos

reparos





talvez isso fizesse parte do acordo entre Arnie e Darnell,

quando este lhe emprestara a placa de concessionário e o ad

esivo ilegal

aquele dia. Não vi o Fury, mas vi Leigh e Arnie muitas vezes... e também

ouvi muito a respeito dos dois. Eram um assunto quente, nas fofocas da

escola. As garotas queriam saber o que Leigh

vira

nele, afinal; os rapazes,

sempre mais práticos e

vulgares, queriam apenas saber se meu amigo

tampinha já conseguira ir "até o fim do caminho" com sua garota. Eu não

me preocupava com nenhuma das duas coisas, mas de tempos em tempos

me perguntava o que pensariam Regina e Michael sobre o caso extremo de

pr

imeiro amor de seu filho.



Em certa segunda

-

feira de meados de outubro, eu e Arnie

almoçamos juntos nas arquibancadas, perto do campo de futebol, como

havíamos planejado fazer naquele dia em que Buddy Repperton exibira

sua faca. Aliás, Repperton fora realme

nte expulso por causa daquilo.

"Penetra" e Don saíram

-

se com três dias de suspensão. No momento,

comportavam

-

se como bons meninos. E, nesse ínterim não

-

tão

-

doce, o

time de futebol sofrera mais duas derrotas. Nossa contagem agora era de

1

-

5 e o treinador re

caíra em rabugento silêncio.



Meu saco de almoço não estava tão bem abastecido como no dia de

Repperton e da faca; o único ponto positivo que eu via em nossa contagem

de 1

-

5 era que agora nos mantínhamos tão atrás dos Ursos de Ridge Rock

(cuja contagem era

de 5

-

0

-

1) que somente se o ônibus da equipe deles

despencasse por um abismo conseguiríamos fazer alguma coisa na

Associação.



Estávamos sentados ao brando sol de outubro





não faltava muito

tempo para os fantasmas feitos de lençóis, as máscaras de borracha

e

fantasias compradas no Woolworth



, mastigando e falando pouco.




Arnie tinha um ovo grelhado com temperos picantes e o trocou por um de

meus sanduíches de carne fria. Os pais pouco sabem sobre as vidas

secretas dos filhos, penso eu. Desde o primeiro grau,



todas as segundas

-

feiras Regina Cunningham colocava um ovo

-

grelhado

-

picante na

lancheira de Arnie, e todos os dias, depois de havermos jantado carne

assada (em geral na ceia dos domingos), eu tinha uma fatia daquela carne

em meu sanduíche. Acontece que se

mpre detestei carne assada fria e

Arnie sempre detestou aqueles ovos picantes, embora eu nunca o tivesse

visto rejeitar um ovo preparado de outro modo. Muitas e muitas vezes me

perguntei o que pensariam nossas mães se soubessem que parte ínfima

das centena

s de ovos picantes e dúzias de sanduíches de carne assada fria,

postos em nossas respectivas lancheiras, tinham sido realmente comidos

por aqueles a quem eram destinados.



Comi meus biscoitos e Arnie seus doces de figo em barra. Ele me

olhou para certificar

-

se de que eu espiava e então enfiou todas as seis

barras de doce de figo na boca, ao mesmo tempo, começando a mastigá

-

las. Suas bochechas se incharam grotescamente.







Que falta de educação, raios!





exclamei.







Ung

-

un

-

guut

-

ung





replicou Arnie.



Comecei a

espetar meus dedos em suas costelas, onde ele sempre

sentira muita cócega, gritando:







Vou tocar piano em suas costelas! Ouviu bem, Arnie? Vou tocar

piano em suas costelas! Ele começou a rir, expelindo pequenos punhados

de massa de doce meio mastigada. Sei



o quanto isto pode parecer

detestável, mas era bastante divertido.







Pare, Dennis!





disse ele, com a boca ainda cheia de doce.







Como disse? Não consigo entender o que diz, seu filho da mãe!



Eu continuava a fazer

-

lhe cócegas, no estilo que denominávamos

"tocar piano" quando éramos crianças (por algum motivo hoje perdido nas

areias do tempo), enquanto ele ficava se torcendo, retorcendo e rindo.



Engoliu tudo o que tinha na boca e depois arrotou.







Nossa! Você é muito mal

-

educado, Cunningham!





exclamei.







E



eu não sei?






Ele parecia realmente satisfeito com aquilo. Talvez estivesse mesmo;

que eu soubesse, nunca fizera aquele truque das seis barras de doce

enfiadas na boca ao mesmo tempo, diante de mais ninguém. Se cometesse

tal atrocidade em presença dos pais,



acho que Regina pariria um gatinho e

Michael possivelmente teria uma trombose cerebral.







Quantas você já conseguiu enfiar na boca?





perguntei.







Uma vez já botei doze ao mesmo tempo





disse ele



, mas

pensei que fosse sufocar. Eu ri com vontade.







Já fe

z a demonstração para Leigh?







Estou reservando para a festa de fim de ano





disse.





Espero

também poder tocar piano nas costelas dela.



Rimos à beça com isso e percebi o quanto às vezes sentia falta de

Arnie





e eu tinha o futebol, o conselho de estudante

s, uma nova

namorada que (assim esperava) consentiria em masturbar

-

me, antes que

terminasse a temporada do

drive

-

in.

Minhas esperanças de que ela fosse

além disso eram mínimas: a garota parecia encantada demais consigo

mesma. De qualquer modo, seria uma ex

periência divertida.



Mesmo com tanta coisa acontecendo, eu ainda sentia falta de Arnie.

Primeiro havia sido Christine, agora eram Leigh e Christine. Nesta ordem,

era o que esperava.







Onde está ela hoje?





perguntei.







Indisposta





informou ele.





Ficou me

nstruada e parece que

não passa muito bem com suas regras.



Ergui as sobrancelhas mentalmente. Se ela discutia seus problemas

femininos com ele, é porque já estavam ficando muito íntimos.







Como foi que pediu a ela para ir ao jogo de futebol aquele dia?

Qua

ndo jogamos em Hidden Hills?



Ele riu.







O único jogo de futebol a que já fui, desde calouro. Demos sorte a

você, Dennis.







Foi só telefonar para ela e convidá

-

la?







Quase não tive coragem. Foi o primeiro encontro que tive.





Ele

me fitou com acanhamento.










Na véspera, acho que só dormi umas duas horas. Depois que

telefonei, e ela disse que iria comigo, fiquei em pânico, achando que tinha

feito um papel idiota ou que Buddy Repperton ia aparecer e querer brigar.

Pensei que ia acontecer qualquer coisa terrível

.







Você parecia ter tudo sob controle.







É mesmo?





Ele ficou satisfeito.





Hum, é bom ouvir isso, mas a

verdade é que estava apavorado. Ela já tinha conversado comigo nos

corredores, sabe como é, me perguntava sobre os deveres de casa e coisas

assim. Ent

rou para o clube de xadrez, mesmo não sendo muito boa...

Agora está ficando melhor. Estou ensinando como se joga.



Aposto que sim, vivaldino,

pensei, não ousando dizer em voz alta.

Ainda recordava a maneira como Arnie se voltara contra mim, naquele

dia do j

ogo em Hidden Hills. Por outro lado, eu queria ouvir aquilo,

estava morrendo de curiosidade. Conquistar uma garota fascinante como

Leigh Cabot devia ter sido uma dureza.







Então, depois de algum tempo, comecei a pensar que ela poderia

estar interessada em

mim





prosseguiu Arnie.





Talvez eu demorasse

mais a me convencer do que qualquer outro cara... estou falando de caras

como você, Dennis.







Lógico, sou uma fera





respondi.





Aquilo a que James Brown

costumava chamar de máquina sexual.







Bem, você não é ne

nhuma máquina sexual, mas entende de

garotas





disse Arnie, muito sério.





Você as compreende. Sempre tive

medo delas e nunca sabia o que dizer. E ainda não sei, acho. Leigh é

diferente.







Eu tinha receio de convidá

-

la para sair.





Ele continuou e

pareceu

considerar a questão.





Quero dizer, Leigh é uma garota bonita,

muito bonita mesmo. Você não acha, Dennis?







Acho. Que me conste, é a mais bonita da escola. Ele sorriu

satisfeito.







Eu também acho... mas pensei que só achasse porque a amo.



Olhei para meu a

migo, esperando que não se envolvesse em

problemas maiores do que poderia controlar. A esta altura, naturalmente,

eu não tinha idéia do significado da palavra problema.










Além do mais, ouvi dois caras conversando um dia, no

laboratório de química, Lenny Ba

rongg e Ned Stroughman. Ned contava a

Lenny que a convidava para sair e que ela se recusara, de maneira

delicada... como se talvez aceitasse um segundo convite. Quando imaginei

que ela poderia estar firme com Ned na primavera, comecei a ficar com

um ciúme

dos diabos. Você entende o que quero dizer?



Sorri e assenti. Lá fora, no campo, as chefes de torcida ensaiavam

novas rotinas. Não achei que fossem de grande ajuda para o nosso time,

mas era gostoso espiá

-

las. Suas sombras acumulavam

-

se em torno dos pés

sob

re a grama verde, à luz brilhante do meio

-

dia.







Outra coisa que me tocou, foi ver que Ned não parecia chateado...

nem tampouco envergonhado ou... rejeitado. Nada assim. Ele a convidou,

levou um fora e foi tudo. Decidi que também podia fazer aquilo. Mas

en

tão, quando liguei para a casa dela, suava pelo corpo todo. Cara, foi o

diabo! Fiquei imaginando Leigh rindo de mim e dizendo qualquer coisa

como

"Eu, sair com você, seu asqueroso? Deve estar sonhando! Ainda não estou

desesperada!".







É





concordei.





Não

sei como ela não disse isso. Ele me

esmurrou o estômago.







Vou tocar piano em suas tripas, Dennis! Vou fazer você vomitar!







Pare com isso





falei.





E depois? Arnie deu de ombros.







Não há muito mais para contar. A mãe dela atendeu, quando

liguei para lá,



e disse que ia chamá

-

la. Ouvi o barulho do fone sendo

colocado em cima da mesa e quase desliguei.





Arnie exibiu dois dedos,

afastados entre si por menos de um centímetro.





Faltou isto para que eu

desligasse. Sem brincadeira!







Conheço a sensação





falei

, e conhecia mesmo.



A gente se preocupa com as zombadas, o desprezo em qualquer

dose, pouco importando se jogamos futebol ou somos um nanico com

espinhas e de óculos, mas não creio que vocês possam avaliar o grau em

que Arnie deve ter sentido isso. Seu ges

to exigira uma coragem fenomenal.

Convidar uma garota para sair é algo insignificante, mas em nossa

sociedade existem todos os tipos de forças negativas, girando atrás de tão

simples conceito





quero dizer, há caras que cursam todo o ginásio e

nunca

reúnem



coragem bastante para convidar uma garota a um encontro.




Nem uma só vez,

em todos os quatro anos. E isto não acontece apenas com

um ou dois caras, mas com bandos deles. Como também há bandos de

garotas tristonhas que nunca foram convidadas. É uma merda de



maneira

de dirigir as coisas, quando se pára para refletir a respeito. Muita gente se

machuca. Eu podia imaginar perfeitamente o terror de Arnie, esperando

que Leigh viesse atender o telefone; a sensação de mortal espanto à idéia

de que não pretendia conv

idar uma garota qualquer, porém a

garota mais

bonita da escola.







Ela atendeu





continuou Arnie.





Disse: "Alô?" e, cara, eu não

conseguia falar nada! Tentei, mas nada saía da garganta além de ar

resfolegado. Então ela insistiu: "Alô, quem está falando?",

como se fosse

uma espécie de trote, sabe como é. Fiquei pensando: isto é ridículo! Se

pude conversar com ela no corredor, devia ser capaz de falar com ela pelo

maldito telefone. Tudo que Leigh pode dizer é não, quero dizer, não vai

me

matar,

nada disso, se



a convidar para sair. Então, falei: "oi, aqui é Arnie

Cunningham". Ela respondeu: "oi", e blablablá, conversa mole, conversa

mole, conversa mole, até eu perceber que nem mesmo, droga, sabia para

onde convidá

-

la. E logo ficaríamos sem assunto, ela ia desli

gar... Foi

quando lhe disse a primeira coisa que me passou pela cabeça, perguntei se

queria ir comigo ao jogo de futebol no sábado. Ela disse que adoraria ir,

foi bem assim, como se só estivesse esperando que eu a convidasse, você

saca?







Vai ver, ela esta

va mesmo esperando que você a convidasse.







Hum... Talvez sim.



Arnie meditou na questão, bestificado. O sinal tocou, significando

cinco minutos para o quinto tempo. Eu e Arnie nos levantamos. As chefes

de torcida correram para fora do campo, com seus saiot

es agitando

-

se

provocativamente.



Descemos as arquibancadas, jogamos os sacos vazios do almoço em

um dos barris de lixo, pintados com as cores da escola





laranja e preto,

falando

-

se do Dia das Bruxas





e caminhamos para a escola.



Arnie ainda sorria, record

ando a maneira como tudo havia

acontecido, naquela primeira vez com Leigh.







Convidá

-

la para ir ao jogo foi puro desespero.










Muito obrigado





repliquei.





É isso o que mereço por ter

botado os bofes pra fora a tarde toda do sábado, hein?







Você entende o

que eu quero dizer. Então, depois que ela

concordou em ir comigo, tive aquela idéia horrível e liguei para você

lembra

-

se?



Lembrei

-

me de repente. Ele ligara para saber se íamos jogar em casa

ou fora, tendo parecido absurdamente arrasado, quando lhe falei q

ue seria

em Hidden Hills.







Pois lá estava eu, prestes a sair com a garota mais bonita da escola,

doidão por ela, e fico sabendo que o jogo ia ser fora daqui. E com meu

carro emperrado na garagem de Will.







Podiam ter ido no ônibus.







Eu sei, mas na hora n

em pensei nisso. O ônibus sempre

costumava estar lotado, uma semana antes do jogo. Não podia imaginar

que tanta gente fosse deixando de assistir às partidas, com o time

perdendo.







Não me lembre isso





pedi.







Então, apelei para Will. Sabia que Christine a

güentaria a viagem,

mas ainda não tinha a papelada legal para a rua. Resumindo, eu estava

desesperado.



Desesperado, como?





perguntei

-

me, fria e repentinamente.







Ele foi muito legal comigo. Disse que compreendia o quanto

aquilo era importante e, se...





Ar

nie fez uma pausa, parecendo

considerar.





Bem, era a tal história do grande encontro





terminou,

desajeitadamente.



E se...



Bem, não era da minha conta.



Olhe por ele,

meu pai tinha dito.



Recusei também este pensamento.



Passávamos agora pela área de fumar,

deserta, exceto por três caras

e duas garotas, fumando apressadamente o que restava de um baseado.

Usavam o artifício de uma carteirinha de fósforos, dobrada como clipe

para segurar a minúscula guimba. O odor evocativo da maconha, tão




similar ao aroma das

folhas de outono queimadas lentamente, deslizou

por minhas narinas.







Tem visto Buddy Repperton?





perguntei.







Não e nem quero





respondeu ele.





E você?



Eu o vira apenas uma vez, quando ele aparecera no posto de

gasolina Happy Gas, de Vandenberg, na Rota



22, em Monroeville. O posto

tinha uma bomba apenas, pertencia ao pai de Vandenberg e vivia à beira

da falência, desde o embargo do petróleo árabe, em 73. Buddy não me

vira





eu estava apenas passando por perto.







Não cheguei a falar com ele.







Acha que el

e falaria?





perguntou Arnie, com um sarcasmo que

não lhe era costumeiro.





O grande bosta!



Sobressaltei

-

me. Aquela palavra novamente. Pensei a respeito, disse

a mim mesmo, que diabo, e então perguntei

-

lhe onde ouvira aquele termo

tão específico.







Lembra

-

se do dia em que comprei o carro?





perguntou.





Não

o dia em que dei o dinheiro de entrada, mas aquele em que paguei o

restante.







Claro que me lembro.







Entrei com LeBay em sua casa, enquanto você ficava do lado de

fora. Havia uma cozinha minúscula, com

uma toalha de xadrez vermelho

na mesa. Sentamo

-

nos e ele me ofereceu uma cerveja. Achei que devia

aceitar. Eu queria o carro e não pretendia ofendê

-

lo de modo algum,

entende? Assim, cada um bebeu uma cerveja, enquanto ele começava com

aquela interminável d

ivagação... como a chamaria? Acho que arenga.

Aquela arenga sobre todos os bostas estarem contra ele. Era o nome que

empregava, Dennis. Os bostas. Disse serem os bostas que o forçavam a

vender o carro.







O que queria dizer com isso?







Sem dúvida, queria da

r a entender que era velho demais para

dirigir, mas não se expressou em palavras. Era tudo culpa deles. Dos

bostas. Os bostas queriam que ele fizesse exame de estrada para motorista

a cada dois anos e um exame de vista todo ano. Era este último que o




preoc

upava. Alegou que não o queriam na rua, que ninguém o queria

dirigindo. Então, alguém atirou uma pedrada em seu carro.



"Sinceramente, eu compreendia tudo aquilo. Mas não compreendo

como ele pôde...





Arnie fez uma pausa rente à porta, esquecendo que já

est

ávamos atrasados para a aula. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos

traseiros do

jeans

e franzia o cenho.





Não compreendo como ele pôde

deixar Christine ficar parada, arruinando

-

se daquela maneira, Dennis. Do

jeito como estava, quando a comprei. Principalment

e, se falava sobre ela

como se realmente a amasse... você talvez vá pensar que isso fazia parte

da conversa fiada para me vender o carro, mas não era. Então, já no fim,

quando ele contava o dinheiro, deu uma espécie de resmungo: 'Esse carro

de merda! Que m

e foda, se sei por que o quer, garoto. É o ás de espadas.'

Respondi qualquer coisa, alegando achar que eu poderia pôr Christine em

excelente estado. Ele respondeu: 'Tudo isso e ainda mais. Se os bostas

permitirem"'



Entramos. O Sr. Lehereux, professor de Fr

ancês, rumava

apressadamente para algum lugar, a cabeça calva luzindo sob as luzes

fluorescentes.







Estão atrasados, garotos





disse ele, em uma voz ofegante, que

me fez lembrar o coelho branco de

Alice no País das Maravilhas.



Ele caminhou mais depressa, a

té ficar fora de vista. Então, nós dois

voltamos a caminhar devagar.







Quando Buddy Repperton foi atrás de mim daquele jeito





disse

Arnie



, confesso que fiquei com medo de verdade.





Ele baixou a voz,

sorrindo, mas sério.





Quase borrei as calças, se que

r saber. Enfim, acho

que usei a palavra de LeBay sem sentir. Não acha que se aplica ao caso de

Repperton?







Tem razão.







Preciso ir agora





disse Arnie.





Cálculos primeiro, depois

Mecânica de Motores III. De qualquer modo, acho que fiz todo o curso

trabal

hando em Christine.



Arnie apressou

-

se e fiquei no corredor, parado por coisa de um

minuto, vendo

-

o afastar

-

se. Havia um período vago em meu horário, sob

a orientação da Srta. Trouxa

-

de

-

Ratos. Era o sexto período das segundas

-

feiras, e achei que podia esgue

irar

-

me para os fundos, sem ser visto. Já




havia feito isso antes. Por outro lado, os alunos do último ano sempre

levavam a melhor em muitas coisas, como eu ia rapidamente aprendendo.



Fiquei ali, tentando afastar uma sensação de medo, que nunca fora

tão amo

rfa, tão pouco concreta. Havia algo errado, qualquer coisa fora do

lugar, não combinado. Senti um calafrio, que nem todo o brilhante sol de

outubro, penetrando por todas as janelas do ginásio, conseguia desfazer.

As coisas eram as mesmas de sempre, mas est

avam se dispondo para uma

mudança





eu podia pressentir isso perfeitamente.



Fiquei ali, tentando pôr

-

me em movimento, dizer a mim mesmo que

o calafrio não passava de temores sobre meu próprio futuro, sendo essa a

mudança que me inquietava. Talvez o medo fi

zesse parte disso.

Possivelmente, mas não todo ele.

Esse carro de merda! Que me foda, se sei por

que o quer, garoto. É o ás de espadas.

Avistei o Sr. Lehereux, que voltava do

gabinete, e comecei a mover

-

me.



Penso que todos nós temos uma espécie de enxada a

trás da cabeça,

que, em momentos de tensão ou problemas, pode ser movimentada e

simplesmente introduzir tudo que nos preocupa em uma grande fenda no

solo de nossa mente consciente. Livrando

-

se de tudo. Enterrando

-

o. No

entanto, a tal fenda penetra no subco

nsciente e, às vezes, em sonhos, os

corpos despertam e caminham. Tornei a sonhar com Christine naquela

noite. Desta vez, Arnie estava ao volante e o cadáver em decomposição de

Roland D. LeBay oscilava obscenamente no banco do passageiro,

enquanto o carro r

ugia para fora da garagem e vinha contra mim,

espetando

-

me com os círculos selvagens de seus faróis.



Acordei com o travesseiro apertado contra a boca, para sufocar os

gritos.





O



A

CIDENTE



Mais depressa, mais depressa,



Amigão, ninguém te deixa pra trás.







Th

e Beach Boys








Até o Dia de Ação de Graças, aquela foi a última vez que conversei

com Arnie





que conversei realmente com ele



, porque fui posto fora

de circulação no sábado seguinte. Era o dia em que tornávamos a

enfrentar os Ursos de Ridge Rock e, desta

feita, perdemos pela contagem

verdadeiramente espetacular de 46



3. Entretanto, eu não estaria mais lá,

quando o jogo terminou. Já teria transcorrido uns sete minutos do terceiro

quarto de tempo, quando vi o campo livre, agarrei um passe e me

dispunha a cor

rer, no exato momento em que fui atingido

simultaneamente pelos três jogadores da linha de defesa dos Ursos.

Houve um instante de dor horrenda, um clarão ofuscante como se eu

houvesse sido apanhado na área zero de uma explosão nuclear... e depois

a escurid

ão. Uma escuridão total.



Tudo permaneceu escuro por um período razoavelmente longo,

embora eu não tivesse qualquer noção do fato. Fiquei inconsciente por

cerca de cinqüenta horas, e ao acordar no final da tarde de segunda

-

feira,

23 de outubro, estava no Ho

spital Comunitário de Libertyville. Vi papai e

mamãe por perto. Também Ellie, parecendo pálida e cansada. Havia

olheiras escuras em torno de seus olhos e fiquei absurdamente comovido;

minha irmã ainda tinha forças para chorar por mim, apesar das

guloseimas



que eu roubava da caixa de pão, depois que ela ia dormir,

apesar da caixinha de pílulas de vitaminas que lhe dera, quando ela estava

com doze anos e havia passado uma semana observando

-

se de perfil no

espelho, vestindo sua camiseta mais apertada, para ver



se seus peitinhos

estavam mais crescidos (Ellie prorrompera em lágrimas e mamãe ficara

irritada comigo por quase duas semanas) e apesar das irritantes

brincadeirinhas fraternas de eu sou melhor do que você.



Arnie não estava lá quando acordei, mas apareceu



pouco depois e se

juntou à minha família; ele e Leigh tinham ficado na sala de espera.

Naquela noite, meu tio e minha tia de Albany deram as caras e, pelo

restante da semana, houve um fixo desfilar de parentes e amigos





toda a

equipe de futebol esteve no



hospital para visitar

-

me, incluindo

-

se o

treinador Puffer, que parecia ter envelhecido vinte anos. Talvez tivesse

descoberto que existem coisas piores do que uma temporada de derrotas.

Foi o treinador que me deu a notícia de que eu nunca mais poderia volt

ar

ao futebol. A julgar pela expressão grave e tensa de seu rosto, não sei o

que ele esperava





que eu explodisse em choro ou tivesse um acesso de

histeria. Entretanto, quase não esbocei qualquer reação, interna ou




externamente. Já bastava a alegria de sab

er

-

me vivo e que, eventualmente,

tornaria a andar.



Se eu houvesse sido atingido apenas uma vez, sem dúvida escaparia

bem e pronto para outra. O corpo humano, no entanto, não foi feito para

ser comprimido de três ângulos diferentes, ao mesmo tempo. Eu estav

a

com as duas pernas quebradas, a esquerda em dois lugares. Meu braço

direito havia sido puxado para trás, quando caí, de maneira que ostentava

uma feia fratura parcial no antebraço. Entretanto, tudo isso era apenas o

enfeite do bolo. Também tive o crânio

fraturado, e mais o que o médico

incumbido de meu caso persistia em qualificar como "um acidente na

porção inferior da coluna", com isto querendo dizer que, por fração de

centímetro, eu escapava de ficar paralisado da cintura para baixo, pelo

resto da vida

.



Recebi montes de visitas, montes de flores, montes de cartões. De

certo modo, tudo isso era muito agradável





como estar vivo para ajudar

a comemorar a própria ressurreição.



Entretanto, houve também um bocado de dores e um bocado de

noites em que não pod

ia dormir; um de meus braços ficou suspenso acima

do corpo através de pesos e roldanas, o mesmo acontecendo a uma das

pernas (ambas comichavam o tempo todo, por sob o gesso) e houve

também mais uma carapaça de gesso temporária





conhecida como

"molde compr

essor"





em torno da parte inferior do torso. Além do mais,

havia a perspectiva de uma longa permanência no hospital e viagens

intermináveis de cadeira de rodas àquela câmara de horrores tão

inocentemente intitulada Ala de Terapia.



Oh, havia mais uma coisa







eu tinha um bocado de tempo.



Eu lia o jornal. Fazia perguntas aos que me visitavam. E por diversas

vezes, quando as coisas prosseguiram e minhas suspeitas começaram a

tomar proporções exageradas, interroguei

-

me sobre se não poderia estar

perdendo a razã

o.



Fiquei no hospital até o Natal, e ao voltar para casa aquelas

suspeitas já quase haviam adquirido sua moldagem final. A cada vez me

era mais difícil negar essa monstruosa configuração e eu sabia muitíssimo

bem que não estava perdendo o juízo. Em certos

sentidos, teria sido até

melhor





mais confortador





se pudesse ter acreditado nisso. Àquela




altura, no entanto, além de estar terrivelmente assustado, estava também

quase apaixonado pela garota de meu melhor amigo.



Havia tempo para pensar... tempo demais.



Tempo para xingar cem vezes a mim mesmo, pelo que vinha

pensando sobre Leigh. Tempo para contemplar o forro de meu quarto e

desejar jamais ter ouvido falar de Arnie Cunningham... de Leigh Cabot...

ou de Christine.





Arnie





Canções adolescentes sobre

amor





A



S

EGUNDA

D

ISCUSSÃO



O vendedor chegou pra mim e disse:



"D

ê seu Ford de entrada,



E lhe arranjo um carro que comer

á a estrada!



Basta me dizer o que deseja e assinar nesta linha,



Que lhe entregarei o carro novo dentro de uma hora.



Vou ficar com um carr

ão



E d

isparar estrada abaixo;



Ent

ão, adeus preocupações



Com aquele Ford caindo aos peda

ços.







Chuck Berry





O Plymouth 1958, de Arnie Cunningham, foi licenciado para

trafegar nas ruas, na tarde de 19 de novembro de 1978. Ali se encerrava o

processo





realmente in

iciado na noite em que ele e Dennis Guilder

trocaram aquele primeiro pneu arriado



, com o pagamento de uma taxa




de licença no valor de 8,50 dólares, uma taxa rodoviária municipal de 2

dólares (que também incluía a permissão de estacionamento grátis nos

pa

rquímetros do centro da cidade) e 15 dólares por uma placa de

matrícula. No Departamento de Veículos a Motor, em Monroeville, Arnie

recebeu a chapa da Pensilvânia HY

-

6241

-

J.



Ele voltou do DVM para Libertyville em um carro que Will Darnell

lhe emprestara e

saiu da Garagem Fa

ça

-

Você

-

Mesmo de Darnell atrás do

volante de Christine. Levou

-

a para casa.



Seu pai e sua m

ãe chegaram juntos da Universidade Horlicks, cerca

de uma hora mais tarde. A briga teve início quase imediatamente.







Vocês o viram?





perguntou Arn

ie, dirigindo

-

se aos dois, porém

principalmente ao pai.





Acabei de registrá

-

lo esta tarde.



Sentia

-

se orgulhoso e tinha motivos. Christine acabara de ser lavada

e polida, reluzia

à última claridade do sol da tarde de outono. Ainda tinha

um bocado de ferrug

em, mas parecia mil vezes melhor do que naquele dia

em que Arnie a trouxera. Os estofos das portas, como o capô e as traseiras

estavam novos em folha. O interior se apresentava impecável,

imaculadamente limpo. Os vidros e cromados cintilavam.







Sim, eu...





começou Michael.







É claro que o vimos!





explodiu Regina. Preparava um drinque,

que mexia com um misturador de coquetel em um copo de cristal,

formando furiosos círculos no sentido contrário ao movimento de um

relógio.





Quase o atropelamos. Não o quero



estacionado aqui. A casa vai

parecer um depósito de carros usados!







Mamãe!





exclamou Arnie, ofendido e espantado.



Olhou para o pai, mas Michael se afastara para preparar um

drinque





talvez decidindo que ia precisar de um.







Muito bem





disse Regina Cun

ningham. Seu rosto estava

ligeiramente mais pálido que de costume. O ruge nas faces salientava

-

se,

quase como a pintura de um palhaço. Engoliu metade de seu gim com

tônica, fazendo uma careta como quem sente o gosto de um remédio

amargo.





Leve

-

o de volta

para onde esteve. Não o quero aqui e não vou

admiti

-

lo aqui, Arnie. É a palavra final.










Levá

-

lo de volta?





disse Arnie, agora não só ofendido, como

também irritado.





Formidável, não? Lá ele me sai a vinte pratas por

semana!







Está lhe saindo a muito mai

s do que isso





replicou Regina.

Terminou de beber seu drinque e largou o copo. Virou

-

se e o encarou.





Estive dando uma espiada em seu talão de cheques outro dia...







Você fez

o quê?





exclamou Arnie, com olhos arregalados.



Ela enrubesceu ligeiramente, mas



n

ão baixou os olhos. Michael se

aproximou e parou junto à porta, olhando pesaroso da mulher para o filho.







Eu queria saber quanto você andou gastando nesse maldito

carro





disse ela.





Será alguma coisa demais? Você tem que ir para a

universidade o ano q

ue vem. Que me conste, na Pensilvânia não estão

dando estudo de graça nas universidades.







Então você apenas entrou em meu quarto e revirou tudo, até

encontrar meu talão de cheques, não foi?





disse Arnie. Seus olhos

cinzentos estavam frios de ódio.





Talv

ez estivesse procurando por

maconha também. Ou revistas pornográficas. Quem sabe, manchas de

esperma nos lençóis?



Regina ficou boquiaberta.

É possível que esperasse dele uma reação

de mágoa ou raiva, mas não aquela fúria total e descontrolada.







Arnie!





r

ugiu Michael.







E daí, por que não?





gritou Arnie, em resposta.





Pensei que o

assunto fosse coisa

minha!

Deus é testemunha do quanto vocês ficaram

dizendo que era minha responsabilidade!







Estou muito decepcionada por sua atitude, Arnold





disse

Regina.





Decepcionada e magoada. Você está se portando como...







Não venha me dizer como me porto! Como acha que me sinto?

Trabalhei como o diabo para conseguir licenciar o carro, trabalhei nele

mais de dois meses e meio, mas quando o trago para casa, a primeira

coisa

que ouço de você é para tirá

-

lo da entrada. Como é que deveria me sentir?

Feliz?







Não é motivo para usar esse tom com sua mãe





disse Michael.

A despeito das palavras, o tom era desajeitadamente conciliatório.





Ou

para empregar esse tipo de linguag

em.






Regina estendeu o copo para o marido.







Prepare

-

me outro drinque. Há uma garrafa fechada de gim na

despensa.







Fique aqui, papai





disse Arnie.





Por favor. Vamos resolver

isto!



Michael Cunningham olhou para a esposa, depois para o filho e em

seguida n

ovamente para ela. Ambos pareciam como que de pedra. Ele

recuou para a cozinha, apertando o copo de Regina.



Regina se virou implac

ável para o filho. A cunha estivera em sua

porta desde finais do último verão e talvez ela percebesse ser aquela sua

última ch

ance para chutá

-

la novamente.







Em julho, você tinha quase quatro mil dólares no banco





disse.





Cerca de três quartos de todo o dinheiro que conseguiu nos

últimos anos, mais os juros...







Oh, você esteve de olho o tempo todo, não?





disse Arnie.

Sentou

-

s

e de repente, encarando a mãe. Seu tom era de desgostosa

surpresa.





Mamãe, por que não retirou o maldito dinheiro e colocou em

uma conta em seu nome?







Porque até recentemente





disse ela





você parecia

compreender qual era a finalidade desse dinheiro. No

s últimos dois meses,

ele se foi diluindo em carro

-

carro

-

carro e, mais recentemente, em garota

-

garota

-

garota. Como se você tivesse enlouquecido, quanto a essas duas

coisas.







Muito bem, obrigado. Afinal, sempre posso receber uma bela

opinião sem preconceit

os, sobre a maneira como estou dirigindo minha

vida!







Este julho, você tinha quase quatro mil dólares. Para os seus

estudos,

Arnie. Para os seus

estudos.

Agora, tem apenas pouco mais de dois

mil e oitocentos. Pode esbravejar como quiser, e admito que dói

um pouco,

mas aí estão os fatos. Em dois meses, você deu cabo de mil e duzentos

dólares. Talvez seja por isso que não suporto ver aquele carro. Você devia

compreender meus sentimentos. Para mim, isso é como...







Ouça...







... como jogar fora uma enorme not

a de dólar.










Posso lhe dizer duas coisas?







Não, não creio que possa, Arnie





disse ela, como se encerrasse o

assunto.





Sinceramente, 118 não creio que possa.



Michael retornara com o copo de Regina, cheio de gim at

é a metade.

Acrescentou água tônica no b

ar e entregou a ela. Regina bebeu, tornando a

fazer aquela careta de repugnância. Arnie permaneceu sentado na

poltrona perto da TV, olhando pensativamente para a mãe.







E você leciona em uma universidade!





exclamou.





Leciona em

uma universidade e é essa

a sua atitude? "Tenho dito. Vocês agora se

limitem a ficar de boca fechada." Formidável! Sabe de uma coisa? Tenho

pena de seus alunos.







Veja lá o que diz, Arnie!





disse ela, apontando

-

lhe um dedo.





Veja lá como fala!







Posso dizer duas coisas ou não?







Fale, embora não faça qualquer diferença. Michael pigarreou.







Reg, acho que Arnie tem razão. Francamente, esta não é uma

atitude construt... Ela se voltou para o marido como um felino.







E nem uma palavra você também! Michael emudeceu.







A primeira coisa

que quero dizer é o seguinte





Arnie

começou.





Se você examinou minha poupança um pouco mais

atentamente, e tenho certeza disso, deve ter percebido que o total baixou

de uma só vez em dois mil e duzentos dólares na primeira semana de

setembro. Tive que co

mprar toda a parte dianteira nova para Christine.







E fala nisso como se estivesse orgulhoso do que fez!





exclamou

Regina, irritada.







É claro que estou.





Arnie fixou os olhos nos dela.





Eu mesmo

montei aquela parte dianteira, sem que ninguém me ajudass

e. Ninguém

seria capaz...





aqui sua voz pareceu vacilar momentaneamente, mas

depois se firmou.





Ninguém seria capaz de distingui

-

la da original.

Enfim, o que quero dizer é que o total daquele dinheiro aumentou em

seiscentos dólares, a partir daí. Porque

Will Darnell gostou do meu

trabalho e me conseguiu algo para fazer. Se eu puder acrescentar

seiscentos dólares à conta de poupança, de dois em dois meses, e posso

consegui

-

lo, se Will me contratar para ir a Albany, onde ele compra seus




carros usados, em mi

nha conta haverá quatro mil e seiscentos dólares

quando terminar o período escolar. E se eu trabalhar em horário integral

no próximo verão, estarei começando a universidade com quase sete mil

dólares. Então, você pode deixar todo o dinheiro à porta desse c

arro que

tanto odeia.







Isso de nada lhe adiantará, se não conseguir uma boa

universidade





contra

-

atacou ela, dissecando desafiadoramente o assunto,

como fazia tantas vezes nas reuniões do departamento, quando alguém

ousava questionar uma de suas opiniões

... algo não muito freqüente. Ela

não assentia, limitando

-

se a passar para outra faceta do caso.





Suas

notas baixaram.







Não tanto para criar problemas





disse Arnie.







O que quer dizer com "não tanto para criar problemas"? Você

teve um deficiente em Cálc

ulo! Recebemos o cartão com a nota vermelha

faz apenas uma semana!



Aqueles cart

ões vermelhos, às vezes conhecidos como cartões

-

de

-

bomba pelo corpo estudantil, eram despachados em meados de cada

período a estudantes com nota média 75 ou menos, durante as pr

imeiras

cinco semanas do trimestre.







Aquilo foi baseado em uma única prova





disse Arnie

tranqüilo.





O Sr. Fenderson é tão famoso por dar tão poucas provas na

primeira metade do trimestre que qualquer um pode levar para casa um

cartão vermelho com um F,

por não entender um conceito básico





e

terminar com um A, abrangendo todo o ano letivo. Eu poderia ter

-

lhes

dito tudo isto, se me tivessem perguntado. Só que não perguntaram. Aliás,

foi somente o terceiro cartão vermelho que recebi, desde que comecei o

gi

násio. Minha média continua sendo 93 e vocês dois sabem o quanto é

boa e...







Pois eu digo que irá baixar!





exclamou Regina em voz aguda,

dando um passo para ele.





É tudo por causa de sua maldita obsessão

com esse carro! Arranjou uma namorada; acho ótimo

, excelente,

formidável! Mas a mania por esse carro é insana! O próprio Dennis diz...



Arnie estava de p

é, tão depressa, tão próximo dela, que Regina

recuou um passo, sua fúria suplantada momentaneamente pela dele.










Deixe Dennis fora disto





disse Arnie, e

m voz malevolamente

gélida.





Isto é entre nós!







Está bem





respondeu Regina, pisando novamente em chão

firme.





O simples fato é que suas notas irão baixar. Eu sei disso, como

seu pai, e uma prova é aquele cartão vermelho em Matemática.



Arnie sorriu conf

iantemente e Regina pareceu desconfiada.







Bem, vou lhe dizer uma coisa





falou Arnie.





Deixe eu ficar

com o carro aqui, até terminar o período das provas. Se eu tiver alguma

nota mais baixa do que C, prometo vendê

-

lo a Darnell. Ele o comprará;

sabe que p

ode obter mil pratas pelo carro, no estado em que se encontra

agora. E o valor só tende a subir.



Arnie refletiu um pouco.







Farei ainda melhor





disse.





Se eu não estiver no quadro de

honra do semestre, também me livrarei dele. Isto significa que estou

ap

ostando meu carro como conseguirei um B em Cálculo, não apenas pelo

trimestre, mas por todo o semestre. O que me diz?







Não





respondeu Regina prontamente.



Lan

çou ao marido um olhar de:

Não se meta nisto.

Michael, que tinha

aberto a boca, fechou

-

a prontame

nte.







Por que não?





perguntou Arnie, com enganadora suavidade.







Porque é um truque seu, sabe muito bem!





gritou Regina para

ele, agora com fúria total e incontida.





E não vou mais ficar aqui

debatendo esta imbecilidade e ouvindo suas insolências! Eu..

. eu mudei

suas fraldas sujas! Já falei que quero aquele carro fora daqui, ande nele, se

quiser, mas não o deixe onde eu tenha que vê

-

lo! Pronto! Está decidido!







O que acha disto, papai?





perguntou Arnie, encarando Michael.

Seu pai tornou a abrir a boca

para falar.







Ele acha o mesmo que eu





disse Regina.



Arnie a fitou novamente. Os olhos de ambos encontraram

-

se, a

mesma tonalidade de cinza.







O que ele disser pouco importa, não?







Penso que isto já foi longe demais e...






Ela come

çou a dar meia

-

volta, a b

oca ainda dura e decidida, os olhos

estranhamente confusos. Arnie pegou seu braço, pouco acima do cotovelo.







Pouco importa, não é? Porque quando você decide algo, não quer

ver, não quer ouvir e nem

pensar.







Pare com isso, Arnie!





gritou Michael.



Arnie o

lhou para sua m

ãe e ela lhe devolveu o olhar. Os olhos de

ambos estavam gélidos, impenetráveis.







Pois eu vou dizer por que não quer nem considerar o assunto





continuou Arnie, naquela mesma voz suave.





Não se trata de dinheiro,

porque o carro me pôs em c

ontato com um trabalho em que sou bom, e no

qual terminarei ganhando dinheiro. Você sabe disso. Não são as minhas

notas, também. Elas não estão piores do que sempre foram. E você

também sabe disso. É porque você não admite que eu escape de sua

coleira, com

o faz com seu departamento, como faz com

ele!





Arnie

apontou o indicador para Michael, que tinha uma expressão irritada,

culpada e infeliz ao mesmo tempo.





Você não quer me ver fora da

coleira em que sempre estive!



O rosto de Arnie agora estava vermelho,



as m

ãos crispadas ao longo

do corpo.







Toda aquela asneira liberal sobre a família decidir as coisas,

discuti

-

las em reunião, fazê

-

las funcionar... No entanto, o fato é que

você

sempre escolheu minhas roupas para o colégio, meus sapatos para o

colégio, co

m quem eu podia andar e com quem não podia,

você

decidia

onde passaríamos as férias,

você

dizia a ele quando trocar de carro e por

qual carro. Bem, isto é uma coisa que você não pode dirigir e então fica

com um ódio desgraçado, não é mesmo?



Ela o esbofeteo

u no rosto. O som foi como um tiro de rev

ólver na

sala de estar. Lá fora, o crepúsculo se instalara e os carros passavam

indistintos, os faróis dianteiros semelhantes a olhos amarelos. Christine

estava estacionada na entrada asfaltada dos Cunningham, como

estivera

uma vez no gramado de Roland D. LeBay, só que agora parecendo

consideravelmente melhor de aparência





altaneira e acima de toda

aquela feia e indecente discussão familiar. Ela havia, talvez, brotado para

o mundo.






De repente, de modo chocante, Regi

na Cunningham come

çou a

chorar. Aquilo era um fenômeno, algo assim como a chuva no deserto,

uma coisa que Arnie só a vira fazer quatro ou cinco vezes em toda a sua

vida





e em nenhuma das outras ocasiões fora ele o culpado pelas

lágrimas.



Era um choro assu

stador





contou ele a Dennis, mais tarde



, pelo

simples fato de existir. Terrível, porém ainda havia mais: as lágrimas a

tinham feito envelhecer de um golpe, como se Regina houvesse dado um

salto espantoso dos quarenta e cinco para os sessenta anos, no es

paço de

segundos.

O acinzentado p

étreo de seu olhar ficara aguado e enfraquecido.

Subitamente, as lágrimas lhe corriam pelas faces, estragando a pintura do

rosto.



Ela tateou na borda da lareira

à procura de seu drinque e os dedos

colidiram contra o copo, q

ue caiu e espatifou

-

se. Uma espécie de incrédulo

silêncio pairou entre eles três, um espanto por as coisas terem chegado a

tal extremo.



N

ão obstante, mesmo por entre a fraqueza das lágrimas, ela

conseguiu dizer:







Não quero aquele carro em nossa garagem ou



na entrada, Arnold.







Ele não ficará aqui, mamãe





respondeu Arnie friamente.

Caminhou para a porta, depois se virou e olhou para eles.







Obrigado. Por serem tão compreensivos. Muito obrigado, aos

dois. Então saiu.





A

RNIE E

M

ICHAEL



Desde que voc

ê foi embo

ra



Ando por a

í de óculos escuros



Mas sei que tudo ficar

á legal



Enquanto puder ter meu negr

íssimo



e brilhante Cadillac.







Moon Martin








Michael alcan

çou Arnie na entrada para carros, ocupada por

Christine. Pousou a mão no ombro do filho. Arnie sacudiu o ombr

o para

libertar

-

se do contato e continuou remexendo o bolso, em busca das

chaves do carro.







Arnie, por favor.



Arnie deu uma r

ápida meia

-

volta. Por um momento, esteve à beira

de tornar absoluta a escuridão da noite, agredindo o pai. Então, parte da

tensão

em seu corpo diminuiu e se recostou no carro, tocando

-

o com a

mão esquerda, alisando

-

o, parecendo extrair forças dele.







Está bem





disse.





O que você quer?



Michael abriu a boca e ent

ão pareceu incerto quanto ao que fazer.

Um ar de impotência





teria sido



divertido, se não parecesse tão

horrivelmente taciturno





tomou conta de seu rosto. Ele parecia ter

envelhecido, estava desfigurado e nervoso.







Arnie





disse ele, parecendo forçar as palavras contra algum

enorme peso de inércia se opondo.





Eu sinto muit

o, Arnie.







Hum

-

hum





respondeu Arnie, virando

-

se e abrindo a porta do

lado do motorista. Um cheiro agradável de carro bem cuidado escapou do

interior.





Pude ver, pela maneira como ficou do meu lado.







Por favor





disse Michael.





Isto é muito duro para m

im. Mais

do que possa imaginar. Algo em sua voz fez com que Arnie se virasse.

Havia desespero e infelicidade no olhar de seu pai.







Não digo que eu quisesse ficar do seu lado





disse Michael.

Também vejo o lado dela, compreenda. E vi a maneira como você se



impôs, querendo que fosse feita a sua vontade, a todo custo...



Arnie deu uma risada mal

évola.







Em outras palavras, vocês dois pensam o mesmo.







Sua mãe está atravessando uma crise de idade





comentou

brandamente Michael.





Isto tudo é muito difícil para

ela.



Arnie pestanejou, a princ

ípio não muito certo do que ouvira. Era

como se, de repente, seu pai lhe tivesse dito algo na "língua do p"; aquilo




parecia ter tanta importância como se estivesse discutindo escores de

beisebol.







C

-

como?







Crise de idade, en

velhecimento. Ela anda assustada, tem bebido

demais e, às vezes, sente dores físicas. Não sempre





acrescentou, vendo

o ar alarmado de Arnie



, mas já foi ao médico e agora sabemos que é por

causa da mudança de idade. De qualquer modo, sua mãe está

emocion

almente perturbada. Você é filho único e, da maneira como ela

está agora, deseja apenas que tudo lhe corra bem, seja lá a que preço for.







Ela quer tudo à sua maneira, o que não é nenhuma novidade.

Ela

sempre

quis tudo à sua maneira.







O que sua mãe acha c

erto para você, é o que considera correto.

Isso é óbvio





disse Michael.





Entretanto, o que o faz achar

-

se tão

diferente? Ou melhor? Você insistiu em enfrentá

-

la e ela sabia disso.

Como eu também sabia.







Foi ela que começou e...







Não, quem começou foi v

ocê, quando trouxe o carro para casa,

embora sabendo qual a opinião dela. Sua mãe também está certa em outro

ponto: você mudou, Arnie. Desde aquele primeiro dia, quando chegou em

casa, com Dennis e anunciou que comprara um carro. Foi quando tudo

começou. P

ensa que isso não a perturbou? Que não me perturbou também?

Vermos nosso filho exibindo traços de personalidade que nem mesmo

sabíamos existir?







Ora, vamos, papai! Foi apenas um...







Nós agora nunca o vemos, você está sempre trabalhando em seu

carro ou co

m Leigh.







Você está começando a falar como mamãe. Michael riu

subitamente





mas era um riso tristonho.







Está enganado, filho. Nem imagina quanto.

Sua mãe

tem sua

própria personalidade e

você

se parece com ela, mas eu pareço apenas o

cara incumbido de alg

uma idiota força de paz das Nações Unidas, prestes

a botar no fogo o traseiro coletivo.



Arnie encolheu

-

se um pouco; sua m

ão tornou a encontrar o carro e

começou a acariciá

-

lo... acariciá

-

lo...










Está legal





disse.





Acho que entendo o que quer dizer. Não

sei

como permite que ela o manobre desse jeito, mas por mim, tudo bem.



O sorriso triste e humilhado permaneceu, um tanto como a careta do

c

ão que ficou caçando uma marmota durante muito tempo, em um dia

calorento de verão.







Certas coisas talvez constituam



um sistema de vida. Talvez,

também, haja compensações que você não pode entender, nem eu possa

explicar. Como... bem, eu a amo, compreenda.



Arnie deu de ombros.







Certo, mas... e daí?







Podemos dar uma volta?



Arnie pareceu surpreso, depois contente.







Cla

ro. Entre. Algum lugar em particular?







O aeroporto.



As sobrancelhas de Arnie arquearam

-

se.







O aeroporto? Por quê?







Eu lhe direi quando chegarmos lá.







E Regina?







Sua mãe foi para a cama





disse Michael, com voz branda. Arnie

teve o decoro de enrubescer



ligeiramente.





Arnie dirigiu bem e com firmeza. Os novos far

óis de Christine

rasgavam a prematura escuridão em um límpido e fundo túnel luminoso.

Arnie passou pela residência dos Guilder, depois dobrou à esquerda para

Elm Street, junto ao sinal de trânsit

o. Em seguida, rumou para a JFK Drive.

A rota I

-

376 os levou à I

-

287 e então tomaram a direção do aeroporto. O

tráfego era ligeiro. O motor ronronava maciamente, através dos novos

canos de descarga. Os mostradores no painel de instrumentos irradiavam

um mí

stico fulgor esverdeado.



Arnie ligou o r

ádio e encontrou a WDIL de Pittsburgh, estação em

FM, que só tocava músicas antigas. Gene Chandler cantava

"The Duke of

Earl'.










Esta coisa roda como um sonho





disse Michael Cunningham,

parecendo admirado.







Obrigad

o





respondeu Arnie, sorrindo. Michael respirou fundo.







Tem cheiro de

novo.







Há muita coisa nova aqui dentro. As capas traseiras me ficaram

em oitenta pratas. Parte do dinheiro que provocou tanta reclamação de

Regina. Fui à biblioteca, pedi um monte de l

ivros e tentei copiar tudo, o

melhor que pude. De qualquer modo, não foi tão fácil como se possa

pensar.







Por que não?







Em primeiro lugar, o Plymouth Fury 58 não foi lançado como um

carro clássico, de maneira que ninguém escreveu muito a respeito,

inclus

ive nos volumes retrospectivos sobre automóveis: O

Carro Americano,

Automóveis Americanos Clássicos, Automóveis dos Anos 50,

coisas assim. O

Pontiac 58 foi um clássico, mas somente no segundo ano saiu o modelo

Bonneville. O T

-

Bird 58, com aletas em forma d

e orelha de coelho, é que

foi realmente o último grande Thunderbird, acho eu. Além disso...







Não pensei que você entendesse tanto de carros antigos





disse

Michael.





Há quanto tempo se interessa pelo assunto, Arnie?



Ele deu de ombros vagamente.







O pior

é que LeBay havia feito um pedido pessoal, diretamente a

Detroit. O Plymouth não oferecia um modelo Fury em vermelho e branco...

procurei restaurar o carro o mais igual possível à maneira como foi feito

em Detroit. Suei um bocado para isso.







Por que desej

a restaurá

-

lo exatamente como LeBay o tinha?

Novamente, aquele vago encolher de ombros.







Sei lá. Apenas me pareceu o mais acertado a fazer.







Olhe, acho que fez um trabalho excelente.







Obrigado.



Michael inclinou

-

se e observou o painel de instrumentos.







O que é?





perguntou Arnie, um pouco rudemente.







Macacos me mordam





disse Michael.





Nunca vi

isso

antes!










O quê?





Arnie baixou os olhos.





Oh, o odômetro...







Está rodando para trás, não?



Realmente, o odômetro girava para trás. Naquele dia, o entardec

er

de 1º de novembro, indicava 79.500 e tantas milhas. Enquanto Michael

espiava, o indicador das dezenas de milha girou de 2 para 1, depois para 0.

Quando voltou a 9, o marcador de milhas comeu mais uma.



Michael riu.







Eis algo que você deixou passar, filh

o. Arnie riu também





um

leve riso.







Concordo





disse.





Segundo Will, deve haver um fio cruzado

em algum lugar. Creio que não vou mexer nisso. Chega a ser divertido, ter

um odômetro que anda para trás.







Ele é preciso?







Como?







Bem, se você for de nossa



casa à Praça da Estação, ele subtrairia

cinco milhas do total?







Oh, entendi





disse Arnie.





Não, ele não tem nada de preciso.

Atrasa duas ou três milhas, para cada milha real percorrida. Às vezes mais.

O cabo do velocímetro vai acabar rebentando, cedo o

u tarde e, quando o

trocar, o problema se resolverá por si só.



Michael já enfrentara um ou dois cabos do velocímetro rebentados e

olhou para o ponteiro, esperando o tremular característico, indicando que

ali havia problema. O ponteiro, entretanto, permanec

ia imóvel, pouco

acima de 40. O velocímetro parecia excelente; apenas o odômetro é que

enlouquecera. Estaria Arnie acreditando realmente que os mesmos cabos

serviam para o velocímetro e o odômetro? Certamente que não.



Ele riu e comentou:







É qualquer coisa



de fantástico, filho.







Por que o aeroporto?





perguntou Arnie.







Vou lhe dar um tíquete de trinta dias de estacionamento





disse

Michael.





Cinco dólares. Mais barato do que na garagem de Darnell e

você poderá ter o carro sempre que quiser. O ônibus para



o aeroporto faz

parada nos pontos normais de outros ônibus.










Céus, é a coisa mais louca que já ouvi!





bradou Arnie.

Manobrou para o retorno, diante de uma sombria loja de lavagem a

seco.





Vou ter que andar trinta quilômetros de ônibus até o aeroporto

p

ara apanhar meu carro quando quiser? Oh, não! De maneira nenhuma!



Ia dizer mais alguma coisa, quando foi subitamente agarrado pelo

pescoço.







Agora escute





disse Michael.





Sou seu pai, portanto, me ouça!

Sua mãe tinha razão, Arnie. Você ficou irracional,



mais do que irracional,

nos dois últimos meses. Aliás, ficou bastante estranho!







Me larga





exclamou Arnie, esforçando

-

se para libertar

-

se.

Michael não o largou, mas afrouxou a pressão.







Vou colocar a situação por outro ângulo para você





disse.





Sim,

o aeroporto fica a uma boa distância, mas os mesmos 25 centavos que

o levam à garagem de Darnell o trarão até aqui. Há garagens de

estacionamento mais próximas, porém na cidade são maiores as

incidências de roubo e vandalismo. Aqui no aeroporto, ao contrár

io, é

perfeitamente seguro.







Nenhum estacionamento público é seguro.







Em segundo lugar, é mais barato que uma garagem no centro da

cidade e

muito

mais barato do que na Darnell's.







Não é esta a questão, sabe muito bem!







Talvez esteja certo





disse Micha

el



, mas também está

esquecendo algo, Arnie. A questão real.







Suponhamos que você me diga qual é.







Certo, eu direi.





Michael fez uma ligeira pausa, olhando

fixamente para o filho. Ao falar, sua voz era baixa e contida, quase tão

melodiosa como sua flau

ta.





Juntamente com qualquer noção do que é

razoável, você parece ter perdido inteiramente o sentido de perspectiva.

Está quase com dezoito anos, em seu último ano em uma escola pública.

Creio que já decidiu não entrar para Horlicks; estive vendo as broch

uras

de universidades que levou para casa...







Isso mesmo, não vou para Horlicks





disse Arnie, agora um

pouco mais calmo.





Não depois de tudo isto. Você não pode imaginar o

quanto estou querendo afastar

-

me daqui. Bem, talvez imagine.










Sim, eu imagino. T

alvez seja a melhor providência. Melhor do

que esta constante animosidade entre você e sua mãe. Tudo quanto lhe

peço é que não conte a ela por enquanto, que espere até ter enviado seus

documentos de solicitação à universidade.



Arnie deu de ombros, sem nada



prometer.







Você irá levar seu carro para lá, caso ainda esteja rodando...







Ele estará rodando.





...e

se

for uma universidade que permita aos calouros

estacionarem seus carros no

campus.

Arnie se virou para o pai, com a

surpresa brotando de sua raiva lat

ente. Estava surpreso e inquieto. Aquela

era uma possibilidade que ainda não havia considerado.







Não irei para uma universidade que não me permita ter meu

carro comigo





disse.



Seu tom era de paciente recitação, o tipo de voz que um professor de

crianças

excepcionais usaria em aula.







Viu só?





exclamou Michael.





Ela tem razão. Basear sua

escolha de universidade na política escolar envolvendo calouros e carros é

totalmente irracional. Você ficou obcecado por este carro.







Não creio que você consiga entend

er. Michael apertou os lábios

por um momento.







De qualquer modo, que diferença faz vir de ônibus ao aeroporto

para apanhar seu carro, se quiser sair com Leigh? Claro, é um

inconveniente, porém não tão grande assim. Significa que você só o usará

se houver

necessidade, além de poupar dinheiro da gasolina.





Michael

fez uma pausa e tornou a exibir seu sorriso tristonho.





Ambos sabemos

que Regina não encara isto como jogar dinheiro fora. Para ela, este é o seu

primeiro passo decisivo para afastar

-

se dela... d

e nós. Acho que sua mãe...

oh, droga, que sei eu?



Interrompeu

-

se, fitando o filho. Arnie o encarou, pensativo.







Leve o carro para a universidade com você; mesmo se os calouros

forem proibidos de ter carros no

campus,

sempre há outros meios de...







Como es

tacionar no aeroporto?










Sim, mais ou menos isso. Quando você vier para casa nos fins de

semana, Regina ficará tão contente em vê

-

lo que nem mencionará o carro.

Diabo, ela provavelmente até irá para a entrada de automóveis ajudá

-

lo a

lavá

-

lo e poli

-

lo, ape

nas para descobrir o que você estará fazendo. Dez

meses. Então, tudo terminará. Podemos ter paz na família novamente.

Vamos, Arnie. Dirija.



Arnie afastou

-

se da frente da lavanderia e reentrou no tráfego.







Esta coisa está no seguro?





perguntou Michael, ab

ruptamente.

Arnie riu.







Está brincando? Neste Estado quando não se tem um seguro de

responsabilidade legal e acontece um acidente os tiras nos matam. Sem

isso, seremos sempre os culpados, mesmo que o outro carro caia do céu e

nos amasse o teto. Este é um

dos meios pelos quais os bostas mantêm os

adolescentes fora das estradas, na Pensilvânia.



Michael quis dizer a ele que um número despropositado de

acidentes fatais na Pensilvânia





41 por cento





envolvia motoristas

adolescentes. Regina lera a estatística

para ele, como parte de um artigo no

suplemento dominical de um jornal, declamando o número em lentos tons

apocalípticos,

"Quarenta e um

por cento!", pouco depois de Arnie ter

comprado o carro. Não obstante, ficou calado, concluindo que seu filho

não quere

ria ouvir aquilo... pelo menos em seu atual estado de espírito.







Apenas um seguro de responsabilidade legal?



Estavam passando sob um sinal refletor, dizendo FAIXA

ESQUERDA





PARA O AEROPORTO. Arnie ligou o pisca

-

pisca e

mudou de faixa. Michael pareceu rel

axar um pouco.







Só depois dos vinte e um anos se pode fazer um seguro contra

acidentes; essas merdas de companhias de seguros são ricas como Creso,

mas não nos cobrem, a menos que a vantagem esteja

escandalosamente

do

lado delas.



Na voz de Arnie havia uma



nota um tanto impertinente, algo que

Michael jamais havia notado antes. Também estava espantado e um pouco

consternado pela escolha das palavras de seu filho. Imaginava que ele

empregasse tal tipo de linguagem com os companheiros (pelo menos, foi o

que ma

is tarde comentou com Dennis Guilder, parecendo ignorar por

completo que, até seu último ano de ginásio, Arnie não tivera outro




companheiro além do próprio Dennis), mas o fato é que jamais a usara

diante dos pais.







Seu registro de motorista e se é ou não

motorista habilitado nada

têm a ver com isso





prosseguiu Arnie.





Não se pode ter uma batida,

porque as merdas das tabelas atuariais deles dizem que não se pode bater.

Quando o cara faz vinte e um anos, tudo bem, mas desde que esteja

disposto a gastar uma



fortuna, em geral, os prêmios das apólices acabam

sendo mais altos do que as multas impostas ao carro, até completarmos os

vinte e três anos, ou por aí, a menos que estejamos casados. Oh, os bostas

pensaram em tudo direitinho! Eles sabem como encurralar a



gente, ora se

sabem!



À frente e acima deles, as luzes do aeroporto fulguravam, as pistas

de pouso e decolagem delineavam

-

se em místicas paralelas de

luminosidade azulada.







Se alguém chegar para mim e perguntar qual a forma de vida

humana mais baixa, resp

onderei que é um agente de seguros.







Parece ter feito um profundo estudo a respeito





comentou

Michael.



Não ousava dizer algo mais, pois Arnie parecia esperar um pretexto

para um novo acesso de ódio.







Andei perguntando em cinco companhias diferentes. Ape

sar do

que mamãe insinuou, não sinto a menor vontade de jogar meu dinheiro

fora.







E responsabilidade legal foi o máximo que conseguiu?







Certo. Seiscentos e cinqüenta dólares por ano. Michael assobiou.







Exatamente isso





acrescentou Arnie.



Outro sinal in

termitente avisava que as duas faixas da mão esquerda

eram para estacionar, as da direita para partida ou saída. À entrada do

pátio de estacionamento, o caminho se dividia novamente. À direita,

havia um portão automático, onde era obtido um tíquete para

es

tacionamento de curto prazo. No lado esquerdo, ficava a cabina

envidraçada onde permanecia o encarregado do pátio de estacionamento,

vendo uma pequena TV em preto e branco e fumando um cigarro.



Arnie suspirou.










Talvez você esteja certo. Enfim, esta pode s

er a melhor solução.







Claro que é





disse Michael, aliviado. Arnie estava se

assemelhando agora ao antigo Arnie e aquele brilho duro de seus olhos

desaparecera finalmente.





Dez meses, eis tudo.







Certo.



Dirigiu até a cabina. O encarregado, um rapazinho c

om a suéter

preta e laranja do ginásio, com o escudo do Libertyville nos bolsos, fez

deslizar a divisão envidraçada e inclinou

-

se para fora.







O que vai ser?





perguntou.







Eu queria um tíquete para trinta dias





disse Arnie, enfiando a

mão no bolso para t

irar a carteira.



Michael pousou a mão sobre a dele.







A idéia foi minha





disse.





Eu pago.



Arnie puxou a mão, com delicadeza, mas firmemente, e tirou a

carteira.







O carro é meu





respondeu.





Eu mesmo pago.







Eu só queria...





começou Michael.







Eu sei





disse Arnie



, mas quero pagar. Michael suspirou.







Dava para imaginar. Você e sua mãe... Tudo ficará ótimo, desde

que feito como sugeri. Os lábios de Arnie tremeram momentaneamente,

depois sorriram.







Bem... é isso aí





disse ele.



Os dois se entreolharam



e começaram a rir.



No mesmo instante em que riram, o motor de Christine morreu. Até

então, a máquina viera funcionando com absoluta perfeição. Agora,

simplesmente, silenciara; as luzes do marcador do óleo e amperagem se

apagaram.



Michael ergueu as sobranc

elhas.







O que terá sido?







Não sei





respondeu Arnie, franzindo o cenho.





Nunca

aconteceu antes. Girou a chave e o motor pegou imediatamente.










Bem, parece que não foi nada





comentou Michael.







No fim da semana, vou dar um jeito na regulagem





murmurou

Arnie.



Ligou o motor e ouviu atentamente. Naquele momento, Michael

constatou que Arnie não tinha a menor semelhança com seu filho. Parecia

uma outra pessoa, alguém muito mais velho e endurecido. Sentiu uma

leve, mas extremamente dolorosa aguilhoada de medo



no peito.







Ei, vai querer o tíquete ou prefere ficar aí a noite inteira,

discutindo sua regulagem?





perguntou o encarregado do pátio de

estacionamento.



Arnie o achou vagamente familiar, como acontece quando vemos

alguém se movimentando pelos corredores

da escola, sem que tenhamos

nada a ver com tal pessoa.







Oh, sim, desculpe.



Arnie entregou

-

lhe uma nota de cinco dólares e o encarregado lhe

deu um tíquete mensal.







No fim do pátio





indicou o rapazinho.





Não esqueça de

revalidar o tíquete cinco dias ant

es do fim do mês, se quiser ter a mesma

vaga novamente.







Certo.



Arnie dirigiu para os fundos do pátio, a sombra de Christine

avolumando e encolhendo, quando passavam sob os postes com

lâmpadas de sódio. Encontrou uma vaga e manobrou o carro para ela.

Quan

do desligou o motor, fez uma careta e levou a mão às costas.







Isso ainda o incomoda?





perguntou Michael.







Só um pouquinho





respondeu Arnie.





Quase havia

desaparecido, mas voltou ontem. Devo ter levantado algum peso, sem

querer. Não esqueça de trancar

sua porta.



Os dois saíram e trancaram o carro. Uma vez fora dele, Michael se

sentiu muito melhor





como se estivesse mais ligado ao filho e,

provavelmente ainda mais importante, com a impressão de não ser tão

grande o seu papel de bobo impotente com uma ti

lintante carapuça de

sininhos, na discussão que acontecera em casa. Fora do carro, surgia a

sensação de que algo poderia ser salvo daquela noite





talvez muita coisa.










Vejamos o quanto esse ônibus é rápido





disse Arnie.



Juntos, começaram a cruzar o pátio



de estacionamento em direção

ao terminal, como dois companheiros.



No trajeto para o aeroporto, Michael formara uma opinião sobre

Christine. Ficara impressionado com o trabalho de restauração feito por

Arnie, mas não gostava do carro em si





teve por ele p

rofunda antipatia.

Refletiu que era ridículo sentir

-

se daquela forma em relação a um objeto

inanimado, porém a antipatia estava ali, forte e indiscutível, como um

caroço em sua garganta.



Era impossível isolar a fonte do antagonismo. Aquele carro

provocara

um amargo problema familiar, e ele supôs que talvez fosse esse

o motivo... porém não era tudo. Michael não gostara do jeito como

Arnie

ficava,

quando na direção: algo arrogante e petulante ao mesmo tempo,

como um pequeno rei. O modo impotente como injuriar

a o seguro... seu

uso daquela palavra feia e contundente





"bostas"



, inclusive a maneira

como o carro morrera, quando tinham rido juntos.



Havia ainda o cheiro. Não era perceptível logo de início, mas estava

lá. Não o cheiro das novas capas dos assentos,

porque este era bastante

agradável. O outro exalava um odor sutil, amargo e quase (mas não

inteiramente) secreto. Um odor antigo. Bem, disse Michael para si mesmo:

o carro é velho; por que, raios, era de se esperar um cheiro de novo?

E



isto fazia

um sentid

o indiscutível. A despeito do trabalho realmente fantástico que

Arnie fizera nele ao restaurá

-

lo, o Fury tinha vinte anos de idade. Aquele

cheiro acre e mofado poderia provir da forração antiga do porta

-

mala ou

dos tapetes velhos, por baixo dos novos. Talv

ez se originasse do

estofamento original, sob os novos e reluzentes. Apenas um cheiro de

idade.



No entanto, aquele cheiro subjacente, difuso e vagamente doentio o

preocupava. Parecia ir e vir em ondas, às vezes bastante perceptível, em

outras totalmente in

detectável. Não parecia ter uma fonte específica.

Quando no auge, era o cheiro semelhante ao exalado pelo cadáver

putrefato de algum animal pequeno





um gato, um camundongo, talvez

um esquilo





que houvesse penetrado no porta

-

mala ou rastejado para o

inter

ior da estrutura, e lá tivesse morrido.



Michael estava orgulhoso com o que seu filho realizara... e muito

satisfeito em sair do carro dele.








S

ANDY



Primeiro caminhei pelo Pare e Compre,



Depois passei de carro pelo Pare e Compre.



Gostei muito mais, quando pa

ssei dirigindo pelo Pare e Compre,



Porque tinha o rádio ligado.







Jonathan Richmond e os Modern Lovers





O encarregado do pátio de estacionamento naquela noite





de fato,

todas as noites, das seis da tarde às dez da noite





era um jovem

chamado Sandy Galton

, o único membro do bando de amigos íntimos de

Buddy Repperton que não estivera presente na área de fumar no dia em

que Buddy fora expulso do colégio. Arnie não o reconheceu, mas Galton o

viu muito bem.



Afastado da escola e sem o menor interesse em iniciar



as

providências para sua readmissão no início do semestre da primavera, em

janeiro, Buddy Repperton tinha ido trabalhar no posto de gasolina

dirigido pelo pai de Don Vandenberg. Em suas poucas semanas de serviço

ali, ele já pusera em ação um razoável núme

ro de tramóias





como dar

troco incompleto aos clientes apressados demais para contar as notas

recebidas, praticar a farsa da recauchutagem (cobrando do cliente um

pneu recauchutado como se fosse novo e embolsando a diferença de

quinze a sessenta dólares),



praticar ato semelhante com "peças usadas" e

também vender tíquetes de inspeção a rapazinhos do ginásio e da

próxima Universidade de Horlicks, jovens demasiado ansiosos em

manterem na estrada suas mortais arapucas.



O posto ficava aberto vinte e quatro hor

as por dia e Buddy

Repperton trabalhava no último turno, de 9 da noite às cinco da manhã.

Por volta de onze da noite, "Penetra" Welch e Sandy Galton às vezes

apareciam lá, no velho e maltratado Mustang de Sandy. Richie Trelawney

costumava ir em sua Firebir

d, e Don, naturalmente, estava sempre

chegando e saindo quase todo o tempo, quando não ficava divertindo

-

se

na escola. Por volta de meia

-

noite de qualquer dia da semana, era comum




ver

-

se seis ou oito indivíduos nas dependências do prédio, bebendo

cerveja e

m xícaras sujas, esvaziando em rodízio uma garrafa do Texas

Driver de Buddy, fumando um baseado ou comendo qualquer coisa,

arrotando, contando piadas sujas, mentindo sobre quantas conas estavam

comendo e talvez ajudando Buddy a roubar o que quer que estive

sse

dando sopa por ali.



Durante uma daquelas reuniões de fim de noite, em princípios de

novembro, aconteceu de Sandy mencionar que Arnie Cunningham estava

estacionando sua máquina na área do aeroporto de longo prazo. De fato,

Cunningham havia pago um tíque

te de estadia por trinta dias.



Buddy, cuja conduta costumeira durante aquelas reuniões de

fanfarronice a altas horas era de macambúzio retraimento, empurrou

bruscamente para trás sua cadeira de assento plástico barato, sobre todas

as quatro pernas, e coloc

ou sua garrafa de Driver sobre o armário dos

limpadores de pára

-

brisa, com um baque surdo.







O que foi que você disse?





perguntou.





Cunningham? O

velho Cara de Cona?







Hum

-

hum





disse Sandy, surpreso e um tanto inquieto.





Era

ele.







Tem certeza? O cara

que me chutou da escola? Sandy olhou para

ele com crescente alarma.







Exato. Por quê?







E ele ficou com um tíquete de trinta dias, sinal de que vai ficar

estacionado nas vagas de longo prazo.







Certo. Talvez seus velhos não quisessem que ele deixasse o car

ro

em...



A voz de Sandy extinguiu

-

se. Buddy Repperton começara a sorrir.

Aquele sorriso não era uma visão agradável, não apenas porque os dentes

por ele revelados começassem a ficar cariados. Era como se algum terrível

mecanismo, em alguma parte, tivesse a

cabado de ganhar vida e começasse

a funcionar, ganhando alta velocidade.



Buddy olhou em torno, de Sandy para Don, depois "Penetra" Welch

e Richie Trelawney. Os outros o encararam interessados e um pouco

assustados.










O Cara de Cona





disse ele em tom suave

, acariciante.





O

velho Cara de Cona já legalizou sua máquina e seus velhos caretas fizeram

ele estacionar no aeroporto...



Ele riu.



"Penetra" e Don trocaram um olhar que tanto tinha de inquieto

como de ansioso.



Buddy inclinou

-

se para eles, de cotovelos no

s joelhos dos

jeans.







Ouçam





começou.





A

RNIE E

L

EIGH



Rodando em meu automóvel,



Com meu bem junto de mim, no volante,



Roubei um beijo e rodei mais depressa,



A curiosidade ficando mais forte





Rodando e ouvindo o rádio,



Sem nenhum destino certo.







Chuck Be

rry





O rádio do carro estava na WDIL e Dion cantava "Runaround Sue"

em sua voz forte, a plenos pulmões, porém nenhum deles o ouvia.



Ele escorregara a mão por baixo da camiseta que ela usava e

encontrara a glória macia dos seios, coroados por mamilos eretos



e rijos de

excitamento. A respiração dela saía em haustos curtos e ofegantes. E, pela

primeira vez, encaminhara a mão para onde ele queria, para onde ele a

necessitava,

na junção das coxas, onde pressionava, virava e mexia, sem

experiência, mas com desejo



suficiente para suprir a deficiência.



Ele a beijou e ela abriu a boca amplamente, expondo a língua. O

beijo foi como inalar o límpido aroma/sabor de uma floresta após a chuva.

Ele podia sentir o excitamento, a ânsia que ela exalava, como uma aura.






Inclino

u

-

se para ela,

estirou

-

se

em sua direção, todo inteiro e, por um

momento, sentiu

-

a corresponder com pura e simples paixão.



Então, ela não estava mais ali.



Arnie sentou

-

se ereto, admirado e estupidificado, um pouco à

direita do volante, quando a luz do teto



de Christine se acendeu. Foi um

breve clarão, a porta do passageiro bateu com firmeza, fechando

-

se, e a

luz voltou a desligar

-

se.



Ele ficou parado mais alguns segundos, não muito certo sobre o

acontecido, momentaneamente nem muito certo de onde se encontr

ava.

Seu corpo estava em total ebulição





um confuso amontoado de emoções

e erráticas reações físicas, metade maravilhosas e metade terríveis. Sua

glande doía; o pênis enrijecera como uma barra de ferro e os testículos

latejavam surdamente. Ele podia senti

r a adrenalina turbilhonando

velozmente no sangue, subindo, descendo, indo a todos os recantos.



Seu punho fechado caiu com força sobre a perna. Então, deslizando

no assento, abriu a porta e foi atrás dela.



Leigh estava de pé bem na borda da terraplenagem,

olhando para a

escuridão mais abaixo. Dentro de um brilhante retângulo, no meio

daquela escuridão, Sylvester Stallone varou a noite, vestido como um

jovem líder trabalhista dos anos 30. Arnie tinha experimentado

novamente a sensação de viver em algum sonho



maravilhoso que, a

qualquer momento, poderia transformar

-

se em pesadelo... talvez isso já

tivesse começado a acontecer.



Ela estava demasiado perto da borda





ele lhe pegou o braço e a

puxou delicadamente para trás. O solo ali era seco e esboroado. Não hav

ia

gradil nem mureta. Se a terra da borda cedesse Leigh teria ido junto, cairia

em alguma parte das moradias suburbanas espalhadas a esmo em torno

do

drive

-

in

de Liberty Hill.



A terraplenagem tinha sido o local de encontro dos namorados,

desde tempos imemo

rais. Ficava no final de Stanson Road, uma longa e

serpenteante faixa de duas pistas asfaltadas, que primeiro se curvara para

fora da cidade, depois formando uma curva apertada e retomando até

morrer como rua sem saída em Libertyville Heights, onde outrora



houvera uma fazenda.






Era 4 de novembro e a chuva que começara no início daquela noite

de sábado transformara

-

se em ligeiro chuvisco. Eles tinham a

terraplenagem e a visão grátis do

drive

-

in

(embora silenciosa) para si

mesmos. Arnie a conduziu de volta ao

carro





ela voltou de boa

vontade



, observando os diminutos pingos do chuvisco no rosto de

Leigh. Foi somente no interior, à luz fantasmagórica do clarão esverdeado

que brotava do painel de instrumentos, que Arnie teve certeza: ela estava

chorando.







O qu

e foi?





perguntou ele.





O que houve de errado? Ela

sacudiu a cabeça e chorou mais forte.







Eu fiz... alguma coisa que você não queria?





Engolindo em seco,

obrigou

-

se a perguntar:





Tocando

-

me daquele jeito?



Ela tornou a sacudir a cabeça, mas Arnie não t

inha certeza do

significado. Ele a abraçou, desajeitado e preocupado. No fundo da mente,

pensava na camada de neve que se formara, na viagem de volta descendo

a ladeira e no fato de que ainda não colocara pneus de neve em Christine.







Nunca fiz isso com ne

nhum rapaz





disse ela, contra o ombro

dele.





Foi a primeira vez que toquei... você sabe. Fiz porque queria.

Porque quis mesmo.







Então, o que foi?







Não posso... aqui.



As palavras saíram lentas e difíceis, uma de cada vez, com quase

medrosa relutância.







Na terraplenagem?





disse Arnie.



Olhou estupidamente em torno, pensando que Leigh talvez

acreditasse que só tinham ido ali para verem o filme sem pagar.







Neste carro!





gritou ela, de repente.





Não posso fazer amor

com você neste carro!







Hein?





Ele a

fitou, sem entender.





De que está falando? E por

que não?







Porque... porque... eu não sei!





Ela se esforçou para dizer algo

mais, porém explodiu em novas lágrimas.



Arnie tornou a abraçá

-

la, até vê

-

la acalmar

-

se.










Apenas não sei a quem você está amando

mais





disse Leigh,

quando o choro permitiu.







Isso é...





Arnie interrompeu

-

se, meneou a cabeça e sorriu.





Isso é loucura, Leigh!







Será mesmo?





perguntou ela, observando

-

lhe o rosto.





Com

qual de nós você fica mais tempo? Comigo... ou com ela?







Está

falando de Christine?



Ele olhou em torno, esboçando aquele enigmático sorriso que ela

tanto podia achar adorável ou terrivelmente odioso





às vezes, ambas as

coisas ao mesmo tempo.







Estou





disse Leigh, em voz sem entonação. Baixou os olhos

para as mãos q

ue jaziam inanimadas sobre as calças compridas de lã

azul.





Acho que é imbecilidade minha.







Fico muito mais tempo com você





disse Arnie. Meneou a

cabeça.





Isso é loucura. Bem, talvez seja o normal... e apenas eu ache

uma loucura, porque nunca tive uma

namorada antes.



Estendeu a mão e tocou

-

lhe os cabelos, onde cascateavam sobre um

ombro do casaco aberto. Por baixo, a camiseta dizia DÊ

-

ME

LIBERTYVILLE OU DÊ

-

ME A MORTE e os mamilos salientavam

-

se sob o

algodão fino de modo tão sensual que Arnie se sentiu

algo delirante.







Pensei que garotas sentissem ciúmes de outras garotas. Não de

carros. Leigh riu brevemente.







Tem razão. Deve ser porque você nunca teve uma namorada.

Carros são garotas. Não sabia?







Ora, francamente...







Então, por que não lhe deu o nom

e de Christopher?



Repentinamente, Leigh bateu com a palma aberta, fortemente,

contra o assento. Arnie pestanejou.







Ora, vamos, Leigh. Não faça isso.







Não gosta que eu bata em sua garota?





perguntou ela, com

súbito e inesperado veneno. Então, percebeu os



olhos magoados.





Sinto

muito, Arnie.










Sente mesmo?





disse ele, fitando

-

a inexpressivamente.





Parece que ninguém gosta de meu carro, no momento: você, meu pai,

minha mãe, até mesmo Dennis. Larguei couro do corpo, trabalhando nele,

e tudo significa apen

as zero para os outros!







Significa algo para mim





disse ela, maciamente.





O

trabalho

que deu.







Hum

-

hum





disse Arnie, taciturnamente. A paixão, o calor

haviam desaparecido. Sentia frio agora e tinha o estômago um pouco

nauseado.





Escute, é melhor irmo

s andando. Não tenho pneus para neve.

Seus pais vão achar muito esquisito, nós dois irmos jogar boliche e depois

ficarmos presos na Stanson Road.



Leigh riu baixinho.







Eles não sabem onde a Stanson Road termina.



Arnie ergueu uma sobrancelha para ela, parte



do bom humor

retornando.







Isto é o que

você

pensa





disse.





Arnie dirigiu lentamente na descida, quando voltavam. Christine se

saiu muito bem, na estrada íngreme e serpenteante, suas rodas aderindo

perfeita e facilmente ao solo. O chuveiro de estrelas te

rrestres, que eram

Libertyville e Monroeville, foi ficando maior, depois se fundiu e parou de

ostentar qualquer formato. Leigh olhava para aquilo com tristeza,

sentindo que a melhor parte de uma noite potencialmente espetacular de

algum modo se perdera. Es

tava irritada, menosprezando

-

se





insatisfeita,

foi o que supôs. Havia uma dor surda em seus seios. Ignorava se

pretendia deixá

-

lo ir "até o fim da linha" como era eufemisticamente

conhecido, mas depois que a situação chegara a um certo ponto, nada

havia s

ido como esperara... tudo porque havia aberto a maldita boca no

momento errado.



Seu corpo estava confuso e o mesmo acontecia aos pensamentos. Por

várias vezes, durante a quase silenciosa corrida de volta, ela abriu a boca,

a fim de tentar esclarecer como s

e sentia... para tornar a fechá

-

la, receando

ser interpretada erradamente. Aliás, a própria Leigh não sabia ao certo

como se sentia.






Não tinha ciúmes de Christine... e tinha, ao mesmo tempo. Quanto a

isso, Arnie não dissera a verdade. Leigh fazia uma boa i

déia de todo o

tempo que ele gastava consertando o carro, mas o que havia de tão errado

nisso? Arnie tinha habilidade manual, gostava de trabalhar no carro e este

rodava como um relógio... exceto por aquele esquisito detalhe do

odômetro, cujos números corr

iam para trás.



Carros são garotas,

ela dissera, sem pensar muito no que dizia; aquilo

apenas lhe escapara da boca. Evidentemente, nem sempre isto era verdade,

porque não pensava no sedã de sua família como tendo um gênero em

particular; era apenas um Ford.



Só que...



Esqueça, livre

-

se de todas essas idiotices, essas besteiras! A verdade

era muito mais brutal, inclusive mais louca, não? Ela não pudera fazer

amor com ele, não pudera tocá

-

lo daquele jeito íntimo, muito menos

pensara em fazê

-

lo chegar ao clímax

daquela maneira (ou da outra, a

maneira real





tinha pensado nisso vezes sem conta, enquanto jazia em

sua cama estreita, sentindo um novo e quase incrível excitamento assaltá

-

la), dentro do carro.



Não naquele carro.



Porque a parte mais alucinante de tudo h

avia sido sentir que

Christine os

espiava.

Sentir que talvez tivesse ciúmes deles, que os

desaprovava, até mesmo odiava. Porque havia ocasiões (como agora,

quando Arnie dirigia o Plymouth tão suave e delicadamente através das

camadas de neve que se iam for

mando) em que ela sentia estarem os

dois





Arnie e Christine





abraçados, envolvidos em perturbadora

paródia do ato amoroso. Porque Leigh não se sentia

andando

em Christine;

ao entrar no carro para ir com Arnie a algum lugar, sentia

-

se

engolida por

Christi

ne. E o ato de beijá

-

lo, de fazer amor com ele, parecia uma

perversão, pior que o

voyeurismo

ou exibicionismo





era como fazer amor

dentro do corpo de sua rival.



E a parte realmente louca daquilo era que odiava Christine.



Odiava

-

a e a temia. Leigh passara

a ter uma vaga irritação contra

caminhar diante da nova grade do radiador ou muito perto do porta

-

mala.

Surgiam

-

lhe vagos pensamentos do freio de emergência falhando ou da

mudança passando bruscamente de parado para ponto morto, por algum




motivo. Jamais nu

trira pensamentos semelhantes em relação ao sedã da

família.



O mais importante, contudo, era não querer fazer nada no carro... ou

mesmo ir nele a algum lugar, se pudesse evitá

-

lo. De algum modo, Arnie

ficava diferente quando dentro do carro, transformava

-

s

e em uma pessoa

que ela não conhecia mais. Adorava o contato das mãos dele em seu

corpo





seus seios e coxas (ainda não permitira que ele tocasse o seu

centro, mas desejava as mãos de Arnie lá; achava que, se ele a tocasse lá,

ela certamente se diluiria).

O contato dele sempre lhe provocava um sabor

de excitamento na boca, a sensação de que cada sentido estava vivo e

deliciosamente sincronizado. No carro, entretanto, tais sensações pareciam

embotadas... talvez porque, no carro, Arnie fosse menos honestament

e

apaixonado e, de certo modo, mais lúbrico.



Leigh tornou a abrir a boca quando dobraram para a sua rua,

querendo explicar um pouco daquilo mas, novamente, nada conseguia

dizer. Por que falar? Nada havia realmente para explicar





era tudo

muito vago. Vapor

es nebulosos. Bem... havia uma coisa





mas isto não

poderia contar a ele, porque o magoaria demais. E Leigh não queira feri

-

lo,

pois achava que estava começando a amá

-

lo.



Contudo, a coisa existia. Estava lá.



O cheiro





um cheiro forte e pútrido, camuflado

sob o aroma dos

estofamentos novos e do fluido de limpeza que ele usara nos tapetes do

piso. Estava lá, fraco, mas terrivelmente desagradável. Quase nauseante.



Como se, alguma vez, qualquer coisa houvesse rastejado para

dentro do carro e tivesse morrido lá

.





Ele lhe deu um beijo de boa

-

noite à porta de casa, a neve cintilando

prateada no cone de luz amarela, despejada pela lâmpada da entrada de

carros, aos pés dos degraus da varanda. A claridade reluzia como jóias, no

louro

-

escuro de seus cabelos.



Arnie gos

taria de tê

-

la beijado realmente, mas o fato de os pais dela

poderem estar espiando da sala de estar





deviam estar lá, sem dúvida, o

forçou a beijá

-

la quase formalmente, como se beijaria uma prima querida.







Sinto muito





disse ela.





Agi como uma tola.










Não





respondeu Arnie, obviamente querendo dizer sim.







Foi apenas porque





sua mente forneceu algo que era um

curioso híbrido de verdade e mentira





não me pareceu correto no carro.

Em

nenhum

carro. Quero ficar com você, mas não estacionados no escuro,

n

o fim de uma rua sem saída. Você compreende?







Claro





disse ele.





Compreendo perfeitamente o que quer dizer.



Lá em cima, na terraplenagem, dentro do carro, ficara um pouco

aborrecido com ela... para ser franco, ficara bem irritado. Agora, no

entanto, jun

to à porta de sua casa, achou que podia compreender





e

admirou

-

se por não querer negar

-

lhe nada ou contrariar

-

lhe a vontade de

modo algum.



Ela o afagou, passou os braços por seu pescoço. O casaco continuava

aberto e Arnie pôde sentir o toque macio e enlou

quecido de seus seios.







Amo você





disse Leigh, pela primeira vez.



Então, deslizou para dentro de casa, deixando

-

o de pé

momentaneamente na entrada, agradavelmente surpreso e muito mais

acalorado do que deveria estar, naquela pulsante e tamborilante neve

de

fins do outono.



A idéia de que os Cabot poderiam achar peculiar que ele

permanecesse parado à sua porta por muito mais tempo, sob a neve,

finalmente abriu caminho em seu cérebro entorpecido. Arnie deu meia

-

volta e começou a caminhar pela entrada de carr

os, entre o pulsar e o

tamborilar da neve, estalando os dedos e sorrindo. Estava agora rodando

na montanha

-

russa, fazendo a melhor parte do trajeto, a que só deixam a

gente fazer uma vez.



Perto do ponto em que a alameda de concreto se unia à calçada, ele

p

arou, o sorriso desaparecendo do rosto. Christine ficara junto ao meio

-

fio

com pequenos flocos de neve desfeitos misturados ao chuvisco, perolando

seu vidro, maculando as luzes vermelhas de lembrete do painel interno.

De passagem, ele se perguntou qual ser

ia a fonte daquela particular

expressão





luzes de lembrete;

uma expressão desagradável. Seus

pensamentos foram então cortados pela cogitação mais importante:

deixara Christine com o motor ligado e ele havia parado. Era a segunda

vez que acontecia.










Fiaçã

o molhada





murmurou para si mesmo.





Tem que ser

isso.



Não podiam ser as velas, colocara todo um novo conjunto na

garagem de Will, apenas dois dias antes. Oito novas Champions e...



Com qual de nós você fica mais tempo? Comigo... ou com ela?



O sorriso reto

rnou, mas agora era inquieto. Bem, ele ficava mais

tempo às voltas com carros

em geral





claro. Isto, porque trabalhava para

Will. Não obstante, era ridículo imaginar que...



Você mentiu para ela. Não foi?



Não,

respondeu para si mesmo, nervoso.

Acho que, na

realidade, não se

poderia dizer que menti para ela...



Não mesmo? Então, que nome dá a isso?



Pela primeira e única vez, desde que levara Leigh ao jogo de futebol

em Hidden Hill, ele lhe pregara uma grande mentira. Porque a verdade é

que ficava mais tempo co

m Christine e odiava tê

-

la estacionada naquela

área de longa estadia do pátio de estacionamento do aeroporto, exposta ao

vento e à chuva, dentro em pouco também à neve...



Mentira para Leigh.



Ele ficava mais tempo com Christine.



E isso era...



Era...







Errad

o





resmungou, e a palavra quase se perdeu entre o

pegajoso e misterioso som da neve caindo.



Arnie ficou parado na calçada, contemplando o carro cujo motor

silenciara, um viajante do tempo, maravilhosamente ressuscitado da era

de Buddy Holly, de Khruschev

e de Laika, a cadela espacial. E odiou

-

o de

repente. Não estava bem certo do que, mas ele lhe tinha feito algo.

Alguma coisa.



As luzes de lembrete, deformadas para olhos vermelhos em forma

de bolas de futebol, pela umidade na vidraça, pareciam zombar dele

e

censurá

-

lo ao mesmo tempo.






Arnie abriu a porta do lado do motorista, deslizou para o volante e

tornou a fechá

-

la. Cerrou os olhos. A paz fluiu por ele e as coisas pareciam

acudir juntas à mente. Sim, mentira para ela, mas fora uma pequena

mentira. Uma me

ntirinha insignificante. Não





uma mentira

absolutamente

sem importância.



Estirou a mão, sem abrir os olhos, e tocou o retângulo de couro ao

qual as chaves estavam presas





velho e surrado, com as iniciais R.D.L.

gravadas a fogo. Arnie não sentira necessid

ade de um novo porta

-

chaves

ou de um pedaço de couro com suas próprias iniciais.



Entretanto, havia algo peculiar sobre a etiqueta de couro que reunia

as chaves, não havia? Sim, havia. Algo bastante peculiar.



Quando contara o dinheiro sobre a mesa da cozinh

a de LeBay e ele

lhe jogara as chaves através da toalha de oleado em xadrez vermelho e

branco, o retângulo de couro estava puído, deteriorado e encardido pela

idade, as iniciais quase apagadas pelo tempo e pela constante fricção

contra as moedas no bolso d

o velho e o próprio tecido do bolso.



Agora, as iniciais sobressaíam no couro, vivas e nítidas novamente.

Tinham sido renovadas.



Como a mentira, no entanto, aquilo não tinha qualquer importância.

Sentado no interior da concha metálica da carroceria de Chris

tine, ele

concluiu decisivamente que aquela era a verdade.



Ele soube.

Sem a menor importância, tudo aquilo.



Girou a chave.

O starter gemeu

mas, durante bastante tempo, o motor

não pegou. Fiação molhada. Claro que tinha de ser aquilo.







Por favor





sussurro

u.





Está tudo bem, não se preocupe, tudo

está como antes.



O motor pegou e falhou. O

starter

ficou uivando sem parar. A neve

derretida pela chuva se colava fria sobre o vidro. Era seguro ali dentro,

seco e aquecido. Se o motor pegasse...







Vamos





sussurro

u Arnie.





Vamos, Christine. Vamos, meu

bem.



O motor pegou novamente, com firmeza agora. As luzes de

lembrete piscaram e apagaram. A luz DIN tornou a pulsar fracamente

enquanto o motor se esforçava para pegar, apagando

-

se depois de vez,




quando as pulsações



da máquina se uniformizaram para um firme

ronronar.



O aquecedor expeliu ar quente, suavemente, em torno de suas

pernas, negando a gelidez do exterior.



Ele tinha a impressão de que Leigh não podia entender certas coisas,

jamais as entenderia. Porque não es

tivera por ali antes. As espinhas. Os

gritos de

"Ei, Cara de Pizza!".

O querer falar, querer chegar às outras

pessoas e ser incapaz disso. A impotência. Parecia

-

lhe que ela não podia

compreender o simples fato de que, não fosse Christine, ele jamais teria

coragem de telefonar

-

lhe, mesmo que Leigh perambulasse com QUERO

SAIR COM ARNIE CUNNINGHAM tatuado na testa. Ela não podia

compreender que, às vezes, ele se sentia com trinta anos a mais do que sua

idade. Não, cinqüenta anos a mais! Não um adolescente, em

absoluto, mas

algum veterano terrivelmente vencido, retornando de uma guerra não

-

declarada.



Arnie acariciou o volante. Os verdes olhos

-

de

-

gato dos indicadores,

no painel de instrumentos, cintilaram confortavelmente para ele.







Tudo certo





disse ele.



Quase



suspirou. Puxou a mudança para o D maiúsculo e ligou o

rádio. Dee Dee Sharp cantando

"Mashed Potato Time"





tolice mística nas

ondas radiofônicas, brotando do escuro.



Partiu, planejando encaminhar

-

se para o aeroporto, onde

estacionaria o carro e pegaria o



ônibus que o traria de volta à cidade. Foi o

que fez, mas não em tempo de pegar o ônibus das 23 horas, como

pretendera. Em vez disso, apanhou o da meia

-

noite e, só quando já estava

na cama, recordando os beijos cálidos de Leigh, em vez de pensar na falha

do motor de Christine, ocorreu

-

lhe que naquela noite, após deixar a casa

dos Cabot e antes de chegar ao aeroporto, perdera uma hora. Era algo tão

óbvio, que ele se sentiu como o homem que, após revirar a casa de alto a

baixo, procurando uma peça vital de c

orrespondência, acaba descobrindo

que, o tempo todo, a tinha na outra mão. Óbvio... e um tanto assustador.



Onde estivera?



Tinha uma vaga noção de afastar

-

se do meio

-

fio, em frente à casa de

Leigh, e então apenas...



... apenas rodar.






Exatamente. Rodar. Era

tudo. Nada de importante.



Rodando por sobre a neve que se espessava, rodando por ruas

vazias e amortalhadas de branco, rodando sem pneus de neve (mas ainda

assim, por incrível que fosse, Christine rodava com segurança, parecia

descobrir a maneira mais segu

ra de ir em frente, como que por magia,

avançando com tal firmeza que dava a impressão de trafegar sobre trilhos),

rodando com o rádio ligado, ouvindo uma corrente constante de músicas

antigas, consistindo apenas em nomes de garotas: "Peggy Sue", "Carol",

"Barbara

-

Ann", "Susie Querida".



Arnie tinha a vaga idéia de que, a certa altura, ficara um tanto

amedrontado e apertara um dos botões cromados do transformador que

instalara, mas em vez de FM

-

104 e do

Block Party Weekend,

voltou a captar

a estação WDIL, só



que agora o

disc

-

jockey

tinha uma absurda semelhança

com Allan Fred, e a voz que se seguiu era a de Screamin' Jay Hawkins,

rouca e cantando:

"Lancei um feitiço em vocêêê... porque você é miiiiinha...".



Por fim, lá estava o aeroporto, com suas luzes do mau



tempo

pulsando seqüencialmente, como uma batida cardíaca visível. O que quer

que o rádio tocava, tornara

-

se inaudível numa confusão de estática, e ele o

desligou. Ao sair do carro, experimentou uma suada espécie de

incompreensível alívio.



Agora ele jazia

na cama, querendo dormir, mas incapaz de conciliar

o sono. O granizo engrossara, acumulando

-

se em pesadas camadas de

neve.



Aquilo não estava certo.



Algo havia sido iniciado e algo estava em andamento. Ele nem ao

menos podia mentir para si mesmo e dizer que



nada sabia a respeito. O

carro





Christine





recebera elogios de várias pessoas, todas dizendo

como havia sido espetacularmente restaurado. Arnie fora nele para a

escola e os colegas de Mecânica de Motores se comprimiram em torno,

espiaram debaixo do auto

móvel em deslizadores de rodas, querendo ver

os novos canos de escapamento, os novos amortecedores, a lanternagem.

Mergulharam até a cintura no compartimento do motor, verificando as

correias e o radiador (que se apresentava miraculosamente livre da

corros

ão e da massa esverdeada, resíduo de anos de anticongelante),

examinando o dínamo e os ajustados, cintilantes pistons encaixados em




seus cilindros. Até o filtro de ar era novo, com o número 318 pintado

através do topo, inclinado para trás para indicar velo

cidade.



Sim, ele se tornara uma espécie de herói para os colegas da aula de

motores, recebendo todos os comentários e cumprimentos apenas com um

sorriso de protesto. Contudo, mesmo então, não estivera ali a confusão,

em algum lugar bem no fundo? Claro!



Por

que ele não conseguia recordar o que tinha ou não feito de reparos em

Christine.



O tempo gasto trabalhando nela na Darnell's, agora não passava de

um borrão, como havia sido sua corrida para o aeroporto horas antes,

naquela noite. Podia recordar que começa

ra a lanternagem na traseira

enferrujada do carro, mas não se lembrava de havê

-

la terminado.

Recordava

-

se pintando o capô





cobrindo o pára

-

brisa e pára

-

lamas com

adesivo protetor e preparando o emassado branco, no galpão de pintura

dos fundos



, mas era i

mpossível lembrar quando trocara as molas. Nem

ao menos onde as conseguira. A única certeza, era a de que permanecera

atrás do volante por longos períodos, transbordando de felicidade...

sentindo o mesmo êxtase de quando Leigh sussurrara: "Amo você", antes



de desaparecer dentro de casa. Sentado lá, depois que a maioria dos

sujeitos que consertavam seus carros na Darnell's havia ido jantar em casa.

Sentado lá, e às vezes ligando o rádio, a fim de ouvir as melodias antigas

da WDIL.



O pior, talvez tivesse sido



o caso do pára

-

brisa.



Tinha certeza absoluta de que não comprara um pára

-

brisa novo

para Christine. Se tivesse comprado um daqueles novos tipos

panorâmicos, sua conta bancária estaria muito mais desfalcada. E,

evidentemente, haveria um recibo. Já o procur

ara no fichário de mesa,

marcado CARRO

-

CONTAS, que mantinha em seu quarto. Nada

encontrara, contudo. De fato, ele o procurara com certa ansiedade.



Dennis tinha dito algo





que o emaranhado das rachaduras parecia

menor, menos sério. Então, naquele dia em Hi

dden Hills, simplesmente...

desaparecera! O pára

-

brisa se mostrava cristalino, imaculado.



E quando é

que isso acontecera? Como acontecera?



Ele não sabia.






Adormeceu finalmente e teve sonhos desagradáveis, torcendo as

cobertas em uma bola, quando o vento emp

urrou as nuvens para longe e

as estrelas outonais brilharam friamente para a terra.





V

ISÃO À

N

OITE



Vou levá

-

la a passear em meu carro

-

carro,



Vou levá

-

la a passear em meu carro

-

carro.



Vou levá

-

la a passear,



Vou levá

-

la a passear,



Vou levá

-

la a passear em me

u carro

-

carro.







Woody Guthrie





Havia sido um sonho





até quase o próprio final, estava certa de

que havia sido um sonho.



No sonho, ela despertava de um sonho com Arnie. Estivera fazendo

amor com ele, não no carro, mas em um aposento azul muito frio, sem

o

utro mobiliário além de um fofo tapete azul

-

escuro e almofadas

espalhadas, cobertas de cetim azul

-

claro... e despertava deste sonho em

seu quarto, nas primeiras horas da madrugada de domingo.



Podia ouvir um carro lá fora. Chegou à janela e olhou para baixo

.



Christine estava junto ao meio

-

fio. Tinha o motor ligado





Leigh

podia ver os tufos de fumaça escapando dos canos de descarga





mas não

havia ninguém em seu interior. No sonho, ela pensava que Arnie pudesse

estar à porta de sua casa, embora ainda não tiv

esse batido. Tinha que

descer até lá, e depressa. Seu pai ficaria furioso, se acordasse e encontrasse

Arnie ali a tal hora da madrugada.



Leigh, contudo, não se moveu. Olhava para o carro e pensava no

quanto o odiava





e o temia.



E o carro também a odiava.






Rivais,

pensou, e o pensamento





naquele sonho





não era de

ciúme feroz e intenso, antes desesperado e temeroso. Lá estava o carro

diante do meio

-

fio, lá estava ele





ela estava





parada à frente de sua

casa, na trincheira escura da madrugada, esperando

-

a.



Esperando por

Leigh.

Venha cá para baixo, meu bem. Venha! Rodaremos por aí e conversaremos

sobre quem precisa mais dele, quem se preocupa mais com ele e quem será melhor

para ele, a longo prazo. Venha.. Não está com medo, está?



Leigh estava aterrorizada.



Não é justo, ela é mais velha, conhece os truques, saberá como engambelá

-

lo...







Vá embora!





sussurrou Leigh, ardentemente, no sonho.



Bateu de leve na vidraça com os nós dos dedos. O vidro era frio ao

seu toque, podia ver as pequeninas marcas em forma de

crescente

deixadas pelos nós dos dedos na superfície embaciada. Era espantoso

como certos sonhos podem ser tão reais.



No entanto,

tinha

que ser um sonho. Tinha que ser, porque o carro a

ouvira. As palavras mal haviam saído de sua boca, e os limpadores de

p

ára

-

brisa começaram a mover

-

se repentinamente, espalhando a neve

molhada aderida ao vidro. Então, ele





ela





se afastou maciamente do

meio

-

fio e seguiu rua abaixo.



Sem ninguém na direção.



Leigh tinha certeza disso... toda a certeza que se pode ter sobre

a

lguma coisa, em um sonho. A janela do passageiro estava polvilhada de

neve, mas não ficara opaca com isso. Leigh pudera ver o interior e não

havia ninguém ao volante. Portanto, é claro, tinha que ser um sonho.



Voltou para a cama (para a qual jamais levara

um amante; como

Arnie, nunca tivera um amante) pensando em um Natal de há muito

tempo





de uns doze, talvez mesmo quatorze anos atrás. Ela não devia

ter mais de quatro anos naquela época. Tinha ido com a mãe a uma das

grandes lojas de departamentos de Bost

on, talvez a Filene's...



Pousou a cabeça no travesseiro e adormeceu (no sonho) de olhos

abertos, contemplando a ligeira fímbria das primeiras luzes do alvorecer

na janela e então





nos sonhos tudo pode acontecer





viu o

departamento de brinquedos da Filene

's, no outro lado da janela: ouropéis,

brilhos, luzes.






Procuravam um brinquedo para Bruce, único sobrinho de seus pais.

Em alguma parte, um Papai Noel da loja de departamentos clamava em

um sistema de alto

-

falantes e o som amplificado não era apenas jovial

,

mas de certo modo terrível, como o riso de um maníaco que surgisse

dentro da noite, empunhando um facão de açougueiro, em vez de

presentes.



Leigh estendera a mão para um dos brinquedos em exibição e,

apontando, tinha dito para sua mãe que queria ganhar

a

quilo

de Papai

Noel.



Não, meu bem. Papai Noel não pode lhe dar isso. É um brinquedo para

meninos.



Mas eu quero!



Papai Noel lhe trará uma linda boneca, talvez até uma Barbie...



É este aqui que eu quero!



Só meninos é que pedem um brinquedo assim, Lee

-

Lee que

rida. Só os

meninos. Meninas boazinhas gostam mais de lindas bonecas...



Eu não quero uma BONECA! Não quero uma BARBIE! É... AQUILO...

que eu quero!



Se vai começar a fazer malcriação, Leigh, levo você já, já para casa. Estou

falando sério, levo agora mesmo!



Ela se conformara, então, e o Natal lhe trouxera não apenas a Barbie

Malibu, mas também o Ken Malibu. Leigh gostara de seus presentes

(esperava

-

se que gostasse), mas não esquecera o carro de corridas

vermelho, correndo sem ser puxado, naquela superfície d

e verdes

montanhas pintadas, ao longo de uma estrada tão perfeita que havia até

mesmo pequenas muretas de metal





uma estrada, cuja ilusão essencial

era desfeita apenas pela inevitável circularidade. Oh, mas como aquele

carro corria depressa





e seu vermel

ho cintilante seria mágico para seus

olhos e sua mente? Sem dúvida. Também era mágica, a ilusão essencial do

carro. Uma ilusão exercendo tanta atração que a conquistara por completo.

A ilusão, naturalmente, de que o carro dirigia a si mesmo. Em realidade,

Leigh sabia que um empregado da loja o controlava, de uma cabina à

direita, apertando botões em um dispositivo quadrado de controle remoto.

Sua mãe lhe explicara isso e assim devia ser, mas seus olhos negavam o

que ouvia.






Também seu coração negava.



Ficara

fascinada, as mãozinhas enluvadas sobre o gradil da área de

exibição, espiando o carro que corria e corria, movendo

-

se depressa,

rodando por si mesmo, até que a mãe a puxou dali suavemente.



E, acima de tudo aquilo, parecendo fazer vibrar o próprio fio de

o

uropéis pendurados junto ao teto, a risada sinistra do Papai Noel da loja

de departamentos.





Leigh dormiu mais profundamente. Sonhos e lembranças

esmaeceram

-

se lentamente e, lá fora, a luz do dia rastejava como leite frio,

iluminando uma rua vazia e silenc

iosa em sua manhã de domingo. A

primeira nevada do outono estava imaculada, exceto pela marca de pneus,

no meio

-

fio diante da residência dos Cabot. Marca que depois se alongava

suavemente, em direção à esquina, no final daquele quarteirão suburbano.



Ela só



se levantou quase às dez horas (sua mãe, que não acreditava

em dorminhocos, finalmente a chamara para descer e tomar seu café,

antes do almoço) e, a esta altura, o dia já esquentara, chegando a quase 16

graus





na parte oeste da Pensilvânia, o começo de n

ovembro é mais ou

menos tão caprichoso como o começo de abril. Assim, às dez da manhã, a

neve já se derretera. E as marcas haviam desaparecido.





B

UDDY

V

ISITA O

A

EROPORTO



Nós fazemos com que se calem e então os liquidamos.







Bruce Springsteen





Uma noite, ce

rca de dez dias depois, quando perus de cartolina e

cornucópias de papel começavam a aparecer nas janelas das escolas

primárias, um Camaro azul, de traseira tão levantada que o nariz quase

parecia roçar o chão, deslizou pela ala do estacionamento de longo

prazo

do aeroporto.



Sandy Galton debruçou

-

se nervosamente pela abertura de sua

cabine de vidro. No assento do Ford, ao lado do motorista, o rosto




sorridente e feliz de Buddy Repperton se ergueu para ele. Buddy tinha as

faces cobertas pela barba rala de uma



semana e seus olhos exibiam um

brilho maníaco, mais devido à cocaína do que à alegria no Dia de Ação de

Graças





ele e os rapazes tinham conseguido bom provimento aquela

noite. Em tudo e por tudo, Buddy assemelhava

-

se bastante a um

depravado Clint Eastwoo

d.







Como é que vão as coisas, Sandy?





perguntou Buddy.



Seu cumprimento foi devidamente acompanhado por risadas no

Camaro. Don Vandenberg, "Penetra" Welch e Richie Trelawney estavam

com Buddy e, com a coca e as seis garrafas de Texas Driver que Buddy

arra

njara para a ocasião, sentiam

-

se eufóricos e na mais perfeita forma.

Estavam chegando para um pequeno trabalhinho sujo, no Plymouth de

Arnie Cunningham.







Escutem aqui, caras, se vocês forem apanhados, eu perco o meu

emprego





disse Sandy, nervosamente.



Er

a o único sóbrio e lamentava ter mencionado que Cunningham

estacionava seu calhambeque ali. Felizmente, ainda não lhe ocorrera o

pensamento de que também podia ir parar na cadeia.







Se você ou qualquer membro de sua fodida Missão Impossível

forem apanhados

, o chefão negará qualquer envolvimento no negócio





declarou "Penetra", no banco traseiro.



Houve um coro de risos. Sandy olhou em torno, à procura de outros

carros





testemunhas



, porém faltava mais de hora para a chegada de

aviões e o pátio de estaciona

mento estava tão deserto como as montanhas

da lua. O tempo esfriara muito. Um vento cortante como lâmina de

barbear gemia pelas pistas do campo, uivando miseramente por entre as

fileiras de carros vazios. Acima dele e à esquerda, o cartaz com a sigla

"Apco

" batia furiosa e incessantemente de um lado para outro.







Riam à vontade, debilóides





disse Sandy.





A verdade é que

nunca vi vocês por aqui. Se forem apanhados, vou dizer que estava

cochilando.







Nossa, que gracinha!





exclamou Buddy. Pareceu triste.





Nunca pensei que fosse tão cagão, Sandy. Honestamente.







Au! Au!





latiu Richie, e houve novo coro de risos.





Role de

costas e finja

-

se de morto para o papai, Sandy!






Sandy enrubesceu.







Não estou me importando





disse



, mas tomem cuidado.







Tomaremos, ca

ra





disse Buddy, sinceramente. Havia reservado

uma sétima garrafa de Texas Driver e uma dose caprichada de coca.

Estendeu as duas coisas para Sandy:





Tome aí. Divirta

-

se.



Sandy sorriu a contragosto.







Está legal





disse, acrescentando, apenas para dar a

entender

que não era do contra:





Façam um bom trabalho.



O sorriso de Buddy endureceu

-

se, ficou metálico. A luz desapareceu

de seus olhos e eles ficaram opacos, mortiços e aterradores.







Oh, nós faremos





disse.





Se faremos!



O Camaro embicou para o pátio

de estacionamento. Por um

momento, Sandy pôde apreciar sua avançada, guiando

-

se pela luz dos

faróis traseiros, mas depois Buddy os apagou. O som do motor,

gorgolejando através de dois escapamentos, foi trazido

momentaneamente pelo vento, mas depois até iss

o cessou também.



Sandy ajeitou a coca sobre o balcão, junto de sua TV portátil, e a

aspirou através de uma nota enrolada de um dólar. Em seguida, passou

para o Texas Driver. Sabia que se o apanhassem embriagado no trabalho

teriam motivo para demiti

-

lo, mas



não se incomodou muito. Embebedar

-

se era muito melhor do que ficar sobressaltado e sempre olhando em

torno, para descobrir um dos dois carros cinzentos da Segurança do

Aeroporto.



O vento soprava a seu favor e ele pôde ouvir





ouvir demais.



Vidros quebrado

s se estilhaçando, risos sufocados, uma ruidosa

pancada metálica.



Mais vidros quebrados.



Uma pausa.



Vozes baixas chegando até ele, trazidas pelo vento. Não conseguiu

distinguir palavras individuais, estavam distorcidas.



De repente, uma perfeita fuzilaria d

e baques. Sandy pestanejou ao

ouvir o ruído. Mais barulho de vidros quebrados na escuridão e um

tilintar de metal caindo no piso





cromados ou alguma coisa assim, supôs




ele. Desejou que Buddy houvesse trazido mais coca. A coca era uma coisa

que dava alegri

a e, tinha certeza, naquele momento estava bem precisado

disso, porque tudo indicava que algo bastante feio estava acontecendo, no

extremo mais distante do pátio de estacionamento.



Então, uma voz mais alta, urgente e ordenando, sem dúvida a de

Buddy:







Ago

ra aqui!



Um protesto abafado. Novamente Buddy:







Não liguem para isso! No painel de instrumentos, estou

mandando! Outro murmúrio.







Estou pouco me lixando!





era a voz de Buddy de novo. Por

algum motivo, aquilo provocou um coro de risadas.



Agora suando, a

despeito do frio cortante, Sandy fechou

repentinamente a vidraça de sua janela e ligou a TV. Bebeu um grande

gole, careteando ante o sabor forte da mistura de uísque e vinho barato.

Sandy não ligava para o sabor porque Texas Driver era o que todos eles

beb

iam quando não havia cerveja. O que podia fazer? Imaginar

-

se melhor

do que eles? Aquilo o deixaria frito, cedo ou tarde. Buddy detestava

medrosos.



Bebeu e começou a sentir

-

se um pouco melhor





pelo menos,

ligeiramente bêbado. Quando um carro da Segurança d

o Aeroporto

passou,

ele nem mesmo se encolheu. O tira ergueu a mão para ele. Sandy retribuiu,

com a maior naturalidade possível.



Uns quinze minutos depois que o carro foi para os fundos do pátio,

o Camaro azul reapareceu, agora na alameda de saída. Buddy s

e sentava

tranqüilo e relaxado atrás do volante, tendo uma garrafa de Driver

acomodada junto às virilhas, com apenas um quarto de bebida. Sorria e,

inquieto, Sandy reparou como tinha os olhos estranhos, injetados de

sangue. Aquilo não era ocasionado apenas



pelo vinho, como tampouco

não era somente da coca. Ninguém devia fazer pouco de Buddy. Era o que

Cunningham descobriria, sem grande demora.







Tudo acertado, meu chapa





disse Buddy.







Ótimo





disse Sandy, forçando um sorriso.






Sentia

-

se um tanto indisposto

. Não tinha maiores amizades por

Cunningham e nem era uma pessoa particularmente imaginativa, mas

podia imaginar perfeitamente como se sentiria Arnie, quando visse o que

acontecera a todo o seu cuidadoso trabalho de restauração naquele

Plymouth vermelho e

branco. De qualquer modo, aquilo era da conta de

Buddy, não sua.







Ótimo





repetiu.







Segure

-

se nas cuecas, cara





disse Richie e riu.







Claro





respondeu Sandy.



Era bom eles estarem indo embora. Depois daquilo, talvez não

ficasse mais tanto tempo rondando



o posto de gasolina Happy Gas, de

Vandenberg. Depois daquilo, o mais provável é que nem quisesse ir lá.

Aquele negócio era merda fedorenta. Um negócio pesado demais,

certamente. Talvez até fosse preferível faltar umas duas noites ao curso

noturno. Possive

lmente acabaria tendo que abandonar aquele serviço, mas

isso não chegava a ser tão ruim





afinal, era um trabalho infernalmente

monótono.



Buddy ainda olhava para ele, com aquele seu sorriso cruel e

drogado. Sandy tomou um longo gole de Texas Driver. Quase

se

engasgou. Por um momento, pensou em cuspi

-

lo no rosto erguido de

Buddy, e sua inquietação beirou o terror.







Se os tiras derem com a coisa





disse Buddy



, você não sabe de

nada, não viu nada, sacou? Como você falou, estava tirando uma soneca,

por volta



de nove e meia.







Certo, Buddy.







Todos usamos luvas. Não deixamos nenhuma impressão digital.







Certo.







Fique calmo, Sandy





disse Buddy suavemente.







Está legal.



O Camaro começou a rodar novamente. Sandy levantou a barreira,

usando o botão manual. O car

ro avançou para a via de saída do aeroporto,

a uma velocidade moderada.






Alguém latiu "Au! Au!" e o som chegou até Sandy, trazido pelo

vento.



Perturbado, ele se acomodou para assistir televisão.



Pouco antes do fluxo de viajantes que chegavam no horário de d

ez e

quarenta, vindos de Cleveland, ele despejou o resto do Driver pela janela,

no chão fora da cabine. Não o queria mais.





C

HRISTINE

S

ACRIFICADA



Transfusão, transfusão,



Oh, nunca

-

nunca

-

nunca mais vou rodar em alta velocidade,



Passe o sangue para mim, chap

a.







"Nervous" Norvus





Depois das aulas do dia seguinte, Arnie e Leigh foram juntos ao

aeroporto, pegar Christine. Planejavam uma ida a Pittsburgh para as

primeiras compras de Natal e ansiavam fazê

-

las juntos





de certo modo,

isso parecia incrivelmente adu

lto.



Arnie estava com excelente disposição de ânimo no ônibus, fazendo

pequenos comentários fantasiosos sobre seus companheiros de viagem.

Isto provocava o riso de Leigh, embora ela estivesse menstruada, um

período que geralmente a deixava deprimida e que

quase sempre era

doloroso. A senhora gorda, calçando sapatos de homem, era uma freira

degenerada, dizia ele. O cara com chapéu de vaqueiro era um punguista.

E assim por diante. Era espantosa a maneira como ele saíra da concha... a

maneira como havia

desabr

ochado.

Na verdade, esta era e única palavra

para aquilo. Ela sentia a agradável e incrível satisfação de um garimpeiro

que suspeitara da presença de ouro através de certos indícios





e acertara

em suas suposições. Leigh o amava e estava certa em amá

-

lo.



S

aíram juntos do ônibus no ponto final e, de mãos dadas,

caminharam pela estrada de acesso ao pátio de estacionamento.










Nada mau





disse Leigh. Era a primeira vez que vinha apanhar

Christine com ele. Vinte e cinco minutos, da escola até aqui.







Certo, nada



mau





concordou ele.





Assim, é mantida a paz na

família, o que realmente importa. Posso garantir, naquela noite em que

mamãe chegou em casa e viu Christine na entrada para carros, ficou

completamente fora de si.



Leigh riu e o vento jogou seu cabelo para

trás. A temperatura ficara

mais moderada, após a friagem da noite anterior, mas ainda assim era fria.

Ela estava contente. Sem uma certa friagem no ar, não parecia haver

ambiente para compras natalinas. Ainda pior: as decorações em

Pittsburgh estariam inco

mpletas. De qualquer modo, isso não era ruim,

mas bom. E, de repente, ela ficou feliz com tudo, em especial por estar

viva. E amando.



Leigh havia refletido nisso, na maneira como o amava. Já tivera

"paixonites" antes e, certa vez, em Massachusetts, imagina

ra

-

se

verdadeiramente apaixonada, mas agora, com Arnie, não havia dúvidas.

Ele a perturbava algumas vezes





aquele interesse pelo carro parecia

quase obsessivo



, mas até mesmo uma inquietação ocasional que ela

experimentava tinha certo papel em seus senti

mentos, que eram mais

intensos do que tudo quanto já conhecera antes. Evidentemente, admitia

para si mesma que parte disso era egoísmo





em apenas semanas,

começara a estruturá

-

lo...

a completá

-

lo.



Cortaram atalhos por entre os carros, encaminhando

-

se para



a zona

do estacionamento mensal. Acima deles, um jato evoluía em sua

aproximação final, o trovejar dos motores despejando

-

se em grandes

ondas agudas de som. Arnie dizia algo, mas o barulho do avião sufocou

sua voz, logo após as palavras iniciais





qualque

r coisa sobre o

ajantarado do Dia de Ação de Graças





e Leigh se virou para fitá

-

lo,

secretamente divertida por sua boca que continuava a mover

-

se,

silenciosamente.



Então, de súbito, a boca de Arnie parou de mover

-

se. Ele também

parou de caminhar. Os olhos



se dilataram... e pareceram explodir. A boca

começou a

torcer

-

se

e a mão que segurava a dela de repente se contraiu

impiedosamente, esmagando

-

lhe dolorosamente os ossos dos dedos.







Arnie...






O ruído do jato diminuía, mas ele parecia não a ter ouvido. Os

p

unhos se crisparam com mais força. A boca se fechara e agora formava

uma horrenda careta de surpresa e terror. Leigh pensou:

Ele está tendo um

ataque do coração... um infarto... alguma coisa!







O que há de errado, Arnie?





gritou ela. E ele:







Ooowwwhoww,

como dói!



Por um insuportável momento, a pressão na mão que, até bem

pouco, ele segurara tão de leve e tão carinhosamente, intensificou

-

se de tal

maneira que os ossos poderiam estilhaçar

-

se e quebrar

-

se. A cor do rosto

dele desaparecera e sua pele adquirir

a a cor acinzentada de uma lousa

sepulcral.



Ele emitiu apenas uma palavra





"Christine!"





e, de repente,

soltou a mão de Leigh. Correu para diante, batendo com a perna no pára

-

choque de um Cadillac, desequilibrando

-

se, quase caindo, equilibrando

-

se

e reco

meçando a correr.



Por fim, Leigh percebeu que era algo relacionado ao carro





o carro,

o carro, sempre o maldito carro





e em seu peito surgiu uma fúria

amarga, total e desesperada. Pela primeira vez, perguntou

-

se se seria

possível amá

-

lo, se Arnie o permi

tiria.



Sua fúria terminou no instante em que olhou realmente... e viu.



Arnie correu para o que restava de seu carro, com os braços e as

mãos para cima, parando tão de repente diante do Plymouth que o gesto

pareceu uma aterrorizada forma de defesa: a clássi

ca pose cinematográfica

da vítima ao ser atropelada, um instante antes da colisão fatal.



Ele ficou assim por um momento, como se fosse parar o carro ou o

mundo inteiro. Então baixou os braços. Seu pomo

-

de

-

adão subiu e desceu

duas vezes, dando a impressão d

e que parecia forçar

-

se a engolir algo





um gemido ou um grito





para em seguida a garganta se endurecer, cada

músculo salientando

-

se, cada veia ressaltada, os tendões surgindo em

perfeito relevo. Era a garganta de um homem tentando erguer um piano.



Leigh

caminhou lentamente para ele. Sua mão ainda latejava, no dia

seguinte estaria inchada e praticamente inútil, mas no momento ela a

esquecera. Seu coração estendeu

-

se até ele e pareceu encontrá

-

lo. Leigh

experimentou e partilhou a angústia que ele sentia





o

u foi o que lhe

pareceu ter feito. Só mais tarde compreendeu o quanto Arnie a relegara




aquele dia, quanto sofrimento ele decidira ter para si apenas, e quanto de

seu ódio conseguiu ocultar.







Quem foi que fez isto. Arnie?





exclamou, em voz sentida e

sofre

ndo com ele.



Não, ela detestava aquele carro, mas ao vê

-

lo reduzido àquilo

compreendeu perfeitamente o que Arnie devia estar sentido e não odiou

mais o Plymouth





ou, pelo menos, assim julgou no momento.



Arnie não respondeu. Ficou olhando para Christine, c

om os olhos

ardentes, a cabeça ligeiramente abaixada.



O pára

-

brisa havia sido estilhaçado em dois lugares; punhados do

vidro fragmentado polvilhavam o estofamento dilacerado, como falsos

diamantes. Metade do pára

-

choque dianteiro tinha sido arrancada e ago

ra

pendia para o pavimento, perto de um emaranhado de fios negros, como

tentáculos de polvo.



Três das quatro janelas laterais também tinham sido quebradas.

Haviam furado a lataria em ambos os lados do carro, na altura da cintura,

formando linhas ziguezague

antes. Como se tivessem usado algum

instrumento pesado e perfurante





como a extremidade aguda de uma

alavanca para pneus. A porta do lado do passageiro estava escancarada e

Leigh viu que todos os vidros do painel de instrumentos haviam sido

quebrados. Tuf

os e rolos do recheio dos assentos espalhavam

-

se por toda

parte. A agulha do velocímetro jazia no piso, sobre o tapete, abaixo do

volante.



Arnie caminhou vagarosamente em torno do carro, observando

tudo aquilo. Leigh falou com ele duas vezes, mas não houve



resposta.

Agora, a cor plúmbea do rosto dele era interrompida por duas confusas e

ardentes manchas vermelhas nas faces. Arnie recolheu do chão a forma

tentacular que ali jazera, e Leigh percebeu que era o bujão do

distribuidor





seu pai lhe explicara isso



certa vez, quando estivera

mexendo em seu carro.



Arnie o contemplou por um instante, como quem examinaria algum

exótico espécime zoológico, para em seguida atirá

-

lo ao chão. O vidro

quebrado rangia sob os sapatos dos dois. Leigh tornou a falar com ele.



o ouvindo resposta, além de sentir uma pena terrível dele, começou

também a ficar com medo. Mais tarde, disse a Dennis Guilder que




parecia





pelo menos naqueles momentos





perfeitamente possível

Arnie ter perdido o juízo.



Ele chutou uma peça cromada para f

ora de seu caminho. A peça foi

bater no muro anticiclone, nos fundos do pátio de estacionamento, com

um leve som tilintante. As lanternas traseiras haviam sido quebradas,

mais gemas falsas, rubis desta vez, polvilhando o pavimento e não os

assentos do carr

o.







Arnie...





tentou ela, mais uma vez.



Ele parou. Olhava pelo buraco feito na vidraça do motorista. Um

horrível som rouco partiu de seu peito, um som selvagem. Olhando por

sobre o ombro dele, Leigh viu o que havia e, de repente, sentiu uma louca

necessi

dade de rir, de chorar e desmaiar, tudo ao mesmo tempo. Sobre o

painel de instrumentos... ela não percebera, de início. Em meio à

destruição geral, não percebera o que havia no painel. E se perguntou,

com o vômito subindo de repente em sua garganta, quem p

oderia ser tão

baixo, tão absolutamente ignóbil para fazer tal coisa, para...







Os bostas!





exclamou Arnie, e a voz não parecia a dele.



Quase gritara, com uma voz aguda e estridente, cheia de fúria. Leigh

se virou e vomitou, apoiando

-

se às cegas no carro

mais próximo de

Christine, vendo diante dos olhos pequeninos pontos brancos, que se

expandiam como arroz cozido. De maneira vaga, pensou na feira do

condado





a cada ano, faziam içar um carro imprestável para uma

plataforma, deixavam uma marreta ao lado e

cada um podia dar três

marretadas por 25 centavos. A idéia era acabar com o carro, mas não

fazer... fazer...







Seus bostas

malditos!





bradou Arnie.





Vou pegar vocês! Vou

pegar vocês, nem que seja a última coisa que faça! Nem que seja a

última

merda de co

isa que eu faça!



Leigh vomitou novamente e, por um terrível momento, chegou a

desejar nunca ter conhecido Arnie Cunningham.








A

RNIE E

R

EGINA



Quer dar uma volta



Em meu Buick 59?



Eu perguntei, quer dar uma volta



Em meu Buick 59?



Ele tem dois carburadores



E um



supercompressor de quebra.







The Medallions





Naquela noite, ele chegou em casa faltando quinze para meia

-

noite.

As roupas que estivera usando para a projetada viagem de compras em

Pittsburgh estavam manchadas de graxa e de suor. As mãos pareciam

ainda mai

s sujas e havia um feio corte ziguezagueante no dorso da

esquerda, como uma marca. O rosto tinha uma aparência abatida e

atordoada. Também estava com olheiras.



Sentada à mesa, sua mãe tinha um jogo de paciência disposto diante

dela. Estivera esperando que

Arnie chegasse e, ao mesmo tempo, temendo

aquele momento. A jovem





que dera a Regina a impressão de ser uma

boa moça, embora talvez não suficientemente boa para seu filho





parecia

ter chorado.



Alarmada, Regina desligara o mais depressa possível e ligara

para a

Garagem de Darnell. Leigh lhe contara que Arnie telefonara, chamando

um caminhão

-

reboque para lá e que partira nele, com o motorista.

Colocara

-

a em um táxi, sem ouvir seus protestos. O telefone havia tocado

duas vezes e então uma voz sibilante, desa

gradável, respondera.







Aqui é da Darnell's.



Regina desligara, pensando que seria um erro falar com Arnie

estando ele lá





e tudo indicava que ele e Mike já haviam cometido erros

suficientes, envolvendo Arnie e seu carro. Seria melhor esperar até que ele

v

oltasse para casa. Diria o que fosse preciso, mas frente a frente.



Foi o que disse agora.







Eu sinto muito, Arnie.






Teria sido melhor se Mike também estivesse ali. No entanto, ele

viajara para Kansas City, onde haveria um simpósio sobre o Mercado e

Início d

o Livre Empreendimento na Idade Média. Só chegaria no domingo,

a menos que o atual incidente o trouxesse mais cedo para casa. Regina

pensou que isso seria possível. Percebia





não sem algum

arrependimento





que talvez estivesse apenas despertando para a to

tal

gravidade daquela situação.







Sente muito





ecoou Arnie, em voz apática, inexpressiva.







Sim. Eu, isto é,

nós...



Regina não pôde continuar. Havia algo terrível, na imobilidade da

expressão dele. Os olhos estavam parados. Só conseguiu fitá

-

lo e sacudir

a

cabeça, com os olhos ardendo, o gosto odioso de lágrimas no nariz e na

garganta. Regina detestava chorar. Possuindo vontade forte, uma de duas

filhas de uma família católica composta de um pai severo que trabalhava

em construções, a mãe exaurida e sete i

rmãos, firmemente decidida a

cursar uma universidade, embora o pai acreditasse que lá as moças só

aprendiam como deixar de ser virgens e abandonar a igreja, ela tivera sua

razoável porção de lágrimas





e ainda mais. E, se a própria família, às

vezes, a jul

gava dura, era por não compreender que, quando se atravessa

o inferno, sai

-

se cozido pelo fogo. E que, se alguém precisa queimar

-

se

para abrir o próprio caminho, esse alguém sempre fará o que quer.







Sabe de alguma coisa?





perguntou Arnie.



Ela sacudiu a c

abeça, ainda sentindo a ardência quente e

desagradável das lágrimas sob as pálpebras.







Você me dá vontade de rir e eu riria mesmo, se não estivesse tão

cansado. Poderia ter estado lá, destruindo os pneus e esmagando tudo,

com os sujeitos que fizeram aquil

o. Talvez agora estivesse ainda mais

contente do que eles.







Arnie, não é justo!







É justo!





rugiu ele, os olhos repentinamente queimando com

um fogo terrível. Pela primeira vez na vida, Regina teve medo do filho.





Foi sua a idéia de tirar o carro da ent

rada da casa! Foi sua a idéia de levá

-

lo para o pátio de estacionamento do aeroporto! Quem acha você que

merece censuras aqui? Sim, quem você acha? Acredita que aquilo

aconteceria se o carro estivesse aqui? Hein?






Deu um passo para ela, os punhos crispados

ao longo do corpo.

Regina procurou esforçar

-

se para não recuar.







Será que não podemos conversar a respeito, Arnie?





perguntou.





Como dois seres humanos racionais?







Um deles jogou um punhado de merda no painel de meu carro





replicou Arnie friamente.







O que há nisso de racional, mamãe?



Ela acreditara, sinceramente, que conseguira controlar as lágrimas.

No entanto, aquela notícia





a notícia de uma fúria tão estúpida e

irracional





trouxe

-

as de volta. Então chorou. Chorou de angústia pelo

que seu filho t

inha visto. Baixando a cabeça, chorou de perplexidade, de

dor e de medo.



Em toda a sua vida como mãe, Regina se sentira secretamente

superior às que tinham filhos mais velhos do que Arnie. Quando ele

estava com um ano, aquelas outras mães lhe tinham dito,

sacudindo

lugubremente a cabeça, que esperasse até ele fazer cinco





era quando

começavam os problemas, quando eles tinham idade suficiente para dizer

"merda" diante dos avós e brincar com fósforos, ao se verem sozinhos.

Arnold, no entanto, um menino bom c

omo ouro quando tinha um ano,

assim permanecera aos cinco. Então, as outras mães reviravam os olhos e

diziam

-

lhe que esperasse até ele ter dez. Em seguida, até ele fazer quinze,

que era quando a situação perigava realmente, com aquela história de

drogas, c

oncertos de

rock

e garotas que tudo permitiam, além de





que

Deus nos perdoe





roubarem calotas de automóveis e pegarem aquelas...

bem, doenças.



Durante todo esse tempo, ela continuava sorrindo para si mesma,

porque tudo funcionava segundo o programado, tu

do marchava da

maneira como desejaria ter acontecido em sua própria infância. Seu filho

tinha pais amorosos, que o apoiavam e se preocupavam com ele, pais que

lhe davam tudo (dentro do razoável), que o enviariam com prazer para a

universidade que o filho e

scolhesse (desde que fosse adequada), desta

forma encerrando

-

se satisfatoriamente o jogo/negócio/vocação da

paternidade. Se alguém lhe sugerisse que Arnie tinha poucos amigos e

freqüentemente era objeto de menosprezo pelos outros, Regina apontaria

orgulhos

amente que

ela

freqüentara uma escola paroquial em uma

vizinhança rude, onde as calcinhas de algodão das meninas às vezes eram




rasgadas de brincadeira e depois queimadas com o fogo de isqueiros

Zippo, nos quais havia a figura gravada de Jesus crucificado.

E se

sugerissem que suas atitudes no tocante à criação do filho diferiam das do

pai odiado, apenas em termos de finalidades materiais, ela ficaria furiosa e

apontava para seu excelente filho, como derradeira justificativa.



No entanto, o filho excelente ago

ra estava diante dela, pálido,

exausto e sujo de graxa até os cotovelos, parecendo apresentar a mesma

espécie de raiva que havia sido a marca registrada do avô, até mesmo se

parecendo

com ele. Tudo dava a impressão de haver desmoronado.







Falaremos amanhã

cedo sobre o que pode ser feito sobre isso,

Arnie





disse ela, tentando recompor

-

se e conter as lágrimas.





Conversaremos de manhã.







Não, a menos que você levante bem cedo





respondeu ele,

parecendo perder o interesse.







Vou subir, dormir umas quatro hora

s e depois voltar à garagem.







Para quê?



Ele deixou escapar uma risada de louco e seus braços adejaram

abaixo dos tubos de luz fluorescente da cozinha, como se fosse voar.







O que você acha? Tenho um bocado de trabalho a fazer! Mais do

que poderia imaginar

.







Não... você tem aulas amanhã... Eu o proíbo, Arnie, está

absolutamente proi...



Ele se virou para fitá

-

la, estudou

-

a e Regina encolheu

-

se. Aquilo era

como algum horrendo pesadelo, que ia continuar para sempre.







Não faltarei às aulas





disse.





Vou leva

r um embrulho de

roupas limpas e até mesmo tomo uma ducha, para que meu cheiro não

incomode ninguém na sala. Então, quando as aulas terminarem, voltarei à

garagem. Há muito trabalho a fazer, mas eu o farei... Sei que posso...

mesmo comendo uma boa fatia de



minhas economias. Além disso, tenho

que prosseguir com o serviço que venho fazendo para Will.







Seus trabalhos de casa... seus estudos!







Oh, isso...





Arnie esboçou um sorriso frio, imóvel e estático

como uma peça de mecanismo de relógio.





Eles baixarão



de qualidade, é

lógico. Não se pode brincar com isso. Aliás, também não lhe prometo mais




uma nota média de noventa e três, mas posso chegar perto. Posso

conseguir um C. Talvez alguns B.







Não... Você precisa pensar na universidade!



Ele tornou a chegar per

to da mesa, mancando de novo, agora

acentuadamente. Plantou as mãos sobre a superfície, diante dela, depois

inclinando

-

se lentamente. Regina pensou:

Um estranho... meu filho é um

estranho para mim. Será realmente culpa minha? Será? Porque só quis o que fos

se

melhor para ele. Será possível? Oh, Deus, por favor, torne isto um pesadelo, faça

-

me acordar com o rosto molhado de lágrimas, por ter sido tão real!







Neste exato momento





disse ele com suavidade, os olhos fixos

nos dela



, as únicas coisas que me inte

ressam são Christine, Leigh e ficar

bem com Will Darnell, a fim de deixar novamente aquele carro como novo.

Não ligo uma merda para a universidade. E se você ficar insistindo, pulo

fora do colégio. Se nada mais der certo, acho que isto vai fazer você calar



a

boca de vez.







Você não pode





disse ela, sem afastar os olhos.





Precisa

compreender isto, Arnold. Talvez eu mereça sua... sua crueldade... mas

lutei contra esta sua tendência autodestrutiva com todas as forças.

Portanto, não me venha com essa de larga

r os estudos.







Pois é justamente o que vou fazer





respondeu ele.





Nem

brincando pense que não farei. Em fevereiro, completo dezoito anos e

poderei dirigir minha vida, se você não parar de se meter nisto, daqui por

diante. Acha que compreendeu?







Vá dorm

ir





disse ela, lacrimosa.





Vá dormir, você me parte o

coração.







É mesmo?





Ele riu, de maneira chocante.





Dói, não? Eu sei.



Ele se foi então, caminhando devagar, o corpo pendendo

ligeiramente para a esquerda, quando mancava. Pouco depois, Regina

ouvia

o ruído surdo e cansado dos sapatos dele nos degraus





um som

que também lhe recordava terrivelmente a infância, quando pensava

consigo mesma: O

bicho

-

papão uai dormir.



Ela teve novo acesso de lágrimas, levantou

-

se desajeitadamente e

saiu pela porta dos fu

ndos, a fim de chorar sozinha. Conseguiu controlar

-

se





breve conforto, mas melhor do que nada





e ergueu os olhos para a

lua em quarto crescente, que se quadruplicou através de suas lágrimas.




Tudo mudara e havia sido com a velocidade de um ciclone. O filh

o a

odiava; vira isso no rosto dele





não era uma malcriação. Não era uma

tempestade temporária, uma crise transitória da adolescência. Ele a

odiava,

e essa não era a maneira correta que se ajustava com seu bom menino, de

maneira alguma.



De maneira alguma.



Regina permaneceu na varanda e chorou até as lágrimas acabarem,

até os soluços se tornarem arquejos ocasionais. O frio envolveu

-

lhe os

tornozelos nus acima dos chinelos e a picou com vontade, através do

casaco caseiro. Foi para dentro e subiu ao andar de

cima. Parou ao lado da

porta do quarto de Arnie, indecisa, por quase um minuto, antes de entrar.



Arnie adormecera sobre a colcha. Ainda estava com as calças.

Parecia mais inconsciente do que adormecido, o rosto com uma aparência

terrivelmente envelhecida.

Um foco de luz, vindo do corredor e

penetrando no quarto acima de seu ombro, por um momento deu

-

lhe a

impressão de que o cabelo dele rareava, que a boca aberta no sono estava

desdentada. Um ligeiro guincho de horror manifestou

-

se através da mão

tapando a b

oca e ela se aproximou rapidamente do filho.



Sua sombra, que estivera sobre a cama, moveu

-

se com ela, e Regina

viu que era somente Arnie, a impressão de mais idade proveniente apenas

de uma ilusão de ótica, feita pela luz e por seu fatigado estado de

confu

são.



Olhou para o rádio

-

despertador e viu que fora marcado para

acordá

-

lo às 4:30 da manhã. Pensou em desligar o alarme, chegou mesmo

a estender o braço mas, finalmente, compreendeu que não podia fazer

aquilo.



Em vez disso, foi para seu quarto, sentou

-

se j

unto à mesinha do

telefone e pegou a caderneta de endereços. Segurou

-

a por um momento,

debatendo

-

se na dúvida. Se telefonasse para Mike, no meio da noite, ele

pensaria que...



Que algo terrível acontecera?



Regina deu uma risadinha sufocada. Bem, não acontec

era

mesmo?

Era claro que sim. E ainda estava acontecendo.



Discou o número do Ramada Inn, em Kansas City, onde seu marido

se hospedara, vagamente cônscia de que, pela primeira vez, desde que




deixara a suja e lúgubre casa de três andares em Rocksburg, trocan

do

-

a

pela universidade, vinte e sete anos antes, estava pedindo ajuda.





L

EIGH

F

AZ UMA

V

ISITA



Não quero causar confusão,



Mas posso comprar seu ônibus mágico?



Pouco importa quanto eu pague,



Vou nesse ônibus para junto do meu bem.



Eu o quero... Quero... Quero

...



(Tem que vendê

-

lo para mim...)







The Who





Ela se conduziu muito bem durante a maior parte da história,

sentada em uma das duas cadeiras para visitantes do quarto do hospital,

os joelhos firmemente unidos e os tornozelos cruzados, caprichosamente

vestid

a com uma suéter de lã em várias cores e uma saia marrom de brim.

Só no final é que começou a chorar e não conseguia encontrar um lenço.

Dennis Guilder estendeu

-

lhe a caixa de lenços de papel, que estava na

mesinha junto à cama.







Acalme

-

se, Leigh





disse

ele.







Eu não po

-

po

-

posso! Arnie não me procurou mais e... na escola

parece tão cansado... e você di

-

disse que ele não esteve aqui...







Ele virá, se precisar de mim





disse Dennis.







Vocês são tão cheios dessas bes

-

besteiras m

-

ma

-

ch

-

chis

-

tas!





soluçou ela

, e então pareceu comicamente admirada do que tinha dito.



As lágrimas haviam feito traços na pintura leve que usava. Ela e

Dennis entreolharam

-

se por um momento, depois riram. No entanto, foi

uma risada breve, nada de muito confortante.







Boca de motor o v

iu?





perguntou Dennis.







Quem?










Boca de motor. É como Lenny Barongg chama o Sr. Vickers. O

conselheiro para orientação.







Oh! Sim, acho que sim. Arnie foi chamado ao gabinete do

orientador anteontem, segunda

-

feira. Mas não comentou nada e não tive

corage

m de perguntar. Ele não se abre. Ficou tão estranho!



Dennis assentiu. Embora achando que Leigh não percebesse





estava mergulhada em seus próprios problemas e confusão



,

experimentava uma sensação de impotência e um terrível receio por Arnie.

A partir dos



relatos filtrados até seu quarto nos últimos dias, Arnie

parecia estar à beira de um colapso nervoso; o relato de Leigh era apenas o

mais recente e mais real. Dennis jamais desejaria estar tão

liquidado como

agora. Sem dúvida, poderia ligar para Vickers e



perguntar

-

lhe se havia

alguma coisa que pudesse fazer. Também podia ligar para Arnie... mas,

baseado nas palavras de Leigh, percebia que, agora, Arnie estava sempre

na escola, na garagem de Darnell ou dormindo. Seu pai abandonara uma

espécie de convenção

antecipadamente e havia voltado para casa. Lá,

houve outra briga, segundo Leigh lhe dissera. Embora Arnie nada lhe

houvesse dito, Leigh contou acreditar que ele estivesse a ponto de

abandonar a casa dos pais.



Dennis não queria falar com Arnie enquanto ele

estivesse na

Garagem de Darnell.







O que posso fazer?





perguntou ela.





O que você faria, se

estivesse em meu lugar?







Esperar





respondeu Dennis.





Não sei mais o que se pode

fazer.







Só que isso é o mais difícil





respondeu ela, em uma voz tão

baixa que



era quase inaudível. Suas mãos amassavam e desamassavam o

lenço de papel, esfrangalhando

-

o, pontihando sua saia marrom de

fragmentos.





Meus pais querem que eu pare de vê

-

lo... que o largue.

Eles receiam... que Repperton e aqueles outros rapazes façam mai

s alguma

coisa.







Parece muito certa de que foram Buddy e seus amigos, hein?







É claro. Todos têm certeza. O Sr. Cunningham chamou a polícia,

embora Arnie lhe pedisse para não fazer isso. Arnie falou que aceitaria as

coisas à sua maneira e isso deixou os d

ois amendrontados.






Também eu me amedronto. A polícia pegou Buddy Repperton e um

de seus amigos, que chamam de "Penetra"... sabe de quem estou falando?







Sei.







Pegaram ainda o rapaz que trabalha à noite no aeroporto, no

pátio de estacionamento. Parece que

se chama Galton...







Sandy. Sandy Galton.







Pensaram que ele também estivesse envolvido na coisa, que

talvez os tivesse deixado entrar.







Sim... Sandy anda com eles





disse Dennis



, mas não é tão

degenerado como os outros. Leigh, eu diria que... Bem, se A

rnie não

conversou com você, certamente alguém mais...







Claro. Primeiro foi a Sra. Cunningham, depois o pai dele. Acho

que um não sabia que o outro havia falado comigo. Eles estão...







Perturbados





sugeriu Dennis. Ela meneou a cabeça.







É mais do que ist

o. Os dois dão a impressão de terem sido...

agredidos ou coisa assim. Sinceramente, não consigo ter pena

dela,

parece

estar sempre querendo impor sua vontade, mas lamento pelo Sr.

Cunningham. Ele me pareceu tão... tão...





A voz dela se extinguiu,

depois t

ornou a ganhar volume.





Quando fui lá ontem de tarde, depois

das aulas, a Sra. Cunningham, ela me pediu para chamá

-

la de Regina, mas

não consigo...



Dennis sorriu.







Você consegue?





perguntou Leigh.







Bem, sim... mas tenho um bocado mais de prática. Leigh



sorriu,

pela primeira vez em sua visita.







Talvez

isso

fizesse diferença. De qualquer maneira, quando fui lá,

encontrei a Sra. Cunningham, mas seu marido ainda estava na escola... na

Universidade, quero dizer.







Entendo.







Ela tirou a semana de folga... o



que sobrou da semana. Comentou

que não se sentia em condições de retornar, inclusive nos três dias antes

da Ação de Graças.










Como ela estava?







Acabada





disse Leigh, e estendeu a mão para outro lenço de

papel, cujas pontas começou a esfarrapar.





Pareci

a mais velha dez anos,

comparando com a vez em que a conheci, cerca de um mês atrás.







E ele? Michael?







Mais velho, porém mais seguro





disse Leigh, hesitante.





Como se isto tudo, de algum modo... de algum modo o pusesse em

movimento.



Dennis ficou calado

. Conhecera Michael Cunningham durante treze

anos e nunca o vira em movimento. Era Regina que sempre tomava a

frente de tudo, com Michael trotando atrás, preparando os drinques nas

reuniões (em sua maioria, reuniões de membros da faculdade) oferecidas

pelo

s Cunningham. Ele tocava sua flauta, parecia melancólico... mas nem

com um esforço de imaginação Dennis poderia dizer que já o vira "em

movimento".



O

triunfo final,

dissera certa vez o pai de Dennis, junto à janela,

vendo Regina levar Arnie pela mão, camin

hando pela estrada da casa dos

Guilder ao encontro de Michael, que os esperava atrás do volante de seu

carro. Naquela época, Arnie e Dennis deviam andar pelos sete anos. O

maternalismo supremo. Eu me pergunto se ela não fará o pobre idiota esperar no

carro

, quando Arnie se casar. Ou talvez ela possa...



A mãe de Dennis lhe franzira o cenho e o fizera calar

-

se, indicando o

filho com os olhos, em um gesto de crianças

-

têm

-

orelhas

-

grandes. Dennis

nunca esquecera o gesto e nem o que seu pai comentara. Aos sete an

os,

não entendera bem aquilo, mas, mesmo nessa idade, sabia perfeitamente o

que significava "pobre idiota". E, mesmo aos sete, entendera vagamente

por que seu pai achava que Michael Cunningham fosse um. Sentira pena

de Michael... um sentimento que persisti

a, sempre e sempre, até o

presente.







Ele chegou quando ela terminava a

sua

história





prosseguiu

Leigh.





Convidaram

-

me a ficar para jantar, Arnie estava comendo na

Darnell's, mas eu disse que precisava voltar para casa. Assim, o Sr.

Cunningham me oferece

u uma carona e fiquei sabendo de sua versão, a

caminho de casa.







Os dois têm pontos de vista diferentes?










Não exatamente, mas... foi o Sr. Cunningham que chamou a

polícia, por exemplo. Arnie não queria, e a Sra. Cunningham... Regina não

se animava a fazê

-

lo.



Dennis perguntou cauteloso:







Ele está, realmente, tentando reconstruir o carro?







Está





sussurrou ela, para então soltar, agudamente:





Só que

isso não é tudo! Arnie está profundamente envolvido com aquele tal

Darnell, eu sei que está! Ontem, durant

e o período vago, ele me contou

que ia colocar uma traseira nova no carro esta tarde e esta noite. Então,

comentei que devia ser tremendamente caro, mas ele respondeu que não

me preocupasse, que seu crédito era bom e...







Acalme

-

se.



Ela estava chorando nov

amente.







Que seu crédito era bom, porque ele e alguém chamado Jimmy

Sykes iam fazer alguns favores para Will, na sexta e no sábado. Foi o que

ele disse. E... bem, não acredito que esses favores para aquele miserável

sejam legais!







O que ele disse à políc

ia, quando o interrogaram sobre Christine?







Falou que a encontrou... daquela maneira. Perguntaram se tinha

alguma idéia de quem fizera aquilo e Arnie disse que não. Perguntaram

-

lhe se não era verdade que tivera uma briga com Buddy Repperton, que

Repperton



o ameaçara com uma faca e fora expulso por causa disso. Arnie

contou que Repperton lhe arrancara da mão sua sacola do almoço e a

pisoteara, mas que então o Sr. Casey aparecera, acabando com a briga.

Perguntaram

-

lhe se Repperton não tinha dito que ele paga

ria por aquilo.

Arnie respondeu que talvez tivesse falado algo semelhante, mas que era

conversa fiada.



Dennis estava calado, olhando para o carregado céu de novembro

através de sua janela, considerando o que ouvia. Aquilo tudo era sinistro.

Se Leigh contav

a exatamente o que havia sido a entrevista com a polícia,

Arnie não contara uma só mentira... mas manejara os fatos, de maneira a

fazer parecer uma briguinha trivial, aquele incidente na área de fumar.



Sim, aquilo tudo era muito sinistro.










Imagina o que e

le poderia estar fazendo para esse Darnell?





perguntou Leigh.







Não





respondeu Dennis.



No entanto, tinha algumas suspeitas. Um pequeno gravador interno

se ligou e ele ouviu seu pai dizendo:

Ouvi algumas coisas... carros roubados...

cigarros e bebidas...

o contrabando é como um frenesi... ele vem tendo sorte por

muito tempo, Dennis.



Ele olhou para o rosto de Leigh, muito pálido, com a pintura

manchada pelas lágrimas. Ela ligava

-

se a Arnie o mais que podia. Talvez

estivesse aprendendo algo sobre ser forte,

algo que, com sua aparência,

não teria aprendido de outra forma, por mais dez anos. Entretanto, isso

não facilitava as coisas, não as endireitava necessariamente. De súbito,

ocorreu

-

lhe quase ao acaso que percebera a melhora da pele de Arnie mais

de um mês



antes de ele se ligar a Leigh... mas depois de ligar

-

se a

Christine.







Vou falar com ele





prometeu.







Está bem





disse ela. Levantou

-

se.





Eu... eu não quero que

tudo seja como era antes, Dennis. Sei que nunca mais será. No entanto,

ainda o amo e... Bem,



eu só queria que lhe dissesse isto.







Certo, eu direi.



Ficaram ambos constrangidos e nenhum dos dois conseguiu dizer

qualquer coisa, por um longo momento. Dennis pensava que devia ser

aquele o momento, em uma canção, em que surge o Melhor Amigo. Não

obsta

nte, uma parte sua, desprezível, baixa (e também lúbrica) era

contrária a isso. Totalmente. Continuava ainda sentindo uma fortíssima

atração por ela, mais do que sentira por qualquer outra garota, em muito

tempo. Talvez em toda a sua vida. Que Arnie levass

e bebida e

contrabando para Burlington, que se fodesse com seu carro! Nesse meio

tempo, ele e Leigh travariam um conhecimento mais íntimo. Um pouco de

ajuda e conforto. Todos sabem como é isso.



Teve a impressão de que levaria a melhor, precisamente naquele



momento de constrangimento, após ela declarar que amava Arnie; Leigh

estava vulnerável. Talvez estivesse aprendendo a ser forte, mas ela não

aprenderia isso em uma escola à qual se vai voluntariamente. Ele poderia

dizer alguma coisa





a coisa certa, talve

z apenas:

chegue aqui





e ela se




aproximaria, sentaria na beira da cama, eles conversariam mais um pouco,

talvez falassem sobre coisas mais agradáveis, possivelmente ele a beijaria.

Leigh tinha uma boca adorável e cheia, sensual, feita para beijar e ser

be

ijada. Uma vez para consolo. Duas por amizade. A terceira englobaria

tudo. Sim, um certo instinto, que só então lhe parecia seguro, dizia que

isso poderia ser feito.



Entretanto, Dennis não disse nenhuma das coisas que poderiam dar

nascimento ao que imagina

va, nem tampouco Leigh. Arnie estava entre

eles e, quase seguramente, estaria sempre. Arnie e sua dama. Se a coisa

não fosse tão ridiculamente chocante, ele teria achado graça.







Quando é que vão deixar você sair?





perguntou ela.







Sem que o público desco

nfie?





perguntou ele, começando a rir.

Após um momento, ela começou a rir também.







Algo mais ou menos assim





disse, tornando a rir.





Oh, sinto

muito





acrescentou.







Não se desculpe





disse Dennis.





Os outros riram de mim a

vida inteira. Já fiquei aco

stumado. Disseram que vão me prender aqui até

janeiro, mas vou enganá

-

los. Voltarei para casa no Natal. Tenho me

rebolado um bocado, na câmara de tortura.







Câmara de tortura?







A fisioterapia. Minhas costas já estão outra coisa. Os outros ossos

se emendam



ativamente... às vezes a coceira é insuportável. Tenho

devorado uma porção de botões de rosa. O Dr. Arroway diz que isso não

passa de conversa fiada, mas o treinador Puffer jura que fazem efeito e

confere as sobras, cada vez que me visita.







E ele vem sem

pre? O treinador?







Oh, sim, ele vem. Está quase me fazendo acreditar nessa história

de que botões de rosa fazem os ossos se soldarem mais depressa.





Dennis fez uma pausa.





Naturalmente, vou parar de jogar futebol.

Ficarei andando de muletas durante algu

m tempo e depois, com sorte,

posso me candidatar a uma bengala. O velho e jovial Dr. Arroway me

disse que vou mancar por uns dois anos. Talvez fique mancando para

sempre.







Sinto muito





disse ela, em voz baixa.





É pena que isso fosse

acontecer logo com u

m cara tão legal como você, Dennis, mas em parte




falo por egoísmo. Gostaria de saber se o resto de tudo isto, essa história

horrível que aconteceu com Arnie, aconteceria realmente se você estivesse

por perto.







Muito bem





disse Dennis, rolando os olhos dr

amaticamente.





Jogue a culpa em mim! Ela, entretanto, não sorriu.







Sabe que começo a duvidar da sanidade de Arnie? Isso é uma

coisa que não cheguei a comentar com meus pais nem com os dele. No

entanto, acho que a mãe dele... que ela talvez... Bem, não se

i o que Arnie

disse a ela naquela noite, depois que encontramos o carro destroçado,

mas... tenho a impressão de que os dois se engalfinharam.



Dennis assentiu.







De qualquer modo, tudo parece tão... louco! Os pais dele

quiseram comprar um bom carro usado pa

ra ele, para substituir Christine,

mas Arnie recusou. Quando me levava para casa, o Sr. Cunningham

contou que se prontificou a comprar um carro novo para Arnie... usaria

algumas ações que guarda desde 1955. Arnie recusou novamente, dizendo

que não poderia

aceitar um presente desses. O Sr. Cunningham

respondeu que compreendia, que o carro não tinha que ser um presente,

que Arnie lhe pagaria aos poucos, podia até incluir juros, se ele fizesse

questão... Você entende aonde quero chegar, Dennis?







Entendo





res

pondeu Dennis.





A questão é que não pode ser

outro carro. Tem que ser Christine.







Para mim, isso parece obsessivo. Arnie descobre uma coisa e se

fixa nela. Não é o que se chama uma obsessão? Tenho medo e, às vezes,

sinto ódio... mas não é dele que tenho

medo. Não é a ele que odeio. É tudo

por causa daquele ter... não, daquela

merda

de carro. A maldita Christine.



As faces de Leigh ficaram vermelhas. Ela apertou os olhos. Os

cantos de sua boca penderam. De repente, seu rosto deixara de ser bonito,

nem mesmo



era atraente. A expressão era cruel, modificando

-

se para algo

horrível, mas também magoado e compulsivo. Pela primeira vez, Dennis

percebeu por que davam a isso o nome de monstro





o monstro de olhos

verdes.







Sabe o que eu gostaria que acontecesse?





per

guntou Leigh.





Era que alguém, numa noite dessas, levasse sua preciosa e maldita

Christine por engano, para os ferros

-

velhos de Philly Plains.





Os olhos




dela cintilaram maldosamente.





E, no dia seguinte, que aquele guindaste

com o enorme imã redondo rec

olhesse o carro e o colocasse no compressor.

Depois, que alguém apertasse o botão e que então só sobrasse um cubinho

de metal amassado, medindo dez centímetros de lado. Então, tudo isso

teria terminado, não acha?



Dennis não respondeu e, após um momento, qu

ase pôde ver o

monstro girar, envolver

-

se em sua cauda escamosa e desaparecer do rosto

dela. Os ombros de Leigh encurvaram

-

se.







Bem, imagino que minhas palavras sejam horríveis, não? Seria

como dizer que desejaria que aqueles caras terminassem o trabalho.







Sei como você se sente, Leigh.







Sabe mesmo?





desafiou ela.



Dennis evocou a expressão de Arnie, quando esmurrara o painel do

carro. A espécie de luz maníaca que lhe surgia nos olhos, quando estava

perto de Christine. Pensou na vez em que sentara ao vol

ante, na garagem

de LeBay e no tipo de visão que tivera.



Por último, pensou em seu sonho: faróis apontando para ele, em

meio ao agudo grito feminino de pneus queimando.







Sei





respondeu.





Penso que sei.



Os dois entreolharam

-

se, no quarto do hospital.





D

I

A DE

A

ÇÃO DE

G

RAÇAS



Duas

-

três horas passaram por nós,



A altitude caiu para 505,



Havia menos consumo de combustível,



Vamos para casa, antes que acabe a gasolina.



Você não pode me alcançar...



Não, meu bem, não pode me alcançar...



Porque se chegar muito perto

,



Eu me transformo em uma briiiisa fresca.










Chuck Berry





No hospital, o almoço do Dia de Ação de Graças foi servido em

turnos, das onze da manhã até uma da tarde. Dennis recebeu o seu

faltando quinze para o meio

-

dia: três cautelosas fatias de carne branca



de

peito de peru, três cautelosas colheradas de molho de ferrugem, um bom

punhado de purê de batata, no formato e tamanho exato de uma bola de

futebol (faltando apenas as suturas vermelhas, pensou ele, com sarcástico

humor), uma pequena concha de abóbora

gelada, em arrogante e

fluorescente alaranjado, e um pequeno recipiente plástico contendo geléia

de uva

-

do

-

monte. Havia ainda sorvete, como sobremesa. Um pequeno

cartão azul repousava no canto de sua bandeja.



A esta altura, mais enfronhado no sistema hospi

talar





após ser

tratado da primeira erupção de úlceras de decúbito no traseiro, Dennis

surpreendera

-

se mais entendido nos sistemas do hospital do que gostaria

de estar



, ele perguntou, à atendente de uniforme listrado que veio levar

sua bandeja, o que os



cartões amarelo e vermelho reservavam para o

ajantarado de Ação de Graças. Ficou sabendo que os cartões amarelos

indicavam duas fatias de peru, nenhum molho, batatas, sem abóbora e

geléia artificial como sobremesa. Os cartões vermelhos indicavam uma

fatia



de carne branca, purê de batatas. Pouca comida, na maioria dos casos.



Para Dennis, tudo aquilo foi bastante deprimente. Era fácil imaginar

sua mãe trazendo um enorme e tostado peru para a sala da mesa de

refeições, por volta de quatro da tarde, seu pai af

iando a faca de trinchar,

sua irmã, corada pela pompa e excitamento, com uma fita vermelha de

veludo no cabelo, enchendo um bom copo de vinho tinto para cada um

deles. Era também fácil imaginar os deliciosos aromas e a alegria, quando

se sentavam para come

r.



Fácil de imaginar... mas provavelmente um erro.



De fato, aquele era o Dia da Ação de Graças mais deprimente de sua

vida. Dennis evadiu

-

se para uma desacostumada sesta no início da tarde

(nada de fisioterapia, por ser feriado) e teve um sonho perturbador

, no

qual várias atendentes de uniforme listrado percorriam a enfermaria de

Tratamento Intensivo aplicando decalques da figura de um peru nos

aparelhos de manutenção da vida e nos injetares intravenosos.






Sua mãe, o pai e a irmã tinham ido visitá

-

lo pela ma

nhã, durante

uma hora. Era a primeira vez que percebia em Ellie certa ansiedade para ir

embora dali. Tinham sido convidados pelos Callison para um

brunch



*



ligeiro de Ação de Graças; Lou Callison, um dos três filhos do casal, tinha

quatorze anos e era "leg

al". O irmão hospitalizado se tomara tedioso. Não

lhe haviam descoberto uma forma rara e trágica de câncer espalhando

-

se

pelos ossos. Ele tampouco ficaria paralítico para o resto da vida. Em

Dennis, nada havia de comparável ao filme da semana na tevê.



Tele

fonaram para ele da residência dos Callison, por volta de meio

-

dia e meia. Seu pai lhe parecera levemente embriagado





Dennis supôs

que estaria no segundo Bloody Mary e talvez recebendo alguns olhares

desaprovadores de mamãe. Pessoalmente, ele terminara po

uco antes seu

ajantarado de Ação de Graças





cartão azul, dieteticamente aprovado, o

único de semelhante data que já conseguira comer em quinze minutos





e

saiu

-

se bem, simulando alegria, não querendo estragar

-

lhes os bons

momentos. Ellie falou rapidamente



ao telefone, dando risadinhas e com

voz um tanto estridente. Talvez fosse a conversa com Ellie que o fatigara o

suficiente para precisar de uma soneca.



Dennis adormecera (e tivera aquele sonho perturbador) por volta de

duas da tarde. O hospital estava sin

gularmente quieto aquele dia, apenas

com o pessoal estritamente necessário. A costumeira tagarelice das TVs e

rádios transistorizados dos outros quartos emudecera. O uniforme

listrado que recolhera sua bandeja sorrira amplamente, dizendo esperar

que ele ti

vesse apreciado seu "ajantarado especial". Dennis garantiu

-

lhe

que o apreciara. Afinal de contas, era Dia de Ação de Graças também para

ela.



Então, aconteceu o sonho, um sonho que depois se interrompeu e foi

substituído por um sono profundo. Quando acordou

, eram quase cinco da

tarde e Arnie Cunningham estava sentado na mesma cadeira de plástico

duro que sua namorada ocupara ainda na véspera.



Não foi muita surpresa deparar com ele ali; Dennis imaginou,

simplesmente, que se tratava de um novo sonho.







Olá, Ar

nie





disse.





Como vão as coisas?



                                        

             



*



Mistura de

breakfast e lunch





ajanta

rado dominical. (N.T.).










Tudo legal





respondeu Arnie



, mas você parece ainda estar

dormindo, Dennis. Que tal uma pausa para o almoço? Isso o despertará.



Havia um saco de papel pardo no colo dele e a mente sonolenta de

Dennis pensou:

Afinal, e

le recuperou seu saco do almoço. Talvez Repperton não

o tivesse pisoteado tanto quanto pensei.

Tentou sentar

-

se na cama, porém as

costas doeram e usou o painel de controle, para deixá

-

la quase em posição

de sentar. O motor gemeu.







Céus, é você mesmo!







Es

perava Chidrah, o Monstro de Três Cabeças?





respondeu

Arnie amistosamente.







Eu estava dormindo. Devo ter pensado que ainda estava.





Dennis friccionou a testa com força, como para livrar

-

se do sono.





Feliz

Dia de Ação de Graças, Arnie.







Obrigado





diss

e Arnie.





O mesmo para você. Eles lhe deram

peru e tudo o mais para comer?



Dennis riu.







Ganhei algo parecido àquelas comidinhas de brinquedo, que

vieram com o Bar Horas Felizes, de Ellie, quando ela estava com uns sete

anos. Lembra

-

se?



Arnie colocou as m

ãos em concha ao redor da boca e fez ruídos

obscenos.







Claro que me lembro. Uma baixaria!







Foi bom você ter vindo





disse Dennis e, por um instante, esteve

perigosamente à beira das lágrimas.



Talvez não houvesse percebido inteiramente o quanto estava

dep

rimido. Sua decisão de estar em casa pelo Natal ganhou força

redobrada. Se ainda continuasse lá, certamente se suicidaria.







Seus velhos não vieram?







É lógico que vieram





disse Dennis



, e vão voltar à noite, pelo

menos, mamãe e papai, mas não é a mesma

coisa. Você sabe.







Hum

-

hum. Bem, eu lhe trouxe uma coisa. Disse à matrona lá

embaixo que era o seu roupão de banho.






Arnie deu uma risadinha contida.







O que

é isso?





perguntou Dennis, indicando o saco.



Podia ver que não era apenas um saco de papel para al

moço, mas

uma sacola de compras.







Oh, fiz uma vistoria na geladeira, depois que comemos o bicho





disse Arnie.





Os velhos saíram para visitar amigos da Universidade, é

costume de todo ano, na tarde do Dia da Ação de Graças. Só estarão de

volta lá pelas o

ito da noite.



Enquanto falava, foi tirando coisas da sacola. Dennis ficou olhando,

espantado. Dois castiçais de estanho. Duas velas. Arnie enfiou as velas nos

castiçais, acendeu

-

as usando uma caixinha de fósforos com propaganda

da Garagem de Darnell e desl

igou a luz da cabeceira. Em seguida, quatro

sanduíches, grosseiramente embrulhados em papel encerado.







Segundo me lembro





disse ele



, você sempre dizia que dois

sanduíches de peru, por volta de onze e meia da noite de sexta

-

feira, eram

melhores do que o



ajantarado de Ação de Graças. Porque a pressão já

terminara.







Isso mesmo





assentiu Dennis.





Sanduíches em frente da TV.

Carson ou algum filme antigo. Bem, mas... francamente, Arnie, você não

precisava...







Droga, faz umas três semanas que não ponho os

olhos em você.

Foi bom ter chegado enquanto você dormia, porque do contrário teria me

fuzilado.





Passou dois sanduíches para Dennis.





Seus favoritos, acho.

De carne branca, com maionese e Pão Maravilha.



Dennis deu uma risadinha, depois riu com vontade, e

ntão

gargalhou. Arnie percebia que aquele esforço lhe doía nas costas, mas ele

não conseguia parar de rir. Pão Maravilha havia sido um dos maiores

segredos comuns de Dennis e Arnie, quando crianças. As mães de ambos

eram muito severas no tocante ao pão; Re

gina comprava Torradas

Dietéticas, com ocasionais incursões ao Centeio Moído

-

Solo Pedregoso. A

mãe de Dennis preferia Farinha de Milho e pão de centeio. Arnie e Dennis

comiam o que lhes era dado





mas ambos eram secretos apreciadores do

Pão Maravilha e, po

r várias ocasiões, juntavam seu dinheiro para comprar

um Maravilha e um pote de Mostarda Francesa, em vez de doces e balas.

Então, enfiavam

-

se na garagem da casa de Arnie (ou na casa na árvore de




Dennis, lamentavelmente demolida por um vendaval quase nove

anos

antes) e lá ficavam comendo sanduíches de mostarda e lendo histórias em

quadrinhos de Ricardo Rico, até todo o pão terminar.



Arnie o acompanhou em suas risadas e, para Dennis, aquela foi a

melhor parte do Dia de Ação de Graças.



Dennis havia ficado com



companheiros de quarto por quase dez

dias, mas agora tinha sozinho o quarto semiparticular. Arnie fechou a

porta e tirou da sacola parda seis latas de cerveja.







As maravilhas continuam





disse Dennis e teve que rir

novamente, com o trocadilho involuntári

o.







Certo





disse Arnie.





Não creio que terminem.





Fez um

brinde acima das velas, com a lata de cerveja.





Prost?







Vida eterna!





respondeu Dennis.



Os dois beberam. Após terminarem os enormes sanduíches de peru,

Arnie retirou da sacola aparentemente se

m fundo dois recipientes

plásticos para torta e retirou as tampas. Em cada um, havia uma fatia de

torta de maçã caseira.







Não, cara, não posso





disse Dennis.





Vou explodir.







Coma!





ordenou Arnie.







É verdade, não posso





disse Dennis, pegando o recipi

ente e um

garfo de plástico. Terminou a fatia de torta em quatro grandes bocados e

depois arrotou. Esgotou o que sobrava de sua segunda cerveja e tornou a

arrotar.





Em Portugal, isto é um cumprimento ao cozinheiro





disse,

com a cabeça zumbindo agradavelm

ente, devido à cerveja.







Se você diz...





respondeu Arnie, com uma careta.



Levantou

-

se, ligou a luz fluorescente da cabeceira e apagou as velas.

No exterior, uma chuva forte começara a bater contra as janelas. O

ambiente esfriava. E, para Dennis, parte do



cálido espírito da amizade e

da verdadeira Ação de Graças parecera extinguir

-

se com as velas.







Vou odiar você amanhã





disse Dennis.





Aposto como vou

ficar uma hora sentado naquela privada. E isso me dói as costas.










Lembra

-

se daquela vez em que Elaine

deu os peidos?





perguntou Arnie, e os dois riram.





Implicamos com ela, até sua mãe

despejar o inferno em cima da gente.







Não fediam, mas foram um bocado barulhentos





disse Dennis,

sorrindo.







Como tiros de revólver





concordou Arnie.



Os dois riram um p

ouco





mas era uma espécie de riso triste, se é

que isso existe. Muita água passara debaixo da ponte. A idéia de que o

acesso de gases de Ellie acontecera sete anos atrás, de certa forma era mais

perturbadora do que divertida. Havia um hálito de mortalidad

e na

percepção de que sete anos podiam significar o passado, com a mais total

e calma facilidade.



A conversa morreu um pouco, ambos perdidos em seus

pensamentos. Por fim, Dennis disse:







Leigh esteve aqui ontem. Contou

-

me sobre Christine. Sinto muito

cara.



De verdade.



Arnie ergueu os olhos e seu ar de pensativa melancolia foi trocado

por um sorriso jovial, em que Dennis mal podia acreditar.







Sim





concordou Arnie.





Foi terrível, mas vou dar a volta por

cima.







É o melhor





respondeu Dennis, cônscio de que



estava

repentinamente vigilante, odiando

-

se por isso, mas não conseguindo agir

de outro modo.



A parte referente à amizade terminara. Era algo que estivera ali,

aquecendo e enchendo o quarto, mas que agora simplesmente se desfizera,

como a coisa delicada e



efêmera que era. Agora, os dois apenas se fitavam.

Os olhos joviais de Arnie estavam também opacos e





Dennis podia

jurar





também vigilantes.







Certo. Fiz a velha passar maus bocados. Leigh também, creio.

Acho que foi o choque de ver que tanto trabalho..

. todo o meu trabalho,

tinha ido por água abaixo.





Ele meneou a cabeça.





Uma catástrofe.







E você conseguirá fazer alguma coisa?



Arnie ficou imediatamente radiante





francamente radiante

naquele momento, Dennis pôde sentir.










Claro que sim! Aliás, já fiz

. Você nem acreditaria, Dennis, se

tivesse visto o estrago que fizeram, naquele pátio de estacionamento.

Antigamente eles faziam um carro para valer, não como agora, quando

tudo que parece metal é, na verdade, plástico reluzente. Aquele carro é

um maldito

tanque de guerra, cara. A parte dos vidros foi a pior. E

também os pneus, claro. Eles estraçalharam os pneus.







E quanto ao motor?







Nem chegaram perto





disse Arnie prontamente.



Foi sua primeira mentira. Quando ele e Leigh tinham visto Christine,

naquela

tarde, o bujão do distribuidor jazia no pavimento. Leigh o

reconhecera e falara com Dennis a respeito. E Dennis se perguntava o que

mais eles teriam feito debaixo do capô. O radiador? Se alguém se propõe a

usar uma alavanca de pneus para fazer buracos na l

ataria, não poderia

usá

-

la também para furar o radiador em alguns lugares? E quanto às velas?

Ao regulador de voltagem? O carburador?



Por que está mentindo para mim, Arnie?







O que está fazendo no carro agora?





perguntou Dennis.







Gastando dinheiro, o que



mais poderia ser?





respondeu Arnie,

e seu riso agora foi quase verdadeiro. Dennis poderia até aceitá

-

lo como

verdadeiro, se não tivesse ouvido o riso real uma ou duas vezes, durante o

banquete de Ação de Graças proporcionado pelo amigo. Novos pneus.

Vidr

os novos. Algum trabalho de lanternagem e então tudo ficará bom

como antes.



Bom como antes.

No entanto, Leigh lhe contara que haviam deparado

com algo que não passava de uma carcaça massacrada, o calhambeque de

feira, a ser liquidado na base das três

-

marte

ladas

-

por

-

um

-

quarto

-

de

-

dólar.



Por que est

á mentindo?



Durante um g

élido instante, ele se perguntou se Arnie talvez não

tivesse ficado um pouco maluco







mas, não, essa não era a impressão que ele dava. A impressão que

Arnie fornecia era de... furtividade. As

túcia. Então, pela primeira vez,

imaginou que Arnie talvez estivesse apenas mentindo pela metade,

procurando estabelecer um fundamento de plausibilidade para... para o

quê? Um caso de regeneração espontânea? Bem, isso era absolutamente

louco, não?






N

ão era?



Sem d

úvida, pensou Dennis, a menos que a gente testemunhasse

como um monte de rachaduras em um pára

-

brisa começa a encolher

-

se,

entre uma e outra visita.



Apenas uma ilus

ão de ótica, um truque provocado pela luz. Foi o

que você pensou naquela vez e tinha r

azão.



N

ão obstante, um truque provocado pela luz não explicaria a

singular maneira como Arnie reconstituíra Christine, aquela

excentricidade de partes novas misturadas a velhas. Não explicaria a

estranha sensação que se apoderara de Dennis ao sentar

-

se ao

volante de

Christine, na garagem de LeBay. Ou a sensação, após ter colocado o pneu

novo, quando estavam a caminho da Darnell's, de que ele olhava para o

retrato de um carro velho com uma foto do carro novo diretamente abaixo

dele





ou que havia sido recort

ado um buraco no quadro do carro velho,

no lugar onde estivera um dos seus pneus.



E nada explicaria a mentira de Arnie agora... ou a maneira astuta,

disfar

çada, como o observava, para ver se sua mentira seria aceita. Então,

ele sorriu... uma grande, tranqü

ila e aliviada careta.







Bem, isso é ótimo





falou.



A express

ão astuciosa e calculista de Arnie permaneceu por um

segundo mais. Depois ele sorriu, careteando, enquanto encolhia os ombros.







Tive sorte





disse.





Quando penso nas coisas que eles

poderiam te

r feito... Açúcar no tanque de gasolina, melado no carburador...

foram imbecis. Sorte minha.







Repperton e seu alegre bando?





perguntou Dennis, calmamente.



A express

ão de desconfiança, tão sombria e estranha a Arnie, tornou

a aparecer e desaparecer. Agora

, ele parecia taciturno. Taciturno e

vacilante. Deu a impressão de que ia falar, mas em vez disso suspirou.







Certo





assentiu.





Quem mais poderia ser?







No entanto, você não deu parte do fato.







Meu velho fez isso.







Foi o que Leigh me disse







O que mais



ela lhe contou?





perguntou Arnie, bruscamente.










Nada e nem perguntei





respondeu Dennis, estendendo a

mão.





O problema é seu, Arnie. Paz.







Claro.





Arnie riu um pouco e depois passou a mão pelo

rosto.





Ainda não consegui superar aquilo. Droga! Acho q

ue nunca irei

superar, Dennis. Chegar àquele pátio de estacionamento com Leigh,

sentindo

-

me o dono do mundo, para então ver...







Será que eles não repetirão a dose, depois que você consertar o

carro? O rosto de Arnie ficou hermético, gélido.







Eles não far

ão outra vez





disse.



Seus olhos cinzentos eram como o gelo de mar

ço e, de repente,

Dennis ficou satisfeito por não ser Buddy Repperton.







O que quer dizer com isso?







Estou dizendo que agora vou deixar o carro em casa





explicou e,

novamente, seu rosto mo

strou aquela ampla, jovial careta esquisita.





O

que mais pensou que fosse?







Não pensei nada





replicou Dennis. A imagem gelada

permanecia. Agora era uma sensação de gelo fino, estalando

inquietamente debaixo de seus pés. E, abaixo do gelo, água negra e f

ria.





Sei lá, Arnie. Você parece muito certo de que Buddy desistiu.







Espero que ele encare a coisa como um acerto de contas





declarou Arnie tranqüilo.





Nós provocamos sua expulsão do colégio...







Ele é que provocou a própria expulsão!





exclamou Dennis

,

acalorado.





Puxou uma faca... diabo, aquilo nem era faca, mas um

maldito facão de açougueiro!







Só estou imaginando o modo como ele verá a coisa





disse Arnie,

para então estender a mão e acrescentar, rindo:





Paz.







Ok, tudo bem.







Nós conseguimos sua

expulsão, ou, mais precisamente, eu a

consegui. Em troca, ele e sua turma fizeram o diabo com Christine. Agora

estamos quites. Fim.







Ainda bem, caso ele encare os fatos dessa maneira.







Acho que vai ser assim





disse Arnie.





Os tiras o interrogaram.

Tamb

ém interrogaram "Penetra" Welch e Richie Trelawney. Encheram os




três de medo. E suponho que quase fizeram Sandy Galton confessar.





Os

lábios de Arnie encurvaram

-

se desdenhosos.





Aquele babaca chorão!



Aquilo era t

ão inusitado em Arnie





no velho Arnie





q

ue Dennis

se sentou na cama sem pensar, pestanejou com a dor nas costas e tornou a

se deitar rapidamente.







Nossa, cara, e você não acha que eles tinham que ficar assustados

mesmo?







Estou pouco ligando para o que ele ou qualquer daqueles bostas

venham a f

azer





disse Arnie. Então, em voz estranhamente distante,

acrescentou:





Aliás, nada mais importa...



Dennis perguntou:







Você está bem, Arnie?



Por um instante, um olhar de desesperada tristeza cobriu o rosto de

Arnie





foi mais do que tristeza. Ele parecia



atormentado e perseguido.

Mais tarde (é muito fácil analisar tais coisas mais tarde, bem mais tarde),

Dennis decidiu que era a expressão de alguém tão desnorteado, envolvido

e cansado de lutar, que nem sabe mais direito o que faz.



Ent

ão, essa expressão, c

omo qualquer outra de escura suspeita,

terminou desaparecendo.







Claro





respondeu.





Estou ótimo. Exceto que você não é o

único com dor nas costas. Lembra

-

se de quando fiz aquele esforço, em

Philly Plains?



Dennis assentiu.







Pois dê uma olhada nisto.



Leva

ntando

-

se, Arnie puxou a camisa para fora das cal

ças. Algo

pareceu agitar

-

se em seu olhar. Algo inquieto, que depois mergulhou em

negras profundezas.



Ergueu a camisa. N

ão era uma coisa antiquada, como o de LeBay.

Também estava mais limpo





uma caprichada t

ira de Lycra, parecendo

contínua, com uns trinta centímetros de largura. Entretanto, pensou

Dennis, um colete era um colete. Para seu desconsolo, aproximava

-

se

demais do de LeBay.










Piorei as coisas, ao levar Christine de volta para a garagem





disse Arnie

.





Nem mesmo sei como foi, tão perturbado estava.

Ajudando a enganchá

-

la no guincho do carro

-

reboque, imagino, mas não

tenho certeza. A princípio não foi tão ruim, mas depois piorou. O Dr.

Mascia receitou... Dennis, você está legal?



Com o que sentiu ser u

m fant

ástico esforço, Dennis manteve a voz

controlada. Movimentou as feições, formando uma expressão que, pelo

menos fracamente, dava uma idéia de agradável interesse... mas ainda

continuava aquilo nos olhos de Arnie, dançando, dançando e dançando.







Você

vai sair dessa





falou Dennis.







Bem, acho que sim





respondeu Arnie, tornando a enfiar a

camisa dentro das calças, em torno do colete para as costas.





Apenas

preciso ficar atento na hora de levantar pesos, para que não torne a

acontecer.



Sorriu para Denn

is.







Se ainda houvesse recrutamento, isso me livraria do Exército





comentou.



De novo, Dennis evitou qualquer movimento que pudesse ser

interpretado como surpresa, mas colocou os bra

ços debaixo das cobertas.

Ao ver aquele colete para as costas, tão semelh

ante ao de LeBay, ficara

com ambos arrepiados.



E os olhos de Arnie! Eram como

águas escuras, por baixo do fino

gelo de março. Águas escuras e jubilosas, agitando

-

se muito fundo dentro

dele, como o corpo agitado e decomposto de um afogado.







Bem





disse Arn

ie, animadamente.





Tenho que ir andando.

Certamente não vai esperar que eu fique rondando em um lugar horrível

como este, a noite inteira.







E lá se vai você, sempre solicitado





disse Dennis.





Falando

sério, cara, obrigado. Você alegrou um dia sombrio.



Por um estranho instante, ele pensou que Arnie fosse chorar. Aquela

coisa dan

çante no fundo de seus olhos havia desaparecido e seu amigo

estava ali





realmente ali. Arnie sorriu sincero.







Lembre só uma coisa, Dennis: ninguém está sentindo sua falta.

Absol

utamente ninguém!










Vai tomar banho





disse Dennis, em tom solene. Arnie fez um

gesto obsceno com o dedo.



As formalidades agora estavam completas





Arnie podia ir embora.

Recolheu sua sacola parda



de compras, consideravelmente desinflada, casti

çais e latas



vazias de

cerveja, que tilintaram no interior.



Dennis teve uma s

úbita inspiração. Bateu com os nós dos dedos no

gesso em torno da perna.







Quer assinar aqui, Arnie?







Eu já assinei, não foi?







Sim, mas apagou. Assina outra vez? Arnie deu de ombros.







Tem

uma caneta?



Dennis entregou

-

lhe uma caneta que tirou da gaveta da mesa

-

de

-

cabeceira. Sorridente, Arnie inclinou

-

se para o gesso, erguido em

ângulo

acima da cama, através de uma série de pesos e polias, encontrou espaço

em branco no meio do emaranhado de no

mes e frases e garatujou:





(Para Dennis Guilder, o maior cacete do mundo.)





Deu um tapinha no gesso, ap

ós terminar, e devolveu a caneta.







Tudo certo?







Legal





disse Dennis.





Obrigado. Agora pode dar o fora, Arnie.







Certo, sabichão. Feliz Dia de Ação d

e Graças.







O mesmo pra você.






Arnie se foi. Mais tarde, chegaram os pais de Dennis.

Aparentemente exausta pela hilaridade do dia, Ellie tinha ido dormir. Ao

voltarem para casa, os Guilder comentaram o abatimento de Dennis.







Tinha que estar mesmo





disse G

uilder.





Feriados num

hospital nada têm de divertidos.





Quanto a Dennis, naquela noite ele passou um longo e meditativo

per

íodo examinando as duas assinaturas. De fato, Arnie já assinara seu

gesso, mas quando ele ainda estava com as duas pernas inteiramen

te

engessadas. Daquela primeira vez, ele assinara no molde sobre a perna

direita, a que estava suspensa no ar durante a visita de Arnie. Esta noite,

ele pusera sua assinatura na esquerda.



Dennis tocou a cigarra, chamando uma enfermeira, e usou todo o

seu p

oder de persuas

ão para que ela lhe baixasse a perna esquerda, a fim

de poder comparar as duas assinaturas, lado a lado. O gesso da perna

direita havia sido recortado e o retirariam em mais uma semana ou dez

dias. A assinatura de Arnie não se desfizera





es

sa tinha sido uma das

mentiras de Dennis



, mas quase se fora, quando recortaram o gesso.



Arnie n

ão escrevera uma mensagem na perna direita, apenas

assinara. Com algum esforço (e um pouco de dor), Dennis e a enfermeira

conseguiram manobrar

-

lhe as pernas, d

eixando

-

as aproximadas o

suficiente para que ele estudasse as duas assinaturas, lado a lado. Em uma

voz tão sem entonação e falha, que ele mal conseguiu identificar como sua,

ele perguntou à enfermeira:







Acha que são parecidas?







Não





disse ela.





Já ouv

i falar de cheques com assinaturas

falsificadas, mas nunca moldes de gesso. É alguma brincadeira?







Claro





Dennis sentiu algo gélido subir do estômago para o

peito.





É brincadeira.



Olhou para as assinaturas. Olhou para ambas, lado a lado, e sentiu

um jat

o gelado se espraiando por todo seu corpo, baixando sua

temperatura, deixando os cabelos da nuca eri

çados, espetando o ar:












As duas assinaturas n

ão tinham a menor semelhança.



Mais tarde, naquela noite do Dia de A

ção de Graças, levantou

-

se um

vento frio,



primeiro em lufadas, depois permanentemente. A clara lua

cheia espiava para baixo, do alto de um céu negro. As últimas folhas

murchas e queimadas do outono foram arrancadas das árvores e depois

atiradas pelas sarjetas. Emitiam um som parecido ao de ossos

rolando.



O inverno chegara a Libertyville.





"PENETRA"



WELCH



A noite estava escura, o c

éu estava azul,



e um carr

ão brilhante fugia no fundo do beco,



Uma porta se abriu com estrondo,



Algu

ém gritou,



Voc

ê precisava ouvir só o que eu vi







Bo Diddley





A quinta

-

f

eira depois da do Dia de A

ção de Graças foi o último dia

de novembro, a noite em que Jackson Browne tocou no Centro Cívico de

Pittsburgh, para uma platéia lotada. "Penetra" Welch foi até lá com Ricchie

Trelawney e Nickey Billingham mas separou

-

se deles ant

es de começar o

espetáculo. A grana estava curta e, fosse porque o eminente concerto de

Browne houvesse gerado algumas vibrações harmoniosas ou porque ele

estava adquirindo traços afetivos (sendo um romântico, "Penetra" gostava

de acreditar na última hipót

ese), ele tivera uma noite extraordinariamente

boa. Conseguira juntar quase trinta dólares em "trocados". Distribuíra as

moedas por todos os seus bolsos e tilintava como um cofre de criança.

Pedir carona para casa também fora incrivelmente fácil, com todo

o

tráfego formado a partir do Centro Cívico. O concerto terminara às onze e




quarenta da noite e ele estava de volta a Libertyville pouco depois de uma

e quinze da madrugada.



Sua

última carona havia sido com um rapaz que seguia de volta

para Prestonville, p

ela Rota 63. O cara o deixara na rampa da 376, da JFK

Drive. "Penetra" decidiu caminhar até o posto de gasolina Happy Gas, de

Vandenberg, para um papo com Buddy. Buddy tinha um carro e isto, para

"Penetra"





que morava longe, em Kingsfield Pike





significa

va que não

precisaria ir para casa andando. Era dureza conseguir uma carona quando

se está em zonas menos populosas





e Kingsfield Pike ficava no fim do

mundo. Desta maneira, ele só chegaria em casa bem depois do amanhecer

mas, em tempo frio, uma carona ga

rantida não é coisa que se despreze. E

Buddy podia ter uma garrafa.



"Penetra" j

á caminhara uns trezentos metros, a partir da rampa de

saída da 376, em meio a um frio intenso, suas botas ferradas crepitando

sobre a calçada deserta, a sombra diminuindo e se

desfazendo sob a

claridade fantasmagórica e alaranjada da luz dos postes, tendo ainda mais

de um quilômetro a percorrer, quando avistou o carro estacionado junto

ao meio

-

fio, pouco adiante. O escapamento turbilhonava para fora dos

dois canos de descarga e

pendia no ar perfeitamente imóvel, em forma de

nuvem, antes de se desmanchar preguiçosamente em camadas

superpostas. A grade do radiador, em reluzente cromado que se

acentuava com toques de luz laranja, olhava para ele como a boca

sorridente de um débil me

ntal. "Penetra" reconheceu o carro. Era um

Plymouth de duas cores. À luz das lâmpadas da rua, os dois tons

pareciam ser marfim e sangue seco. Era Christine.



"Penetra" estacou e uma esp

écie de estúpida admiração o

envolveu





não havia medo, pelo menos naque

le momento. Não podia

ser Christine, aquilo era impossível





eles tinham feito uma dúzia de

furos no radiador do carro do Cara de Cona, haviam despejado uma

garrafa de Texas Driver quase

cheia no carburador, e Buddy exibira um

saco de a

çúcar de três quilos

, que deixara escorregar para o tanque de

gasolina, através das mãos de "Penetra", formando um funil. E aquilo fora

apenas o começo. Buddy demonstrara um tipo de furiosa imaginação,

para destruir o carro do Cara de Cona. Aquilo deixara "Penetra" deliciado

e inquieto ao mesmo tempo. Tudo somado, aquele carro não conseguiria

mover

-

se por esforço próprio nem em seis meses, talvez nunca mais.

Portanto, não podia ser Christine o que estava ali. Devia ser outro Fury 58.






Exceto que era Christine. "Penetra" o conhe

cia.



Ficou im

óvel na calçada deserta daquela madrugada, as orelhas

entorpecias assomando por sob os cabelos compridos, a respiração

congelando

-

se no ar.



O carro estava junto ao meio

-

fio, de frente para ele, o motor

ronronando maciamente. Era imposs

ível diz

er quem estaria ao volante,

caso houvesse alguém. O carro estacionara diretamente abaixo da luz de

um poste, e o globo alaranjado brilhava através do pára

-

brisa imaculado,

como um jack

-

o'

-

lantern

*



à prova d'água, percebido bem no fundo de

águas escuras.



"

Penetra" come

çou a ficar com medo.



Deslizou a l

íngua sobre os lábios secos e olhou em torno. À sua

esquerda, ficava a JFK Drive, com seis faixas de trânsito e se

assemelhando ao leito seco de um rio, àquela hora morta da madrugada.

À esquerda, havia uma lo

ja fotográfica, com letras alaranjadas delineadas

em vermelho, soletrando KODAK, através da vitrine.



"Penetra" tornou a olhar para o carro. Ele permanecia l

á, parado.



Ele abriu a boca para falar, mas n

ão emitiu som algum.

Experimentou de novo e conseguiu u

m grasnido.







Olá, Cunningham!



O carro continuou parado, pregui

çosamente. A fumaça do

escapamento turbilhonava, morosa

mente farta, produzida pela gasolina

especial.







É você, Cunningham?



Deu mais um passo. Os pregos da bota ferrada retiniram no cimento.

S

eu cora

ção latejava no pescoço. Tornou a olhar em torno, para a rua;

certamente apareceria outro carro, a JFK Drive não podia estar

inteiramente deserta, mesmo à uma e vinte e cinco da madrugada, podia?

Entretanto, não havia carros, apenas o monótono clarã

o alaranjado dos

postes de luz.



"Penetra" pigarreou.



                                        

             



*



Lanterna feita com uma abóbora recortada com um rosto humano. (N.T.)










Você não está louco, está?



Os far

óis duplos dianteiros ganharam vida subitamente,

envolvendo

-

o em cintilante luz branca. O Fury disparou para ele, a toda

velocidade, os pneus deixando marcas negras de

borracha no pavimento.

Arremeteu com tal potência que a retaguarda pareceu afundar, como as

patas traseiras de um cão preparando

-

se para o salto





um cão ou uma

loba. As rodas junto ao meio

-

fio ergueram

-

se acima do pavimento e

correram para "Penetra" daque

la maneira





as rodas externas mais baixas,

as internas rodando sobre a calçada, em ângulo saliente. O chassi

arranhou e gemeu, despejando um jato de faíscas turbilhonantes.



"Penetra" gritou e tentou dar um passo de lado. A extremidade do

p

ára

-

choque de Ch

ristine mal lhe tocou a barriga da perna esquerda, mas

arrancou um pedaço de carne. Um líquido quente desceu por sua perna e

empoçou

-

se no sapato. O calor do próprio sangue o fez perceber, de modo

algo confuso, o quanto a noite estava fria.



Ele se chocou c

ontra a porta da loja de fotografias, batendo nela com

o quadril, escapando por pouco da vitrine. Mais trinta cent

ímetros para a

esquerda e afundaria através do vidro, aterrando sobre um amontoado de

Nikons e Polaroids.



Ouviu o motor do carro, aumentando s

ubitamente de rota

ção. E, de

novo, aquele alienado ranger do chassi contra o cimento. "Penetra" olhou

em redor, arfando penosamente. Christine dava marcha à ré na sarjeta e,

quando passou por ele, "Penetra" viu. Ele viu.



Não havia ninguém ao volante.



O pân

ico começou a latejar em sua cabeça. "Penetra" se firmou nos

calcanhares. Correu pela JFK Drive, procurando o lugar mais distante.

Havia um beco, entre um mercado e uma lavanderia. Estreito demais para

o carro. Se pudesse alcançá

-

lo...



As moedas tilintaram



loucamente em seus bolsos das calças e nos

cinco ou seis bolsos do casaco, excedente de equipamento militar do

Exército. Moedas de vinte e cinco, dez e cinco centavos. Um tilitante

carrilhão de prata. Os joelhos quase lhe chegaram ao queixo. As botas

ferr

adas de engenheiro tamborilaram sobre a calçada. Sua sombra o

perseguiu.






Em algum ponto mais atrás, o carro tornou a aumentar as rotações,

morreu, aumentou de novo, morreu, e então o motor começou a guinchar.

Os pneus uivaram e Christine disparou contra as



costas de "Penetra"

Welch, cruzando as faixas da JFK Drive em ângulo reto. "Penetra" gritou,

mas nem ouviu o próprio grito, porque o carro ainda queimava borracha,

ainda se esganiçava como uma mulher insanamente furiosa e homicida





e aquele guincho enche

u o mundo.



A sombra de "Penetra" não o perseguia mais. Agora estava à sua

frente e alongando

-

se. Na vitrine da lavanderia, ele viu o desabrochar de

enormes olhos amarelados.



Nem mesmo estava perto de lá.



No preciso e último instante, "Penetra" tentou ginga

r para a

esquerda, mas Christine imitou seu movimento, como se tivesse lido seu

final e desesperado pensamento. O Plymouth o atingiu em cheio, ainda

acelerando, quebrando

-

lhe as costelas e arrancando as botas de

engenheiro de seus pés. Ele foi atirado a do

ze metros, contra a parede

lateral de tijolos do pequeno mercado, novamente escapando por pouco

de um mergulho através da vitrine.



A força do impacto foi dura o bastante para fazê

-

lo ricochetear de

novo para a rua, deixando na parede uma mancha de sangue,

como em

um mata

-

borrão. Uma foto da mancha surgiria no dia seguinte, na

primeira página do

Keystone

de Libertyville.



Christine deu marcha à ré, guinchou quando de uma brusca e

deslizante parada, tornando a rugir ao avançar. "Penetra" jazia perto a

calçada,



tentando levantar

-

se. Não foi possível. Nada parecia funcionar.

Todos os sinais estavam confusos.



A intensa luz branca o lavou de alto a baixo.







Não





sussurrou, através da boca cheia de dentes quebrados.





N...



O carro rugiu para diante e sobre ele. Moe

das voaram para todos os

lados. "Penetra" foi puxado, rolando primeiro para um lado, depois para o

outro, quando Christine tornou a recuar para a rua. O carro ficou ali, o

motor acelerando e caindo para um zumbido preguiçoso, depois tornando

a acelerar. Fi

cou ali, como que cismando.






Então, voltou a atacá

-

lo. Atingiu

-

o, subiu na calçada, derrapou um

pouco e então recuou, sacolejando na marcha à ré.



Guinchou para diante.



Deu marcha à ré.



Investiu de novo.



Os faróis dianteiros cintilaram. Os canos de descarga

expeliram uma

quente fumaça azulada.



A coisa na rua não parecia mais um ser humano; agora tinha a

aparência de um monte de trapos espalhado.



O carro deu marcha à ré uma última vez, derrapou fazendo um

semicírculo e acelerou, rugindo para a trouxa sangrenta



na rua, em

seguida descendo a estrada a toda potência do motor, ainda acelerando ao

máximo, o ruído reverberando nas paredes dos prédios adormecidos mas

não inteiramente adormecidos agora. Havia luzes começando a brilhar,

pessoas que moravam sobre suas lo

jas chegavam às janelas, querendo ver

o que provocava toda aquela barulheira e se houvera algum acidente.



Um dos faróis de Christine ficara estilhaçado. O outro piscava sem

cessar, manchado com uma fina camada do sangue de "Penetra". A grade

do radiador es

tava amassada para dentro e as mossas feitas nela

aproximavam

-

se em tamanho e formato ao torso de "Penetra", com toda a

horrenda perfeição de uma máscara mortuária. Havia sangue espalhado

sobre o capô, um sangue que era uma mancha aumentando de tamanho, à

medida que aumentava a velocidade. A descarga apresentava um som

ruidoso, ensurdecedor; um dos dois silenciosos de Christine fora

destruído.



Dentro do carro, no painel de instrumentos, o odômetro continuava

girando ao contrário, como se, de algum modo, Chr

istine recuasse no

tempo, escapando não apenas do cenário do atropelamento e fuga, mas do

verdadeiro

fato

do atropelamento e fuga.



O silencioso foi a primeira coisa.



De repente, aquele som ruidoso, ensurdecedor, diminuiu e

normalizou

-

se.






Os leques de sangu

e sobre o capô começaram a recuar para a

dianteira do carro, a despeito do vento





como um filme, rodando ao

contrário.



O farol vacilante de súbito passou a brilhar com firmeza e, duzentos

metros além, o farol apagado voltou a brilhar também. Com um tilint

ar

insignificante





não mais do que o som do sapato de um garotinho

quebrando a fina camada de gelo formada sobre uma poça lamacenta





o

vidro se reestruturou do nada.



Houve um som cavo





punk! punk! punk!





brotando da dianteira

do carro, o som de metal am

assado, aquele som que ouvimos às vezes

quando apertamos uma lata de cerveja. Só que, em vez de amassar

-

se, a

grade dianteira de Christine estava se desamassando





um lanterneiro

veterano, com cinqüenta anos de experiência em seu trabalho, não o teria

feit

o com mais perícia e capricho.



Christine dobrou para Hampton Street, ainda antes de o primeiro

daqueles despertados pelo chiado de seus pneus alcançar os despojos de

"Penetra". O sangue desaparecera. Tinha chegado à frente do capô e ali

desaparecera. Os ar

ranhões não existiam mais. Quando o carro rodou

quietamente para a porta da garagem, com seu aviso BUZINE PARA

ENTRAR, houve um

punk!

final, e então a última amassadura





esta no

pára

-

lama dianteiro esquerdo, o local onde Christine colidira contra a

barrig

a da perna de "Penetra"





se desamassou e ficou perfeita.



Christine estava como nova.



O carro parou diante da grande porta da garagem, no meio do

edifício escuro e silencioso. Havia uma pequena caixa de plástico, presa à

viseira contra o sol, do lado do mo

torista. Era uma bugigangazinha que

Will Darnell dera a Arnie, quando ele começara a transportar cigarros e

bebida para o Estado de Nova York, por sua ordem





talvez fosse a

versão de Darnell sobre uma chave de ouro para o banheiro público.



No ar quieto, o



abridor de porta zumbiu brevemente e a porta da

garagem chocalhou obedientemente para cima. Outro circuito se formara

com o levantamento da porta e algumas luzes internas acenderam

-

se

dentro do prédio, brilhando francamente.



O botão dos faróis dianteiros

se moveu repentinamente no painel de

instrumentos e as luzes de Christine apagaram

-

se. O carro rodou para o

interior murmurando através do concreto manchado de óleo, em direção




ao boxe vinte. Atrás dele, a porta erguida que fora programada para uma

espera

de trinta segundos tornou a descer. O circuito das luzes se

interrompera e a garagem voltou à escuridão.



Na fenda da ignição de Christine, as chaves oscilando para baixo

giraram subitamente para a esquerda. O motor morreu. A etiqueta de

couro com as inicia

is RDL marcadas em sua superfície balançou de um

lado para outro, em arcos decrescentes... até finalmente ficar imóvel.



Christine ficou no escuro, e o único som na Garagem Faça

-

Você

-

Mesmo, de Darnell, era o lento palpitar de seu motor esfriando.





O



D

IA

S

EG

UINTE



Tenho um "Chevy" 69 com um 396,



Faróis Feully e um Hurst no piso,



Que me espera esta noite



No pátio de estacionamento



Junto à loja 7

-

11...







Bruce Springsteen





Arnie Cunningham não foi à aula no dia seguinte. Alegou ter quase

certeza de que ia ficar

gripado. Naquela noite, contudo, disse aos pais que

se sentia melhor, o bastante para ir até a Garagem de Darnell e trabalhar

um pouco em Christine.



Regina protestou





embora não se expressasse para dizer o que

sentia, pensou que Arnie tinha uma aparência

terrível. O rosto dele estava

agora inteiramente livre da acne e das equimoses, mas houve uma troca:

ficara muito pálido e havia círculos escuros em torno dos olhos, como se

não estivesse dormindo bem. Além disso, ainda mancava. Inquieta, ela se

perguntou

se o filho não estaria usando algum tipo de droga, se talvez não

houvesse machucado mais as costas do que dava a entender e começasse a

tomar pílulas para poder continuar trabalhando no amaldiçoado carro.

Então, rejeitou o pensamento. Por mais obcecado que



pudesse estar com o

carro, Arnie não seria idiota a tal ponto.










Eu estou ótimo, mamãe





disse ele.







Não me parece nada ótimo. E mal tocou em seu jantar.







Comerei alguma coisa mais tarde.







E suas costas, como estão? Será que não anda levantando coisas

muito pesadas para você?







Não, mamãe.



Era mentira. E suas costas tinham doído horrivelmente o dia inteiro.

Estava atravessando a pior fase, desde a lesão original, em Philly Plains.

(Oh, em verdade, como é que aquilo começara?

sussurrou sua mente.

Como

ha

via sido? Você tem certeza de alguma coisa?)

Havia tirado o colete por

instantes e as costas latejavam tanto, que mal pudera suportar. Colocara

-

o

novamente, após apenas quinze minutos, apertando

-

o mais do que nunca.

Agora, as costas estavam um pouquinho me

lhor. Ele sabia por quê. Era

porque ia vê

-

la, ver Christine. Era isso.



Regina olhou para ele, preocupada e desnorteada. Pela primeira vez

na vida, simplesmente não sabia como agir. Arnie agora estava fora de seu

controle. O conhecimento disto provocava um

desespero insano, que

algumas vezes a envolvia, rastejante, enchendo

-

lhe o cérebro de uma

horrível, vazia e infecta friagem. Nestas ocasiões era tão grande a

depressão que custava a crer na passagem furtiva daquela dúvida por sua

cabeça fazendo

-

a perguntar

-

se se era exatamente para isso que vivera





ver seu filho apaixonado por uma garota e por um carro, no mesmo

terrível outono. Teria sido? Para que pudesse ver, precisamente, o quanto

se tornara odiosa para ele, ao fitar seus olhos cinzentos? Teria sido? E

, em

realidade, aquilo tinha algo a ver com a garota? Não. Em sua mente, tudo

acabava retornando ao carro. Seu repouso passara a ser interrompido e

inquieto e, pela primeira vez desde seu parto, quase vinte anos antes,

começou a considerar uma consulta com



o Dr. Mascia, para ver se ele lhe

daria alguma pílula para a tensão, a depressão e a insônia resultante.

Pensava em Arnie, nas longas noites insones, nos erros que jamais

poderiam ser retificados; pensava em como o tempo conseguia deslocar

de seu eixo o e

quilíbrio do poder e em como a meia

-

idade às vezes

espionava através de um espelho de toucador, como a mão de um cadáver,

assomando através de uma terra erodida.







Vai voltar cedo?





perguntou.






Sabia ser este o último apoio dos pais verdadeiramente impoten

tes e

odiou

-

o, mas agora era incapaz de modificá

-

lo.







Claro





respondeu ele, mas Regina não acreditou muito, a julgar

pelo tom da resposta.







Arnie, eu gostaria que ficasse em casa. Sinceramente, você não me

parece com boa aparência.







Vou melhorar





diss

e ele.





Tenho que melhorar. Preciso levar

algumas peças de carro amanhã até Jamesburg, para Will.







Não poderá ir, se estiver doente





disse ela.





São quase

duzentos quilômetros.







Não se preocupe.



Ele lhe beijou a face





o beijo

-

na

-

face desapaixonado, d

os

conhecidos que se encontram em um coquetel. Arnie abria a porta da

cozinha para sair, quando Regina perguntou:







Você conhecia o rapaz que foi atropelado a noite passada, na

Rodovia Kennedy? Ele se virou para fitá

-

la, com rosto inexpressivo.







O quê?







O jornal disse que ele vinha para Libertyville.







Oh, aquele atropelamento com fuga... É disso que está falando?

-

É.







Éramos da mesma sala, quando eu era calouro





disse Arnie.





Pelo menos, acho que sim. Mas eu não o conhecia muito, mamãe.







Oh





assenti

u ela satisfeita.





Ainda bem. Segundo o jornal,

havia resíduos de droga em seu organismo. Você nunca tomou drogas,

não é, Arnie?



Arnie sorriu suavemente para o rosto pálido e perscrutador de sua

mãe.







Nunca, mamãe.







E se suas costas começarem a incomodá

-

lo... quero dizer, se

realmente

começarem a incomodá

-

lo... você irá ver o Dr. Mascia, está bem?

Não comprará nada de um... traficante de drogas, não é mesmo?







Não comprarei, mamãe





repetiu ele, e saiu.








Havia mais neve agora. Outro degelo derretera a ma

ior parte, mas

desta feita ela não desaparecera por completo, apenas recuando para as

sombras, onde formava uma orla branca debaixo das sebes, na base das

árvores, na cobertura da garagem. Não obstante, a despeito da neve em

torno das beiradas





ou talvez

por isso mesmo





o gramado da casa

parecia singularmente verde, quando Arnie saiu para o crepúsculo, seu

pai assemelhando

-

se a um estranho refugiado do verão, enquanto recolhia

as últimas folhas do outono com um ancinho.



Arnie ergueu a mão brevemente para

ele e deu a impressão de que

ia passar por Michael sem falar. Seu pai o chamou. Ele se aproximou com

relutância. Não queria atrasar

-

se para seu ônibus.



Seu pai também envelhecera com as tormentas que haviam

desabado sobre Christine, embora outras coisas ce

rtamente também

tivessem tido parte nisso. Candidatara

-

se à cátedra do Departamento de

História, em Horlicks, em fins do último verão e havia sido solenemente

rejeitado. Além do mais, durante seu

check

-

up

anual de outubro, o médico

apontara um problema inc

ipiente de flebite





flebite, que quase matara

Nixon; flebite, um problema de pais com certa idade. E, quando o outono

anterior dera vez a outro cinzento inverno do oeste da Pensilvânia,

Michael Cunningham parecia mais abatido do que nunca.







Oi, pai. Escu

te, tenho que me apressar, se quiser pegar o...



Michael ergueu os olhos da pequena pilha de congeladas folhas

castanhas que conseguira reunir. O pôr

-

do

-

sol banhou as partes planas de

seu rosto e pareceu fazê

-

las sangrar. Arnie recuou involuntariamente, um

tanto chocado. O rosto de seu pai era espectral.







Onde esteve a noite passada, Arnold?





perguntou ele.







Quê?





ofegou Arnie, depois fechando a boca lentamente.





Ora,

aqui. Aqui em casa, papai. Você sabe disso.







A noite inteira?







É claro! Fui para a c

ama às dez horas. Estava arriado. Por quê?







Porque hoje recebi um telefonema da polícia





disse Michael.





Sobre o rapaz que foi atropelado na JFK Drive, à noite passada.







"Penetra" Welch





disse Arnie.






Fitou o pai com olhos calmos, mas orlados de profun

das olheiras e

comprimidos nas órbitas. Se o filho ficara chocado com a aparência do pai,

também o pai ficara perplexo ante a do filho. Para Michael, as órbitas do

rapaz quase pareciam os buracos vazios de uma caveira, àquela claridade

esfumada do crepúscu

lo.







Sim, o sobrenome era Welch.







Era quase certo que ligariam. Bem, acho eu. Mamãe sabe... que ele

poderia ter sido um dos caras que demoliram Christine?







Não por mim.







Eu também nada lhe disse. Seria bom ela não ficar sabendo





declarou Arnie.







Ela

acabará descobrindo





disse Michael.





De fato, sua mãe

certamente deduzirá isso. É uma mulher tremendamente inteligente, caso

você nunca tenha notado. Entretanto, não ficará sabendo por mim.



Arnie assentiu, depois sorriu sem vontade.







Onde esteve a noite



passada? Sua confiança é tocante, papai.

Michael enrubesceu, mas não baixou os olhos.







Se você não estivesse fora de si nestes últimos dois meses





falou



, talvez compreendesse por que fiz a pergunta.







Bem, diabo, o que significa?







Você sabe perfeitam

ente. Nem mesmo adianta ficarmos

discutindo, porque vamos terminar sempre na mesma coisa, após rodeios

e mais rodeios. Toda a sua vida está se desintegrando e você ainda fica aí,

perguntando sobre o que estou falando!



Arnie riu. Era um som duro, insolente.



Michael pareceu encolher

-

se

um pouco, ao ouvi

-

lo.







Mamãe perguntou se eu tomava drogas. Talvez você também

queira testar isso.





Arnie fez um gesto de arregaçar as mangas do blusão

de frio.





Quer ver se tem marcas de picadas?







Não preciso perguntar se

toma drogas





disse Michael.





Você

já está tomando uma que conheço, e isso basta. E aquele maldito carro.



Arnie se virou como para ir embora, mas Michael o reteve.










Largue meu braço. Michael deixou a mão cair.







Só queria que ficasse sabendo de uma coisa







disse ele.





Acredito tanto que você mataria alguém, como acreditaria que fosse capaz

de caminhar através da piscina dos Symond. Entretanto, a polícia irá

interrogá

-

lo, Arnie, e as pessoas podem assustar

-

se, quando a polícia

surge de repente. Para eles,



susto ou surpresa podem assemelhar

-

se a

culpa.







Tudo isto porque algum bêbado atropelou aquele bosta do Welch?







A coisa não foi bem assim





disse Michael.





Fiquei sabendo

por esse tal Junkins, que ligou para mim. Quem quer que tenha liquidado

o rapaz W

elch, atropelou

-

o, depois deu marcha à ré, tornou a passar por

cima dele com o carro, recuou, passou sobre ele,

tornou a...







Pare com isso!





exclamou Arnie.



De repente, parecia sentir

-

se mal e amedrontado. Michael

experimentou a mesma sensação de Dennis,



no Dia de Ação de Graças: a

sensação de que, em sua fatigada infelicidade, o verdadeiro Arnie

subitamente se aproximara da superfície, talvez quase podendo ser

atingido.







Foi... incrivelmente brutal





comentou Michael.





Assim me

disse Junkins. Compreend

a, não pareceu realmente um acidente. Foi mais

um assassinato.







Assassinato





murmurou Arnie estonteado.





Não, eu nunca...







O quê?





perguntou Michael brusco. Tornou a agarrar o blusão

de Arnie.





O que ia dizer? Arnie olhou para o pai. Seu rosto ficara



novamente hermético.







Nunca pensei que pudesse ser isso





disse ele.





Era o que eu ia

dizer.







Quero apenas que saiba de uma coisa





explicou Michael.





Eles irão procurar alguém com um motivo, por menor que seja. Sabem o

que aconteceu com seu carro, co

mo sabem que esse Welch poderia estar

envolvido naquilo ou que você o

julgasse

envolvido. É bem possível que

Junkins vá procurá

-

lo.







Nada tenho a esconder.










Claro, eu sei disso





concordou Michael.





Ande, vai perder seu

ônibus!







Certo





disse Arnie.





Tenho que ir agora.



No entanto, ficou ali um pouco mais, fitando o pai. De súbito,

Michael se viu recordando o nono aniversário de Arnie. Ele e o filho

tinham ido ao pequeno zoológico em Philly Plains, almoçado juntos e

encerrado o dia jogando dezoito bura

cos no campo de golfe em miniatura,

perto da Estrada Basin, ao ar livre. O local havia pegado fogo em 1975.

Regina não pudera ir, ficara em casa, atacada de bronquite. Eles dois

tinham

-

se divertido muito. Para Michael, aquele fora o melhor aniversário

do f

ilho, o que simbolizara, em sua concepção, o melhor ponto da doce e

despreocupada infância de Arnie, como menino americano. Tinham ido

ao zoológico e voltado para casa sem grandes acontecimentos, exceto que

se haviam divertido





ele e o filho, um filho que



fora e continuava sendo

tão querido.



Michael passou a língua pelos lábios e disse:







Venda aquele carro, Arnie. Por que não o vende? Depois que o

reconstruir inteiramente, desfaça

-

se dele. Pode conseguir um bom

dinheiro. Uns dois... talvez até três mil dó

lares.



De novo, aquela assustadora e cansada expressão passou pelo rosto

de Arnie, mas Michael não podia afirmar com certeza. O sol poente se

transformara em acre linha alaranjada no horizonte ocidental e o pequeno

jardim ficara sombrio. Então a expressão

desaparecera, se é que existira.







Não, eu não poderia fazer isso, papai





disse Arnie docemente,

como se falasse a uma criança.





Agora, não. Já investi muito em

Christine. Demais.



Então ele se foi, cruzando o jardim até a calçada, fundindo

-

se a

outras so

mbras, deixando para trás apenas o som de suas pisadas, mas

que em breve desaparecia.



Investiu muito em Christine? É mesmo? O que, exatamente, Arnie? O que

investiu nesse carro?



Michael baixou os olhos para as folhas, depois observou seu jardim.

Por baixo

de sebe e na cobertura da garagem, a neve cintilava na

escuridão que ia chegando, lívida e teimosamente aguardando reforços. À

espera do inverno.








R

EGINA E

M

ICHAEL



Minha máquina é um barato, minha 409,



Minha 409, com "dual

-

quad".







The Beach Boys





Regina e

stava cansada





parecia cansar

-

se com mais facilidade,

naqueles dias



, de modo que foram para a cama às nove, muito antes de

Arnie chegar. Fizeram amor, um ato sem alegria e mais por obrigação

(ultimamente eles se amavam bastante, quase sempre como obriga

ção e

sem alegria, deixando Michael com a desagradável sensação de que a

esposa passara a usar seu pênis como uma pílula para dormir), depois do

que permaneceram em suas camas geminadas, quando então ele

perguntou, casualmente:







Dormiu bem a noite passada

?







Muito bem





respondeu ela, candidamente, e ele soube que

mentia.







Ótimo.







Levantei por volta das onze e Arnie parecia inquieto





disse

Michael, ainda mantendo o tom casual.



No momento, sentia

-

se profundamente apreensivo. Nesta noite,

percebera algo n

o rosto do filho, algo que não conseguira desvendar, por

causa das sombras do anoitecer. Talvez não fosse nada, absolutamente

nada, mas aquilo cintilava em sua mente como um maldito anúncio de

néon que não se desligava. Seu filho pareceria culpado ou assus

tado? Não

fora apenas um efeito da luz? A menos que resolvesse a charada, o sono

demoraria muito a chegar





e talvez nem chegasse.







Levantei

-

me lá pela uma da madrugada





disse Regina,

apressando

-

se a acrescentar:





Só para ir ao banheiro. Dei uma espiada



em Arnie.





Riu, um tanto melancólica.





Velhos hábitos custam a

morrer, não?










Sim, acho que custam





concordou Michael.







Então, ele dormia profundamente. Eu gostaria que ele passasse a

usar pijama, no tempo frio.







Estava de cuecas?







Estava.



Michael t

ranqüilizou

-

se, imensamente aliviado e bastante

envergonhado de si mesmo. Entretanto, era melhor ficar sabendo... ter

certeza. Fora muito bom ter dito a Arnie que o sabia tão capaz de cometer

um homicídio, quanto caminhar sobre a água. Não obstante, a ment

e,

aquele perverso demônio, tudo pode conceber e parece sentir uma

perversa alegria nisso. Entrelaçando as mãos atrás da cabeça e encarando

a escuridão, Michael pensou que talvez fosse justamente essa a maldita

peculiaridade do viver. Mentalmente, uma espo

sa pode atacar

alegremente seu melhor amigo, um grande amigo pode tramar contra nós

e planejar trair

-

nos, um filho pode assassinar alguém com um carro.



Era melhor ficar envergonhado e esquecer as idéias cretinas.



Arnie estava em casa à uma da madrugada. Er

a improvável que

Regina se enganasse com a hora, por causa do rádio

-

relógio digital sobre a

cômoda do quarto do casal





ele marcava as horas em números enormes,

azuis e indiscutíveis. Seu filho estava ali à uma hora, e o rapaz Welch

havia sido atropelado a



cinco quilômetros de distância, vinte e cinco

minutos depois. Era impossível crer que Arnie pudesse vestir

-

se, sair (sem

Regina perceber, pois certamente ficara acordada, atenta a ele), ir até a

Darnell's, retirar Christine e dirigi

-

la até o local em que

"Penetra" Welch

fora assassinado. Fisicamente impossível.



E, para começar, ele nunca acreditara nisso.



Suas idéias demoníacas estavam satisfeitas. Michael se virou para o

lado direito, dormiu e sonhou que jogava golfe com seu filho de nove anos,

em uma suc

essão de pequenos campos verdejantes, onde giravam

moinhos de vento e pequenos acidentes do terreno os esperavam...

Sonhou ainda que os dois estavam sozinhos, inteiramente sós no mundo,

porque a mãe de seu filho morrera de parto





algo muito triste. Todos

ainda recordavam como Michael ficara inconsolável





mas quando

voltassem para casa, ele e seu filho, a teriam apenas para os dois,

comeriam macarrão diretamente da panela como despreocupados




solteirões, e ao terminarem de lavar os pratos sentar

-

se

-

iam à me

sa da

cozinha, oculta sob jornais espalhados, e construiriam modelos de carros

com inofensivos motores plásticos.



Michael Cunningham sorria em seu sonho. Ao lado dele, na outra

cama, Regina não sorria. Permanecia acordada, esperando o ruído da

porta, denun

ciando que seu filho voltara do mundo lá de fora.



Quando ouvisse a porta sendo aberta e fechada... quando ouvisse os

passos dele nos degraus... então seria capaz de dormir.



Talvez.





J

UNKINS



Fique calma e venha motorar comigo, meu bem



O que foi que disse?



Q

ue me cale e não faça propostas?



Oh, meu bem, você é a minha proposta!



Uma excelente proposta, meu bem.



E adoro excelentes propostas!



Que carro estou dirigindo?



É um Cadillac 48,



Um Cadillac rabo

-

de

-

peixe,



Uma máquina e tanto, meu bem,



Vamos rodar, Josephi

ne, rodar...







Elias McDaniel





Junkins apareceu na Darnell's mais ou menos às oito e quarenta e

cinco daquela noite. Arnie tinha acabado de encerrar seu trabalho em

Christine por aquele dia. Substituíra por uma nova a antena de rádio que

Repperton e seu ba

ndo tinham arrancado e, durante os últimos quinze

minutos, ficara sentado ao volante, ouvindo

Cavalgada do Ouro de Sexta à

Noite

na estação WDIL.






Sua única idéia tinha sido a de ligar o rádio e mover o ponteiro no

mostrador, do começo ao fim, para certific

ar

-

se de que instalara a antena

devidamente e não havia estática. Entretanto, o ponteiro dera com o forte

sinal da WDIL e ele ficara quieto, olhando para diante através do pára

-

brisa, sentado ali com os olhos cinzentos cismadores e distantes. Enquanto

isso

, Bobby Fuller cantava

"I Fought the Law"

Frankie Lymon e os

Teenagers cantavam

"Why Do Fools Fall in Love",

Eddie Cochran cantava

"C'mon Everybody"

e Buddy Holly cantava

"Rave On"...

Não havia

comerciais na WDIL nas noites de sexta

-

feira, nem

disc

-

jockeys

.

Apenas os

sons, a música. Vinda da programação, não de nosso coração. De vez em

quando, uma suave voz feminina interrompia para dizer o que Arnie já

sabia





que estava ouvindo a WDIL

-

Pittsburgh, o som da Rádio Camurça

Azul.



Arnie permaneceu ao volante, s

onhador, as luzes vermelhas dos

marcadores fosforescendo no painel de instrumentos, tamborilando de

leve com os dedos. A antena estava ótima. Sim, tinha feito um bom

trabalho. Como Will dissera: ele possuía jeito para aquilo. Bastava olhar

para Christine,

ela era a prova. Parecia um monte de ferro

-

velho

descansando no gramado de LeBay, mas ele a ressuscitara. Mais tarde,

parecera outro monte de ferro

-

velho, no estacionamento do aeroporto, e

tornara a ressuscitá

-

la. Ele tinha...





Fique gamado... fique gamado



e me diga...



Me diga... para não ficar sozinho...





Ele tinha o quê?



Substituído a antena, claro. Podia recordar, também, que fizera

alguma lanternagem nos amassados. Entretanto, não encomendara

nenhum vidro de pára

-

brisa (embora ele houvesse sido trocado)

, não

encomendara nenhum encapamento novo para os assentos (mas também

haviam sido trocados), tendo

-

se limitado a olhar de perto o que havia

debaixo do capô, uma vez, antes de deixá

-

lo cair com estrondo,

horrorizado ante o estrago que tinham feito na fiaçã

o de Christine.






No entanto, agora o radiador estava intacto, o bloco do motor

perfeito e brilhando, os pistons movimentando

-

se livre e claramente. E

Christine ronronava como uma gata.



Entretanto, havia os sonhos.



Ele sonhara com LeBay ao volante de Christi

ne, LeBay vestindo um

uniforme do Exército, salpicado e sujo de manchas cinza

-

azuladas do

bolor da sepultura. A carne dele se retraíra e sumira. O osso branco e

reluzente assomava em alguns lugares. As órbitas onde outrora ficavam

os olhos de LeBay eram va

zias e escuras (mas havia algo cintilando lá no

fundo, sim, havia algo). E então, os faróis dianteiros de Christine haviam

sido acesos e projetados sobre alguém, espetando

-

o como se espetaria

uma tachinha em um quadrado de cartolina branca. Alguém familiar

.



"Penetra" Welch?



Talvez. No entanto, quando Christine arremetia de súbito para a

frente, com os pneus chiando, parecera a Arnie que o rosto aterrorizado lá

fora, na rua, se derretia como sebo, modificando

-

se a cada vez que o

Plymouth atacava: ora, era o

rosto de Repperton, depois o de Sandy

Galton ou a cara de lua cheia de Will Darnell.



Fosse quem fosse, saltara para um lado, mas LeBay fizera Christine

dar marcha à ré, manobrando a alavanca de mudança com negros dedos

em decomposição





uma aliança de casa

mento pendia de um deles, tão

frouxa como um laço atirado sobre o tronco de uma árvore morta



, e

então a fazia retornar à rua, enquanto a figura corria para um lugar mais

distante. Nessa nova arremetida de Christine, a figura virava a cabeça,

atirando um

olhar terrível para trás, e Arnie vira o rosto de sua mãe...

depois o de Dennis Guilder... o de Leigh, os olhos arregalados sob uma

nuvem flutuante de cabelos louro

-

escuros... e finalmente o seu próprio,

com a boca torcida, gritando:

Não! Não! Não!



Sobrepo

ndo

-

se a tudo, inclusive ao tremendo barulho do cano de

descarga (sem a menor dúvida, algo lá embaixo se danificara), havia a voz

pútrida e triunfante de LeBay, provindo de uma laringe deteriorada,

passando por lábios que já tinham sido repuxados sobre os

dentes e

tatuados com uma delicada fiação de bolor verde

-

escuro, a voz vitoriosa e

estridente de LeBay:



Mais um pouco, seu bosta! Prove só o gostinho!






Houve então o baque surdo e mortal do pára

-

lama de Christine

colidindo contra carne, o brilho dos óculos

que voavam para o alto, no ar

noturno, girando e girando... até Arnie acordar em seu quarto, enovelado

em uma bola trêmula, agarrado ao travesseiro. Faltavam quinze para as

duas da madrugada e sua primeira sensação havia sido de grande e

incrível alívio, o



alívio de estar vivo. Ele estava vivo, LeBay estava morto e

Christine estava salva. As únicas três coisas no mundo que importavam.



Oh, mas como foi que machucou suas costas Arnie?



Era uma voz interior, tímida e insinuante, fazendo uma pergunta

que ele tem

ia responder.



Machuquei

-

me em Philly Plains,

dizia a todos.

Uma peça de ferro

-

velho

começou a deslizar pela carroceria sem laterais do caminho de Will e a empurrei

para cima novamente





na hora não refleti nisso, apenas empurrei. Devo ter

sofrido alguma bo

a distensão.

Era o que tinha dito. Um ferro

-

velho

começara

a

escorregar e ele

o empurrara

para o alto. Entretanto, não havia sido assim

que machucara as costas, hein? Não, não havia.



Naquela noite, depois que ele e Leigh tinham deparado com

Christine demol

ida no pátio de estacionamento, assentada sobre quatro

pneus em tiras... naquela noite na Darnell's, depois que todos saíram... ele

sintonizara o rádio do escritório de Will para ouvir música antiga no

WDIL... Will agora confiava nele, não? Estava entregan

do cigarros em

Nova Iorque, cruzando a divisa estadual, entregando bebida em

Burlington e, por duas vezes, entregara algo embrulhado em pacotes de

papel pardo liso, em Wheeling, onde um cara novo, em um velho Dodge

Challenger, os trocara por outro pacote l

igeiramente maior, também

embrulhado em papel pardo. Arnie pensou que talvez fosse uma troca de

cocaína por dinheiro, mas não quis ter certeza.



Naquelas viagens, ele dirigia um automóvel, um carro particular de

Will, um Imperial 1966, tão negro como a meia

-

noite na Pérsia. O motor

era silencioso e o porta

-

mala tinha fundo falso. Não havia problema,

desde que mantivesse a velocidade limite. Por que haveria? O importante

é que agora ele tinha as chaves para a garagem. Podia entrar, depois que

todos tivessem i

do embora. Como havia feito nessa noite. Então,

sintonizara a WDIL... e tinha... tinha...



Machucado as costas de algum modo.



O que havia feito, para machucá

-

las?






Uma frase estranha lhe chegou em resposta, flutuando de seu

subconsciente:

É apenas um problem

inha singular.



Ele desejaria mesmo saber? Não. De fato, houve vezes em que nem

mesmo queria o carro. Houve vezes em que sentiu ser melhor apenas...

bem, vendê

-

lo ao ferro

-

velho. Não que fosse ou pudesse fazer isso. Era

tão

-

somente porque às vezes (como por



exemplo, após o suado e trêmulo

período em seguida ao sonho da noite passada) achava que livrando

-

se do

carro, poderia ser... mais feliz.



Subitamente, o rádio cuspiu um jato quase felino de estática.







Não se preocupe





sussurrou Arnie.



Deslizou a mão len

tamente pelo painel de instrumentos, adorando

aquele contato. Sim, o carro às vezes o amedrontava. Também supunha

que seu pai estivesse certo: Christine modificara sua vida em certo grau.

No entanto, destiná

-

la ao ferro

-

velho era tão impossível quanto suic

idar

-

se.



A estática sumiu. The Marvelettes cantavam

"Please Mr. Postman".



Então, uma voz disse em seu ouvido:







Arnold Cunningham?



Assustado, ele desligou o rádio. Virou

-

se. Um homenzinho baixote e

vivo debruçava

-

se na janela de Christine. Tinha olhos cast

anho

-

escuros e o

rosto corado





devido ao frio do exterior, supôs Arnie.







Sim?







Rudolph Junkins. Polícia Estadual, Divisão de Detetives.



Junkins enfiou a mão pela janela aberta. Arnie a observou por um

momento. Então, seu pai estava certo.



Ofereceu ao ho

mem seu mais encantador sorriso, apertou

-

lhe a mão

com firmeza e disse:







Não atire, seu guarda, estou desarmado.



Junkins devolveu

-

lhe o sorriso, mas Arnie percebeu que os olhos

dele permaneciam sérios, explorando o carro de uma maneira rápida e

minuciosa,



que não lhe agradou. Não agradou nem um pouco.










Caramba! A julgar pelo que ouvi da polícia local, fiquei com a

impressão de que os caras realmente tinham marcado seu carro, quando

fizeram o trabalhinho nele. Pois nem parece!



Arnie deu de ombros e saiu do



carro. As noites de sexta

-

feira eram

enfadonhas na garagem, o próprio Will raramente aparecia, e não estava

lá agora. Do outro lado, no boxe dez, um sujeito chamado Gabbs colocava

um pára

-

lama novo em seu antigo Valiant e, no canto mais distante da

garage

m, havia o "brrr" periódico de uma chave a ar comprimido,

enquanto um cara colocava pneus de neve em seu carro. Excetuando

-

se

aqueles dois, ele e Junkins tinham toda a garagem para si mesmos.







Não estava tão ruim quanto parecia





disse Arnie. Decidiu que

aquele homenzinho sorridente devia ser muito esperto. Como se em um

prolongamento natural do pensamento, pousou a mão com naturalidade

sobre o teto de Christine e imediatamente se sentiu melhor. Podia

enfrentar o cara, fosse ele inteligente ou não. Afinal,



nada havia que o

preocupasse.





Não houve dano estrutural.







É mesmo? Ouvi dizer que fizeram buracos na carroceria, usando

um instrumento perfurante.





Enquanto falava, Junkins olhava

atentamente para os flancos de Christine.





Pois eu juro que não vejo o



menor indício disso. Você deve ser um gênio na lanternagem, Arnie. Do

jeito como minha mulher dirige, talvez eu devesse contratar seus serviços.



Sorriu de modo tranqüilizador, mas seus olhos continuavam

examinando o carro, de alto a baixo. Pousavam por um



instante no rosto

de Arnie, e então voltavam de novo ao carro. Arnie cada vez estava

gostando menos daquilo.







Sei que sou bom nisso, mas nenhum Deus





disse Arnie.





Se

procurar com atenção, poderá descobrir onde foi feita a lanternagem.





Apontou para u

ma ligeira ondulação na coberta posterior.





Ali

também





apontou para outra ondulação.





Tive sorte de encontrar

algumas partes originais da carroceria Plymouth, no Ruggles. Troquei

toda a porta traseira deste lado. Reparou que a tinta não combina

perfeit

amente?





acrescentou, batendo na porta com os nós dos dedos.







De jeito nenhum





disse Junkins.





Com um microscópio talvez

eu visse a diferença. Assim, a tinta me parece absolutamente igual, Arnie.



Também bateu na porta com os nós dos dedos. Arnie franzi

u o

cenho.










Um trabalho dos diabos





comentou Junkins. Caminhou até a

frente do carro.





Sim, senhor, um trabalho dos

diabos,

Arnie. Merece

parabéns.







Obrigado.





Arnie observou Junkins, disfarçado em sincero

admirador, usando os perspicazes olhos castan

hos para descobrir

amassados suspeitos, falhas na pintura, talvez uma mancha de sangue ou

um punhado de cabelos emaranhados. Procurando sinais de "Penetra"

Welcher. De repente, Arnie teve certeza de ser justamente isso que o bosta

fazia.





O que posso, exa

tamente, fazer pelo senhor, detetive Junkins?



Junkins riu.







Rapaz, quanta formalidade! Não faça isso comigo! Me chame de

Rudy, está bem?







Claro





Arnie concordou sorrindo.





Em que posso ajudá

-

lo,

Rudy?







Compreenda, é curioso





disse Junkins, agachando

-

se para

espiar os faróis dianteiros do lado do motorista. Bateu pensativamente em

um deles com os nós dos dedos e então, com aparente alheamento,

deslizou o indicador pela metálica cobertura semicircular do farol. Seu

sobretudo pairou por um instante sobre



o piso cimentado manchado de

óleo, depois ele se ergueu.





Recebemos comunicação de algo desta

natureza... o quebra

-

quebra em seu carro, quero dizer...







Oh, na verdade eles não o reduziram a

cacos





disse Arnie.

Começava a sentir

-

se em uma espécie de cor

da bamba e voltou a tocar

Christine. A solidez do carro, sua

realidade,

tornaram a confortá

-

lo.





Eles

bem que tentaram, entenda, mas não fizeram um trabalho completo.







Ok.

Acho que não estou bem a par do jargão atual.





Junkins

riu.





De qualquer modo, q

uando o caso veio a mim, o que acha que

perguntei? "Onde estão as fotografias?" Foi o que perguntei. Imaginei que

fosse um descuido, entender? Então, telefonei para a Delegacia de Polícia

de Libertyville e me disseram que

não havia

fotografias.







Claro





r

espondeu Arnie.





Um cara da minha idade só

consegue seguro de responsabilidade e, mesmo assim, com dedução de

setecentos dólares. Se eu tivesse seguro contra danos, teria feito um

bocado de fotos. Então, como não tinha, para que as fotos? Francamente,

não



ia querer nenhuma para meu álbum de recordações.










Tem razão





disse Junkins e caminhou preguiçosamente até a

traseira do carro, os olhos perscrutando em busca de vidros quebrados,

arranhões, traços de culpa.





Sabe o que mais achei curioso? Você nem ao

m

enos deu parte do crime!





Ergueu os olhos escuros e questionadores

para Arnie, fitando

-

o de perto, e então esboçou um pequeno e falso sorriso

de perplexidade.





Nem ao menos deu parte! "Poxa", falei, "o filho da

mãe! E quem comunicou o fato?" O pai do car

a, eles me disseram.





Junkins meneou a cabeça.





Não entendi isso, Arnie, e sou franco em

dizer. Um sujeito se esgota, reformando um carro velho até que ele valha

uns dois, talvez cinco mil dólares, e então aparecem alguns caras e fazem

um baita de um est

rago no carro...







Eu já disse que...



Rudy Junkins ergueu a mão e sorriu tranqüilizadoramente. Por um

fantástico segundo, Arnie pensou que ele fosse dizer "Paz", como Dennis,

quando a situação às vezes ficava um pouco pesada.







Desculpe. Danificaram um pou

co o carro.







Certo





disse Arnie.







De qualquer modo, segundo o que disse sua namorada, um dos

perpetradores... bem, defecou no painel de instrumentos. Achei que você

devia ter ficado louco da vida com isso. Achei que deveria dar parte desse

fato.



O sorri

so se esfumou, e Junkins fitou Arnie com seriedade, inclusive,

consternação. Os olhos cinzentos e frios de Arnie se fixaram nos castanhos

de Junkins.







Merda pode ser lavada





declarou ele finalmente.





Quer saber

de uma coisa, Sr. Rudy? Posso lhe contar u

ma coisa?







Certo, filho.







Quando eu tinha um ano e meio, peguei um garfo e risquei uma

escrivaninha antiga que minha mãe comprara, depois de economizar

cinco anos para isso. Economizando de seu dinheiro para despesas

pessoais, foi o que me disse. Acho qu

e fiz o diabo na escrivaninha, em

bem pouco tempo. Naturalmente, não me lembro de nada, mas ela disse

que só conseguiu ficar parada, espiando para aquilo e chorando.





Arnie

sorriu de leve.





Até agora, nunca pude imaginar minha mãe agindo




dessa forma. Ago

ra, creio que posso. Talvez eu esteja amadurecendo um

pouco, não acha?



Junkins acendeu um cigarro.







Acho que não entendi aonde quer chegar, Arnie. Não percebi o

que quer dizer.







Minha mãe falou que preferia manter

-

me de fraldas até os três

anos, a ver

-

me



fazer aquilo. Porque, disse ela, merda se lava,

desaparece.





Arnie sorriu.





A gente dá descarga e ela vai embora.







Da maneira como "Penetra" Welch se foi?





perguntou Junkins.







Não sei de nada disso.







Não?







Não.







Palavra de escoteiro?





perguntou J

unkins.



A pergunta era humorística, mas não os olhos, que continuavam

sondando Arnie, em busca da menor falha, de um piscar crucial.



Mais abaixo, no corredor, o sujeito que colocava seus pneus de

inverno deixou uma ferramenta cair no concreto. Ela bateu co

ntra o chão e

emitiu um som musical. O sujeito praguejou, quase como em coro:







Vá à merda, sua puta!



Junkins e Arnie olharam ao mesmo tempo para lá, rapidamente, e o

momento se desfez.







Claro, palavra de escoteiro





respondeu Arnie.





Escute, acho

que o

senhor tem que fazer isto, é o seu trabalho...







Certo, é o meu trabalho





assentiu Junkins, suavemente.





O

rapaz foi atropelado três vezes, para a frente e para trás. Virou uma posta

de carne. Teve que ser recolhido com uma pá.







Por favor





disse Arnie,



sentindo

-

se mal. Seu estômago revirou

-

se lentamente.







Ora, por que não? Afinal, não é assim que se faz com merda?

Recolhê

-

la em uma pá?







Não tive nada a ver com aquilo!





gritou Arnie.






O homem do outro lado, o que estava às voltas com seu silencioso,

ol

hou para eles, sobressaltado. Arnie baixou a voz.







Sinto muito. Só queria que o senhor me deixasse em paz. Sabe

muito bem que nada tive a ver com aquilo. Já vistoriou o carro inteiro. Se

Christine tivesse atropelado esse cara, tantas vezes e com tanta

int

ensidade, estaria toda arrebentada. Já vi como é, na TV. E quando tinha

aulas de Mecânica de Automóveis, há dois anos, o Sr. Smolnack explicou

que, em sua opinião, os dois melhores meios para destruir a frente de um

carro seriam atropelar um alce ou uma pe

ssoa. Claro que era um tipo de

piada, mas ele não estava brincando... se entende o que quero dizer.



Arnie engoliu em seco e ouviu um "clique" em sua garganta, que

também estava seca.







Sem dúvida





disse Junkins.





Seu carro me parece

perfeitamente legal.

Você é que não está, filho. Parece um sonâmbulo.

Parece absolutamente fodido. Desculpe pelo termo.





Ele jogou o cigarro

fora.





Sabe de uma coisa, Arnie?







O quê?







Acho que você mente mais depressa do que um cavalo pode

trotar.





Junkins bateu no capô de



Christine.





Talvez eu devesse dizer,

mais depressa do que um Plymouth pode correr.



Arnie olhou para ele, a mão pousada no espelho externo, do lado do

passageiro. Não disse nada.







Não creio que esteja mentindo sobre matar o rapaz Welch, mas

acho que ment

e sobre o que eles fizeram com seu carro; sua namorada

disse que eles fizeram um estrago dos diabos e, raios, ela é muito mais

convincente do que você. Chorou, enquanto me contava. Disse que havia

vidros quebrados por todos os lados... Por falar nisto, ond

e comprou os

vidros de substituição?







No McConnell's





respondeu Arnie prontamente.





No Burg.







Ainda tem o recibo?







Joguei fora.







Bem, mas eles devem lembrar de você. Um pedido tão grande...







É possível





disse Arnie



, mas em seu lugar não contaria

muito

com isso, Rudy. Eles são os maiores especialistas em vidros para




automóveis, a oeste de Nova Iorque e leste de Chicago. Cobrem uma boa

área. Fazem um bocado de negócios, muitos deles relativos a carros velhos.







Ainda assim, devem ter um comprovante.







Paguei em dinheiro.







Bem, seu nome deve constar da remessa.







Não





respondeu Arnie e sorriu friamente.





A encomenda foi

despachada em nome da Garagem de Darnell. Desta forma, consigo um

desconto de dez por cento.







Você cobriu todas as brechas, não?







Tenente Junkins...







Está mentindo também sobre o vidro, embora... raios me partam,

eu não saiba por quê.







O senhor não sabe mesmo de nada





respondeu Arnie,

irritadamente.





Desde quando é crime comprar vidros de reposição, se

alguém quebra nossas jane

las? Ou pagar em dinheiro? Ou conseguir um

desconto?







Desde nunca





disse Junkins.







Pois então por que não acaba com isso?







O mais importante





disse Junkins





é que, para mim, você

mente quando diz que não sabe nada sobre o que aconteceu ao rapaz

Welch

. Você sabe de alguma coisa. E eu gostaria de descobrir o quê.







Não sei de nada





insistiu Arnie.







E quanto a...







Não tenho mais nada a lhe dizer





cortou Arnie.





Sinto muito.







Está bem





disse Junkins.



Ele desistiu tão rapidamente que Arnie ficou des

confiado em

seguida. O policial remexeu no paletó esporte que usava por baixo do

sobretudo e tirou a carteira. Arnie viu que ele usava uma arma em um

coldre de ombro e desconfiou de que Junkins pretendia fazê

-

lo ver a arma.

Pegou um cartão e o estendeu, di

zendo:










Posso ser encontrado em qualquer destes números, caso queira

falar comigo. Sobre alguma coisa. Qualquer coisa.



Arnie guardou o cartão no bolso da camisa.



Junkins deu mais uma lenta passada em torno de Christine.







Que diabo de trabalho de restaura

ção!





repetiu. Olhou

frontalmente para Arnie.





Por que você não deu parte?



Arnie deixou escapar um baixo e trêmulo suspiro.







Porque pensei que isso seria o fim





declarou.





Achei que eles

se dariam por satisfeitos.







Entendo





disse Junkins.





Imaginei



que pudesse ser isso. Boa

noite, filho.







Boa noite.



Junkins começou a afastar

-

se, depois se virou e voltou.







Pense no que lhe disse





falou.





Você está realmente com uma

aparência infernal, entende o que quero dizer? Tem uma bela garota. Ela

está preoc

upada com você, ficou abalada com o que aconteceu a seu carro.

Seu pai também está preocupado com você. Pude perceber isso ao telefone.

Reflita no que lhe falei e ligue para mim, filho. Dormirá melhor depois.



Arnie sentiu algo trêmulo por trás dos lábios,

algo diminuto e

lacrimoso, que doía. Os olhos castanhos de Junkins eram gentis. Ele abriu

a boca





só Deus sabe o que teria dito



, mas então uma monstruosa

pontada de dor o atingiu nas costas, fazendo

-

o retesar

-

se subitamente.

Teve também o efeito da bofe

tada em um histérico. Sentiu

-

se mais calmo,

de cabeça limpa novamente.







Boa noite





repetiu.





Boa noite, Rudy.



Junkins ficou olhando para ele por mais um momento, perturbado,

antes de ir embora.



Arnie começou a tremer de alto a baixo. O tremor começou em



suas

mãos, espraiou

-

se pelos braços até os cotovelos e, de repente, abrangia

todo seu corpo. Agarrou

-

se cegamente à maçaneta e deslizou para o

interior de Christine, para os reconfortantes cheiros de carro e de

estofamento novos. Ligou a chave, as luzes d

o painel acenderam

-

se e ele

tateou em busca do botão do rádio.






Ao fazer o movimento, seus olhos caíram na etiqueta oscilante de

couro, tendo impressas as letras RDL. Seu sonho lhe voltou à mente, com

uma terrível e súbita intensidade: o cadáver putrefato s

entado onde ele se

sentava agora, as órbitas vazias olhando pelo pára

-

brisa, os ossos dos

dedos aferrados ao volante, o riso vazio dos dentes da caveira, quando

Christine arremeteu contra "Penetra" Welch, enquanto o rádio,

sintonizado na WDIL, irradiava

"L

ast Kiss",

por J. Frank Wilson e os

Cavaliers.



De repente sentiu

-

se mal, nauseado outra vez, uma náusea que

flutuava entre seu estômago e o fundo da garganta. Arnie escorregou para

fora do carro e correu para o banheiro, as pisadas latejando loucamente

nos



ouvidos. Foi bem a tempo: vomitou e tornou a vomitar, até nada mais

sobrar dentro dele senão saliva amarga. Havia luzes dançando diante de

seus olhos. Os ouvidos zumbiam e os músculos abdominais latejavam

fatigadamente.



Olhou para seu rosto pálido e espec

tral no espelho manchado, para

os círculos escuros em torno dos olhos e a mecha solta de cabelo caída

sobre a testa. Junkins estava certo. Tinha uma aparência infernal.



Entretanto, todas as suas espinhas tinham desaparecido.



Ele riu como louco. Não desisti

ria de Christine, por nada do mundo.

Aí estava uma coisa que jamais faria. Ele...



De repente, ficou nauseado outra vez, mas nada havia para vomitar,

somente aquelas ondas secas que torturavam e comprimiam, aquele sabor

intenso de vômito na boca outra vez.



Precisava falar com Leigh. Subitamente, sentia necessidade de falar

com ela.



Entrou no escritório de Will, onde o único som provinha do relógio

pregado à parede, anunciando novos minutos. Discou o número dos

Cabot, que sabia de cor, mas precisou tentar dua

s vezes, tal o tremor de

seus dedos.



A própria Leigh atendeu, com voz sonolenta.







Arnie?







Preciso falar com você. Preciso vê

-

la, Leigh.










São quase dez da noite, Arnie. Acabei de sair do chuveiro e fui

para a cama... Estava quase dormindo...







Por favor





disse ele e fechou os olhos.







Amanhã





disse ela.





Não pode ser essa noite, meus pais não

me deixariam sair, já é muito tarde...







São apenas dez horas. E hoje é sexta

-

feira.







Para falar a verdade, eles não querem mais que eu saia com você,

Arnie. Gos

taram de você no início, meu pai ainda o aprecia... mas os dois

acham que você ficou meio esquisito.





Houve uma longa, longuíssima

pausa de parte de Leigh.





Eu também acho





completou ela, finalmente.







Isto significa que não quer mais me ver?





pergunto

u ele, em voz

sem inflexão. Seu estômago doía, as costas doíam, todo ele doía.







Não.





Agora, uma levíssima censura pontilhou a voz dela.





Eu estava começando a pensar que

você não

queria me ver... não na escola,

e à noite você está sempre na garagem. Tr

abalhando em seu carro.







Já está pronto.





disse ele. E então, com um monstruoso

esforço:





É que eu queria o carro para...

aiii, droga

!



Ele tocou as costas no lugar onde sentira outra intensa pontada de

dor, mas sua mão encontrou apenas um pedaço do cole

te ortopédico.







Arnie?





ela gritou alarmada.





Está tudo bem com você?







Sim, está. Senti uma pontada nas costas.







O que é que ia dizer?







Amanhã





disse ele.





Vamos tomar um sorvete no Baskin

-

Robbins. Podemos também fazer algumas compras de Natal e ja

ntar.

Depois, por volta das sete, levo você para casa. E não estarei esquisito.

Prometo.



Ela riu um pouco e Arnie sentiu um imenso alívio. Era como um

bálsamo.







Seu bobão!







Isto quer dizer que aceita?







Sim, quer dizer que aceito.





Leigh fez uma pausa,

depois

continuou suavemente:





Falei que meus pais não concordam em que




continue vendo você muitas vezes. Não disse que era essa a minha

vontade.







Obrigado





disse ele, lutando para manter a voz firme.





Obrigado por isso.







Sobre o que você queria falar

comigo?



Christine. Quero falar com você sobre ela





e sobre meus sonhos. E sobre

por que estou com uma aparência infernal E por que agora estou sempre querendo

ouvir a WDIL, sobre o que fiz naquela noite, depois que todos se foram... a noite

em que machuqu

ei minhas costas. Oh, Leigh, eu quero...



Outra pontada de dor nas costas, como garras de gato.







Acho que acabamos de resolver o assunto





respondeu.







Bem.





Uma ligeira e cálida pausa.





Ótimo.







Leigh?







Hum?







Agora teremos mais tempo. Prometo. Todo o

tempo que você

quiser.



Para si mesmo, ele disse:

Porque agora, com Dennis no hospital, você é

tudo que me resta, tudo que resta entre eu... eu e...







Está bem





disse Leigh.







Eu te amo.







Tchau, Arnie.



Diga o mesmo!,

ele quis gritar, de repente.

Diga o me

smo, preciso que

você também diga.'



Entretanto, em seu ouvido soou apenas o clique do telefone.



Ficou sentado à mesa de Will por muito tempo, de cabeça baixa,

procurando controlar

-

se. Leigh não precisava repetir que o amava, a cada

vez que ele lhe dizia is

so, precisava? Afinal, ele não estava tão necessitado

assim daquela segurança. Ou estaria?



Levantando

-

se, ele foi até a porta. O mais importante de tudo é que

Leigh ia sair com ele no dia seguinte. Fariam as compras de Natal que

haviam planejado, no dia em



que aqueles bostas tinham retalhado




Christine. Passeariam e conversariam. Ia ser muito bom. Leigh diria que o

amava.







Ela dirá





sussurrou Arnie, parado à porta.



Entretanto, um pouco além, no lado esquerdo da garagem, Christine

parecia uma muda e estúpid

a negação, com a grade do radiador

ressaltando

-

se para diante, como se caçasse alguma coisa.



Então, a voz sussurrou do fundo de sua consciência, a sombria e

questionadora voz:

Como foi que machucou as costas? Como foi que machucou

as costas? Como foi que m

achucou as costas, Arnie?



Era uma pergunta à qual se esquivava. Ele temia a resposta.





L

EIGH E

C

HRISTINE



Meu bem passou em um Cadillac zerinho,



Ela disse: "Ei, venha cá, paizinho,



Eu nunca vou voltar! "



Meu bem, meu bem, não ouve o meu pedido?



Volte, doçur

a, volte para mim!



Ela disse: "Bolas pra você, paizão,



Eu nunca vou voltar!"







The Clash





O dia era cinzento e ameaçava nevar, mas Arnie conseguira ambas

as coisas





os dois tinham se divertido e ele não estava esquisito. A Sra.

Cabot estava em casa, quand

o foi buscar Leigh, e a acolhida inicial foi fria.

Depois de bastante tempo





talvez uns vinte minutos





Leigh desceu,

usando uma suéter cor de caramelo que se ajustava adoravelmente ao

busto e calças novas cor de uva, que se ajustavam adoravelmente a seus



quadris. A inexplicável demora, em uma garota que quase sempre se

mostrara pontual, devia ter sido deliberada. Arnie a interrogou mais tarde

e Leigh negou, com uma inocência de olhos talvez um pouco arregalados

demais, porém, de qualquer modo, funcionando



a contento.






Arnie podia ser sedutor quando queria e, enquanto esperava por

Leigh, atirou

-

se à tarefa com vontade, envolvendo a Sra. Cabot. Antes que

Leigh finalmente aparecesse descendo a escada, o cabelo oscilando em um

rabo

-

de

-

cavalo, sua mãe já se rend

era. Tinha oferecido uma Pepsi

-

Cola a

Arnie e ouvia atentamente os casos que ele contava sobre o clube de

xadrez.







É a única atividade extracurricular realmente

civilizada

de que já

ouvi falar





disse ela a Leigh, sorrindo aprovadoramente para ele.







TEDI

OOOOSA!





trombeteou Leigh.



Passou um braço pela cintura de Arnie e o beijou sonoramente na

face.







Leigh

Cabot!







Desculpe, mamãe, mas ele fica interessante manchado de batom,

não acha? Um momento, Arnie, vou pegar um lenço de papel.

Não toque

o

lugar.



Re

mexeu em sua bolsa à procura do lenço. Arnie olhou para a Sra.

Cabot e revirou os olhos. Natalie Cabot levou a mão à boca e sorriu

sufocadamente. A

reconciliação

entre ela e Arnie era total.



Arnie e Leigh foram ao Baskin, onde finalmente se desfez um inici

al

constrangimento que restava da conversa telefônica da véspera. Arnie

tinha um vago receio de que Christine não se portasse à altura ou que, a

qualquer momento, Leigh encontrasse algo desagradável a dizer sobre o

carro. Ela jamais gostara de andar em seu



carro. As duas preocupações, no

entanto, foram desnecessárias. Christine funcionou como um fino relógio

suíço, e as únicas coisas que Leigh teve a dizer a respeito estavam

mescladas de alegria e admiração.







Eu jamais acreditaria





comentou, quando saíram



do pequeno

pátio de estacionamento da sorveteria e se juntaram ao fluxo do trânsito,

em direção ao Monroeville Mall.





Você deve ter trabalhado neste carro

como um escravo!







Acho que não foi tão difícil como imagina





disse Arnie.





Quer

ouvir música?







Por que não?






Arnie ligou o rádio





The Silhouettes

seguiam através de

"Get a job",

sonolenta e cadenciadamente. Leigh fez uma careta.







Hum... A DIL. Posso mudar?







À vontade.



Leigh sintonizou uma estação de

rock de

Pittsburg e pegou Billy Joel.

"Talvez vo

cê tenha razão", admitia Billy, jovialmente, "Eu devo estar

maluco". Em seguida, ele dizia a Virgínia, sua namorada, que as garotas

católicas começavam muito tarde





era o programa

Block Party Weekend.

Vai ser agora,

pensou Arnie.

Ela começará a ratear...

vai parar... qualquer coisa.

Christine, no entanto, limitou

-

se a continuar rodando.



A rua de pedestres estava congestionada por uma confusão de

compradores, mas todos mostravam boa disposição; a última, frenética e

por vezes desagradável corrida de Natal a

inda distava duas semanas. O

espírito natalino era recente o bastante para ser novidade, permitindo que

apreciassem os ouropéis em cordões estendidos através das amplas

alamedas do lugar, sem que ninguém se aborrecesse ou mostrasse

tendências a Ebenezer Sc

roogey. O insistente retinir dos sinos dos papais

-

noéis do Exército da Salvação, por enquanto, ainda não eram uma culposa

irritação; eles preferiam cantar as boas

-

novas e boa vontade, em vez de

enveredarem pela monótona e metálica cantoria de

Os pobres não



têm Natal,

os pobres não têm Natal, os pobres não têm Natal,

que Arnie tinha a impressão

de sempre ouvir, à medida que o dia estava mais próximo e que tanto as

balconistas como os papais

-

noéis do Exército da Salvação ficavam mais

apoquentados e de olhos m

ais fundos.



Caminharam de mãos dadas, até ficarem impossibilitados pelo

número crescente de embrulhos. Então Arnie se queixou, alegremente, de

que Leigh o transformara em seu burro de carga. Ao descerem para o

nível inferior, em direção ao B. Dalton, onde

Arnie queria comprar um

livro sobre fabricação de brinquedos, para o pai de Dennis Guilder, Leigh

percebeu que começara a nevar. Ficaram por um instante na escada,

contemplando a vidraça, observando tudo como crianças. Arnie lhe

tomou a mão e Leigh o fitou

, sorrindo. Ele podia sentir o perfume de sua

pele, limpa e com leve cheiro de sabonete; podia sentir a fragrância de

seus cabelos. Moveu a cabeça ligeiramente para diante; Leigh moveu a

dela um pouquinho, aproximando

-

se. Beijaram

-

se de leve e ele lhe

aper

tou a mão. Mais tarde, depois da visita à livraria, permaneceram

acima do rinque no centro da rua de pedestres, contemplando os




patinadores que deslizavam, evoluíam e faziam piruetas, ao som de

músicas natalinas.



Foi um dia excelente, até o momento em que

Leigh Cabot quase

morreu.





Ela teria morrido, sem a menor dúvida, se não fosse o carona. Então,

já rodavam de volta e um prematuro crepúsculo de dezembro há muito se

tornara escuro pela nevada. Firme sobre as rodas como sempre, Christine

ronronava com faci

lidade através dos dez centímetros de neve solta e

recém

-

caída.



Arnie fizera reserva para um jantar antecipado na British Lion Steak

House, realmente o único bom restaurante de Libertyville, mas o tempo

voara e os dois haviam concordado em uma refeição lig

eira, no

McDonald's da JFK Drive. Leigh prometera à mãe estar em casa às oito e

meia, porque os Cabots iam "receber amigos" e, quando deixaram a rua de

pedestres, já faltavam quinze para as oito.







Não faz mal





disse Arnie.





De qualquer modo, estou quase



falido mesmo.



Os faróis iluminaram o carona, de pé no cruzamento da Rota 17 com

a JFK Drive, faltando ainda oito quilômetros para Libertyville. Seus

cabelos negros batiam nos ombros, estavam salpicados de neve, e havia

uma mochila entre seus pés.



À medida



que se aproximavam, o carona ergueu um cartaz, pintado

em letras com tinta luminosa, que dizia: LIBERTYVILLE. PA. Quando

chegaram mais perto, ele virou o cartaz. Do outro lado estava escrito:

UNIVERSITÁRIO NÃO

-

PARANÓICO.



Leigh começou a rir.







Vamos dar u

ma carona a ele, Arnie.







Justamente quando eles se dão ao trabalho de anunciar sua

condição não

-

paranóica





disse Arnie





é que a gente deve ter mais

cuidado. Mas tudo bem, vá lá!



Desviou o carro para a beira da estrada. Naquela noite, ele daria a

lua a L

eigh, se ela pedisse.






Christine rodou maciamente para o acostamento, os pneus quase

não deslizando. No entanto, ao parar, a estática crepitou no rádio, que até

então vinha irradiando um rock pesado. Quando a estática diminuiu, os

Big Bopper cantavam

"Chant

illy Lace".







O que houve com o programa

Block Party Weekend?





perguntou

Leigh, quando o carona correu para eles.







Não sei





respondeu Arnie, embora soubesse.



Aquilo já acontecera antes. Às vezes, tudo quanto o rádio de

Christine captava era a estação WD

IL, pouco importando que botões

fossem apertados ou por mais que se manuseasse o convertor FM, sob o

painel de instrumentos; era a WDIL ou nada.



De repente, ele decidiu que fora um erro parar para o carona.



Agora, contudo, era tarde demais para recuar; o s

ujeito já abrira

uma das portas traseiras de Christine, atirava sua sacola para dentro e

entrava depois dela. Uma rajada de ar frio e de neve entraram com ele.







Poxa, cara, obrigado!





Ele suspirou.





Meus dedos das mãos e

dos pés já se mandaram pra Miami



Beach, faz uns vinte minutos. Para

algum lugar eles foram mesmo, e me deixaram aqui porque não os sinto

mais.







Agradeça à patroa





disse Arnie, lacônico.







Obrigado, madame





disse o carona, levando os dedos,

galantemente, à aba de um chapéu invisível.







Não foi nada





Leigh sorriu.





Feliz Natal.







O mesmo para vocês





disse o carona



, embora pareça que tal

coisa nem exista, quando se fica em pé lá fora, tentando pegar uma carona

numa noite assim. O pessoal dispara perto da gente e depois desaparece.

Vo

om





Ele olhou em torno apreciativamente.





Um belo carro, cara. Um

diabo de carro bonito!







Obrigado





respondeu Arnie.







Você mesmo o restaurou?







Eu mesmo.



Leigh olhava para Arnie, perplexa. Sua expansividade anterior fora

substituída por um laconismo q

ue não lhe era comum. No rádio, os Big




Bopper terminavam e entrava Richie Valens, com "La Bamba". O carona

sacudiu a cabeça e riu.







Primeiro os Big Bopper, depois Richie Valens. Deve ser a noite

dos mortos no rádio. A boa e velha WDIL!







O que quer dizer?







perguntou Leigh. Arnie desligou o rádio.







Eles morreram em um desastre de avião. Com Buddy Holly.







Oh!





exclamou Leigh, baixinho.



Talvez o carona também sentisse a mudança no ânimo de Arnie; o

rapaz permaneceu calado e meditativo no banco de trás. Lá



fora, a neve

começava a cair mais rapidamente e mais compacta. Era a primeira boa

tempestade da estação.



Por fim, os arcos dourados da lanchonete piscaram, em meio à neve.







Quer que eu vá até lá, Arnie?





perguntou Leigh.



Arnie mergulhara em uma quietude



quase pétrea, rejeitando a

insistência de Leigh em manter conversa, com meros grunhidos.







Eu vou





respondeu ele, manobrando o carro.





O que vai

querer?







Só um hambúrguer e batata frita, por favor.



Antes, ela tinha pensado na refeição completa





Big Ma

c, algo para

beber e até mesmo os biscoitos, mas seu apetite parecia ter

-

se reduzido a

zero.



Arnie estacionou. À luz amarelada que vinha do interior do prédio

baixo de tijolos, o rosto dele pareceu esverdeado, de certa forma até

doentio. Virou

-

se para trás

, o braço apoiando

-

se no encosto.







Quer que traga alguma coisa pra você?





perguntou ao carona.







Não, obrigado





disse o rapaz.





Os velhos me esperam para o

jantar. Não posso desapontar minha mãe. Ela mata um carneiro gordo

cada vez que venho em c...



A

batida da porta cortou sua palavra final. Arnie já se afastava,

encaminhando

-

se apressadamente para a porta marcada ENTRE, as botas

chutando pequeninos jatos de neve recém

-

caída.










Ele é sempre carrancudo assim?





perguntou o carona.





Ou só

fica esquisito



de vez em quando?







Ele é muito agradável





respondeu Leigh, com firmeza.



Ficara subitamente nervosa. Arnie desligara o motor e levara as

chaves, deixando

-

a sozinha com o estranho no banco traseiro. Podia vê

-

lo

pelo espelho retrovisor e, de repente, aquel

es compridos cabelos negros,

emaranhados pelo vento, o chumaço de barba e os olhos escuros deram

-

lhe uma aparência selvagem, como de algum membro do bando de

Manson.







Onde é que você estuda?





perguntou ela.



Seus dedos davam puxadelas nas calças e forçou

-

os a parar.







Pitt





disse o carona, e nada mais.



Seus olhos encontraram os dela no espelho e Leigh desviou

rapidamente os seus para o colo. Calças cor de uva. Usara

-

as porque, certa

vez, Arnie tinha dito que gostava delas





talvez por serem as mais

aperta

das que tinha, ainda mais justas do que suas Levi's. Subitamente ela

desejou estar usando outra coisa, algo que não pudesse ser considerado

provocante, nem por algum exagero da imaginação: um saco de cereais,

talvez. Tentou sorrir





era uma idéia engraçada

, sem dúvida, um saco de

cereais, dava vontade de rir, ha

-

ha

-

ho

-

ho, e bater nos joelhos





só que

nenhum sorriso lhe veio aos lábios. Não conseguia afastar aquela imagem

da mente: Arnie a deixara sozinha com o estranho (Por castigo? Tinha sido

idéia dela re

colhê

-

lo.) e agora estava assustada.







Vibrações negativas





disse o carona de repente, fazendo

-

a

conter a respiração.



As palavras dele eram decididas e conclusivas. Pelo vidro da janela,

Leigh podia ver Arnie de pé, o quinto ou sexto da fila. Ainda demora

ria

um pouco, até chegar ao balcão. Viu

-

se imaginando o carona enlaçando

subitamente sua garganta com as mãos. Claro que poderia alcançar a

buzina... mas a buzina soaria? Leigh duvidou disso, sem qualquer razão

lógica. Ficou pensando que poderia alcançar a



buzina e fazê

-

la soar

noventa e nove vezes, satisfatoriamente. Entretanto, na centésima, estaria

sendo estrangulada por aquele carona por quem intercedera





e a buzina

não soaria. Porque... porque Christine não gostava dela. De fato, achava




que Christine

a odiava. Simples assim. Uma loucura, mas algo bem

simples.







Co... como disse?



Olhou para trás, pelo espelho retrovisor. Seu alívio foi imenso, ao

perceber que o carona nem olhava para ela. Os olhos dele vistoriavam o

carro. Tocou o forro do banco com a p

alma da mão, depois esfregou de

leve a forração do teto com as pontas dos dedos.







Vibrações negativas





disse ele e meneou a cabeça.





Não sei

por que, mas estou captando vibrações negativas nesse carro.







É mesmo?





perguntou ela, esperando que a voz soa

sse neutra.







Hum

-

hum. Fiquei preso num elevador certa vez, quando ainda

criança. Desde então, tenho acessos de claustrofobia. Nunca tive nenhum

em carro antes mas, poxa, estou tendo um agora. Dos piores. Acho que

você poderia acender um fósforo na minha l

íngua, tão seca está minha

boca.



Ele deu uma risada, breve e constrangida.







Se já não fosse tão tarde, eu sairia daqui e caminharia. Sem ofensa

para você ou para o carro de seu cara





acrescentou depressa.



Quando Leigh olhou pelo retrovisor, os olhos dele



nada tinham de

selvagem, estavam apenas nervosos. Aparentemente, o carona não

brincava a respeito da claustrofobia e não o achava mais com qualquer

semelhança com Charlie Manson. Perguntou

-

se por que fora tão idiota...

só que agora sabia





como e por quê.



Sabia perfeitamente bem.



Era o carro. Estivera absolutamente bem o dia inteiro, rodando em

Christine, mas agora o nervosismo e antipatia anteriores haviam

retornado. Ela apenas transmitira tais sentimentos ao carona, porque...

bem, porque alguém pode fica

r assustado e nervoso por causa de algum

cara recém

-

recolhido na estrada, mas era loucura ter medo de um carro,

uma construção inanimada de aço, vidro, plástico e cromado. Aquilo não

era apenas um pouco excêntrico, era

loucura.







Não está sentindo um cheir

o?





perguntou ele, de repente.







Cheiro de quê?







Um cheiro ruim.










Não, não sinto cheiro nenhum.





Os dedos dela agora

beliscavam a barra da suéter, arrancando fiapos de lã. O coração batia

desagradavelmente no peito.





Deve ser parte do seu acesso de

cl

austrofobia.







Hum... acho que sim.



Só que ela

sentia

o cheiro. Por sob os novos e agradáveis cheiros de

couro e estofamento, havia um leve odor: algo assim como ovos podres.

Um leve... um vaguíssimo odor.







Você se importa se eu baixar a janela um pouquin

ho?







De modo nenhum.



Leigh precisou esforçar

-

se um pouco para manter a voz firme, com

naturalidade. De súbito, em sua mente surgiu a foto que estivera no jornal

da manhã anterior, uma foto de "Penetra" Welch, tirada do anuário escolar.

Na legenda, estava

escrito:

Peter Welch, vítima de fatal incidente de

atropelamento e fuga que, segundo a polícia, pode ter sido assassinato.



O carona baixou o vidro de sua janela uns sete centímetros e no

carro penetrou uma brusca rajada de ar frio, carregando o cheiro. No

interior do McDonald's, Arnie chegara ao balcão e fazia o pedido. Ao

olhar para ele, Leigh experimentou uma tão estranha onda de amor e

medo que a mistura a deixou nauseada





e, pela segunda ou terceira vez

ultimamente, desejou ter

-

se ligado a Dennis prime

iro, Dennis que parecia

tão seguro e sensato...



Leigh procurou pensar em outra coisa.







Diga apenas se o frio está incomodando





disse o carona, em

tom de desculpa.





Sei que sou meio esquisito.





Deu um suspiro.





Às

vezes acho que nunca devia ter desisti

do das drogas, entende?



Leigh sorriu.



Arnie caminhava para eles, segurando um saco branco de papel,

escorregou ligeiramente na neve e então entrou no carro.







Aqui dentro está frio como uma geladeira





grunhiu.







Desculpe, cara





disse o carona, tornando a



subir o vidro.






Leigh esperou, para ver se aquele cheiro voltaria, mas agora só

conseguia sentir o odor do couro, do estofamento dos bancos e o vago

perfume da loção de barba de Arnie.







Pegue o seu, Leigh.



Entregou

-

lhe um hambúrguer, batatas fritas e uma

Coca pequena.

Tinha comprado um Big Mac para si mesmo.







Queria agradecer a carona, cara





disse o rapaz, do banco

traseiro.





Vou ficar na esquina da JFK com Center.







Está bem





respondeu Arnie, lacônico, ligando o motor.



A neve agora caía mais pesadamen

te e o vento começara a ulular.

Pela primeira vez, Leigh sentiu Christine derrapar um pouco, ao dirigir

-

se

para o meio da rua, agora quase deserta. Estavam a menos de quinze

minutos de casa.



Afastado aquele cheiro, Leigh descobriu que seu apetite voltara.

Devorou metade do hambúrguer, bebeu um pouco de Coca e conteve um

arroto, com as costas da mão. A esquina de Center com a JFK, marcada

com um monumento sobre a guerra, surgiu à esquerda, e Arnie manobrou,

pisando levemente nos freios, para que Christine nã

o derrapasse.







Tenha um bom fim de semana





disse Arnie.



Sua voz agora soava mais com a naturalidade costumeira. Divertida,

Leigh concluiu que tudo quanto ele precisava era mesmo de comer

alguma coisa.







O mesmo para vocês dois





disse o carona.





E um Fe

liz Natal.







Para você também





disse Leigh.



Deu outra dentada no hambúrguer, mastigou, engoliu... e o sentiu

alojar

-

se a meio caminho, em sua garganta. De repente, não conseguia

mais respirar.



O carona estava saindo. O ruído da porta, ao abrir

-

se, era mui

to alto.

O som do clique do ferrolho foi como o tambor da fechadura de uma

caixa

-

forte, retornando ao lugar. O som do vento assemelhou

-

se ao apito

de uma fábrica.



(sei que isso é idiota, Arnie, mas não consigo respirar)






Estou sufocando!,

ela tentou dizer,

mas emitiu apenas um som

gorgolejante e vago que, tinha certeza, o vento havia coberto. Apertou a

mão em torno da garganta e a sentiu inchada, latejando contra os dedos.

Quis gritar. Nenhuma respiração para gritar, nenhuma respiração



(Eu não posso, Arnie)



afinal, e conseguia

sentir

a coisa ali, uma pelota quente de

hambúrguer e pão. Tentou tossir para expulsá

-

la, mas foi inútil. As luzes

do painel, circulares, de um verde brilhante



(gato, como os olhos de um gato, oh, Deus, não posso RESPIRAR)

vigiando

-

a...



(Meu Deus, não consigo RESPIRAR não consigo RESPIRAR não consigo)



Seu peito começou a latejar, buscando ar. Leigh tentou tossir

novamente para livrar

-

se da pelota de pão e hambúrguer, mal mastigada e

presa em sua garganta, mas era impossível. Agora, o ruí

do do vento era

maior do que o mundo, maior do que qualquer som que já ouvira antes e,

finalmente, os olhos de Arnie se desviavam do carona para ela; ele se

virava em câmara lenta, os olhos se arregalando quase comicamente. Até

mesmo sua voz parecia demasi

ado alta, como um trovão, a voz de Zeus

falando a algum pobre mortal, vinda de trás de um maciço de nuvens

carregadas:







LEIGH... VOCÊ ESTÁ... DIABO, O QUÊ?... ELA ESTÁ

ASFIXIADA! OH MEU DEUS, ELA ESTÁ...



Fez um gesto na direção dela, em câmara lenta, mas

então recuou as

mãos, imobilizado pelo pânico.



(Oh me ajude pelo amor de Deus faça alguma coisa estou morrendo oh

Deus vou morrer engasgada com um hambúrguer McDonald's Arnie porque você

não ME AJUDA?)



e, naturalmente, ela sabia por que, ele recuava porque



Christine não

queria

que ela tivesse qualquer socorro, era esta a maneira de Christine

livrar

-

se dela, a maneira de Christine livrar

-

se de qualquer outra mulher,

da concorrência, e agora os instrumentos do painel eram

realmente

olhos,

enormes olhos frios

que a espiavam engasgar

-

se até a morte, olhos que ela

só conseguia ver através de um.crescente emaranhado de pontos negros,

pontos que explodiam e se espalharam quando






(mamãe oh céus estou morrendo agora e ELA ME VÊ ELA ESTÁ VIVA

VIVA VIVA OH MEU DEUS DO C

ÉU CHRISTINE ESTÁ VIVA)



Arnie se moveu para ela outra vez. Agora ela começava a remexer

-

se no banco, seu peito se ondulava espasmodicamente, enquanto apertava

a garganta. Seus olhos se dilatavam. Os lábios começaram a azular. Arnie

lhe batia inutilmente na

s costas e gritava algo. Agarrou

-

a pelo ombro,

parecendo querer puxá

-

la para fora do carro, quando então, de repente,

pestanejou e enrijeceu o corpo, as mãos indo involuntariamente para o

final das próprias costas.



Leigh se contorceu e remexeu

-

se. O bloque

io em sua garganta

parecia imenso, quente e pulsante. Tentou tossir a pelota para fora, agora

mais fracamente. O volume continuou entalado. O ulular do vento

começava a diminuir, tudo começava a esfumar

-

se, mas sua necessidade

de ar não parecia tão urgente

. Talvez estivesse morrendo e, de súbito, isto

não parecia tão ruim. Nada era tão ruim, exceto aqueles olhos verdes que

a vigiavam, do painel de instrumentos. Não eram mais frios. Agora

cintilavam de ódio e triunfo.



(ó Deus eu me arrependo sinceramente de

ter

-

Vos ofendido eu me

arrependo de ofender

-

Vos este é meu ato meu ato de de)



Arnie se inclinara sobre ela. A porta de Leigh se abriu subitamente e

ela escorregou para fora, em meio a um vento brutal e cortante. O ar a

reviveu parcialmente, fez com que a l

uta pela respiração se tornasse de

novo importante, mas a obstrução persistia... não cedia.



De muito longe, a voz de Arnie trovejava consternada, era a voz de

Zeus: O

QUE ESTÁ FAZENDO? TIRE AS MÃOS DE CIMA DELA!

Braços

em torno dela. Braços fortes. O vento



em seu rosto. A neve turbilhonando

em seus olhos



(ó Deus ouça

-

me como pecadora este é meu ato de contrição eu me

arrependo sinceramente de ter

-

Vos ofendido OH! OUUU! o que você está

FAZENDO minhas costelas doem o que o que você)



e, de repente, havia braço

s em torno dela, apertando, e duas mãos

duras se juntavam em um nó, logo abaixo de seus seios, no plexo solar. E

também de repente um polegar se ergueu, o polegar de um carona

pedindo uma corrida, com a diferença de que o polegar se enfiou

dolorosamente co

ntra seu esterno, no meio do peito. Ao mesmo tempo, a

pressão dos braços aumentou brutalmente. Ela se sentiu agarrada.






(Ohhhhhhh você está quebrando minhas COSTELAS)



por um besouro gigantesco. Todo o seu diafragma pareceu

expandir

-

se e algo lhe voou para f

ora da boca, com a força de um projétil.

Algo que foi cair sobre a neve: uma pelota molhada, de pão e carne.







Largue

-

a!





gritava Arnie, enquanto saía de trás do volante e

dava a volta por trás de Christine, até onde o carona mantinha o corpo

flácido de L

eigh, como uma marionete em tamanho grande.





Largue

-

a,

você a está matando!



Leigh começou a respirar, em profundos e entrecortados haustos.

Sua garganta e os pulmões pareciam queimar em rios de fogo, a cada vez

que aspirava o frio, maravilhoso ar. Quase n

ão percebia que soluçava.



O rude besouro relaxou a pressão e as mãos a soltaram.







Você está bem, garota? Está...



Então Arnie passava por ela, avançando para o carona. O rapaz se

virou, seus compridos cabelos flutuando ao vento, e Arnie o esmurrou na

boca.



O carona foi atirado para trás, suas botas escorregaram na neve e ele

aterrissou de costas. A neve recente, fina e seca como açúcar, voejou em

torno dele.



Arnie avançou, de punhos fechados, olhos cerrados.



Ela tomou outra convulsiva respiração





oh, doía,



era como ser

espetada por facas





e gritou:







O

que está fazendo, Arnie? Pare com isso!

Arnie se virou para ela,

atônito.







O quê? Leigh?







Ele salvou minha vida, por que está batendo nele?



O esforço era demasiado e os pontos negros começaram novamente

a

espiralar

-

se diante de seus olhos. Ela poderia ter

-

se recostado contra o

carro, mas não queria chegar perto dele, não queria tocá

-

lo. O painel de

instrumentos. Acontecera qualquer coisa com o painel de instrumentos.

Algo.



(olhos que se transformavam em olh

os)

sobre o que não queria pensar.






Cambaleando, procurou um poste de iluminação e agarrou

-

se a ele

como bêbada, de cabeça baixa e arfando. Um braço macio e vacilante se

envolveu em sua cintura.







Leigh... minha querida, você está bem?



Virando ligeiramente

a cabeça, ela viu o rosto assustado e infeliz de

Arnie. Não se contendo mais, prorrompeu em lágrimas.



O carona aproximou

-

se deles com cautela, enxugando a boca

ensangüentada na manga do blusão







Obrigada





disse Leigh, entre respirações rápidas e arquejant

es.

A dor diminuía um pouquinho agora e o frio vento cortante refrescava seu

rosto esbraseado.





Eu estava sufocando. Acho que... Acho que teria

morrido, se você não tivesse...



Era esforço demais. Os pontos negros voltaram, todos os sons se

extinguiram no

interior de um fantástico túnel de vento. Baixando a

cabeça, ela esperou que aquilo passasse.







É a Manobra de Heimlich





explicou o carona.





Fazem a gente

aprendê

-

la, quando se trabalha em um café. Na escola. Fazem a gente

praticar em um boneco de borrac

ha. Daisy Mae é como o chamam. Eu

pratiquei, mas nunca se tem a menor idéia se a coisa... sabe como é, vai ou

não funcionar em uma pessoa de verdade.





A voz dele era trêmula,

passando do grave para o agudo e retornando ao grave, como a de um

garoto entran

do na puberdade. Uma voz que parecia querer rir ou chorar,

algo assim, e, mesmo à claridade incerta, em meio à neve que caía

fortemente, Leigh pôde ver o quanto o rosto dele estava pálido.





Nunca

pensei que um dia viesse a pôr em prática a Manobra de Heim

lich. E

funcionou que foi uma beleza. Viu como aquele maldito pedaço de carne

voou longe?



O carona enxugou a boca e olhou apaticamente para a fina camada

de sangue na palma da mão.







Sinto muito tê

-

lo esmurrado





disse Arnie. Parecia quase

chorando.





Eu e

stava apenas... apenas...







Certo, cara, eu entendo.





Ele bateu no ombro de Arnie.





Não

foi nada. Você está bem, garota?







Estou





disse Leigh.






Sua respiração se normalizava. As batidas do coração ficavam mais

ritmadas. Apenas as pernas estavam em mau es

tado, eram como de pura

borracha.

Meu Deus,

pensou ela.

Eu agora podia estar morta. Se não tivéssemos

dado carona a esse sujeito e se nós quase não...



Ocorreu

-

lhe que tinha sorte por estar viva. O clichê a envolveu

forçosamente, com um estúpido e inegável

poder que quase a fez

desmaiar. Leigh começou a chorar com mais intensidade. Quando Arnie a

guiou de volta ao carro, acompanhou

-

o, com a cabeça em seu ombro.







Bem





disse o carona, hesitante



, acho que vou indo.







Um momento





disse Leigh.





Como é seu n

ome? Você salvou

minha vida, eu gostaria de saber como se chama.







Barry Gottfried





respondeu.





Às suas ordens. Novamente, ele

levou os dedos à aba de um chapéu imaginário.







Leigh Cabot





disse ela.





Este é Arnie Cunningham. Obrigada

novamente.







Sem d

úvida, obrigado





acrescentou Arnie.



No entanto, Leigh não sentiu um agradecimento real em sua voz





apenas aquele tremor. Ele a fez entrar no carro e, subitamente, o cheiro a

envolveu, atacou

-

a: nada fraco desta vez, era muito mais do que um vago

odor sub

terrâneo. Era um cheiro de podre e decomposição, forte e

nauseante. Leigh sentiu um medo louco invadir

-

lhe o cérebro e pensou:

É

o cheiro da fúria dela...



O mundo girou diante dela. Inclinando

-

se para fora do carro, Leigh

vomitou.



Então, tudo à sua volta f

icou cinzento por um momento.









Tem certeza de que está bem?





perguntou Arnie, talvez pela

centésima vez.



Seria também uma das últimas, percebeu Leigh, com certo alívio.

Estava cansada, muito cansada. Havia um persistente e doloroso latejar

em seu peito,



outro nas têmporas.







Agora estou ótima.







Oh, ainda bem, ainda bem!






Arnie se movia indecisamente, como se quisesse ir, mas sem certeza

de que o momento era apropriado; talvez ainda não, pelo menos até que

repetisse a pergunta que agora parecia eterna. Es

tavam parados diante da

casa dos Cabot. Retângulos de luz amarelada se filtravam das janelas e

jaziam perfeitos sobre a neve recente e sem marcas. Christine fora

estacionada junto ao meio

-

fio, com as luzes de sinalização acesas.







Você me assustou, quando

desmaiou daquele jeito





disse Arnie.







Não desmaiei... Apenas fiquei tonta por alguns minutos.







Mesmo assim, fiquei assustado. Eu te amo, você sabe. Ela o fitou

com ar grave.







Ama mesmo?







É claro que amo! Leigh, você sabe que te amo!



Ela respirou fundo

. Estava fatigada, mas aquilo tinha que ser dito e

dito nesse momento. Porque, se não falasse agora, o que havia acontecido

pareceria absolutamente ridículo na manhã seguinte





talvez mais do que

ridículo



, a idéia teria um toque de pura loucura. Um fedor



que ia e

vinha, como o de um "bolor fétido" em uma história gótica de horror?

Instrumentos no painel que se transformavam em olhos? E, acima de tudo,

a insana sensação de que o carro realmente tentara matá

-

la?



Na manhã seguinte, até mesmo o fato de que qu

ase morrera

engasgada não passaria de uma vaga dor no peito e a convicção de que

aquilo não fora nada, realmente, que não oferecera perigo de vida.



Exceto que tudo era verdade, e Arnie sabia disso





sim, parte dele

sabia





e tinha que ser dito agora.







Sim

, acredito que me ame





disse ela, lentamente. Olhou para ele

com firmeza.





Só que não vou mais a parte alguma com você nesse carro.

E, se me ama de verdade, terá que se livrar dele.



A expressão de choque no rosto de Arnie foi tão intensa e repentina

como



se ela o tivesse esbofeteado.







De que... de que está falando, Leigh?



Aquela expressão de levar uma bofetada seria causada pelo choque?

Ou parte dela proviria de culpa?










Você ouviu o que eu disse. Não acredito que se livre do carro,

nem sei se isso seria



mais possível pra você, mas se quiser me levar a

algum lugar, Arnie, iremos de ônibus. Ou pegaremos carona. Ou

voaremos. O fato é que nunca mais andarei em seu carro. É uma

armadilha mortal.



Pronto. Tinha dito, saíra de sua boca.



Agora, o choque no rosto

dele transformava

-

se em raiva





a espécie

de raiva cega e obstinada que Leigh vira em seu rosto tantas vezes

ultimamente. Uma raiva não somente devido a coisas grandes, mas

também a pequenas: uma mulher atravessando a rua com o sinal de

trânsito amarelo, u

m guarda que detinha o tráfego pouco antes da vez de

ele passar. E a sensação que agora provocava em Leigh tinha o poder de

uma revelação





a de que a raiva de Arnie, corrosiva e tão inadequada ao

restante de sua personalidade, estava sempre associada ao c

arro. A

Christine.







Se você me ama, terá que se livrar dele





repetiu Arnie.





Sabe

com quem você se parece?







Não, Arnie.







Com minha mãe. Ela vive dizendo isso.







Sinto muito.



Ela não ia retirar o que dissera, e muito menos se defenderia com

palavras ou



encerraria aquilo, simplesmente entrando em casa. Talvez

fosse capaz disso, se não sentisse algo por ele. Suas impressões iniciais





de que por trás do quieto acanhamento de Arnie Cunningham ele era bom,

decente e delicado (talvez até mesmo

sexy)





não ha

viam mudado muito.

Era aquele carro, tudo se resumia nisso. Ali estava a mudança. Era como

testemunhar uma forte mente sendo lentamente suplantada pela

influência de alguma maligna e corrosiva droga de dependência.



Arnie passou as mãos através dos cabelos

polvilhados de neve, um

gesto característico de perplexidade e raiva.







Está bem, você quase morreu engasgada no carro. Posso

compreender que não se sinta muito bem com relação a ele. Entretanto, foi

o hambúrguer,

Leigh, isso é tudo. Ou, talvez, nem mesmo

isso. Podia ser

que você estivesse tentando falar enquanto mastigava ou respirasse

justamente no segundo errado, alguma coisa assim. Poderia até acusar




Ronald McDonald. As pessoas se engasgam com sua comida de vez em

quando, nada mais. Às vezes, morrem. Vo

cê não morreu. Graças a Deus

por não ter morrido. Mas quanto a responsabilizar meu carro...!



Sim, tudo soava perfeitamente plausível. E

era

plausível. Exceto que

havia algo, por trás dos olhos cinzentos de Arnie. Um algo frenético, que

não era precisamente



uma mentira, mas... racionalização? Um desvio

ansioso da verdade?







Arnie





disse ela



, estou cansada, meu peito dói e estou

morrendo de dor de cabeça. Creio que só tenho forças para dizer isso uma

vez apenas. Você quer ouvir?







Se for sobre Christine, e

stá gastando seu tempo





disse ele, e

aquela expressão obstinada, inflexível, estava novamente em seu rosto.





É loucura culpá

-

la e sabe bem disso.







Sim, eu sei que é loucura, como sei que estou gastando meu

tempo





replicou Leigh.





Mas mesmo assim, esto

u pedindo pra você

me ouvir.







Pois bem, estou ouvindo.



Ela respirou fundo, ignorando a tensão no peito. Olhou para

Christine, deixando escapar uma fita de vapor branco na neve espessa que

caía, depois desviou os olhos apressadamente. Agora, eram as luzes

de

sinalização que se assemelhavam a olhos: os olhos amarelos de um lince.







Quando me engasguei... quando estava sufocando... o painel de

instrumentos... as luzes dele mudaram. Elas

mudaram.

Eram... não, não

vou chegar a tanto, mas

pareciam olhos.



Ele riu

, um latido curto no ar frio. Na casa, uma cortina foi puxada

de lado, alguém espiou para fora e a cortina voltou ao lugar.







Se aquele carona... aquele tal Gottfried... se ele não estivesse lá, eu

teria morrido, Arnie. Eu teria

morrido.





Leigh perscrutou



os olhos dele e

decidiu

-

se.

Uma vez apenas,

disse para si mesma.

Só preciso dizer isto uma

vez.





Você me disse que trabalhou na cantina do ginásio de Libertyville,

durante três anos. Eu vi o pôster da Manobra Heimlich pregado à porta da

cozinha. Você tam

bém deve ter visto. No entanto, não o aplicou em mim,

Arnie. Estava muito disposto a bater nas minhas costas, mas isso não

funciona. Tive um emprego em um restaurante, em Massachusetts, e a




primeira coisa que nos ensinam, antes mesmo de ensinarem a Manobra



Heimlich, é que

bater nas costas de uma vítima engasgada não funciona.







De que está falando?





perguntou ele, em voz baixa, quase sem

fôlego.



Leigh não respondeu, apenas olhou para ele. Arnie sustentou

-

lhe o

olhar por somente um momento, porque então seu

s olhos





enfurecidos,

confusos, quase acossados





se desviaram dos dela.







A gente esquece coisas, Leigh. Tem razão, eu deveria ter aplicado

a Manobra. Entretanto, se também fez o curso, sabe que pode aplicá

-

la em

si mesma.





Ele entrelaçou as mãos, forma

ndo um todo, com um polegar

para fora, o qual pressionou no diafragma, como demonstração.





Apenas, na tensão do momento, a gente esquece...







Sim, a gente esquece. E você parece esquecer de muita coisa,

quando está nesse carro. Como, por exemplo, de ser A

rnie Cunningham.



Arnie meneava a cabeça.







Você precisa de tempo para refletir no que está dizendo, Leigh.

Precisa de...







Tempo é precisamente algo de que não preciso!





exclamou ela,

com um vigor, que chegara a duvidar que ainda possuía.





Nunca tive

uma



experiência sobrenatural na vida, nem mesmo

acreditava nessas coisas,

mas agora me pergunto apenas o que está acontecendo, o que há com você.

Aquelas luzes pareciam olhos,

Arnie. E mais tarde... depois de tudo... havia

um cheiro. Um cheiro horrível de pod

re.



Arnie encolheu

-

se.







Você sabe do que estou falando.







Não. Não faço a mínima idéia.







Pois você se encolheu de repente, como se o diabo tivesse puxado

sua orelha.







Está imaginando coisas, Leigh





disse ele caloroso.





Um

bocado de coisas.







Aquele ch

eiro estava lá. E há também outras coisas. Às vezes, seu

rádio só pega aquelas estações de músicas antigas...






Outra cintilação nos olhos dele e uma ligeira torção no canto

esquerdo da boca.







E algumas vezes, quando estamos nos entendendo bem, o rádio

só e

mite estática, como se não gostasse do que acontece.

Como se o carro

não gostasse, Arnie.







Você está perturbada





disse ele, com sinistra determinação.







Sim,

estou

perturbada





respondeu Leigh, começando a

chorar.





Você

não está?





As lágrimas lhe escor

reram lentamente pelas

faces.





Penso que isto é o fim para nós, Arnie; eu amei você, mas acho

que

acabou. Acredito realmente que tenha acabado, e isso me deixa tão triste, tão

magoada...

Seu relacionamento com seus pais transformou

-

se em um...

campo de ba

talha, com você viajando para Nova York e Vermont, Deus

sabe com que finalidade, a mando de Will Darnell, aquele porco gordo e

esse carro... esse carro...



Ela não conseguiu dizer mais. Sua voz extinguiu

-

se. Deixou os

embrulhos caírem e abaixou

-

se às cegas

para recolhê

-

los. Exausta e

chorando, só conseguiu espalhá

-

los ainda mais. Arnie abaixou

-

se para

ajudá

-

la e Leigh o empurrou com rudeza.







Deixe meus embrulhos em paz! Eu mesma apanho!



Ele se ergueu, com o rosto pálido e tenso. Tinha uma expressão de

pura

fúria, mas os olhos... oh, para Leigh, seus olhos pareciam perdidos.







Está bem





disse ele, a voz enrouquecida agora por suas

próprias lágrimas.





Muito bem! Junte

-

se a todos eles, se quiser. Pode

ficar com todos eles, os outros bostas. Quem se importa?



A

rnie deixou escapar uma respiração trêmula e um soluço solitário

lhe brotou da garganta, antes que pudesse fechar a boca brutalmente, com

a mão enluvada.



Começou a caminhar de volta ao carro; avançava cegamente para o

Plymouth, e Christine estava lá.







Fiq

ue com eles, porque você está louca! Fora de si! Então, vá e

façam seus jogos! Não preciso de vocês! Não preciso de

nenhum

de vocês!



Sua voz se elevou a um grito agudo, em diabólica harmonia com o

vento:







Não preciso de vocês, portanto, fodam

-

se!






Apressou

-

se para o lado do motorista, seus pés deslizaram e ele

estendeu a mão, buscando apoio em Christine. Ela estava lá e não o

deixou cair. Arnie entrou no carro, acelerou, os faróis dianteiros

acenderam

-

se em intenso clarão branco, e o Fury afastou

-

se do meio

-

fio,

os pneus traseiros derrapando em uma névoa de neve.



Agora, as lágrimas vinham rápidas e firmes, enquanto ela ficava

espiando as luzes traseiras se distanciarem, tornando

-

se pontos vermelhos

e piscando, quando o carro dobrou a esquina. Seus embrulhos

jaziam

espalhados no chão.



Então, de repente, sua mãe estava ali, absurdamente vestida em uma

capa de chuva aberta, com botas de borracha verdes e a camisola de

flanela azul.







O que há de errado, meu bem?







Nada





soluçou Leigh.



Quase morri engasgada, sen

ti o cheiro de algo que podia ter vindo de uma

sepultura recentemente aberta e acho que... sim, acho que, de certa forma, aquele

carro está vivo... mais vivo a cada dia. Acho que ele é como alguma espécie de

horrível vampiro, um vampiro que está se aliment

ando da mente de Arnie. De sua

mente e de seu espírito.







Nada, não houve nada de errado. Tive uma discussão com Arnie,

foi só. Quer me ajudar a pegar minhas coisas?



As duas recolheram os embrulhos de Leigh e entraram. A porta

fechou atrás delas e a noite

pertenceu ao vento, à neve que caía

rapidamente. Pela manhã, haveria uma camada de mais de vinte

centímetros.





Arnie ficou rodando em seu carro, até pouco depois da meia

-

noite.

Depois disso, não teve lembrança do que fez. A neve enchera as ruas,

agora dese

rtas e fantasmagóricas. Não era uma noite para o grande carro

americano. Não obstante, Christine se movia através da crescente

tempestade com surpreendente facilidade e firmeza, sem ao menos estar

com pneus para neve. De vez em quando, a sombra pré

-

históri

ca de um

removedor de neve surgia na bruma e logo desaparecia.






O rádio estava ligado. Só dava a WDIL, em todo o dial. Irradiava o

noticiário. Eisenhower predissera, na convenção AFL/CIO

*

, um futuro de

trabalho e administração marchando harmoniosamente par

a um porvir

conjunto. Dave Beck negara que o Sindicato dos Motoristas de Caminhão

fosse uma fachada para negócios escusos. Eddie Cochran, o cantor de

rock,

perdera a vida em um acidente automobilístico, quando seguia para o

Aeroporto Heatrow, de Londres; u

ma cirurgia de emergência durante três

horas, não conseguira salvar

-

lhe a vida. Os russos trombeteavam seus

ICBM, os mísseis balísticos intercontinentais. A estação WDIL tocava

músicas antigas durante toda a semana, mas eles se mostravam realmente

dedicado

s nos fins de semana. Poxa, noticiário dos anos 50! Aquilo era



(nunca ouvi nada igual antes)

realmente uma idéia e tanto. Era

(totalmente insano)

uma idéia e tanto, sim, senhor!



A meteorologia prometia mais neve.



Em seguida, música novamente: Bobby Darin c

antando "

Splish

-

Splash",

Ernie K

-

Doe cantando "

Mother in Law",

os gêmeos Kalin cantando

"When".

Os limpadores de pára

-

brisa marcavam o ritmo.



Arnie olhou para sua direita, e lá estava Roland D. LeBay, como

passageiro forçado.



Roland D. LeBay, com suas calç

as verdes e uma desbotada camisa

de sarja do Exército, espiando através das órbitas escuras. Um besouro,

ataviado, dentro de outro.



Você tem de fazê

-

los pagar,

disse Roland D. Lebay.

Tem de fazer esses

bostas pagarem, Cunningham. Cada um dos fodidos bostas

!







Certo





sussurrou Arnie. Christine cantarolava através da noite,

rompendo a neve com rodas firmes, seguras.





Tem razão.



E os limpadores de pára

-

brisa assentiram, para diante e para trás, de

um lado para outro.





                                        

             



*



* Federação Americana do Trabalho e Congresso das Organizações Industriais (N.T.)






A

GORA

,



E

STE

B

REVE

I

NTERLÚDIO



Rode para o



México naquele velho Chrysler, rapaz.



-



Z. Z. Top





No Gin

ásio de Libertyville, o treinador Puffer havia sido substituído

pelo treinador Jones e o futebol dera lugar ao basquete. Entretanto, nada

mudara realmente: os cestinhas não se saíam muito melhor do

que os

artilheiros de futebol do ginásio





o único que sobressaía era Lenny

Barongg, um craque em três esportes, sendo o basquete o principal deles.

Lenny persistia obstinadamente, conseguindo a marca vitoriosa que lhe

era necessária se quisesse obter a bo

lsa de estudos para atletismo em

Marquette pela qual vinha batalhando.



Sandy Galton sumiu da cidade de repente. Um dia estava l

á, no

outro sumira. Sua mãe, uma bêbada contumaz de quarenta e cinco anos,

que não parecia ter menos do que sessenta, não ficou m

uito preocupada.

O mesmo sucedeu ao irmão mais novo de Sandy, que tomava mais droga

do que qualquer outro garoto do Ginásio Gornick. No Ginásio de

Libertyville corria o romântico boato de que ele se mandara para o México.

Havia outro boato também, este men

os romântico: que Buddy Repperton

envolvera Sandy em alguma coisa, de maneira que ele decidira ser mais

seguro sair de circulação.



Os feriados do Natal aproximavam

-

se e o ambiente escolar ficou

mais inquieto e ruidoso, como sempre acontecia, antes de uma f

olga mais

demorada. A maior parte do corpo estudantil recebia seu costumeiro

diploma pr

é

-

natalino. Apreciações de livros eram entregues com atraso e,

freqüentemente, apresentando uma suspeita semelhança com o escrito na

sobrecapa dos mesmos (afinal, quanto

s estudantes veteranos de inglês

estarão aptos para avaliar O

Apanhador no Campo de Centeio,

"este candente

clássico da adolescência pós

-

guerra"?). Os projetos de aulas eram deixados

pela metade ou nem eram feitos, a porcentagem dos períodos de castigo

por



beijar e namorar nos corredores subia às alturas, enquanto as sessões

de maconha aumentavam, quando os alunos do Ginásio de Libertyville se

entregavam a uma leve diversãozinha pré

-

natalina. Assim, boa parte dos

estudantes estava alta; era alta a ausência

de professores, como também

estavam no alto as decorações de Natal pelos corredores e salas de aula.






Leigh Cabot n

ão estava por cima. Falhara em um exame pela

primeira vez, em sua carreira de ginasiana, recebendo um D em uma

prova de datilografia. Ela não

conseguia estudar, sua mente divagava até

Christine, vezes sem conta





até o verde painel de instrumentos que se

tornara odioso, até aqueles reluzentes olhos

-

de

-

gato que a viam morrer

sufocada.



De um modo geral, no entanto, a

última semana de aulas antes d

os

feriados de Natal era um período bem

-

humorado, quando eram

perdoadas infrações que mereciam punição em outra época, quan

do

professores durões às vezes até davam uma ajudazinha na prova em que

todos se tinham saído mal, quando garotas que haviam sido in

imigas

ferrenhas faziam as pazes e quando rapazes que repetidamente se

envolviam em brigas, por insultos reais ou imaginários, faziam o mesmo.

O mais indicativo da brandura do ambiente, no entanto, talvez fosse

simplesmente o fato de que a Srta. Saco

-

de

-

Ra

tos, a Medusa da Sala de

Estudos 23, fosse vista sorrindo... não apenas uma, porém várias vezes.



No hospital, Dennis Guilder estava moderadamente animado





trocara os gessos de tração que o prendiam ao leito por outros que lhe

permitiam caminhar. A fisiote

rapia não significava mais a tortura que

havia sido. Perambulava oscilante por corredores ostentando fieiras de

ouropel e enfeitados com figuras natalinas, as muletas fazendo ecoar um

ruído surdo ao longo da caminhada, às vezes em compasso com as alegres

c

anções de Natal, irradiadas pelos alto

-

falantes suspensos.



Era uma

caesura,

uma tr

égua de bonança, um interlúdio, um período

de calmaria. Durante seus aparentemente intermináveis passeios pelos

corredores, para baixo e para cima, Dennis refletia que as coi

sas podiam

ter sido piores





muito, muito piores.



E, em muito breve, elas o seriam.





B

UDDY E

C

HRISTINE



Bem, lá está ele na distância



E vem arremetendo contra mim



Não sei como resistir






E nada poderá livrar

-

me.



Até um homem cego de um olho poderia ver



Que al

go ruim acontecerá comigo...



The Inmates





Na ter

ça

-

feira, 12 de dezembro, os Terriers perderam de 54 a 48 para

os Bucaneiros, no ginásio de Libertyville. Em sua maioria, os torcedores

saíram para o imóvel negror da noite não muito decepcionados: cada

croni

sta esportivo da área de Pittsburg previra outra derrota para os

Terriers. O resultado mal poderia ser encarado como um transtorno. Além

disso, havia Lenny Barongg, para orgulho da torcida dos Terriers:

conseguira marcar, sozinho, 34 pontos fantásticos, es

tabelecendo um novo

recorde para a escola.



Buddy Repperton, contudo,

estava

decepcionado.



Por causa disto, Richie Trelawney tamb

ém fazia o possível para

demonstrar sua decepção. O mesmo acontecia a Bobby Stanton, no banco

traseiro.



Nos poucos meses ap

ós su

a expulsão do ginásio, Buddy parecia ter

envelhecido. Parte disso ficava por conta da barba. Ele agora se

assemelhava menos a Clint Eastwood e mais a algum inveterado bebedor

e jovem ator, uma versão do Capitão Ahab. Nas últimas semanas, Buddy

andara beben

do demais. E sonhava coisas tão terríveis, que mal podia

recordar. Despertava suado e trêmulo, com a sensação de ter escapado por

pouco de algo horrendo, algo sombrio, que se movia silenciosamente.



N

ão obstante, a bebida acabara com aquilo. Cortara os sonh

os

certeiramente, pelos malditos joelhos. Com infernal precisão. Tudo aquilo

acontecia porque trabalhava à noite e dormia de dia.



Ele baixou o vidro da janela de seu maltratado e amassado Camaro,

varando o ar frio, e jogou fora uma garrafa vazia. Virando

-

s

e por sobre o

ombro, disse:







Outro coquetel Molotov, cavalheiros.







É pra já, Buddy





disse Bobby Stanton respeitosamente,

passando outra garrafa de Texas Driver para a mão de Buddy.






Buddy os obsequiara com uma caixa da beberagem





suficiente

para paralis

ar toda a Marinha egípcia, dissera ele





depois do jogo. Ele

arrancou a tampa, dirigindo momentaneamente com os cotovelos, e em

seguida bebeu metade da garrafa. Estendeu

-

se a Richie, deixando escapar

um longo e sonoro arroto. Os faróis do Camaro iluminaram



a Rota 46, que

seguia para noroeste tão reta como um barbante, através da Pensilvânia

rural. Campos cobertos de neve jaziam sonhadoramente a cada lado da

estrada, cintilando em um bilhão de pontos de luz, que arremedavam as

estrelas no negro céu invernal.



Ele se encaminhava





de um modo um

tanto casual e meio bêbado





para as Squantic Hills. Nesse ínterim,

poderia escolher qualquer outro destino, mas não o fazendo, as

montanhas eram um lugar excelente e reservado para ficarem altos

tranqüilamente.



Richie d

evolveu a garrafa a Bobby, que tomou um bom gole, embora

detestasse o sabor de Texas Driver. Acreditava que, quando ficasse um

pouco mais embriagado, estaria pouco ligando para o gosto da beberagem.

Poderia ficar de ressaca e vomitar tudo no dia seguinte,

mas o amanh

ã

estava a mil anos de distância. Bobby ficava entusiasmado apenas por

estar na companhia deles; era somente um calouro, ao passo que Buddy

Repperton, com sua fama quase mística de arrogância e maldade, era uma

figura que ele encarava com uma mi

stura de medo e respeito.







Palhaços fodidos





disse Buddy com voz pastosa.





Que

cambada de palhaços fodidos! Vocês chamam àquilo de jogo de basquete?







São todos uma cambada de retardados





concordou Richie.





Menos o Barongg. Trinta e quatro pontos! Não



é para qualquer um!







Não vou com a cara daquele crioulo





disse Buddy, envolvendo

Richie em um longo e calculista olhar embriagado.





Está querendo se

juntar ao bando?







Claro que não, Buddy





disse Richie prontamente.







Ainda bem.







O que vai querer pri

meiro?





perguntou Bobby repentinamente,

no banco traseiro.





As boas ou as más notícias?







Primeiro as más





disse Buddy. Estava em sua terceira garrafa

de Driver e não sentia qualquer dor, somente uma raiva aflitiva. Havia

esquecido, pelo menos no moment

o, que tinha sido expulso do colégio.




Concentrava

-

se apenas no fato de que a velha equipe da escola, aquela

cambada de fodidos cretinos retardados o decepcionara.





Sempre as más

primeiro.



O Camaro rodava para noroeste a mais de cem por hora, na fita

asfal

tada de duas faixas, que era como um risco de tinta preta através de

um enladeirado piso branco. O terreno começava a elevar

-

se ligeiramente,

à medida que se aproximavam das Squantic Hills.







Bem, as más novas são que um milhão de marcianos acabaram de

ate

rrissar em Nova Iorque





disse Bobby.





Agora, quer ouvir as boas?







Não tem boas notícias





disse Buddy, em voz lenta e pesarosa.



Richie gostaria de dizer ao garoto que não devia tentar alegrar

Buddy, quando ele estava em semelhante estado de ânimo, porqu

e isso só

piorava a situação. O melhor a fazer era deixar que as coisas seguissem

seu curso natural.



Buddy andava assim desde que "Penetra" Welch, aquele imbecil

quatro

-

olhos caipira fora atropelado por algum psicopata, na Drive, JFK.







As boas notícias sã

o que eles comem negros e mijam gasolina





disse Bobby, explodindo em uma gargalhada.



Riu durante algum tempo, antes de perceber que ninguém lhe fazia

coro. Então, calou

-

se subitamente. Erguendo o rosto, viu os olhos

injetados de Buddy espiando

-

o, acima da



barba anelada. Aquele olhar

avermelhado e perscrutador, flutuando no espelho retrovisor, provocou

-

lhe um desagradável calafrio de medo. Ocorreu

-

lhe, então, que talvez se

tivesse calado um ou dois minutos atrasado.



Atrás deles, dois faróis piscavam a uma d

istância de uns cinco

quilômetros, parecendo insignificantes fagulhas amarelas na noite.







Acha isso engraçado?





perguntou Buddy.





Solta uma maldita

piada racista como essa e acha

engraçado?

Sabia que você é um babaca

preconceituoso?



Bobby ficou de boca

aberta.







Bem, mas você disse...







Eu disse que não topo

Barongg.

De um modo geral, acho que os

crioulos são tão bons quanto os brancos.






Buddy considerou a idéia.







Bem, quase tão bons.







Mas...







Vigie sua língua ou vai voltar andando para casa





grunhiu

Buddy.





Com uma fratura. Depois vai poder escrever EU ODEIO

NEGROS em seus fundilhos.







Oh!





sussurrou Bobby, com voz assustada. Era como estender o

braço para acender uma lâmpada e receber a chicotada de um choque

elétrico.





Sinto muito.







Me dê essa g

arrafa e feche a matraca.



Bobby estendeu

-

lhe alegremente a garrafa de Driver. Sua mão

tremia.



Buddy acabou com a bebida. Passaram por uma placa de sinalização:

PARQUE ESTADUAL SQUANTIC HILLS





5 KM. O lago do centro do

parque estadual era como uma zona de

praia muito procurada no verão,

mas o parque ficava fechado de novembro a abril. A estrada que

serpenteava através do parque até o Lago Squantic, no entanto, era

mantida em conservação por manobras periódicas da Guarda Nacional e

acampamentos dos Escoteiro

s Exploradores, mas Buddy descobrira uma

entrada lateral que contornava o portão principal e depois se unia à

estrada do parque. Ele gostava de penetrar no silencioso e invernoso

parque estadual, para rodar com seu carro e beber.



Atrás deles, as fagulhas g

êmeas na distância tinham aumentado

para círculos





dois faróis dianteiros, a uns dois quilômetros dali.







Mande outro coquetel Molotov, seu porco racista ordinário.



Bobby estendeu

-

lhe uma garrafa cheia e permaneceu

prudentemente calado. Buddy virou fundo,



arrotou e depois passou a

garrafa para Richie.







Não, obrigado, cara.







Vai beber ou pode se ver tomando um clister com ela.







Certo, cara





disse Richie, desejando ardentemente ter ficado em

casa naquela noite. Bebeu, enquanto o Camaro continuava corrend

o, seus

faróis varando a noite.






Buddy olhou pelo retrovisor e avistou o outro carro, que agora se

aproximava depressa. Uma espiada no velocímetro disse

-

lhe que estava a

cento e poucos. O carro mais atrás devia estar perto dos cento e dez.

Buddy sentiu algo







uma curiosa espécie de reviver os sonhos que não

conseguia recordar inteiramente. Um dedo gelado parecia pressionar seu

coração de leve.



À frente deles, a estrada se bifurcava, a Rota

46

seguindo para leste,

em direção a New Stanton, a outra estrada ind

o para o Parque Estadual

Squantic Hills. Um enorme aviso laranja alertava: FECHADA NOS

MESES DE INVERNO.



Quase sem diminuir a velocidade, ele guinchou para a esquerda e

disparou para o alto da montanha. A estrada que ia para o parque não

estava tão bem con

servada, e árvores frondosas tinham impedido que o

sol quente da tarde derretesse a neve que a cobria. O Camaro derrapou

ligeiramente, antes de ganhar a estrada de novo. No assento traseiro,

Bobby Stanton deixou escapar um som baixo e inquieto.



Buddy ergue

u os olhos para o retrovisor, esperando ver o outro

carro continuar pela 46





para a maioria dos motoristas, afinal, a estrada

para a qual ele se desviara era apenas um beco sem saída





mas, em vez

disso, o carro na traseira passou para o desvio ainda mais



depressa do que

ele e agora vinha não muito distante, a menos de cento e cinqüenta metros.

Seus faróis eram quatro cintilantes círculos brancos, que iluminavam em

cheio o interior do Camaro.



Bobby e Richie se viraram para olhar.







Quem será esse merda?





murmurou Richie.



Buddy sabia. De repente, ficou sabendo. Era o carro que atropelara

"Penetra". Oh, sim, era ele. O psicopata que abotoara "Penetra" estava

atrás do volante daquele carro





e agora estava atrás dele, Buddy.



Pisou fundo no acelerador e o Cama

ro começou a voar. A agulha do

velocímetro subiu para cento e dez, movendo

-

se gradualmente para perto

de cento e vinte e cinco. As árvores passavam por eles como borrões,

escuros garranchos na noite. As luzes atrás deles não se atrasaram; na

verdade, até g

anhavam em velocidade. Os faróis duplos se fundiram em

dois enormes olhos brancos.










Cara, quer diminuir um pouco?





pediu Richie. Estendeu a mão

para seu cinto de segurança, agora francamente amedrontado.





Se

continuarmos nessa velocidade...



Buddy não re

spondeu. Inclinou

-

se sobre o volante, alternando

olhares para a estrada à frente com outros para o espelho retrovisor, onde

aquelas luzes continuavam crescendo.







A estrada faz uma curva mais adiante





disse Bobby, em voz

rouca. E a curva se aproximou, os

guardrails

refletindo em cromados à luz

dos faróis do Camaro. Ele gritou:





Buddy! Olhe a curva! Olhe a curva!



Buddy diminuiu a marcha e o motor do Camaro roncou seu protesto.

A agulha do tacômetro marcou 6.000 rotações por minuto, dançou

brevemente na lin

ha vermelha de 7.000 e depois caiu para um nível mais

normal. Os canos retos de descarga do Camaro pipocaram como fogo de

metralhadora. Buddy girou o volante e o carro flutuou para a margem

escarpada. As rodas traseiras deslizaram pela superfície de neve d

ura. No

último instante possível, Buddy o desviou de volta, pisando firme no

acelerador e deixando o corpo balançar livremente, enquanto a roda

traseira esquerda do Camaro se chocava contra o banco de gelo, nele

escavando um buraco de neve revolvida do tam

anho de um caixão, antes

de saltar fora. O carro patinou para o outro lado. Buddy seguiu seu

movimento, em seguida tornando a pisar no acelerador. Por um instante,

pensou que o carro não responderia, que continuaria patinando e

simplesmente ficariam derrap

ando estrada acima, a cento e vinte por hora,

até chegarem a um trecho nu, onde capotariam.



O Camaro, no entanto, conseguiu equilibrar

-

se.







Deus do céu, diminua!





uivou Richie.



Buddy debruçou

-

se sobre o volante, careteando por entre a barba,

arregalados

os olhos injetados. A garrafa de Driver estava presa entre suas

pernas.

Vamos! Vamos, seu assassino louco filho da mãe! Vamos ver se consegue

fazer o mesmo, sem capotar!



Um momento mais tarde, os faróis reapareceram, mais perto do que

nunca. O riso caretea

do de Buddy vacilou e desapareceu. Pela primeira

vez, sentiu um doentio formigamento subindo pelas pernas até as virilhas.

Medo





medo de verdade





o envolveu por completo.






Bobby ficara olhando para trás, quando o carro atrás deles fazia a

curva, depois se



virou para diante, o rosto atônito, incrédulo.







Ele nem mesmo derrapou





disse.





É impossível! Isso é...







Quem será, Buddy?





perguntou Richie.



Estendeu o braço para tocar o cotovelo de Buddy, e sua mão foi

empurrada com tal força que os nós dos dedos

se chocaram contra sua

janela.







Não vai querer me tocar





sussurrou Buddy. A estrada se

desenrolava reta à frente dele, não de asfalto escuro, mas branca pela neve

compacta e traiçoeira. O Camaro rodava sobre tal superfície escorregadia

a uns cento e quar

enta por hora. Entre as margens que chegavam à altura

do peito, eram visíveis apenas seu teto e a bola alaranjada de pingue

-

pongue, espetada no topo da antena do rádio.





Não vai querer me tocar,

Richie. Não a esta velocidade!







Será que ele é...





a voz d

e Richie vacilou e ele não pôde

continuar.



Buddy concedeu

-

lhe um olhar. O terror de Richie lhe subiu à

garganta, quente e viscoso como óleo, ao ver o medo nos pequeninos

olhos avermelhados do companheiro.







Sim





respondeu Buddy.





Acho que é.



Ali em cima

não havia casas; já se achavam em propriedades do

Estado. Nada ali em cima, exceto as altas margens nevadas e o escuro

entrelaçamento das árvores.







Ele vai bater na gente!





guinchou Bobby, no assento traseiro.

Sua voz era estridente como a de uma velha.

Entre seus pés, as garrafas

remanescentes de Texas Driver chocalharam furiosamente em sua caixa de

papelão.





Buddy! Ele vai bater na gente!



O carro atrás deles chegara a uns dois metros do pára

-

choque

traseiro do Camaro; este era inundado pelos faróis alt

os do outro com

uma luz tão potente que seria possível ler

-

se as menores letras impressas

em um jornal. Pouco depois, houve um baque surdo.



O Camaro ziguezagueou na estrada, enquanto o outro carro ficava

ligeiramente para trás. Buddy teve a sensação de que



flutuavam

repentinamente e soube que estavam por um fio de uma terrível




derrapagem, a frente e a traseira deslizando com rapidez pela superfície,

até se chocarem contra algo e capotarem.



Uma gota de suor, quente e ardente como uma lágrima, resvalou

para d

entro de um olho.



Pouco a pouco, o Camaro voltou a equilibrar

-

se.



Quando sentiu que recuperara o controle, Buddy deixou o pé direito

comprimir maciamente o acelerador, até o fundo. Se era Cunningham,

naquela banheira enferrujada 58





Ah! Aquilo não fizera

parte dos

sonhos de que mal conseguia lembrar

-

se?





o Camaro o fecharia.



O motor agora trovejava. A agulha do tacômetro voltara a beirar a

linha vermelha, em 7.000 rotações por minuto. O velocímetro passara a

marca dos cento e sessenta e as margens geladas



e altas da estrada

desfilavam por eles em fantasmagórico silêncio. A estrada à frente

assemelhava

-

se à tomada de um filme em ponto de vista que fora

insanamente acelerado.







Oh, meu Deus





balbuciava Bobby



, oh, meu Deus, por favor,

não deixe que eu morr

a, oh, meu Deus, por favor...



Ele não estava lá na noite que arrebentamos o carro do Cara de Cona,

pensou Buddy.

Ele nem mesmo sabia o que estava acontecendo. Pobre filho da

mãe, sem sorte.

Ele não lamentava realmente por Bobby, mas se lhe fosse

possível t

er pena de alguém, seria daquele pobre calouro com merda na

cabeça. À sua direita, Richie Trelawney sentava

-

se rígido e pálido como

uma lousa de sepultura, os olhos ressaltando

-

se no rosto. Richie sabia bem

do que se tratava.



O carro murmurou atrás e para

eles, os faróis crescendo no espelho

retrovisor.



Ele não pode estar ganhando!,

gritou a mente de Buddy.

Não pode!

No

entanto, o carro atrás dele ganhava velocidade e Buddy pressentiu que se

preparava para o ato final. Sua mente correu como um rato engaiola

do, à

procura de uma saída, sem que houvesse alguma. A fenda na margem

esquerda, coberta de neve, marcando a pequena estrada lateral que ele

geralmente usava para ultrapassar o portão e entrar no parque estadual já

estava à vista. No entanto, Buddy estava

com o tempo, espaço e opções

esgotados.






Houve outro baque macio e, novamente, o Camaro ziguezagueou





agora a uma velocidade acima de cento e setenta e cinco.

Não há esperança,

cara,

pensou Buddy, fatalisticamente. Tirou as duas mãos do volante e

agarrou s

eu cinto de segurança. Pela primeira vez na vida, Buddy o

colocou em torno da cintura.



Ao mesmo tempo, no assento traseiro, Bobby Stanton gritava, em

um guincho do mais puro pânico:







O portão, cara! Oh, meu Deus, Buddy, a casinholaaaaaaa...



O Camaro tinha



arrostado uma final e íngreme subida. O lado mais

distante serpenteava para um ponto em que a estrada se bifurcava,

formando a entrada e saída do parque estadual. Entre as duas vias,

levantava

-

se uma pequena casinhola de porteiro em uma ilha de

concreto





na época do verão, uma senhora permanecia ali, em uma

cadeira de campanha, cobrando um dólar de cada carro que entrava no

parque.



Agora, a casinhola era inundada de espectral claridade, quando os

dois carros desceram para ela, o Camaro encaminhando

-

se fir

memente

para a passagem, quando a derrapagem piorava.







Foda

-

se, Cara de Cona!





gritou ele.





Fodam

-

se! Você e o cavalo que

está montando!

Buddy torceu todo o volante, girando

-

o pela maçaneta

auxiliar que exibia um oscilante vermelho tinto em álcool.



Bobb

y tornou a gritar. Richie Trelawney aferrou o rosto com as

mãos e seu último pensamento na terra foi uma constante repetição de

Cuidado com vidro quebrado cuidado com vidro quebrado cuidado com vidro

quebrado...



O Camaro deu uma volta completa sobre si mes

mo, e agora os faróis

do carro que o seguia fulguraram diretamente neles, e Buddy começou a

gritar, porque era realmente o carro de Cara de Cona, seria impossível

enganar

-

se quanto àquela grade do radiador, ela parecia ter pelo menos

um quilômetro de compr

imento,

só que não havia ninguém ao volante. O

carro estava absolutamente vazio.



Nos últimos dois segundos antes do impacto, os faróis de Christine

se desviaram para o que agora era a esquerda do carro de Buddy. O Fury

disparou para a via de entrada, tão f

irme e certeiramente como uma bala

disparada de um rifle. Chocou

-

se contra a barreira de madeira e a enviou




girando e girando pela noite escura, os redondos refletores amarelos

cintilando no negror noturno.



O Camaro de Buddy Repperton bateu de traseira na

ilha de concreto

em que se levantava a casinhola do porteiro. A beirada de concreto, com

vinte centímetros, arrancou tudo que encontrou debaixo do carro,

deixando os torcidos destroços de canos de descarga e do silencioso sobre

a neve, como alguma curiosa

escultura. A traseira do Camaro primeiro

ficou encolhida como uma sanfona, para então ser demolida. Bobby

Stanton foi demolido juntamente com ela. Buddy mal tomou consciência

de algo batendo em suas costas, como um balde de água tépida. Era o

sangue de Bob

by Stanton.



O Camaro rodopiou no ar, como um estropiado projétil, em uma

confusão de fragmentos voadores e pisos estilhaçados, um farol ainda

brilhando maniacamente. Desenhou um sessenta e três completo, para

então cair com um baque estrondoso de vidros fr

agmentados a rolar sobre

si mesmo. A parte lateral se soltou e o motor deslizou para trás, em um

ângulo que esmagou Richie Trelawney, da cintura para baixo. Houve uma

repentina explosão de fogo, que brotou do tanque de gasolina arrebentado,

quando o Camaro



finalmente pousou no chão.



Buddy Repperton estava vivo. Havia sido cortado em várias partes

por vidros esvoaçantes





uma orelha fora decepada com precisão

cirúrgica, deixando um buraco vermelho no lado esquerdo da cabeça





e

uma perna estava quebrada, mas



ele continuava vivo. Seu cinto de

segurança o salvara. Manuseou o fecho e ele cedeu. O crepitar do fogo

assemelhava

-

se a papel sendo amassado. Ele pôde sentir o ardente calor.



Tentou abrir a porta mas emperrara.



Ofegando roucamente, atirou

-

se pelo espaço

vazio onde estivera o

vidro da janela...



... e lá estava Christine.



O Plymouth parara a uns quarenta metros de distância,

enfrentando

-

o no final de uma longa e deslizante marca de derrapagem. O

ruído do motor era como o lento ofegar de algum gigantesco ani

mal.



Buddy passou a língua pelos lábios. Algo em seu lado esquerdo

repuxava e apunhalava a cada respiração. Ali estava qualquer coisa

desarranjada também. Costelas.






O motor de Christine acelerava e diminuía; acelerava e diminuía.

Fracamente, como algo prov

indo de um pesadelo de lunático, Buddy

pôde ouvir Elvis Presley cantando

"Jailhouse Rock ".



Pontos laranja

-

rosados de luz na neve. O súbito e crescente crepitar

do fogo. Aquilo ia explodir. Ia...



Explodiu.

O tanque de gasolina do Camaro explodiu, com estro

ndoso

ruído. Buddy sentiu uma rude mão empurrá

-

lo pelas costas e voou pelos

ares, aterrissando na neve sobre seu lado ferido. Estava com o blusão em

fogo. Grunhiu e rolou sobre a neve para apagá

-

lo. Depois tentou ficar

sobre os joelhos. Atrás dele, o Camar

o era uma pira ardente na noite.



O motor de Christine agora acelerava e diminuía, acelerava e

diminuía, mais depressa, com maior urgência.



Buddy finalmente conseguiu ficar de gatinhas. Espiou para o

Plymouth de Cunningham, através das mechas suadas de cabe

lo que lhe

caíam sobre os olhos. O capô ficara ondulado, quando o carro investira

contra a barreira e, do radiador, pingava uma mistura de água e

anticongelante, que fumegava sobre a neve como a recente pegada de um

animal.



Buddy tornou a passar a língua p

elos lábios. Sentiu

-

os como a pele

estorricada de um lagarto. Suas costas estavam quentes, como se

estivessem sido razoavelmente queimadas pelo sol; podia sentir o cheiro

de roupa chamuscada mas, na imensidão de seu choque, não percebia que

tanto o blusão

como as duas camisas por baixo dele não existiam mais.







Escute





disse, mal percebendo que falava.





Ei, escute...



O motor de Christine rugiu, ao avançar para ele, a traseira rabeando,

quando os pneus dançavam sobre a neve pulverizada. O capô ondulante

er

a como uma bocarra em um gélido rosnado.



Buddy esperou, apoiado nas mãos e joelhos, resistindo ao

incontrolável desejo de rolar e fugir imediatamente, resistindo





o mais

que podia





ao pânico selvagem que destruía seu autocontrole. Ninguém

no carro. Uma p

essoa mais fantasista do que ele talvez enlouquecesse.



No último segundo possível, ele rolou para a esquerda, gritando

quando as extremidades estilhaçadas do osso na perna quebrada bateram

no chão. Sentiu algo como uma bala passar por ele a centímetros de

distância, houve o calor e a fumaça da descarga, cuspida em seu rosto por




um momento, e então a neve ficou vermelha, quando as lanternas

traseiras de Christine piscaram.



O Plymouth manobrou, derrapando, para voltar à carga.







Não!





gritou Buddy. A dor era



dilacerante no peito.





Não!

Não! N...!



Saltou, com cegos reflexos assumindo o controle e, desta vez, a bala

passou mais perto, arrancando couro de um sapato e deixando seu pé

esquerdo instantaneamente entorpecido. Ele se virou alucinadamente

sobre as mão

s e os joelhos, como um bebê de pouca idade. O sangue agora

lhe escapava da boca, de mistura ao muco que escorria livremente do

nariz; uma das costelas partidas penetrara em um pulmão. O sangue

corria pela face, brotando do buraco na cabeça, onde estivera

a orelha. O

ar congelado saía em jatos pelo nariz. A respiração era feita entre

sibilantes soluços.



Christine fez uma pausa.



Seu cano de descarga expeliu vapor branco; o motor latejava e

ronronava. O pára

-

brisa era um espaço negro e opaco. Atrás de Buddy,

os

remanescentes do Camaro expeliam chamas oleosas para o céu. Um vento

afiado como navalha as sacudia e abanava. Sentado no inferno do banco

traseiro, Bobby Stanton tinha a cabeça de lado, uma careta endurecida na

face que escurecia.



Está brincando comigo

,

pensou Buddy.

Brincando comigo, eis o que esse

carro está fazendo. De gato e rato.







Por favor!





cacarejou ele. Os faróis dianteiros piscavam,

transformando o sangue que lhe escorria pelo rosto e dos lados da boca

em um negror próprio de isento.





Por f

avor... eu... vou dizer a ele que

sinto muito... Ficarei diante dele sobre meus malditos joelhos e mãos, se é

isso o que quer... mas, por favor... por fa...



O motor rugiu. Christine saltou para ele, como antiga predestinação

de sombria era. Buddy gritou e

tornou a girar de lado. Desta vez, o pára

-

choque bateu em sua carne, quebrou sua outra perna e o jogou para a

frente da ribanceira, no lado da estrada do parque. Ele se chocou contra

ela e esparramou

-

se, como um frouxo saco de cereal.



Christine rodou de vo

lta para ele, mas Buddy entrevira uma chance,

uma escassa oportunidade. Começou a subir penosamente a rampa,




cavando na neve, com mãos nuas que já não possuíam qualquer sensação,

escavando com os pés, ignorando as tremendas pontadas de dor nas

pernas fratu

radas. Agora, sua respiração vinha em pequenos gritos,

enquanto os faróis ficavam mais brilhantes e aumentava o rugido do

motor; cada punhado de neve atirava a própria sombra negra e

deformada





e Buddy podia senti

-

lo, podia senti

-

lo atrás de si, como

algu

m horrível tigre devorador de homens...



Houve um rangido e um som metálico. Buddy gritou, quando um

de seus pés foi enterrado na neve pelo pára

-

choque de Christine.

Arrancou

-

o da neve, mas deixando o sapato nas profundezas do buraco.



Rindo, balbuciando e c

horando, Buddy chegou ao topo da rampa,

amontoada ali por algum limpa

-

neves da Guarda Nacional, dias antes.

Vacilou no pináculo, girou os braços para manter o equilíbrio e escapou

por pouco de rolar pela ribanceira.



Virou

-

se para encarar Christine. O Plymo

uth manobrara na estrada

e agora arremeda de novo, os pneus traseiros patinando, escavando a

neve. Bateu contra a rampa, uns trinta centímetros abaixo do ponto em

que Buddy se empoleirara, fazendo

-

o balançar e provocando uma

pequena avalancha de neve. O ch

oque emperrou mais o pára

-

choque, mas

Buddy não foi tocado. Christine deu marcha à ré de novo, através de uma

névoa de neve espumante, o motor agora parecendo rugir de frustrada

cólera.



Buddy gritou em triunfo e fez um gesto obsceno para o carro,

espetando



o dedo médio no ar.

Foda

-

se! Foda

-

se! Foda

-

se! Um

spray de

sangue e saliva voou de seus lábios. A cada arquejante respiração, a dor

parecia mergulhar mais fundo em seu lado esquerdo, entorpecente e

paralisante.



Christine rugiu para diante e tornou a colid

ir com o monte de neve.



Desta feita, uma boa porção da rampa, afrouxada pela primeira

arremetida do carro, começou a deslizar para baixo, sepultando o franzido

e rosnante focinho de Christine. Buddy quase veio abaixo também.

Salvou

-

se apenas ao deslocar

-

se



rapidamente para trás, deslizando sobre a

barriga, puxando

-

se com mãos que se cravavam na neve como garras

sangrentas. As pernas agora eram um agonizante sofrimento e ele ficou de

lado, arquejando como um peixe na praia.



Christine atacou novamente.










Saia



daqui!





gritou Buddy.





Vá embora,

maldita FILHA DA

PUTA!



Ela tornou a colidir contra o monte de neve, agora com força

suficiente para ficar com o capô coberto até o pára

-

brisa. Os limpadores

entraram em ação, formando arcos para trás e para diante, expu

lsando

neve derretida.



Christine tornou a dar marcha à ré, e Buddy percebeu que uma nova

investida o faria cascatear para o capô do carro, juntamente com a neve

derrubada. Deixou

-

se cair para trás do monte e foi rolando até o lado mais

distante da rampa, g

ritando a cada vez que suas costelas quebradas

batiam contra o solo. Parou finalmente sobre neve solta, olhando para o

céu escuro, as estrelas frias. Seus dentes começaram a castanholar.

Estremecimentos percorreram

-

lhe todo o corpo.



Christine não atacou no

vamente, mas ele podia ouvir o murmúrio

macio de sua máquina. Não atacava, mas esperava.



Buddy olhou para o monte de neve, avolumando

-

se contra o céu.

Um pouco além, o clarão do Camaro incendiado começara a diminuir um

pouco. Quanto tempo se passara, desde



a colisão? Ele não sabia. Seria

possível alguém avistar o fogo e vir salvá

-

lo? Também não sabia

responder.



Ele percebeu duas coisas simultaneamente: o sangue fluía de sua

boca





fluía em uma quantidade assustadora





e estava sentindo muito

frio. Ficaria c

ongelado e morreria se não aparecesse alguém.



Tomado de medo, esforçou

-

se e, aos poucos, conseguiu ficar sentado.

Tentava decidir se rastejaria até a estrada para espiar o carro





era pior

ficar ali, sem vê

-

lo





quando olhou para o alto da ribanceira. Sua

respiração ficou entrecortada, depois suspensa.



Havia um homem parado ali.



Só que não era bem um homem, era um cadáver. Um cadáver em

decomposição, trajando calças verdes. Não tinha camisa, mas um colete

ortopédico para as costas, manchado de bolor cinzent

o que envolvia seu

torso escurecido. Ossos brancos reluziam através da pele repuxada do

rosto.







Você é um imbecil, seu bosta





sussurrou a aparição iluminada

pelas estrelas.






Buddy perdeu o que lhe restava de controle e começou a gritar

histericamente, os

olhos esbugalhados, os cabelos compridos parecendo

emaranhados em um grotesco capacete em tomo do rosto sangrento e sujo

de fuligem, quando as raízes de cada fio se enrijeceram e eriçaram. O

sangue lhe fluía da boca aos borbotões, encharcando o frangalho d

e gola

que sobrara do blusão; ele tentou deslizar para trás, agarrando

-

se outra

vez à neve com as mãos e escorregando de nádegas, quando a coisa veio

em sua direção. Uma coisa sem olhos. Os olhos haviam desaparecido,

comidos de sua face, só Deus sabia por

quais contorcidas coisas.

E ele podia

sentir o cheiro daquilo, oh, Deus, sentia o cheiro e era um fedor de tomates podres,

um fedor de morte.



O cadáver de Roland D. LeBay estendeu as mãos apodrecidas para

Buddy Repperton e sorriu.



Buddy gritou. Buddy urrou

. E de repente enrijeceu, seus lábios

formando um O decisivo, contraídos como se quisesse beijar o horror que

caminhava trôpego para ele. Suas mãos engalfinharam

-

se e arranharam o

lado esquerdo de um farrapo do blusão, acima do coração, que finalmente

fora



perfurado pelo toco afiado de uma costela quebrada. Caiu para trás,

os pés convulsos chutando montículos de neve, a última respiração

exalada em um longo jato branco da boca frouxa... como a descarga de um

automóvel.



Na ribanceira, a coisa que ele tinha v

isto piscou e desapareceu. Sem

deixar rastros.



No extremo oposto, o motor de Christine ganhou intensidade,

passando para um crepitante bramido do escapamento, como um berro de

triunfo que reverberou nas severas terras altas cobertas de neve das

Squantic Hi

lls e depois ecoou de volta.



Na margem extrema do Lago Squantic, a uns quinze quilômetros

dali, um jovem que saíra para uma corrida de esqui pelas montanhas, à

luz das estrelas, ouviu o som e parou de repente, as mãos imobilizadas

sobre os bastões e a cabe

ça de banda.



De repente, a pele de suas costas ficou inteiramente arrepiada, como

se uma locomotiva houvesse acabado de passar sobre sua sepultura. E

embora sabendo que aquilo era apenas um carro em alguma parte, na

outra margem





nas noites invernais, ali



o som era levado longe pelo

vento



, seu primeiro pensamento foi de que algo pré

-

histórico havia




despertado e perseguido a presa até o fim: um grande lobo





ou, talvez,

um tigre dentes

-

de

-

sabre.



O som não se repetiu, e ele seguiu seu caminho.





D

ARNELL

C

OG

ITA



Meu bem, deixe

-

me rodar em seu automóvel



Ei, benzinho, deixe

-

me ir em seu automóvel!



Diga para mim, meu benzinho,



Diga

-

me: como se sente?







Chester Burnett





Will Darnell ficou na garagem até depois de meia

-

noite, na noite em

que Buddy Repperton e seus

amigos encontraram

-

se com Christine, nas

Squantic Hills. Seu enfisema havia piorado nesse dia, e quando piorava

assim ele receava deitar

-

se, embora costumeiramente estivesse sempre

predisposto a dormir.



O médico lhe dissera não haver a menor probabilidade

de

sufocamento e morte durante o sono, mas com a idade chegando e o

enfisema lentamente aumentando a pressão em seus pulmões, o medo

de

Will ia crescendo. O fato de seu medo ser irracional, de nada adiantava.

Embora ele n

ão houvesse entrado em uma igreja d

e qualquer religião

desde os doze anos de idade





há quarenta e nove anos



, ele ficara

morbidamente interessado pelas circunstâncias que cercavam a morte do

Papa João Paulo I, dez semanas antes. João Paulo havia morrido na cama,

onde fora encontrado, pela



manhã. Já com o corpo enrijecendo,

provavelmente. Aquela era a parte que mais amedrontava Will:



enrijecendo, provavelmente.



Chegou

à garagem às nove e meia da noite, dirigindo seu Chrysler

Imperial 1966





o último carro que pretendia possuir. Mais ou m

enos a

essa mesma hora, Buddy Repperton percebia as fagulhas gêmeas de faróis

distantes, em seu espelho retrovisor.






Will devia estar valendo mais de dois milh

ões de dólares, porém o

dinheiro não lhe dava mais tanto prazer, se é que já dera. O dinheiro nem

ao menos continuava parecendo totalmente real. Nada parecia real, exceto

o enfisema. Aquilo era hediondamente real e Will acolhia, prazeroso,

qualquer coisa que lhe afastasse a mente do assunto.



No momento, era o problema de Arnie Cunningham





isso

afastar

a

sua mente do enfisema. Supôs que tal acontecesse porque deixara

Cunningham ficar por ali, quando todos os seus mais fortes instintos o

aconselhavam a expulsar o garoto da garagem porque, de certa forma, ele

era perigoso. Havia qualquer coisa acontecendo

com Cunningham e o seu

58 refeito. Algo bem singular.



O garoto n

ão estava ali nesta noite. Ele e todo o clube de xadrez do

Ginásio de Libertyville estavam em Filadélfia, onde ficariam durante os

três dias do Torneio de Outono dos Estados do Norte. Cunningh

am

achara graça naquilo: estava muito mudado, não era mais o garoto cheio

de espinhas e de olhos grandes que Buddy Repperton atacara, o garoto

que Will prontamente (e erradamente) classificara como um bebê chorão e

talvez um maldito veado.



Para s

ó citar um

a mudança, ele se tornara cínico.



Cunningham lhe dissera, na tarde da v

éspera, em seu escritório,

enquanto fumava charutos (o garoto aprendera a gostar deles e Will

duvidava que seus pais soubessem), que faltara a tantas reuniões do clube

de xadrez que, se

gundo o regulamento, não continuava como membro.

Slawson, o conselheiro estudantil, estava a par disso, mas fechava os olhos

por interesse, até o final do Torneio dos Estados do Norte.







Já perdi mais reuniões do que qualquer outro, mas também

acontece que



sou quem joga melhor, e o bosta sabe...





Arnie pestanejava

e levara as duas mãos à parte inferior das costas, por um momento.







Devia procurar um médico para uma olhada nisso





falou Will.



Arme piscou, de repente parecendo ter muito mais idade do que

qua

se dezoito anos,







Não preciso de mais nada além de uma boa trepada cristã, para

estirar as vértebras.







Quer dizer que você vai a Filadélfia?






Will ficara desapontado, muito embora estivesse se aproximando a

folga para Cunningham; isto significava que teri

a de utilizar Jimmy Sykes

nas pr

óximas duas noites





e Jimmy não distinguia seu traseiro de um

sorvete.







Claro. Não vou perder três dias de sucesso





disse Arnie.

Notando o rosto irritado de Will, sorriu.





Não se preocupe, cara. Isto

aqui fechará para o

Natal, todos os seus fregueses regulares estarão

comprando brinquedos para os filhos, em vez de jogos de velas e

carburadores. Este lugar vai virar um deserto até o ano que vem, e você

sabe disso.



Aquilo era verdade, sem d

úvida, mas Will não precisava que

nenhum garoto petulante viesse lhe dizer.







Quer ir a Albany para mim, depois que voltar?





perguntou.

Arnie o estudou cuidadosamente.







Quando?







Este fim de semana.







No sábado?





É.







O que vai ser?







Você levará meu Chrysler a Albany, aí está toda a ma

ldita coisa.

Henry Buck tem quatorze carros usados, limpos, e quer ver

-

se livre deles.

Henry diz que são limpos. Dê uma espiada neles. Eu

lhe darei um cheque

em branco. Se parecerem bons, fa

ça o negócio. Se parecerem fria, diga a

ele para ir trepar com uma



rosquinha.







E o que vou estar levando?



Will o fitou por um longo momento.







Está ficando com medo, Cunningham?







Não.





Arnie esmagou a metade do charuto no cinzeiro. Olhou,

para Will, defensivamente.





Talvez eu apenas ache que as coisas estão

indo mais



longe, a cada viagem que faço. É coca?







Mandarei Jimmy fazer o serviço





disse Will brusco.







Me diz apenas o que é.







Duzentas embalagens de Winstons.










Está legal.







Tem certeza? Tem mesmo? Arnie riu.







Será uma trégua do xadrez.





Will estacionou o Chr

ysler no boxe mais perto de seu gabinete, o

que tinha SR. DARNELL





NÃO BLOQUEIE! pintado dentro de seus

limites. Saiu e bateu a porta, arquejante, lutando para respirar. O enfisema

estava alojado em seu peito, e naquela noite parecia ter levado o irmão

ju

nto. Não, ele não se deitaria, pouco importando o que tivesse dito aquele

doutor de merda.



Jimmy Sykes varria apaticamente, com uma enorme vassoura. Era

alto e desengon

çado, com vinte e cinco anos. Seu ligeiro retardo mental o

fazia parecer uns oito anos m

ais novo. Começara a usar o cabelo no estilo

ducktail,

dos anos 50, imitando Cunningham, a quem idolatrava.

Excetuando

-

se os fracos

uissht, uissht,

das cerdas da vassoura no concreto

manchado de graxa, tudo ali dentro era silêncio. E solidão.







Isto aqui e

stá um bocado esquisito esta noite, não, Jimmy?

comentou Will, com voz arquejante. Jimmy olhou em torno.







Sim, Sr. Darnell. Ninguém apareceu, desde que o Sr. Hatch levou

seu Fairlane, e isso.foi há meia hora atrás.







Eu só estava brincando





disse Will, n

ovamente desejando que

Cunningham estivesse ali. Era impossível conversar com Jimmy, exceto

em um nível de Ivo

-

viu

-

a

-

uva. Ainda assim, talvez o convidasse para uma

xícara de café com Courvoisier para melhorar o sabor. Fariam um trio. Ele,

Jimmy e o enfisem

a. Ou então uma quadra, uma vez que o enfisema

trouxera o irmão aquela noite.





O que me diz de... de...



Interrompeu

-

se subitamente, notando que o boxe vinte estava vazio.

Christine se fora.







Arnie esteve aqui?





perguntou.







Arnie?





repetiu Jimmy, pisca

ndo idiotamente.







Arnie, Arnie Cunningham





disse Will impaciente.





Quantos

Arnies você conhece? O carro dele não está aqui.



Jimmy relanceou os olhos em torno, at

é o boxe vinte.










Oh, é mesmo. Will sorriu.







O herói foi desbancado no bendito torneio de x

adrez, hein?







Oh, foi?





perguntou Jimmy.





Poxa, isso é ruim, não?



Will conteve o

ímpeto de agarrar Jimmy, sacudi

-

lo e dar

-

lhe uns

tapas. Bem, não ia se aborrecer, aquilo só contribuía para dificultar

-

lhe a

respiração e acabaria tendo de encher os pulmõe

s com aquele coisa de

sabor horrível, de seu inalador.







Bem, o que foi que ele disse, Jimmy? O que ele disse quando você

o viu?



Will soube repentinamente, no entanto





com absoluta certeza





que Jimmy não tinha visto Arnie. Jimmy por fim entendeu o que Wi

ll

pretendia.







Oh, eu não vi o Arnie. Só vi Christine saindo pelo portão, se o

senhor me entende. Rapaz, ficou um carrão, né? Ele consertou tudo como

por encanto.







Exato





concordou Will.





Como por encanto.





A palavra já

lhe ocorrera antes, relacionada



a Christine. De repente, mudou de idéia

quanto a convidar Jimmy para um café com

brandy.

Ainda olhando para o

boxe vinte, falou:





Pode ir para casa agora, Jimmy.







Bem, Sr. Darnell, o senhor disse que eu ia trabalhar seis horas

essa noite. E as seis hora

s só terminam às dez.







Eu marco seu cartão às dez.



Os olhos estonteados de Jimmy iluminaram

-

se, ao ouvir aquela

inesperada, quase inaudita generosidade.







Fala sério?







Exatamente. Falo sério. Seja bonzinho e dê o fora, Jimmy.

Ok?







É pra já





disse Jimmy

, pensando que, pela primeira vez

naqueles cinco ou seis anos que trabalhava para Will (era difícil saber o

tempo correto, embora sua mãe estivesse a par de tudo, da mesma forma

como sempre sabia sobre todos os seus pagamentos de impostos), o velho

ogre se



impregnava do espírito natalino. Como naquele filme sobre os três

fantasmas. Acrescentando seu próprio espírito natalino, Jimmy

exclamou:





Puxa, são uns bons quatorze minutos, chefinho!






Will pestanejou e caminhou pesadamente para seu escrit

ório.

Contorno

u a máquina de café e sentou

-

se atrás de sua mesa, espiando

enquanto Jimmy guardava a vassoura, apagava a maioria das luzes

fluorescentes que pendiam do teto e vestia seu pesado capote.



Will inclinou

-

se para tr

ás e pensou.



Afinal de contas, seus miolos

é q

ue o tinham mantido vivo durante

todos aqueles anos, vivo e sempre um passo à frente; jamais fora atraente,

por toda a vida adulta foi gordo, com uma saúde sempre péssima. Em

certa primavera de sua infância, a um acesso de escarlatina seguiu

-

se um

caso bra

ndo de pólio, que o deixara com apenas uns setenta por cento da

capacidade do braço direito. Quando jovem, suportava uma praga de

furúnculos. Aos quarenta e três anos, seu médico descobrira uma grande

excrescência esponjosa debaixo de um braço. Não era mal

igna, mas a

remoção cirúrgica o mantivera na cama pela maior parte de um verão e,

como resultado, tivera úlceras de decúbito. Um ano mais tarde, uma

pneumonia dupla quase o matara. Agora, havia um diabetes incipiente e o

enfisema. Não obstante, seu cérebro



sempre permanecera excelente e

alerta, um cérebro que o deixara sempre um passo à frente.



Reclinado em sua cadeira, ele pensou em Arnie. Sup

ôs que uma das

coisas que o tinham impressionado favoravelmente em Cunningham,

após ele ter enfrentado Repperton na

quele dia, era uma certa similaridade

com o adolescente Will Darnell, de muitos anos antes. É lógico que

Cunningham nada tinha de doente, mas sofrera com as espinhas, era

hostilizado e solitário





três coisas que haviam sido reais, na vida do

jovem Will Da

rnell.



Cunningham tamb

ém tinha miolos.



Miolos e aquele carro. Aquele estranho carro.







Boa noite, Sr. Darnell





disse Jimmy. Ficou parado à porta por

um instante e então acrescentou, hesitante:





Feliz Natal.



Will ergueu a m

ão em um aceno de despedida. Jim

my saiu. Will

ergueu o corpo volumoso da cadeira, apanhou a garrafa de Courvoiser em

seu armário e a deixou perto da máquina de café. Depois tornou a sentar

-

se. Em sua mente desenrolava

-

se uma rudimentar cronologia.



Agosto:

Cunningham aparece com um desman

telado Plymouth 58 e

o deixa no boxe vinte. O carro parece familiar e, realmente,

é familiar.




Trata

-

se do Plymouth de LeBay. E Arnie não sabe





nem precisa saber





que, certa vez, Rollie LeBay também havia feito viagens ocasionais a

Albany, Burlington ou P

ortsmouth para Will Darnell... com a diferença de

que, naquela época remota, Will possuía um Cadillac 54. Carros diferentes

para transporte e o mesmo porta

-

mala de fundo falso, com compartimento

secreto destinado aos "fogos de artifício", cigarros, bebidas



e maconha.

Naquele tempo, Will nunca ouvira falar em cocaína. Supunha que apenas

os músicos de

jazz de

Nova Iorque a tivessem.



Fins de agosto:

Repperton e Cunningham entram em choque e

Darnell expulsa Repperton. Est

á farto dele, de sua permanente

fanfarro

nice, de estar sempre querendo bancar o galo do terreiro.

Repperton tem infringido as normas e, embora fazendo para Nova Iorque

e Nova Inglaterra todas as viagens que Will deseja, anda descuidado, e o

descuido é perigoso. Ele mostra também tendência a corr

er demais,

passando do limite legal, já tendo recebido multas por excesso de

velocidade. Basta apenas um tira

curioso e ir

ão todos parar nos tribunais.

Darnell não tem medo de ser preso





não em Libertyville



, mas isso o

deixaria mal. Houve uma época em q

ue pouco ligava para as aparências,

mas agora está mais velho.



Will levantou

-

se, serviu

-

se de caf

é e misturou uma dose de

brandy.

Fez uma pausa, refletiu no assunto e mediu uma segunda dose, com a

tampa da garrafa. Sentou

-

se, tirou um charuto do bolso da c

amisa,

contemplou

-

o e o acendeu. Foda

-

se, enfisema. Fique com isto.



A fragrante fuma

ça elevou

-

se em torno dele, e com o bom café

quente com

brandy à

sua frente Darnell olhou para sua sombria e

silenciosa garagem, cismando mais um pouco.



Setembro:

O garoto

pede que ele consiga um adesivo de inspe

ção e

empreste uma chapa de matrícula de concessionário, para que possa levar

a namorada a um jogo de futebol. Darnell concorda





diabo, houve uma

época em que ele

vendia

um adesivo de inspeção por sete dólares e nem



mesmo dava uma olhada no carro que o usaria. Além do mais, o carro do

garoto está parecendo em condições. Um pouco precário, talvez, e

também fazendo um bocado de barulho, mas afora isso dá uma excelente

impressão. Cunningham tem feito um formidável traba

lho de restauração

no Plymouth.



E isso

é francamente estranho, considerando

-

se que

ninguém o viu

trabalhando realmente no carro.






Bem,

é verdade que ele fez pequenos reparos. Trocou lâmpadas de

faroletes. Mudou pneus. O garoto nada tem de idiota quanto a ca

rros:

sentado nesta mesma cadeira, Will certo dia o viu trocar a forração do

assento traseiro. Entretanto, ninguém o viu trabalhando no sistema de

escapamento do carro, que era uma ruína total, quando ele chegou aqui

com o 58, pela primeira vez, em fins do



verão passado. Tampouco alguém

o viu fazendo lanternagem, embora a lataria do Fury já apresentasse um

caso avançado de câncer, quando o garoto o trouxe para a garagem. E,

agora, ela está como que nova em folha.



Darnell sabia o que Jimmy Sykes pensava, por

que o interrogara uma

vez. Jimmy achava que Arnie fazia o trabalho mais dif

ícil à noite, depois

que todos iam embora.







É muita mão

-

de

-

obra, para um maldito trabalho noturno





comentou Darnell, em voz alta.



De repente, sentiu um calafrio que nem mesmo o ca

f

é com

brandy

conseguiu dissipar. Sim, era muita mão

-

de

-

obra noturna. Devia ter sido.

Porque, durante o dia, o garoto parecia apenas ficar ouvindo a música

melosa da WDIL. Isso e muita andança sem rumo ali dentro, indo de um

lado para outro.



"Acho que ele

faz o servi

ço sério à noite", tinha dito Jimmy, com a

mesma ingênua confiança da criança explicando como Papai Noel desce

pela chaminé ou como a fada

-

da

-

dentição coloca a moeda de vinte e cinco

centavos debaixo de seu travesseiro. Will não acreditava em Pa

pai Noel

nem na fada

-

da

-

dentição, como tampouco acreditava que Arnie fizesse os

reparos de Christine à noite.



Dois outros fatos inc

ômodos rolaram por sua mente, como bolas de

bilhar procurando uma caçapa para repousarem.



Uma das coisas, era seu conheciment

o de que Arnie andara

dirigindo o carro na parte dos fundos, muitas vezes, antes que fosse

licenciado para o tr

ânsito. Ficava apenas rodando lentamente, indo e

vindo pelas estreitas alamedas entre os milhares de carros destroçados nos

fundos da garagem do

comprimento de um quarteirão. Rodando a dez

quilômetros por hora, indo e vindo, indo e vindo, após o anoitecer, depois

que todos tinham ido para casa, contornando o grande guindaste com o

ímã redondo e a grande caixa do compressor de sucata. Rodando. Quand

o

Darnell o interrogara a respeito, Arnie respondera que esteve checando




uma trepidação na direção. A mentira, contudo, não convencia. Ninguém

jamais checou trepidação na direção rodando a dez por hora.



Era aquilo que Cunningham fazia, quando todos tinham

sa

ído. Era

aquele o seu trabalho noturno. Rodando nos fundos da garagem, abrindo

caminho por entre o ferro

-

velho, os faróis piscando vacilantes, em seus

encaixes comidos pela ferrugem.



Depois, havia o caso do od

ômetro. Girava para trás. Cunningham

lhe apon

tara aquilo, com um leve sorriso acanhado. Rodava ao contrário e

a uma velocidade extremamente rápida. Arnie lhe dissera imaginar que o

odômetro recuava cerca de dez quilômetros para cada quilômetro

realmente rodado. Will ficara francamente espantado. Já o

uvira falar na

regulagem recuada de odômetros, no negócio de carros usados, tendo ele

próprio feito um bocado disso (além de encher transmissões com

serragem para sufocar gemidos fatais e despejar caixas de aveia em

radiadores nas últimas, a fim de obstrui

r temporariamente os vazamentos),

mas nunca vira um odômetro rodar para trás espontaneamente. Julgava

tal coisa imposs

ível. Arnie se limitara a dar um breve e curioso sorriso,

dizendo que devia ser algum defeito mecânico.



Era um defeito, claro, pensava Wil

l. Um diabo de defeito!



Os dois pensamentos se entrechocaram indolentemente e rolaram

em dire

ções diferentes.



Rapaz, ficou um carr

ão, né? Ele consertou tudo como por encanto.



Will n

ão acreditava em Papai Noel nem na fada

-

da

-

dentição, mas

estava pronto a ad

mitir que havia coisas bem estranhas no mundo. Um

homem prático podia admiti

-

lo e até lançar mão disso, se pudesse. Um

amigo seu, residindo em Los Angeles, alegara ter visto o fantasma da

esposa, antes do grande terremoto de 67, e Will não tinha nenhum mot

ivo

em particular para duvidar da alegação (embora duvidasse

completamente, se o amigo tivesse algo a ganhar com o ocorrido). Quent

Youngerman, outro amigo, alegara ter visto o pai morto há muito tempo,

parado ao pé de seu leito de hospital, depois que ele

, Quent, um operário

especializado em chapas de aço, sofrera uma terrível queda do quarto

andar de um prédio em construção, na Wood Street.



Will passara a vida inteira ouvindo hist

órias semelhantes, como sem

dúvida acontecia com quase todas as pessoas. E c

omo provavelmente

fazia a maioria dos racionais, ele as guardara em uma espécie de arquivo




aberto, não acreditando nem desacreditando, a menos que o contador da

história fosse um evidente lunático. Ele as punha naquele arquivo aberto

porque ninguém sabia d

e onde a gente vinha, quando nascia, e ninguém

sabia para onde a gente ia, quando morria. Nenhum ministro unitarista

e .nenhum daqueles que bradavam o segundo nascimento de Jesus,

nenhum papa ou cientista do mundo o convenceria do contrário. Só

porque algu

mas pessoas eram fanáticas nesse assunto não queria dizer

que soubessem alguma coisa. Fatos assim, ele deixava naquele arquivo

aberto, porque jamais lhe sucedera algo realmente inexplicável.



Exceto, talvez, algo como o que acontecia agora.



Novembro:

Repper

ton e seus amigos do peito fazem mis

érias com o

carro de Cunningham, no aeroporto. Quando o Plymouth chega no

caminhão

-

reboque, dá a impressão de que ficou inteiramente arruinado.

Ao olhar para ele, Darnell pensa:

Ele nunca mais tornará a rodar. Ponto fina

l;

nunca mais rodará dez centímetros.

No fim do mês, o rapaz Welch é morto na

estrada JFK.



Dezembro:

Um detetive da Pol

ícia Estadual começa a rondar por ali.

Junkins. Fica rondando e, certo dia, fala com Cunningham. Depois,

aparece outro dia, quando Cunnin

gham não está lá, e quer saber se o

garoto mente sobre a extensão do dano causado por Repperton e seus

chapas (dos quais o falecido e não

-

pranteado Peter "Penetra" Welch era

um) em seu Plymouth.

Porque vem me perguntar,

inquiriu Darnell

arquejando e tossin

do, através de uma nuvem de fumaça do charuto.

Fale

com ele, o maldito Plymouth é dele, não meu. Eu apenas dirijo este lugar para que

trabalhadores mantenham seus carros rodando e continuem botando comida na

mesa de suas famílias.



Junkins ouve o discurso p

acientemente. Sabe que Darnell faz um

bocado mais, al

ém de dirigir uma garagem tipo faça

-

você

-

mesmo e um

ferro

-

velho de automóveis. Entretanto, Darnell

sabe

que ele sabe, de modo

que fica tudo bem.



Junkins acende um cigarro e diz:

Vim perguntar a voc

ê, por

que já falei

com o garoto e ele não me contou. Por um instante, enquanto falava com ele,

pensei que queria me dizer; tive a impressão de que está verde de medo por causa

de alguma coisa. Então, pareceu mudar de idéia e ficou de boca fechada.



Darnell diz:

S

e est

á pensando que Arnie fez o serviço naquele rapaz, por

que não diz logo?






Junkins responde:

N

ão é o que estou pensando. Os pais dele disseram que

o garoto estava em casa, dormindo. Não me pareceu que fosse uma mentira para

protegê

-

lo. No entanto, Welch

foi um dos caras que arrebentaram seu carro, temos

absoluta certeza disso, como estou certo de que ele mente sobre a extensão do dano.

Não sei por que ele mente, e é isso que está me deixando louco.



É uma pena,

respondeu Darnell, sem senti

-

la em absoluto.



Junkins pergunta:

Qual foi a extens

ão do dano, Sr. Darnell? Quero a sua

opinião.



Darnell ent

ão diz sua primeira e única mentira, durante a entrevista

com Junkins:

Sequer saber, eu não reparei.



É claro que reparou, e ele sabe por que Arnie mente, tentando

m

inimizar o fato. Aliás, este tira também saberia por que, se não fosse tão

evidente que procurava pressionar, em vez de tentar ver as coisas.

Cunningham mente porque o dano foi

horrível,

o dano foi muito pior do

que este tira estadual

possa imaginar. Aquel

es bandidos n

ão apenas

arrebentaram o 58 de Cunningham,

acabaram

com ele. Cunningham mente

porque, embora ninguém o visse trabalhando muito, durante a semana

após o caminhão

-

reboque trazer Christine de volta ao boxe vinte,

o carro

estava praticamente como

novo





ainda melhor do que estivera antes.



Cunningham mentiu para o tira, porque a verdade era inacredit

ável.







Inacreditável





repetiu Darnell em voz alta, e bebeu o resto de

seu café.



Olhou para o telefone, estendeu o bra

ço para ele, mas depois

desistiu.



Tinha uma ligação a fazer, mas era melhor terminar a análise

daquilo primeiro





ter todos os seus patos enfileirados.



Ele pr

óprio era o único (além de Cunningham, é claro) que poderia

avaliar como era incrível o que tinha acontecido: a completa e total

re

generação do carro! Jimmy tinha o miolo mole e os outros sujeitos iam e

vinham, nenhum deles sendo um freguês regular. Houve, porém,

comentários sobre o trabalho espetacular que Cunningham havia feito;

vários caras que tinham feito reparos em seus veículos

, naquela semana

de novembro, tinham usado a palavra incrível. Vários deles também

pareciam inquietos. Johnny Pomberton, que comprava e vendia

caminhões usados, naquela semana estivera tentando colocar em

condições de rodar uma velharia que adquirira. John

ny entendia de

automóveis e caminhões melhor do que qualquer um em Libertyville,




talvez em toda a Pensilvânia. Comentara com Will, franca e abertamente,

que não podia acreditar naquilo.

É como vodu,

tinha dito Johnny

Pomberton, dando em seguida uma risada

sem graça. Will se limitara a

ficar quieto, parecendo polidamente interessado. Após um ou dois

segundos, o velho meneou a cabeça e afastou

-

se.



Sentado em seu escrit

ório e contemplando a garagem,

espectralmente silenciosa, no fraco período anual das semanas



anteriores

ao Natal, Will refletiu (não pela primeira vez) que quase todas as pessoas

aceitariam qualquer coisa que viesse acontecer debaixo dos próprios olhos.

Em um sentido bastante real, nada havia de sobrenatural ou anormal: o

que acontecera, acontece

ra, e ponto final.





Jimmy Sykes:

Como por encanto.



Junkins:

Ele

mente a respeito, mas raios me partam se eu sei por qu

ê.



Will puxou a gaveta de sua mesa, comprimindo sua volumosa

barriga, e encontrou a agenda para 1978. Folheou

-

a at

é achar o lembrete,

em s

ua própria caligrafia garatujada:

Cunningham. Torneio de xadrez. Philly

Sheraton 11

-

13 dez.



Ligou para a telefonista de aux

ílio, conseguiu o número do hotel e

fez a chamada. Não ficou muito surpreso, ao sentir as pulsações cardíacas

aumentarem de ritmo qua

ndo o telefone tocou e o atendente da recepção

o atendeu.



Como por encanto.







Alô? Filadélfia Sheraton.







Alô





disse Will.





Parece que vocês estão realizando um

torneio de xadrez aí, e...







Torneio dos Estados do Norte, senhor





interrompeu o

atendente.

Parecia ativo e quase insuportavelmente jovem.







Estou ligando de Libertyville, Pensilvânia





disse Will.





Suponho que aí se hospeda um estudante do ginásio daqui, chamado

Arnold Cunningham. É um dos rapazes do torneio de xadrez. Gostaria de

falar com ele

, se for possível.







Um momento, senhor, enquanto verifico.






Clunk.

Will teria que esperar. Recostou

-

se em sua cadeira de molas e

ficou assim pelo que lhe pareceu muito tempo, embora o ponteiro

vermelho de segundos no rel

ógio do escritório só tivesse feito

uma volta.

Ele não vai estar lá e, se estiver, como a minha...







Alô?



A voz era jovem, um tanto curiosa e indiscutivelmente de

Cunningham. Will Darnell sentiu uma reviravolta peculiar na barriga,

mas nada se revelou em sua voz, era velho demais para isso.







Oi, Cunningham





disse.





É Darnell.







Will?









-

hã.







O que deseja, Will?







Como está se saindo, garoto?







Ganhei ontem e perdi hoje. Um jogo bobo, mas não conseguia

ficar atento a ele. O que há?



Sim, era Cunningham





ele mesmo, sem sombra de dúvida.



W

ill jamais ligaria para alguém sem um bom motivo ou um pretexto

para proteger

-

se, a fim de não ser apanhado desprevenido. Disse

tranqüilamente:







Tem um lápis aí, garoto?







Claro.







Há uma firma na North Broad Street, United Auto Parts. Será que

poderia ir



até lá e ver o que eles têm, em matéria de pneus?







Recauchutados?





perguntou Arnie.







De primeira mão.







Tudo bem, darei uma passada. Estarei livre amanhã, do meio

-

dia

às três da tarde.







Ótimo. Pergunte por Roy Mustungerra e diga meu nome.







Soletre is

so.



Will soletrou o nome.










É tudo?







Sim, tudo... ah, faço votos para que vá a forra.







Há uma boa chance





disse Cunningham, e riu.



Will despediu

-

se e desligou. Era Cunningham, não havia a menor

sombra de dúvida quanto a isso. Cunningham estava em Filadé

lfia esta

noite





e Filadélfia ficava a quase quinhentos quilômetros de distância.



A quem ele teria fornecido chaves extras do carro?



O garoto Guilder.



Claro! Só que o garoto Guilder estava no hospital.



Sua namorada.



Bem, ela não tinha carteira de motorist

a, nem mesmo permissão

para dirigir. Arnie lhe contara.



Alguém mais.



Não havia mais

ninguém.

Ninguém mais era íntimo de Cunningham,

além do próprio Will





e Will sabia muito bem que ele nunca lhe dera

uma duplicata das chaves.



Como por encanto.



Merda!



Will



reclinou

-

se novamente em sua cadeira e acendeu outro charuto.

Enquanto fumava, com a ponta caprichosamente cortada pouco antes

caída no cinzeiro, ele ergueu os olhos para a fumaça flutuante, e

mergulhou em profundas cogitações. Não conseguia entender.

Cun

ningham estava em Filadélfia e seguira para lá no ônibus da escola,

mas seu carro sumira da garagem. Jimmy Sykes o vira saindo, mas sem

ver quem o dirigia. Francamente, o que significava tudo aquilo? O que

acrescentaria aos fatos?



Aos poucos, sua mente se

foi desviando para outros canais. Will

recordou os próprios dias escolares, quando tivera o papel principal na

peça encenada pelos veteranos do ginásio. Will fazia o sacerdote que é

levado ao suicídio pela luxúria que sentia por Sadie Thompson, a jovem

que



pretendia salvar. Sua representação foi delirantemente aplaudida.

Aquele havia sido seu único momento de glória, em uma vida ginasiana

desprovida de vitórias esportivas ou acadêmicas, talvez até mesmo o




ponto alto de sua juventude. O pai de Will era um bê

bado, sua mãe uma

criada, o único irmão um vagabundo, cujo momento de glória acontecera

em algum ponto da Alemanha, seu único aplauso o firme martelar do

fogo dos canhões alemães.



Will pensou em sua única namorada, uma pálida loura chamada

Wanda Haskins, c

ujas bochechas alvas eram pontilhadas de sardas,

dolorosamente profusas ao sol de agosto. Era quase certo que se teriam

casado





Wanda fora uma entre as quatro jovens com quem Will Darnell

trepara (ele excluía as prostitutas da contagem). Sem dúvida, era a



única

que chegara a amar (sempre supondo que isso existisse





e, como em

relação aos eventos sobrenaturais de que ouvia falar às vezes, que, porém,

jamais testemunhara, podia duvidar de sua existência, não podia refutá

-

la), mas o pai dela era do Exército

e Wanda havia sido uma cria do

Exército. Aos quinze anos





talvez faltando apenas um para a mística

divisão de equilíbrio do poder, das mãos dos velhos para as dos novos





ela e a família se mudaram para Wichita, o que significou o fim do

romance.



Havia um



certo batom que ela usava e, naquele tão distante verão de

1934, tivera um sabor de framboesas frescas para Will Darnell, então ainda

um jovem bastante esguio, ambicioso e de olhos límpidos. Tinha sido um

sabor que fizera a mão esquerda avançar para a ere

ta e entusiástica base

do pênis no meio da noite... e, mesmo antes de Wanda Haskins consentir,

os dois haviam dançado aquela doce e especial melodia nos sonhos de

Will Darnell. Sim, haviam dançado na cama estreita de rapazinho,

demasiado pequena para suas

pernas em crescimento.



E agora pensando naquela dança, Will parou de cogitar e começou a

sonhar. Então, cessando dê sonhar, começou a dançar novamente.





Despertou de um sono que não chegara de fato a ser profundo,

umas três horas mais tarde; foi acordado p

elo ruído da enorme porta da

garagem subindo barulhentamente e também pela claridade da luz

interna acima da porta





não fluorescente, mas uma lâmpada fortíssima

de 200 velas





que se acendera.



Will fez a cadeira voltar rapidamente à posição normal. Seus s

apatos

bateram contra o tapete embaixo da escrivaninha (com o nome

BARDAHL escrito nele, em letras salientes de borracha) e foi mais o




choque de agulhadas e alfinetadas nos pés, acima de qualquer outra coisa,

que o despertou completamente.



Christine se mov

ia lentamente, cruzando a garagem em direção ao

boxe vinte, para o qual se esgueirou.



Naquele momento, ainda não de todo convencido de que despertara,

Will a observou com curiosa falta de excitamento, algo que talvez só

aconteça àqueles convocados diretame

nte de seus sonhos. Sentou

-

se ereto

atrás da mesa, os braços semelhantes a presuntos, plantados sobre seu

sujo e rabiscado mata

-

borrão





e ficou espiando.



O motor acelerou uma, duas vezes. O novo e reluzente cano de

descarga expeliu fumaça azul.



Então, o m

otor parou.



Will continuou sentado, sem se mover.



Sua porta estava trancada, mas havia um intercomunicador, sempre

ligado, entre o escritório e a comprida área da garagem, semelhante a um

celeiro. Por aquele mesmo intercomunicador, ele ouvira o início da l

uta

entre Cunningham e Repperton, disputando o título, no agosto passado. E

pelo intercomunicador ele agora ouvia o tiquetaquear metálico do motor

esfriando. Nada mais ouviu.



Ninguém saiu do Christine, porque não havia ninguém para sair.



Ele colocava coisa

s assim em um arquivo aberto, porque jamais lhe sucedera

algo realmente inexplicável... exceto, talvez, algo como o que acontecia agora.



Will vira Christine cruzar o piso de cimento até o boxe vinte, a porta

automática chocalhando ao fechar

-

se contra a fri

a noite de dezembro do

exterior. Examinando o caso mais tarde, peritos poderiam dizer: A

testemunha admite que cochilou e depois adormeceu, admite que estava

sonhando... o que alega ter visto, evidentemente nada mais era do que uma

extensão de seu sonho, u

m estímulo externo provocando uma faixa subjetiva de

imagens provenientes do sonho...



Sim, eles poderiam dizer isso, da mesma forma como Will poderia

sonhar que dançava com Wanda Haskins, uma jovem de quinze anos...

mas na realidade era um homem de cabeça

firme, com sessenta e um anos,

um homem que, havia muito, se alijara de quaisquer atitudes românticas.






E ele tinha

visto

o 58 de Cunningham deslizar através da garagem

vazia, o volante movendo

-

se sozinho, quando o carro se dirigiu para seu

boxe costumeiro.



Ele tinha

visto

os faróis se apagarem e ouvira o motor de

8 cilindros, quando morrera.



Agora, sentindo

-

se estranhamente sem ossos, Will Darnell levantou

-

se, vacilou, foi até a porta do escritório, tornou a vacilar, para depois abri

-

la. Saiu e caminhou à f

rente das filas de carros estacionados obliquamente,

até o boxe vinte. Suas pisadas ecoavam atrás dele e depois extinguiam

-

se

em mistério.



Ficou parado ao lado do carro, com sua carroceria pintada em dois

tons vivos, vermelho e branco. O trabalho de pintur

a era cuidadoso, limpo

e perfeito, sem a menor mácula de um diminuto defeito ou o mais leve

toque de ferrugem. O vidro estava imaculado e intacto, não havendo nele

uma só ligeiríssima arranhadura, causada por um fragmento de pedra que

voasse ao acaso.



O ún

ico som ouvido agora era o lento gotejar da neve derretida,

pingando dos pára

-

choques traseiro e dianteiro.



Will tocou o capô. Estava quente.



Experimentou a porta ao lado do motorista e ela se abriu sem

dificuldade. O cheiro que veio do interior foi um agr

adável odor de couro

novo, plástico novo e novos cromados





exceto que parecia haver um

outro cheiro, mais desagradável, por sob aquele. Um cheiro de terra. Will

aspirou fundo, mas não conseguiu classificá

-

lo. Pensou brevemente em

nabos velhos, nos depósit

os para vegetais que seu pai tinha no porão, e

seu nariz se franziu.



Inclinou

-

se. Não havia chaves na ignição. O odômetro marcava

52.107,8.



De repente, a fenda vazia da ignição, incrustada no painel de

instrumento, começou a girar. Por si mesma, a fenda ne

gra passou de

ACC para START. O motor aquecido pegou imediatamente e funcionou

com firmeza, repleto de alegre potência de alta octanagem.



O coração de Will titubeou em seu peito. A respiração ficou presa.

Ofegando e tossindo ruidosamente em busca de ar, ap

ressou

-

se a voltar ao

escritório, a fim de usar o inalador sobressalente, que tinha em uma

gaveta da mesa. Insuficiente e impotente, sua respiração soava como




vento de inverno, passando por baixo da fresta de uma porta. Seu rosto

adquirira um tom de vela a

ntiga. Os dedos aferraram a carne mole da

garganta e a puxaram incessantemente.



O motor de Christine parou novamente.



Não houve mais nenhum som, além do tiquetaquear do metal

esfriando.



Will encontrou o inalador, enfiou

-

o fundo na garganta, apertou o

dispa

rador e aspirou. Pouco a pouco, a sensação de que havia sobre seu

peito um carrinho de mão carregado de blocos de cimento dissipou

-

se.

Sentando

-

se em sua cadeira giratória, ele ouviu agradecido o saudável e

esperado rangido de protesto das molas. Cobriu o

rosto

momentaneamente com as mãos gordas.



Nada realmente inexplicável... até agora.



Ele vira.



Ninguém estivera dirigindo aquele carro. Ele chegara à garagem vazio,

cheirando a algo parecido com nabos apodrecendo.



Ainda assim, a despeito de seu terror, a me

nte de Will começou a

trabalhar e ele se perguntou como poderia usar o que sabia, em seu

próprio benefício.





D

ESFAZENDO

C

ONEXÕES



Bem, mister, quero um conversível amarelo.



Um DeVille quatro portas,



Com rodas raiadas cromadas



E um estepe Continental.



Com po

tente direção,



E freios também potentes;



Quero um motor poderoso,



Com decolagem a jato...



Quero um rádio de ondas

-

curtas,






Quero TV e telefone,



Entenda, é pra falar com meu bem



Quando eu rodar por aí.







Chuck Berry





Os restos carbonizados do Camaro de Buddy



Repperton foram

encontrados no final da tarde da quarta

-

feira, por um guarda do parque.

Uma senhora idosa, que morava com o marido na cidadezinha de Upper

Squantic, telefonara para o posto dos guardas, na margem do lago que

dava para o parque.



Segundo ela

, sofria demais de artrite e, às vezes, não conseguia

dormir. Na noite anterior, julgara ter visto chamas partindo das

proximidades do portão sul do parque. A que horas? Ela admitiu ter sido

por volta de quinze para as dez, porque estivera vendo o Filme da



Noite

de Terça

-

feira, na CBS, e o filme ainda não passara da metade.



Na quinta

-

feira, uma foto do carro queimado apareceu na primeira

página do

Keystone

de Libertyville, abaixo de uma manchete que dizia:

TRÊS MORTOS EM ACIDENTE DE AUTOMÓVEL NO PARQUE

ESTA

DUAL DAS SQUANTIC HILLS. Era mencionada uma fonte da

Polícia Estadual como tendo dito que: "A bebida provavelmente fora um

fator"





uma forma oficialmente opaca de dizer que os remanescentes

estilhaçados de mais de meia dúzia de garrafas contendo uma mistu

ra de

uísque e vinho, vendida sob o nome de Texas Driver, haviam sido

encontrados no local do acidente.



A notícia foi um impacto particularmente rude no Ginásio de

Libertyville; os jovens sempre sentem a maior dificuldade em aceitar

informações desagradáve

is sobre a própria mortalidade. E a temporada de

férias talvez tornasse o golpe ainda mais duro.



Arnie Cunningham ficou terrivelmente deprimido com o fato.

Deprimido e amedrontado. Primeiro, "Penetra"; agora, Buddy, Richie

Trelawney e Bobby Stanton. Bobby

Stanton, um infeliz calouro do qual

nunca ouvira falar





o que um novato como esse tinha de estar fazendo

em companhia de sujeitos como Buddy Repperton e Richie Trelawney?

Não saberia que estava se aventurando em um cova de tigres, sem maior

proteção além

de uma pistolinha de esguichar água? Achou




inexplicavelmente difícil aceitar a versão transmitida pelos boatos,

segundo a qual Buddy e seus amigos tinham apenas ficado muito

desiludidos com o jogo de basquete e haviam saído de carro, rodando e

bebendo, até



encontrarem o amargo fim.



Arnie não conseguia livrar

-

se da sensação de que, de certa forma,

estava envolvido naquilo.



Leigh parara de falar com ele desde a discussão. Ele não lhe

telefonara





parte por orgulho, parte por vergonha e também esperando

que el

a ligasse primeiro, que tudo voltasse a ser como era... antes.



Antes de quê?,

sussurrava sua mente.

Bem, antes de ela quase ter

morrido sufocada em seu carro, para início de conversa. Antes de você tentar

agredir o cara que salvara a vida de Leigh.



Entreta

nto, Leigh queria que ele vendesse Christine. Algo

simplesmente impossível... não era? Como podia fazer isso, depois de ter

investido naquilo tanto tempo, esforço e sangue





sim, era verdade,

inclusive lágrimas?



Era uma velha cantilena e não queria mais pe

nsar nisso. O sinal

encerrando as aulas daquela quinta

-

feira, que parecia interminável, soou

finalmente, e ele saiu para o pátio de estacionamento dos estudantes





praticamente correu para lá





e quase mergulhou em Christine.



Ficou quieto, sentado ao volan

te, e soltou uma longa, trêmula

respiração, espiando os primeiros flocos de neve de uma tarde perturbada

caírem e rolarem através do capô reluzente. Procurou suas chaves, tirou

-

as do bolso e ligou Christine. O motor zumbiu confiantemente e ele

começou a ro

dar, os pneus girando e esmagando a neve em camadas.

Pensou que, eventualmente, precisaria colocar pneus para neve, mas a

verdade é que Christine não parecia precisar deles. Ela possuía a melhor

tração de todos os carros que já dirigira.



Arnie estendeu a m

ão para o botão do rádio e sintonizou a WDIL.

Sheb Wooley cantava "O Púrpura Comedor de Gente". Aquilo conseguiu

finalmente trazer um sorriso a seu rosto.



Apenas ficar ao volante de Christine, no controle, já fazia com que

tudo parecesse melhor. Fazia com

que tudo parecesse manobrável. A

notícia de Repperton, Trelawney e o bostinha, morrendo daquele jeito,

havia sido um terrível choque, sem dúvida. Após os ressentimentos do




verão passado e daquele outono, era natural que ele se sentisse um tanto

culpado. En

tretanto, a verdade pura e simples é que estivera em Filadélfia.

Nada tinha a ver com aquilo; era impossível.



De fato, vinha apenas se sentindo deprimido por coisas gerais.

Dennis estava no hospital. Leigh se portava idiotamente





como se seu

carro ficasse



dotado de mãos e lhe empurrasse aquele pedaço de

hambúrguer garganta abaixo, pelo amor de Deus! Além do mais, hoje

tivera que deixar o clube de xadrez.



A pior parte disso, talvez houvesse sido a maneira como o Sr.

Slawson, o conselheiro estudantil, aceita

ra sua decisão sem ao menos

tentar dissuadi

-

lo. Arnie fornecera um punhado de desculpas sobre sua

falta de tempo naquela época e como seria forçado a cortar algumas de

suas atividades; o Sr. Slawson se limitara a concordar, dizendo: Ok,

Arnie,

continuaremo

s aqui, na Sala 30, caso você mude de idéia.

O Sr. Slawson o fitara

com seus olhos azuis desbotados, aumentados pelas lentes espessas dos

óculos ao tamanho de repulsivos ovos cozidos, e neles havia algo





seria

censura?



Talvez sim. Entretanto, o sujeito ne

m mesmo

tentara

persuadi

-

lo a

ficar. Devia, pelo menos,

tentar,

porque Arnie era o melhor que o clube de

xadrez do Ginásio de Libertyville tinha a oferecer, e Slawson sabia disso.

Se houvesse tentado, talvez o fizesse mudar de idéia. A verdade é que

agora

tinha um pouco mais de tempo, já que Christine estava... estava...



O

quê?



...

bem, reconstituída de novo. Se o Sr. Slawson tivesse dito algo

como:

Ei, Arnie, não seja precipitado, vamos refletir um pouco, nós podemos usá

-

lo realmente.

Se o Sr. Slawson tive

sse dito qualquer coisa assim, claro, ele

poderia reconsiderar. Só que não Slawson. Apenas nós continuaremos

aqui, na Sala 30, caso mude de idéia... e blablablá e quac

-

quac

-

quac,

aquele merda filho da mãe, um bosta igual aos outros. Não era sua a culpa,

se



o Ginásio de Libertyville fora derrotado nas semifinais. Ele ganhara

quatro jogos antes disso e venceria nas finais, se tivesse tido uma chance.

Barry Qualson e Mike Hicks, esses dois bostas é que tinham deitado tudo

a perder; os dois jogavam xadrez como

se talvez pensassem que Ruy

Lopez era alguma nova marca de refrigerante ou coisa assim...



Ele rasgou a embalagem e o papel interno de uma goma de mascar,

dobrou a goma dentro da boca, fez uma bolinha com o envoltório e a




jogou com precisa pontaria no saqui

nho para lixo, pendurado ao cinzeiro

de Christine. "Bem no traseiro do vagabundinho", murmurou e então

sorriu. Era um sorriso duro, sem saliva. Mais acima, seus olhos se

moveram incansavelmente de um lado para outro, observando com

desconfiança um mundo ch

eio de motoristas loucos, pedestres idiotas e

imbecilidade generalizada.



Arnie rodou sem rumo por Libertyville, os pensamentos

continuando a fluir nessa suave paranóia, de modo amargamente

confortador. O rádio transmitiu um fluxo sistemático de velhas melo

dias e,

hoje, todas pareciam ser instrumentais





"Rebel Rouser", "Wild Weekend",

"Telstar", o selvagem ritmo de Sandy Nelson em "Teen Beat", e "Rumble",

por Linc Wray, o maior de todos eles. Suas costas o incomodavam, mas

não muito. O tom sombrio da tarde

intensificou

-

se brevemente para uma

nuvem de neve cinza

-

escura. Ele acendeu os faróis e, com a mesma

rapidez, a neve afinou

-

se e as nuvens se romperam, espalhando

-

se através

de faixas ao sol invemal, distante e gelidamente belo do fim da tarde.



Arnie rodou



em seu carro.



Ele despertou de seus pensamentos





agora sobre Repperton, que

talvez chegara a um final perfeitamente justificável





e ficou chocado ao

perceber que era quase seis e quinze, e escurecera. O Gino's Pizza

aproximava

-

se pela esquerda, com seus



pequenos trevos de néon verde

cintilando no escuro. Arnie manobrou para junto do meio

-

fio e saiu.

Começou a atravessar a rua, mas então percebeu que deixara as chaves de

Christine na ignição.



Inclinou

-

se para apanhá

-

las... e, subitamente, o cheiro o assal

tou, o

cheiro sobre o qual Leigh lhe falara, o mesmo que ele negara.



Estava ali agora, como se houvesse saído quando ele deixara o

carro





um cheiro forte de carne apodrecida, que levou água a seus olhos

e lhe fechou a garganta. Arrancou as chaves e recuou

, trêmulo, olhando

para Christine com algo semelhante a horror.



Havia um cheiro, Arnie. Um cheiro horrível de podre... Você sabe do que

estou falando.



Não, não faço a mínima idéia... está imaginando coisas, Leigh



Bem, se Leigh imaginava coisas, ele também.






Arnie se virou de repente e cruzou a rua até o Gino's, como se o

demônio o perseguisse.





Lá dentro, ele pediu uma pizza que realmente não queria, trocou

algumas moedas de vinte e cinco centavos por outras de dez e esgueirou

-

se para a cabine telefônica, ao



lado da vitrola automática. A vitrola tocava

uma barulhenta música do momento, que Arnie nunca ouvira antes.



Ligou primeiro para casa. Seu pai atendeu, em uma voz

estranhamente apática





Arnie nunca ouvira Michael falar daquele

jeito



, e sua inquietação

aumentou. Seu pai parecia o Sr. Slawson.

Aquela tarde e o começo de noite da quinta

-

feira começavam a ganhar

tons marrons de pesadelo. Além das paredes envidraçadas da cabine,

rostos estranhos passavam sonhadoramente à deriva, como balões soltos,

nos quais



alguém desenhara cruelmente rostos humanos. Deus

trabalhando com um lápis mágico.



Bostas,

pensou, desconexamente.

Todos uma cambada de bostas!







Olá, papai





disse vacilante.





Escute, eu... bem, acho que perdi

a noção do tempo. Sinto muito.







Está tudo b

em





respondeu Michael. Sua voz era quase um

zumbido e Arnie sentiu a própria inquietação aprofundar

-

se para algo

semelhante ao medo.





Onde está você, na garagem?







Não... bem, no Gino's. Gino's Pizza. Papai, você está bem? Parece

um tanto esquisito.







Es

tou ótimo





respondeu Michael.





Acabei de jogar seu jantar

no triturador de lixo, sua mãe está chorando lá em cima e você comendo

uma pizza. Estou ótimo. Aproveitando seu carro, Arnie?



A garganta de Arnie movimentou

-

se, mas não emitiu som algum.







Papai





conseguiu dizer finalmente.





Acho que não está sendo

muito justo.







Creio que não estou mais muito interessado no que você

considera justo ou não





disse Michael.





A princípio, talvez tivesse

alguma justificativa para o seu comportamento. No último mês,



entretanto,

você se tornou alguém que não compreendo em absoluto, e está

acontecendo algo que compreendo ainda menos. Sua mãe também não




compreende, mas percebe, e isso a tem magoado profundamente. Sei que

ela guarda para si mesma parte dessa mágoa, mas d

uvido que isso

modifique a intensidade do sofrimento.







Papai, eu apenas perdi a noção das horas!





exclamou Arnie.





Pare de fazer um drama de uma coisa tão insignificante!







Esteve rodando por aí?







Estive, mas...







Já percebi que então é isso que costum

a acontecer





disse

Michael.





Virá para casa esta noite?







Sim, vou mais cedo





disse Arnie. Passou a língua pelos

lábios.





Vou apenas dar uma passada na garagem, porque tenho uma

informação que Will me pediu para conseguir, quando estive em

Filadélfia e

...







Desculpe, mas também não estou muito interessado nisso





respondeu Michael, em voz ainda polida, ferinamente apática.







Oh





murmurou Arnie.



Estava muito assustado agora, quase tremendo.







Arnie?







Diga





sussurrou Arnie.







O que está acontecendo?







Não sei o que quer dizer.







Tenha dó! Aquele detetive foi procurar

-

me em meu gabinete.

Andou procurando Regina também. Deixou

-

a muito perturbada. Não

creio que tivesse tal intenção, mas...







O que foi dessa vez?





perguntou Arnie enfurecido.





Aquele

filho



da mãe, o que foi dessa vez? Eu vou...







Vai o quê?







Nada.





Arnie engoliu algo que tinha o sabor de um bolo de

poeira.





O que foi dessa vez?







Repperton





disse seu pai.





Repperton e aqueles outros dois

rapazes. O que pensava que fosse? A situação geo

política no Brasil?










O que aconteceu a Repperton foi um

acidente





disse Arnie.





Pelo amor de Deus, por que ele queria falar com você e mamãe, sobre uma

coisa que foi um

acidente?







Eu não sei.





Michael Cunningham fez uma pausa.





Você sabe?







Como iria



saber?





gritou Arnie.





Eu estava em Filadélfia,

como poderia saber de algo a respeito? Estava jogando xadrez, não... não...

não fazendo outra coisa





terminou ele, em tom queixoso.







Uma vez mais, Arnie





disse Michael Cunningham.





Está

acontecendo alg

uma coisa? Arnie pensou no cheiro, naquele fedor intenso

de podre. Leigh se sufocando, apertando a garganta,



ficando azulada. Ele lhe dera pancadas nas costas, porque é o que se

faz, quando alguém se engasga, não havia isso de Manobra Heimlich,

porque aind

a não tinha sido inventada e, por outro lado, era como deveria

terminar, só que não dentro do carro... na beira da estrada... em seus

braços... Ele fechou os olhos e o mundo inteiro pareceu agitar

-

se, girar

doentiamente.







Arnie?







Sim, está acontecendo al

go





disse ele, através dos dentes fechados,

sem abrir os olhos.





Nada mais do que um bando de pessoas me

pressionando, porque finalmente consegui algo para mim, e consegui

sozinho.







Muito bem





disse seu pai, aquela voz sem brilho de novo

recordando ter

rivelmente a do Sr. Slawson.





Estarei aqui, se quiser falar

sobre isso. Sempre estive, embora talvez não desse a entendê

-

lo tão

claramente como deveria. Não esqueça de beijar sua mãe quando voltar,

Arnie.







Claro, claro. Escute, pap...

Clique.



Arnie ficou



imóvel na cabine, ouvindo estupidamente o som do

nada absoluto. Seu pai desligara. Não houve nem mesmo o som para

discar, porque aquela era uma muda... fodida... cabine telefônica. Enfiou a

mão no bolso e espalhou as moedas sobre a pequena prateleira metá

lica,

onde poderia vê

-

las. Escolheu uma de dez centavos, quase a deixou cair e

por fim a introduziu na fenda. Sentia

-

se nauseado e com calor. Tinha a

sensação de que havia sido eficientemente repudiado.



Discou de cor o número de Leigh.






A Sra. Cabot atendeu

, reconhecendo sua voz imediatamente. Sua

agradável e um tanto

sexy

voz de venha

-



-

seu

-

fascinante

-

estranho, em

seguida se tornou dura ao telefone. Aquela voz lhe dizia que ele tivera sua

última chance com

ela

e a deixara escapar.







Leigh não quer falar co

m você e nem vê

-

lo





disse ela.







Por favor, Sra. Cabot, se eu pudesse, ao menos...







Creio que já fez o suficiente





respondeu friamente a mãe de

Leigh.





Ela voltou para casa chorando, aquela noite, e tem chorado

desde então. Passou por uma espécie de...



experiência com você, da última

vez que saíram juntos, e só peço a Deus que não tenha sido o que imaginei.

Eu...



Arnie sentiu um riso histérico borbulhando dentro dele. Leigh quase

morrera sufocada com um hambúrguer... e sua mãe receava que ele

houvesse t

entado violentá

-

la.







Eu tenho que falar com ela, Sra. Cabot!







Será melhor desistir.



Arnie procurou imaginar algo mais para dizer, algum meio de

passar pelo dragão de guarda na entrada. Sentiu

-

se como um vendedor de

escovas e vassouras tentando entrar e f

alar com a dona da casa. Sua língua

não se moveu. Ele daria um péssimo vendedor. Logo ouviria aquele clique

brusco e depois o silêncio imperturbável novamente.



Então, percebeu que o telefone mudava de mãos. A Sra. Cabot disse

algo, em ríspido protesto, ao

que Leigh respondeu de volta; as palavras

eram demasiado baixas para que ele as captasse. Em seguida, a voz de

Leigh.







Arnie?







Oi





disse ele.





Leigh, eu só queria telefonar para dizer

-

lhe

quanto lamentei o...







Está bem





disse Leigh.





Acredito e acei

to suas desculpas,

Arnie. Só que não quero... não posso mais sair com você. A menos que as

coisas mudem.







Peça

-

me algo fácil





sussurrou ele.










É tudo quanto eu...





A voz dela ficou brusca, afastando

-

se

ligeiramente do telefone.





Por favor, mamãe, pare

de me dizer o que

devo fazer!





A mãe dela disse algo que demonstrou seu

descontentamento, houve uma pausa e novamente a voz de Leigh,

baixa.





É tudo quanto posso dizer Arnie. Por mais estranho que possa

parecer, continuo pensando que seu carro tentou me

matar aquela noite.

Não sei como isto poderia acontecer, mas por mais que pense no caso, não

consigo mudar de idéia. Sei que foi como digo. Você entende, não?







Desculpe falar assim, Leigh, mas nunca ouvi nada tão babaca.

Christine é um

carro!

Pode soletra

r isso? C

-

A

-

R

-

R

-

0,

carro! Não

é nada...







Sim





respondeu ela, a voz agora tremulando em direção às

lágrimas.





Esse carro o capturou, ela o pegou e acho que ninguém mais

pode libertá

-

lo, senão você mesmo.



As costas dele pareceram despertar subitamente e c

omeçaram a

latejar, enviando a dor em uma lancinante radiação que parecia ecoar e

amplificar

-

se em sua cabeça.







Não é verdade, Arnie?



Ele não respondeu, não podia responder.







Livre

-

se desse carro





disse Leigh.





Por favor. Li o que

aconteceu àquele Repp

erton, no jornal dessa manhã, e...







O que eu tenho a ver com aquilo?





perguntou Arnie, em uma

voz que parecia um grasnido. E, pela segunda vez:





Aquilo foi

um

acidente!







Não sei o que foi. Talvez eu não

queira saber.

Enfim, não é mais

conosco que estou



preocupada. É com

você,

Arnie. Receio por

você.

Devia...

não, você tem que se livrar desse carro.



Arnie sussurrou:







Diga apenas que não vai me deixar, Leigh.

Ok?



Agora, ela estava ainda mais perto das lágrimas





talvez até já

estivesse chorando.







Quero

que me prometa, Arnie. Tem que prometer e depois

cumprir. Então, nós... nós nos veremos. Prometa que vai se desfazer desse

carro. É tudo o que quero de você, nada mais.






Ele fechou os olhos e viu Leigh caminhando para casa, de volta da

escola. E, um quartei

rão abaixo, estava Christine, indolentemente, junto ao

meio

-

fio. Esperando por ela.



Abriu os olhos rapidamente, como se tivesse visto o demônio em

um quarto escuro.







Não posso fazer isso





respondeu.







Então parece que não temos muito a conversar, concord

a?







Não! Não, ainda temos muito que falar. Nós...







Adeus, Arnie. Vejo você na escola.







Espere, Leigh!



Clique.

E o mortal silêncio absoluto.



Um momento de fúria quase insana passou sobre ele. Teve um

súbito e incontido impulso de girar o fone negro pelo

fio, dando voltas e

mais voltas acima da cabeça, como o

laço

de um gaúcho, estilhaçando os

vidros da maldita câmara de tortura da cabine telefônica. Eles o

abandonavam, todos eles. Os ratos desertando do navio que naufragava.



Você precisa estar decidido a

ajudar

-

se, antes que alguém mais possa fazê

-

lo.



Mentira cretina! Eram ratos abandonando um navio que afundava.

Nenhum deles, desde o bosta do Slawon, com seus grossos óculos de aros de chifre

e seus esquisitos olhos de ovo cozido, àquele merda nojento do s

eu velho que estava

tão saturado de trepar que devia dar uma navalha à puta com quem se casara e

convidá

-

la a cortar fora a cona e àquela cadela barata em sua casa elegante com as

pernas cruzadas porque talvez estivesse menstruada e por isso se engasgara c

om o

maldito hambúrguer e àqueles bostas com seus malditos carros de luxo e os porta

-

malas cheios de tacos de golfe àqueles malditos funcionários que eu gostaria de

entortar neste torno mecânico eu jogaria golfe com eles e encontraria o buraco

certo para e

nfiar aquelas bolinhas brancas em você pode apostar seu traseiro nisto

mas quando eu der o fora daqui ninguém vai me dizer o que fazer e tudo será à

minha maneira minha minha minha minha minha MINHA...



Arnie caiu em si, repentinamente, assustado e de olhos



arregalados,

respirando com força. O que tinha acontecido com ele? Era como se

alguém mais estivesse ali naquele momento, alguém com uma raiva louca

da humanidade em geral.



Não apenas alguém mais. Era LeBay.






Não! Não é verdade, de maneira nenhuma!



A voz d

e Leigh:

Não é verdade, Arnie?



De súbito, algo muito semelhante a uma visão surgiu em sua mente

cansada e confusa. Estava ouvindo a voz de um sacerdote:

Arnie, aceita esta

mulher como sua..



Entretanto, não era em uma igreja; era um depósito de carros usado

s,

com vividas e multicoloridas flâmulas de plástico agitadas por uma brisa

persistente. Havia cadeiras de campanha dispostas no local. Era o

depósito de Will Darnell, e Will estava a seu lado, na condição de

padrinho. Não havia nenhuma garota a seu lado.

Christine estacionara

junto dele, cintilando em um sol de primavera, até mesmo seus flancos

brancos pareciam reluzir.



A voz de seu pai:

Está acontecendo alguma coisa?



A voz do pastor:

Quem entrega esta mulher a este homem?



Roland D. LeBay se levantou de um

a das cadeiras de campanha,

como o esqueleto da proa de um navio fantasma, vindo do Hades.

Sorria





e, pela primeira vez, Arnie viu quem estivera sentado ao lado

dele: Buddy Repperton, Richie Trelawney, "Penetra" Welch. Richie

Trelawney estava enegrecido e



estorricado, faltando

-

lhe a maior parte dos

cabelos. O sangue havia escorrido pelo queixo de Buddy Repperton e se

coagulara em sua camisa, como hediondo vômito. O pior, no entanto, era

"Penetra" Welch: fora estripado como uma sacola de lavanderia. Sorriam

.

Todos eles sorriam.



Eu, grasnou Roland D. LeBay. Sorriu, e uma língua, coberta do limo

da sepultura, pendeu do buraco fedorento de sua boca.

Eu a entrego, e ele

tem o recibo como prova. Ela é toda dele. A cadela é o ás de espadas... e é toda dele.



Arnie

percebeu que estava gemendo na cabine telefônica, com o

fone aferrado ao peito. Fazendo um tremendo esforço, conseguiu evadir

-

se por completo da alucinação





visão, fosse lá o que fosse





e dominou

-

se.



Desta vez, quando quis recolher as moedas da prateleir

a, deixou

metade delas cair ao chão. Enfiou dez centavos na fenda e folheou

apressadamente o catálogo telefônico, até encontrar o número do hospital.

Dennis. Dennis estaria lá, Dennis sempre estivera. Dennis não o

abandonaria. Dennis o ajudaria.






A moça da

mesa telefônica atendeu e ele pediu:







Quarto 42, por favor.



A ligação foi feita. O telefone começou a tocar. Tocou... e tocou... e

tocou. Quando ele já ia desistir, uma suave voz feminina perguntou:







Segundo andar, ala C, com quem deseja falar?







Guilder







disse Arnie.





Dennis Guilder.







O Sr. Guilder se encontra na Fisioterapia neste momento





informou a voz feminina.





Poderá falar com ele às oito horas.



Arnie pensou em dizer

-

lhe que era importante





muito

importante





mas, de repente, sentiu uma insup

ortável necessidade de

sair da cabine telefônica. A claustrofobia era como uma gigantesca mão

pressionando seu peito. Ele podia sentir o cheiro do próprio suor. Um

cheiro acre, amargo.







Senhor?







Tudo bem. Ligarei mais tarde





disse Arnie.



Desligou e quas

e pulou para fora da cabine, deixando suas moedas

espalhadas na prateleira e no chão. Algumas pessoas se viraram para

olhá

-

lo, pouco interessadas, depois voltando a atenção para o que comiam.







A pizza está pronta





disse o atendente do balcão.



Arnie olhou



para o relógio e viu que ficara quase vinte minutos na

cabine. Havia suor por todo o seu rosto. As axilas estavam como uma

selva. Tinha as pernas trêmulas





os músculos das coxas estavam a ponto

de deixá

-

lo cair ao chão.



Pagou a pizza, quase deixando a ca

rteira cair, quando enfiou nela os

três dólares de troco.







Tudo bem com você?





perguntou o atendente.





Parece um

pouco pálido.







Estou ótimo





disse Arnie.



Agora tinha a sensação de que ia vomitar. Pegou rapidamente a

pizza em sua caixa branca, com a pa

lavra GINO'S impressa no topo e

fugiu para a fria e cortante claridade da noite. As últimas nuvens tinham

desaparecido e as estrelas piscavam como diamantes lapidados. Ele parou




na calçada por um momento, primeiro contemplando as estrelas, depois

Christine

, estacionada no outro lado da rua, esperando fielmente.



Ela nunca discutiria nem se queixaria, pensou Arnie. Nunca faria

exigências. Pensou também que poderia entrar nela a qualquer hora e

repousar no estofamento macio, descansar em seu calor. Ela nunca s

e

recusaria. Ela... ela...



Ela o amava.



Sim, ele sentia que isso era verdade. Da mesma forma como, às

vezes, intuía que LeBay não a teria vendido a mais ninguém, fosse por

duzentos e cinqüenta ou dois mil dólares. Ela estivera lá, quieta,

aguardando o comp

rador certo. Um comprador que...



Um comprador que a amaria do jeito como ela era,

sussurrou a voz

interior.



Sim, era isso. Era exatamente isso.



Arnie ficou imóvel, com a pizza esquecida entre as mãos, uma

fumacinha branca levantando

-

se preguiçosamente da c

aixa gordurosa.

Olhou para Christine e foi envolvido por tal confuso turbilhão de emoções

que era como se houvesse um ciclone em seu corpo, reordenando tudo

que ele simplesmente não destruíra. Oh, ele a amava e odiava, odiava

-

a e

a acarinhava, necessitava

e precisava fugir dela. Ela era sua, ele era dela e



(Eu os declaro marido e mulher, juntos e unidos a partir deste dia, para

todo o sempre, até que a morte os separe)



contudo, pior era o horror, o terrível e paralisante horror, a

percepção de que... de que

...



(como foi que machucou as costas aquela noite, Arnie? Depois que

Repperton





o falecido Clarence "Buddy " Repperton





e seus cupinchas

acabaram com ela? Como foi que machucou as costas, para agora ter que usar esse

fedorento colete ortopédico o tempo t

odo? Como foi que machucou as costas?)



A resposta surgiu





e Arnie começou a correr, tentando deixar para

trás a revelação, chegar a Christine antes que visse a coisa nitidamente e

ficasse maluco.



Disparou para Christine, em uma corrida a pé, movida por su

as

confusas emoções e alguma terrível e recente conscientização; correu para

ela, como correria o viciado para sua droga, quando fica trêmulo e os




tremores pioram tanto, que não o deixam pensar em mais nada além do

alívio; correu, como correria o maldito p

ara a provação a ele destinada;

correu, como corre o noivo para onde a noiva o espera.



Correu, porque dentro de Christine nada daquelas coisas

importava





nem sua mãe, seu pai, Leigh, Dennis ou o que quer que ele

próprio houvesse feito com suas costas naqu

ela noite depois que todos

haviam saído, naquela noite em que retirara seu Plymouth do aeroporto,

quase inteiramente destruído, e o levara de volta à Garagem de Darnell

onde, já sem ninguém lá dentro, pusera a transmissão de Christine em

ponto morto e a em

purrara, empurrara

-

a, até que começasse a rodar sobre

os pneus murchos, empurrara

-

a, até que passasse pela porta e ele ouvisse

o vento de novembro sibilando rispidamente em torno das carcaças e

carros abandonados no ferro

-

velho, com seus vidros trincados e



tanques

de gasolina furados; empurrara

-

a, até o suor lhe escorrer em regatos, até o

coração disparar em seu peito como um cavalo fugitivo, até suas costas

clamarem por socorro; empurrara Christine, o coração bombeando como

se devido a algum infernal gasto



de combustível; empurrara

-

a e, no

interior do carro, o odômetro começara a girar lentamente em sentido

contrário, empurrara até uns quinze metros além da porta, até suas costas

começarem francamente a latejar, mas continuou empurrando até as

costas gritar

em em protesto, e empurrou ainda, forçando os músculos,

juntamente com os pneus vazios e dilacerados, as mãos ficando

entorpecidas e as costas gritando, gritando, gritando. E então...



Alcançou Christine e atirou

-

se dentro dela, tremendo e ofegando.

Sua piz

za caiu no chão. Apanhou

-

a e a colocou sobre o assento, agora

sentindo a calma que o invadia lentamente, como um bálsamo

tranqüilizante. Tocou a roda do volante, deixou as mãos deslizarem sobre

ele, traçando sua curva deliciosa. Tirou uma das luvas e apalp

ou o bolso,

em busca das chaves. As chaves de LeBay.



Ainda podia recordar o sucedido naquela noite, mas isso agora já

não lhe parecia tão terrível; agora, sentado ao volante de Christine, até

parecia maravilhoso.



Tinha sido um milagre.



Recordava como, de r

epente, ficara mais fácil empurrar o carro,

porque os pneus se inflavam como por magia, no ângulo perfeito, sem

uma só perfuração, inflando e inflando. Os vidros quebrados haviam

começado a recuperar

-

se do nada, entretecendo

-

se de baixo para cima,




com dimi

nutos sons rogaçantes e cristalinos. Os amassados começaram a

inflar

-

se e estufar, recuperando a forma antiga da lataria.



Arnie simplesmente empurrara o carro até ele ficar apto para rodar,

e então o dirigira, cruzando por entre as filas de carros velhos,

até o

odômetro recuar além do que Repperton e seus amigos haviam feito.

Então, Christine ficou ok.



O que podia haver nisso de tão terrível?



"Nada", disse uma voz.



Arnie olhou em torno. Roland D. LeBay estava sentado no banco do

passageiro, usando um terno

negro de frente trespassada, camisa branca e

gravata azul. Havia uma fileira de medalhas, pendendo em ângulo de

uma lapela do paletó





era o terno com que havia sido sepultado, Arnie

adivinhou isso, mesmo sem ter chegado a vê

-

lo realmente. Apenas, LeBay

pa

recia mais jovem e decidido. Um homem que não admitia brincadeiras.







Dê partida





disse LeBay.





Ligue o aquecimento e vamos

motorar.







Certo





disse Arnie, e girou a chave.



Christine começou a rodar, os pneus rangendo sobre a neve

acumulada. Naquela noit

e, ele dirigira o carro até quase todo o dano ter

sido reparado. Não, não reparado





negado.

Negado era a palavra certa

para o que havia ocorrido. Então, ele o recolocara no boxe vinte, deixando

o restante para ser feito manualmente.







Vamos ouvir um pouco



de música





disse a voz a seu lado.

Arnie ligou o rádio. Dion cantava "Donna, a Prima Donna".





Vai comer

essa pizza, ou não?



A voz parecia ter

-

se modificado ligeiramente.







Claro





respondeu Arnie.





Quer um pedaço? Um olhar de

soslaio:







Nunca digo não

a um pedaço de alguma coisa.



Arnie abriu a caixa da pizza com uma das mãos e tirou um pedaço.







Aqui est...






Ele arregalou os olhos. A fatia de pizza começou a tremer, com os

longos filetes de queijo pendendo, agitando

-

se como os de uma teia de

aranha, dila

cerada pelo vento.



Quem estava sentado ali não era mais LeBay. Era

ele.



Era Arnie Cunningham, por volta dos cinqüenta anos, não tão velho

quanto LeBay, naquele dia de agosto em que ele e Dennis o tinham

conhecido, não tão velho, mas caminhando para lá, ami

gos e vizinhos,

caminhando para lá. Seu eu mais idoso usava uma camiseta levemente

amarelecida e calças

jeans

sujas, manchadas de óleo. Os óculos eram de

chifre, unidos em uma das curvaturas por fita isolante. O cabelo era curto,

começando a recuar.

Os

olh

os cinzentos estavam foscos e injetados de

sangue. A boca mostrava todos os indícios de uma acre solidão. Porque

aquilo





aquela coisa, aparição, fosse lá o que fosse





era solitário. Arnie

podia senti

-

lo.



Solitário, exceto por Christine.



A versão dele pró

prio e de Roland D. LeBay poderia ter sido

traduzida como pai e filho: a semelhança era enorme.







Vai dirigir? Ou vai ficar olhando para mim?





perguntou a coisa.



De repente, a figura começou a envelhecer, diante dos olhos pasmos

de Arnie. Os cabelos cor d

e chumbo embranqueceram, a camiseta se

gastou e rasgou, o corpo sob ela encurvou

-

se com a idade. As rugas

percorreram a face, afundando

-

se como linhas cortadas pelo ácido. Os

olhos recuaram nas órbitas e as córneas amareleceram. Agora, somente o

nariz se p

rojetava para diante e aquele era o rosto de um velho corvo

carniceiro, mas continuava sendo o

seu

rosto, oh, sim, ainda o seu rosto.







Viu algo esquisito?





crocitou aquele sept... não, octogenário

Arnie Cunningham, enquanto seu corpo se torcia, enrugava

e

encarquilhava, no assento vermelho de Christine.





Viu algo esquisito?

Viu algo esquisito? Viu algo...



A voz se esganiçou e ganhou estridência, em um agudo ganido senil.

A pele se rompeu em úlceras e tumores de superfície, enquanto por trás

dos óculos ca

taratas leitosas cobriam os dois olhos, como anteparos sendo

puxados para baixo. A coisa se decompunha diante dos próprios olhos de

Arnie, desprendendo aquele mesmo cheiro que já sentira antes em

Christine, o mesmo que Leigh sentira, só que agora era pior,



era o cheiro




forte, estonteante, sufocante da decomposição em alta velocidade, o cheiro

de sua própria morte. Arnie começou a uivar como Little Richard no rádio,

cantando "Tutti Frutti", e agora os cabelos da coisa caíam em punhados de

fiapos alvos, as cl

avículas salientaram

-

se através da pele reluzente e

estirada, acima da frouxa gola redonda da camiseta, salientaram

-

se

através dela como grotescos lápis brancos. Os lábios encolhiam,

afastando

-

se dos últimos dentes remanescentes que jaziam em seu

caminho e



assemelhavam

-

se a lousas de sepulturas, aquilo era ele, aquilo

estava morto, no entanto, vivia





como Christine, aquilo vivia.







Viu algo esquisito?





balbuciou aquilo, de modo incoerente.





Viu

algo esquisito?

Arnie começou a gritar.





J

UNKINS

O

UTRA

V

EZ



Os



pára

-

lamas raspavam os postes da amurada,



Os caras a meu lado eram lívidos Fantasmas.



Um deles disse: "Diminua, eu vejo manchas,



E as linhas na estrada me parecem pontos. "







Charlie Ryan





Arnie chegou à Garagem de Darnell cerca de uma hora mais tarde.

Se

u carona





se realmente

houver

algum carona





há muito desaparecera.

O cheiro também se dissipara; sem dúvida, tinha sido apenas impressão.

Quando se anda muito tempo perto dos bostas, raciocinou ele,

tudo

começa a ter cheiro de merda. E isso os torna feli

zes, naturalmente.



Will estava sentado diante da escrivaninha, em seu gabinete

envidraçado, comendo um

hoagie.

*



Acenou com a mão gordurosa, porém

não saiu de lá. Arnie buzinou, depois estacionou.



Tudo tinha sido uma espécie de sonho. Nada mais simples. Al

guma

louca espécie de sonho. Telefonar para casa, telefonar para Leigh, tentar

                                        

             



*



Grande sanduíche com pão de crosta dura, cortado no sentido do comprimento

e

contendo várias espécies de carnes frias e também às vezes pimentão e tomate. (N.T.)






ligar para Dennis e ouvir aquela enfermeira informando que ele estava na

Fisioterapia





era como ser negado três vezes, antes de o galo cantar, ou

algo semelhante. Uma ligeira a

lucinação. E por que não, após toda a

maldita tempestade de provações que vinha atravessando desde agosto?

Afinal de contas, tudo consistia em uma questão de perspectiva, não?

Durante toda a vida, ele tinha sido uma coisa para as pessoas, mas agora

começav

a a sair da concha, transformava

-

se em um ser normal, com

preocupações normais e corriqueiras. Não era de admirar que as outras

pessoas se ressentissem com isso, porque quando alguém se modifica



(para o melhor ou para o pior, para riqueza ou para pobreza)



é natural que os demais se portem um pouco esquisitos quanto a

isso. A mudança lhes transtorna as perspectivas.



Leigh falara como se o julgasse louco e aquilo não passava de uma

idiotice da pior espécie. Ele estivera sob tensão, é claro, mas tensão era

uma



parte natural da vida. Se a Srta. Importante

-

Oh

-

Tão

-

Convencida

Leigh Cabot pensasse o contrário, estava caminhando diretamente para

uma trepada abismai, nas mãos do campeão permanente de violação que

é a Vida. Provavelmente, ela terminaria tomando Dexedri

na, para

começar a manhã com toda força e Nembutal ou Quaalude, para diminuir

a pressão à noite.



Oh, mas ele a desejava





ainda agora, pensando nela, sentia um

enorme, incontido e indizível desejo envolvê

-

lo como vento frio, fazendo

-

o apertar firmemente o

volante de Christine entre as mãos. Era um desejo

forte, grande e elementar demais para ter nome. Tinha sua própria força.



Não obstante, ele agora estava bem. Tinha a sensação de... haver

cruzado a última ponte, ou coisa assim.



Voltara a si, parado no meio



de uma estreita via de acesso, além do

mais distante extremo do pátio de estacionamento do Monroeville Mall





isto significando que se encontrava, aproximadamente, a meio caminho

para a Califórnia. Ao sair e espiar atrás do carro, tinha visto um buraco

fe

ito através de um banco de neve





e havia neve derretida espalhada

sobre o capô de Christine. Aparentemente, perdera o controle, começara a

derrapar através do pátio de estacionamento (o qual, embora com a

temporada natalina de compras estivesse em pleno m

ovimento,

permanecia misericordiosamente vazio naquela parte remota) e colidira




com o banco de neve. Era muita sorte não ter sofrido um acidente. Uma

bruta

sorte.



Ficou parado ali por um momento, ouvindo o rádio e olhando pelo

pára

-

brisa para a meia

-

lua qu

e flutuava acima. Bobby Helms estivera

cantando "Jingle Bell Rock", um som da temporada, como diziam os

disc

jockeys,

e ele sorrira um pouco, sentindo

-

se melhor. Não conseguia

recordar exatamente o que tinha visto (ou julgara ver) e, na verdade, nem

queria

. Fosse lá o que fosse, havia sido a primeira e última vez. Tinha

certeza disso. Os outros o deixavam irritado, imaginando coisas.

Provavelmente ficariam deliciados, se soubessem... só que não lhes daria

essa satisfação.



Tudo ia melhorar. Voltaria às boas

em casa





de fato, poderia

começar já nessa noite, vendo um pouco de TV com os pais, justo como

nos velhos tempos. E reconquistaria Leigh. Se ela não gostava do carro,

pouco importando quão estranhos fossem seus motivos, tudo bem. Talvez,

dentro em breve,

ele até comprasse outro carro e lhe diria que negociara

Christine. Poderia manter Christine ali, em estacionamento pago. O que

Leigh ignorasse, não a magoaria. E Will. No próximo fim de semana faria

a última viagem para Will. Aquela história já estava pass

ando dos limites,

podia perceber isso. Que Will o considerasse um covarde, se assim

quisesse. Uma acusação de crime por transporte interestadual de cigarros

e álcool sem licença não pareceria tão pesada em seu programa para

cursar uma faculdade, pareceria?



Uma acusação de crime

federal.

Não.

Não era tão fria assim.



Ele riu um pouco.

Sentia

-

se

melhor. Purgado. A caminho da garagem,

comeu a pizza, embora estivesse fria. Estava faminto. Achou curioso que

faltasse um pedaço da pizza





de fato, aquilo o deixou a

lgo inquieto



,

mas logo se acalmou. Sem dúvida, ele o comera durante aquele estranho

período em branco, talvez até o tivesse jogado fora pela janela. Poxa,

aquilo tinha sido esquisito! Agora, acabara

-

se toda essa merda. Ele tornou

a rir, um pouco menos tr

êmulo.



Na garagem, saiu do carro, bateu a porta e começou a caminhar para

o escritório de Will, a fim de informar

-

se sobre o que queria que ele fizesse,

aquela noite. De repente, ocorreu

-

lhe que o dia seguinte era o último em

que teria aulas, antes das fér

ias de Natal, o que lhe deu mais vivacidade ao

passo.






Foi quando se abriu a porta lateral da garagem, a que ficava ao lado

da maior, para entrada de carros, e surgiu um homem. Era Junkins. Outra

vez.



Viu Arnie olhando para ele e ergueu a mão.







Oi, Arnie.



Arnie olhou para Will. Através do vidro, Will deu de ombros e

continuou comendo seu sanduíche.







Olá





disse Arnie.





O que posso fazer pelo senhor?







Bem, eu não sei





respondeu Junkins. Sorriu e então seus olhos

deslizaram para além de Arnie, observando

Christine, avaliando,

procurando algum dano.





Quer fazer algo por mim?







Não quero fazer merda nenhuma





disse Arnie.



Podia sentir a cabeça começando a latejar de raiva novamente. Rudy

Junkins sorriu, aparentemente sem se ofender.







Só passei por aqui. Co

mo está?



Estendeu a mão. Arnie apenas olhou para ela. Sem ficar nem um

pouco constrangido, Junkins deixou a mão cair, caminhou até Christine e

recomeçou a examiná

-

la. Arnie o espiou, apertando tanto os lábios que

ficaram lívidos. Sentia um acesso de puro ó

dio, a cada vez que Junkins

tocava Christine com uma das mãos.







Ei, talvez devesse comprar um bilhete para a temporada ou coisa

parecida





disse Arnie.





Como para os jogos dos Steelers.



Junkins se virou e o fitou inquisitivamente.







Deixa pra lá





Arnie

falou carrancudo. Junkins prosseguiu com

seu exame.







Sabe





disse



, foi uma coisa infernalmente estranha o que

aconteceu com Buddy Repperton e com aqueles dois rapazes, não?



Foda

-

se,

pensou Arnie.

Não vou dar papo a esse bosta.







Estive em Filadélfia. Tor

neio de xadrez.







Eu sei





respondeu Junkins.







Céus!

Esteve realmente verificando o que eu. fazia!






Junkins tornou a caminhar até ele. Agora não havia sorriso em seus

lábios.







Exatamente





disse.





Andei checando seus movimentos. Três

dos rapazes que, seg

undo creio, estiveram envolvidos na destruição de

seu carro, agora estão mortos, juntamente com um quarto que,

aparentemente, apenas tomava parte no passeio da noite de terça

-

feira. É

muita coincidência. Grande demais para mim. Pode ter certeza de que o

es

tive checando.



Arnie olhou para ele, a surpresa suplantando a raiva, hesitante.







Pensei que tivesse sido um acidente... que eles tinham bebido

demais, estavam em alta velocidade e...







Houve outro carro envolvido





cortou Junkins.







Como é que sabe disso?







Em primeiro lugar, havia marcas de pneus na neve. Infelizmente,

o vento as tinha deformado o suficiente para que não pudéssemos ter uma

foto decente. Entretanto, uma das barreiras do Parque Estadual das

Squantic Hills foi quebrada e encontramos nela tra

ços de tinta vermelha.

O Camaro de Buddy não era vermelho. Era azul.



Junkins avaliou Arnie com os olhos.







Também encontramos traços de tinta vermelha engastados na

pele de "Penetra" Welch, Arnie. Pode explicar isso?

Engastados. Sabe

com

que força um carro



tem de atingir um sujeito para que

engaste tinta em sua

pele?







Pois eu acho que o senhor deveria ir lá para fora e começar a

contar carros vermelhos





replicou Arnie friamente.





Passaria de vinte,

antes de chegar a Bassin Drive, posso garantir.







Sem dú

vida





retrucou Junkins



, mas enviamos nossas

amostras ao laboratório do FBI, em Washington, onde possuem amostras

de cada tonalidade de tinta já usada em Detroit. Recebemos a resposta

hoje. Tem alguma idéia de qual seria? Quer adivinhar?



O coração de Arn

ie batia loucamente em seu peito, e nas têmporas

soavam batidas correspondentes.







Uma vez que veio até aqui, imagino que a tonalidade fosse

vermelho

-

outono. É a cor de Christine.










Acertou em cheio, rapaz. Merece um prêmio





disse Junkins.



Acendeu um ciga

rro e contemplou Arnie através da fumaça. Junkins

abandonara qualquer simulação de bom humor e seu olhar era frio.



Arnie levou as mãos à cabeça, em um exagerado gesto de cólera.







Vermelho

-

outono, e daí? Christine foi pintada por especificação

do comprador

, mas houve Fords de 1959 a 1963 pintados em vermelho

-

outono, bem como Thunderbirds. A Chevrolet ofereceu a mesma

tonalidade de 1962 a 1964 e, durante algum tempo, em meados dos anos

50, era possível conseguir

-

se um Rambler vermelho

-

outono. Há meio ano

ten

ho estado trabalhando em meu 58 e consegui livros sobre carros. Não

se pode fazer um trabalho de restauração sem esses livros, ou estamos

fodidos, antes mesmo do começo. Vermelho

-

outono era uma escolha

bastante popular. Eu sei disso





olhou fixamente para

Junkins





e o

senhor também. Não é?



Junkins nada disse. Limitou

-

se a ficar olhando para Arnie, daquela

maneira fixa, grave e inquietante. Ninguém jamais olhara assim para

Arnie, em toda a sua vida, mas ele identificou o olhar. Supôs que qualquer

um o ident

ificaria. Era um olhar de franca e forte suspeita. Deixou

-

o

assustado. Alguns meses antes





talvez até mesmo semanas





provavelmente ficaria apenas assustado, mas agora estava também

enfurecido.







Está realmente me impressionando. Afinal, que diabo tem con

tra

mim, Sr. Junkins? Por que não sai do meu traseiro?



Junkins riu e caminhou em largo semicírculo. O lugar estava

completamente vazio, exceto por eles dois e Will em seu escritório,

terminando o sanduíche, lambendo o azeite que lhe escorrera para as

mãos

e observando

-

os detidamente.







O que tenho contra você?





exclamou ele.





O que acha de

assassinato em primeiro grau, Arnie? Não acha um pouco forte?



Arnie ficou muito quieto.







Não se preocupe





disse Junkins, sem parar de andar.





Nada

de cenas de tira d

urão por aqui. Nada de ameaças sobre ir até a cidade,

exceto que, no caso presente, a cidade seria Harrisburg. Nada de ler

-

lhe os

seus direitos. Tudo ainda está ótimo para o nosso herói, Arnold

Cunningham.










Não compreendo nada do que está...







Você., comp

reende.. MUITO BEM!





Junkins

rugiu para ele. Havia

parado perto do gigantesco volume amarelo de um caminhão, outro dos

trabalhos de Johnny Pomberton, em andamento. Olhou fixamente para

Arnie.





Três dos rapazes que arrebentaram seu carro estão mortos. Em

ambas as cenas do crime, foram recolhidas amostras de tinta vermelho

-

outono, levando

-

nos a crer que o veículo usado pelo perpetrador nos dois

casos era, pelo menos em parte, pintado de vermelho

-

outono. E, poxa,

acontece apenas que o carro depredado por aqu

eles rapazes era quase

todo vermelho

-

outono! No entanto, você fica aí, empurrando os óculos

para cima do nariz e declara que não compreende o que estou falando.







Eu estava em Filadélfia, quando aquilo aconteceu





respondeu

Arnie, com calma.





Será que não



pensou nisso? Não pensou mesmo

nisso?







Filho





disse Junkins, jogando fora o cigarro.





Aí está a pior

parte da coisa. A parte que realmente fede.







Pois eu gostaria que o senhor fosse embora daqui, que me

prendesse ou fizesse alguma coisa. Porque tenho

de assinar o ponto e

trabalhar um pouco.







Por enquanto





disse Junkins



, tudo que posso fazer é falar. Da

primeira vez, quando Welch foi morto, presumia

-

se que você estivesse em

casa, dormindo.







Uma desculpa fraca, eu sei





disse Arnie.





Acredite, se

s

oubesse que esta merda ia me cair na cabeça, contrataria um amigo

doente para me fazer companhia.







Oh, não! A justificativa foi

boa





respondeu Junkins.





Seus pais

não tinham motivos para duvidar de sua história. Posso afirmá

-

lo, depois

que falei com ele

s. E álibis, os verdadeiros, em geral têm mais furos do

que um terno do Exército da Salvação. Quando começam a parecer

armaduras é que me deixam nervoso.







Meu Deus do céu!





exclamou Arnie, quase gritando.





Eu

estive em um maldito campeonato de

xadrez! J

á faz

quatro anos

que

pertenço ao clube de xadrez!







Até o dia de hoje





disse Junkins, e Arnie tornou a ficar imóvel.

Junkins assentiu.





Oh, sim, estive falando com o conselheiro do clube.




Herbert Slawson. Ele disse que você nunca perdeu uma reunião nos

primeiros três anos, inclusive esteve presente em uma dupla, mesmo com

um resfriado. Você era seu melhor jogador. Então, este ano, começou a

faltar desde o começo e...







Eu tinha que trabalhar em meu carro... e arranjei uma garota...







Ele me disse que voc

ê perdeu os primeiros três torneios e que

ficou muito surpreso ao ver seu nome na folha dos que viajariam para o

encontro dos Estados do Norte. Supunha que houvesse perdido qualquer

interesse pelo clube.







Já lhe disse...







Sim, você disse. Muito ocupado.

Carros e garotas, justamente as

duas coisas que mais ocupam o tempo dos rapazes. Entretanto, você

recuperou o interesse por tempo suficiente para ir a Fila... e então

abandonou o clube. Isto me soa muito estranho.







Não vejo nada de estranho nisso





replic

ou Arnie, mas sua voz

parecia distante, quase perdida no turbulento latejar do sangue em seus

ouvidos.







Tolice. É como se você soubesse o que estava para acontecer e se

protegesse com um álibi, incontestável.



O estrondo em sua cabeça agora parecia as bati

das firmes das ondas,

cada uma delas acompanhada por uma fosca pontada de dor. Estava

começando a ficar com dor de cabeça





por que aquele indivíduo

monstruoso, com seus perscrutadores olhos castanhos, não ia embora de

uma vez? Nada daquilo era verdade, na

da. Não precisava armar coisa

alguma, nenhum álibi, nada. Ficara tão surpreso como qualquer pessoa,

ao ler no jornal o que havia acontecido. É claro que ficara. Nada de

estranho estava acontecendo, a menos que fosse esta paranóia de lunático

e



(afinal, com

o foi que machucou suas costas, Arnie? E, por falar nisso, viu

algo esquisito? Viu)



fechou os olhos e, por um momento, o mundo pareceu cambalear

em sua órbita e ele viu aquele rosto esverdeado, sorridente e flutuando à

sua frente, dizendo:

Dê partida. Ligu

e a calefação e vamos motorar. E enquanto

estamos nisto, vamos pegar os bostas que arrebentaram nosso carro. Vamos untar

os Cabecinhas de pica, filho, o que me diz? Vamos dar neles com tanta força que o




retalhador de defuntos no hospital da cidade terá de

usar pinças para retirar os

fragmentos de tinta de suas carcaças. O que me diz? Encontre alguma música dos

velhos tempos no rádio e vamos rodar. Vamos...



Arnie tateou às suas costas, tocou Christine





sua dura, fria e

tranqüilizadora superfície





e as cois

as voltaram a encaixar

-

se no lugar.

Ele abriu os olhos.







De fato, existe mais um detalhe





falou Junkins



, porém muito

subjetivo. Nada que se pudesse colocar em um relatório. Você está

diferente desta vez, Arnie. Mais duro, de certa forma. Quase como se

tivesse envelhecido vinte anos.



Arnie riu e ficou aliviado ao ouvir seu riso soando com naturalidade

suficiente.







Acho que está com um parafuso frouxo, Sr. Junkins. Junkins não

se juntou a ele na risada.







Hum

-

hum. Eu sei disso. A coisa inteira está froux

a, mais frouxa

do que tudo que já investiguei, em meus dez anos de detetive. Da última

vez, pensei que poderia chegar até você, Arnie. Senti que você estava... Sei

lá! Parecia perdido, infeliz, olhando em tomo à procura de uma saída.

Agora não sinto mais n

ada disso. É quase como se estivesse falando com

uma pessoa inteiramente desconhecida. E uma pessoa não muito

agradável.







Já estou cheio de falar com o senhor





disse Arnie, e começou a

caminhar para o gabinete de Will.







Quero saber o que aconteceu





dis

se Junkins, atrás dele.





E

vou descobrir, pode acreditar!







Faça

-

me um favor e fique longe daqui





disse Arnie.





O senhor

está louco.



Entrou no escritório, fechou a porta e percebeu que suas mãos não

apresentavam o menor tremor. O aposento estava impregn

ado dos cheiros

de charuto, azeite e alho. Passou diante de Will sem falar, pegou seu

cartão de ponto no escaninho e o marcou no relógio:

ka

-

thud!

Então espiou

pela parte envidraçada da sala e viu Junkins parado lá fora, olhando para

Christine. Will nada d

isse. Arnie podia ouvir o ruidoso resfolegar da

respiração do homenzarrão. Uns dois minutos mais tarde, Junkins foi

embora.










Tira





disse Will, e deu um longo arroto, que soou como uma

serra de cadeia.







Certo.







Repperton?







Hum

-

hum. Ele acha que tive al

go a ver com aquilo.







Mesmo você estando em Fila? Arnie meneou a cabeça.







Ele parece nem se preocupar com o detalhe.



Então é um tira esperto,

pensou Will.

Sabe que os fatos estão errados, e

sua intuição lhe diz que há algo ainda mais errado do que isso.

Então, irá mais

fundo no assunto do que iria qualquer outro tira, mas poderá levar um milhão de

anos e nunca se aproximar da verdade.

Will recordou o carro vazio, rodando

sozinho para o boxe vinte, como um estranho brinquedo movido a corda.

A fenda vazia d

a ignição, girando para START. O motor acelerando por

uma vez, como um rosnado de aviso, para não morrer.



E





ao rememorar aquelas coisas, Will não se sentiu com confiança

suficiente para encarar Arnie, embora tivesse quase uma vida inteira de

experiências



nas mentiras de rotina.







Se os tiras estão de olho em você, não vou mandá

-

lo a Albany.







Pouco importa se você me mande ou não a Albany, mas não

precisa se preocupar com o cara. É o único tira que já me procurou e está

louco. Interessa

-

se apenas por dois



casos de atropelamento e fuga.



Os olhos de Will agora se fixaram nos de Arnie, cinzentos e distantes.

Os de Will mostravam uma desbotada falta de cor, as córneas eram

levemente amareladas: os olhos de um gato idoso, que já vira milhares de

camundongos est

ripados.







Ele está interessado em você





disse.





Será melhor eu mandar

Jimmy.







Você gosta da maneira como Jimmy dirige?



Will olhou para Arnie por um momento e depois suspirou.







Está bem





disse.





No entanto, se vir esse tira, caia fora. E se

for apanh

ado segurando uma sacola, Cunningham, é a sua sacola.

Entendeu bem?










Claro





respondeu Arnie.





Vai querer que eu faça algum

trabalho esta noite?







Há um Buick 77 no boxe quarenta e nove. Verifiquei o acionador

de arranque. Cheque o solenóide. Se tudo par

ecer bem, cheque isso

também.



Arnie assentiu e saiu. Os olhos atentos de Will desviaram

-

se dele,

não o viram caminhar para Christine. Sabia que não haveria problema,

quanto a enviá

-

lo a Albany aquele fim de semana. O garoto também sabia

disso e iria em fre

nte, de qualquer jeito. Tinha dito que faria o trabalho e,

por Deus, ele o faria mesmo. E se acontecesse alguma coisa o garoto se

viraria sozinho. Will tinha certeza disso. Já se fora o tempo em que Arnie

não suportaria a carga, mas esse tempo, agora, era

passado.



Will ouvira tudo pelo intercomunicador.



Junkins estava certo.



O garoto agora estava mais duro.



Will começou a olhar novamente para o 58 de Arnie. Arnie iria a

Nova Iorque no Chrysler de Will. E





enquanto ele estivesse ausente





Will vigiaria Chri

stine. Vigiaria Christine para ver o que acontecia.





A

RNIE EM

A

PUROS



Com assentos de Naugahyde separados



Dianteiros e traseiros,



Tudo cromado, cara, até o macaco,



Piso na gasosa e ela dispara



Waaaaahhhk...



Vou deixar você olhar,



Mas não toque em minha máqu

ina,



Feita de encomenda.







The Beach Boys








Na tarde seguinte, Rudolph Junkins e Rick Mercer, da divisão de

detetives da Polícia Estadual da Pensilvânia, tomavam café em um

sombrio e pequeno gabinete, onde a tinta das paredes descascava. No

exterior caía um

a mistura de chuva e neve.







Tenho certeza de que será neste fim de semana





disse

Junkins.





Nos últimos oito meses, aquele Chrysler tem rodado a cada

quatro ou cinco semanas.







Procure apenas compreender que agarrar Darnell e essa idéia fixa

em sua cacho

la sobre o garoto são duas coisas diferentes.







Pois para mim, são a mesma coisa





replicou Junkins.





O

garoto sabe de algo. Se o deixar assustado, posso descobrir o que seja.







Acha que ele teria algum cúmplice? Alguém que usou seu carro e

matou aqueles

rapazes, enquanto ele estava no torneio de xadrez?



Junkins abanou a cabeça.







Não, infelizmente. Ele só tem um amigo íntimo, que está

hospitalizado. Não sei o que pensar, exceto que o carro esteve envolvido...

e ele também.



Junkins largou sua xícara de plá

stico com o café e apontou para o

homem sentado do outro lado da mesa.







Assim que conseguirmos fechar aquela garagem, vou querer seis

técnicos do laboratório vasculhando tudo, de popa à proa, por dentro e

por fora. Vou querer aquele carro em um elevador,

sendo checado em

busca de amassados, mossas, pintura nova e... sangue. Eis aí o que

realmente quero, Rick. Apenas uma gota de sangue.







Você não vai muito com o garoto, hein?





comentou Rick.



Junkins deu uma risadinha desnorteante.







Sabe? Cheguei a gostar



dele, quando o vi pela primeira vez... Sim,

gostei dele e tive pena. Dava a impressão de querer proteger alguém que

lhe tivesse feito algo. Desta vez, no entanto, não gostei dele em absoluto.



Junkins ficou pensativo.







Também não gostei daquele carro. E d

a maneira como ele o toca,

sempre que eu o julgava encurralado. Era muito esquisito.



Rick respondeu:










Lembre

-

se apenas de que quem queremos agarrar é Darnell.

Ninguém em Harrisburg tem o menor interesse em seu garoto.







Eu me lembrarei





disse Junkins. To

rnou a pegar sua xícara e

olhou para Rick com ar grave.





Porque ele é um meio para chegar ao

meu objetivo.





Vou pegar quem matou aqueles rapazes, nem que seja a

última coisa que faça!







Talvez nem seja neste fim de semana





disse Rick. Mas foi.



Dois poli

ciais à paisana, do Esquadrão de Crimes do Estado da

Pensilvânia, permaneceram na cabine de uma

pickup

Datsun, de quatro

anos antes, na manhã do sábado, 16 de dezembro, vigiando quando o

Chrysler preto de Will Darnell passou pela grande porta da garagem e

ganhou a rua. Caía uma gelada chuvinha, mas não o bastante para nevar.

Era um daqueles dias nevoentos, quando é impossível apontar

-

se onde

terminam as nuvens mais baixas e começa a verdadeira neblina. O

Chrysler exibia adequadamente suas luzes de estaciona

mento. Arnie

Cunningham era um motorista seguro.



Um dos policiais levou um

walkie

-

talkie à

boca e falou







Ele acabou de sair no carro de Darnell





disse.





Vocês aí,

fiquem em seus calcanhares. Seguiram o Chrysler até a I

-

76. Quando

viram Arnie tomar a ram

pa leste, sinalizando para



Harrisburg, manobraram para a rampa oeste, na direção de Chio e

relataram o fato. Deixariam a I

-

76 pela faixa de saída e retomariam à sua

posição original, perto da Garagem de Darnell.







Ok





respondeu a voz de Junkins



, vamos f

azer uma omelete.





Vinte minutos mais tarde, quando Arnie rodava para leste a uma

velocidade tranqüila e legal de 80 quilômetros, três policiais, com a

papelada adequada em punho, bateram à porta de William Upshaw, que

morava no sofisticado e requintado su

búrbio de Sewickley. Upshaw

atendeu à porta em seu roupão de banho. De trás dele, chegaram os

gemidos do desenho animado das manhãs de sábado na TV.







Quem é, meu bem?





perguntou sua esposa, da cozinha.



Upshaw olhou para os papéis, documentos do Tribunal

de Justiça, e

teve a impressão de que ia desmaiar. Um deles determinava a apreensão




de todos os registros de impostos de Upshaw relacionados a Will Darnell

(pessoa física) e Will Darnell (pessoa jurídica). Os documentos tinham a

assinatura do procurador

-

ge

ral da Pensilvânia e de um juiz do Supremo

Tribunal.







Quem é, bem?





tornou a perguntar sua esposa.



Um filho de Upshaw veio espiar, de olhos arregalados. Upshaw

tentou falar, mas de sua boca saiu apenas um grasnido rouco. Acontecera.

Ele sonhara com aquil

o e, finalmente, acontecera. A casa em Sewickley

não o protegera disso; a mulher que ele mantinha a prudente distância, no

reinado da Prússia, não o protegera disso. Estava ali: podia lê

-

lo no rosto

liso daqueles tiras em seus ternos Anderson

-

Little, adqui

ridos em

liquidações. Pior do que tudo, um dos homens era agente federal





Álcool, Tabaco e Armas de Fogo. Este lhe exibiu uma segunda

identificação que o proclamava como agente de algo denominado Força

-

Tarefa Federal do Controle de Drogas.







Segundo nossa

s informações, o senhor mantém um escritório em

sua casa





disse o tira federal.



Aparentava





o quê? Vinte e seis? Trinta anos? Teria espremido os

miolos algum dia, tentando descobrir o que fazer, quando se tem três

filhos e uma esposa com gosto algo exage

rado por coisas finas? Bill

Upshaw duvidava muito. Quando se tem tais preocupações, o rosto não

fica tão liso. Um rosto só permanece assim quando podemos nos dar ao

luxo de nobres pensamentos: lei e ordem, certo e errado, bons e maus

sujeitos.



Abriu a boca



para responder ao tira federal, mas emitiu apenas

outro grasnido rouco.







A informação é correta?





perguntou pacientemente o federal.







Sim, é





crocitou Bill Upshaw.







E outro escritório no número 100 de Frankstown Road, em

Monroeville?







Sim.







Bem, o

que é?





perguntou Amber, e surgiu no corredor.



Ao ver os três homens de pé na entrada, ela fechou mais a gola do

roupão caseiro. Os desenhos animados retumbaram.






Upshaw pensou, de repente e com certo alívio: É

o fim de tudo.



O garoto que viera ver quem ch

egava para visitá

-

los tão cedo, em

uma manhã de sábado, de súbito prorrompeu em lágrimas e correu para a

segurança dos

Superamigos,

no Canal 4.





Quando Junkins recebeu a notícia de que Upshaw havia sido

intimado e apreendidos todos os documentos pertinente

s a Darnell, tanto

na residência dele como em seu escritório de Monroeville, partiu

chefiando meia dúzia de tiras no que, supunha, seria chamada uma

batida,

nos velhos tempos. Mesmo durante o temporada de férias, a garagem

mantinha uma moderada atividade n

o sábado (embora não se

transformasse, de modo algum, no lugar fervilhante dos fins de semana

do verão), de forma que, quando Junkins levou até a boca um alto

-

falante

movido a pilhas e começou a usá

-

lo, talvez umas vinte e quatro cabeças se

viraram para ve

r o que era. Vinte e quatro cabeças, que teriam motivos de

sobra para conversas a respeito, até o Ano

-

Novo.







Aqui é a Polícia Estadual da Pensilvânia!





anunciou Junkins, pelo

alto

-

falante.



As palavras ecoaram e reverberaram. Mesmo em tal momento, ele

per

cebeu que tinha os olhos fixos no Plymouth vermelho e branco,

estacionado vazio no boxe 20. Durante seu trabalho, já tocara em meia

dúzia de armas assassinas, algumas vezes no local do crime, porém mais

freqüentemente no banco das testemunhas, mas só olhar



para aquele carro

já lhe dava calafrios.



Gitney, o homem do Imposto de Renda que o acompanhava naquela

particular incursão, franziu a testa, incitando

-

o a prosseguir.

Nenhum de

vocês sabe o que isto significa. Nenhum de vocês.

Entretanto, tornou a erguer

o

alto

-

falante até a boca.







Esta firma está fechada! Eu repito, esta firma está fechada! Vocês podem

retirar seus veículos, se estiverem em condições de rodar... do contrário, por favor,

saiam daí, rápida e calmamente! Esta firma está fechada!



O alto

-

fala

nte emitiu um

clique

amplificado, ao ser desligado.



Junkins olhou para o escritório e viu que Will Darnell falava ao

telefone, com um charuto apagado na boca. Jimmy Sykes estava em pé

junto à máquina automática de Coca e seu rosto abobado era um retrato




de



confusa perplexidade





não parecia muito diferente do filho de Bill

Upshaw, no momento antes de se debulhar em lágrimas.









Entende os seus direitos, segundo acabei de ler?



O policial encarregado era Rick Mercer. Atrás dele, a garagem

estava vazia, exceto



por quatro tiras uniformizados que faziam o trabalho

burocrático a respeito dos carros apreendidos, quando a garagem fora

fechada.







Certo





disse Will.



Seu rosto estava composto; o único sinal de perturbação era a

respiração mais sibilante, a rápida subi

da e descida do peito enorme sob a

camisa branca de gola aberta: e a maneira como segurava constantemente

seu inalador em uma das mãos.







Tem algo a dizer

-

nos neste momento?





perguntou Mercer.







Não, até que meu advogado esteja aqui.







Seu advogado pode j

untar

-

se a nós em Harrisburg





disse

Junkins.



Will olhou iradamente para ele e nada disse. Lá fora, mais policiais

uniformizados tinham terminado de afixar selos em todas as portas e

janelas da garagem, exceto sobre a pequena porta lateral. Enquanto não

ce

ssasse o embargo, todas as entradas e saídas seriam efetuadas por ali.







Nunca ouvi falar em nada mais louco





disse Will Darnell, por

fim.







Vai ficar ainda mais louco





disse Marcer, sorrindo

sinceramente.





Você ficará fora de circulação por bastante te

mpo, Will.

Um dia, talvez seja incumbido de dirigir a oficina mecânica da prisão.







Sei quem é você





disse Will, olhando para ele.





Seu nome é

Mercer. Conheci bem seu pai. Foi o tira mais desonesto que já existiu no

Condado de King.



O sangue fugiu do ros

to de Rick Mercer e ele ergueu a mão.







Pare com isso, Rick





disse Junkins.










Tudo certo





disse Will.





Divirtam

-

se à vontade, caras. Façam

suas piadas sobre a oficina mecânica da prisão. Em duas semanas, estarei

aqui de novo, trabalhando. E se não sabem



disso, são ainda mais imbecis

do que parecem.



Olhou em torno, fitando

-

os com seus olhos inteligentes, sardônicos...

e encurralado. De repente, levou o inalador à boca e aspirou fundo.







Tirem este saco de merda daqui





disse Mercer. Ainda estava

pálido.









Você está bem?





perguntou Junkins.



Estavam sentados dentro de um Ford do Estado, com chapa fria,

uma hora mais tarde. O sol resolvera mostrar

-

se e brilhava de maneira

ofuscante, dissolvendo a neve e encharcando as ruas. A Garagem de

Darnell permanecia s

ilenciosa. Os registros da firma





e o Plymouth

restaurado de Cunningham





estavam seguramente encerrados lá dentro.







Aquilo que ele disse sobre meu pai...





disse Mercer, em voz

espessa.





Meu pai se matou, Rudy. Um tiro na cabeça. E eu sempre

pensei...

lá no colégio...





Ele deu de ombros.





Muitos tiras fazem isso.

Melvin Purvir fez também, você sabe. Foi ele quem pegou Dillinger. No

entanto, a gente se pergunta...



Mercer acendeu um cigarro e expulsou a fumaça para baixo, em um

longo e trêmulo jato.







E

le não sabia de nada





disse Junkins.







Uma ova, que não sabia





disse Mercer. Desceu o vidro de sua

janela e jogou o cigarro fora. Depois pegou o microfone sob o painel.





Central, aqui é Móbile Dois.







Dez

-

quatro, Móbile Dois.







O que está acontecendo co

m nosso pombo

-

correio?







Está na Interestadual 84, aproximando

-

se de Port Jervis.



Port Jervis era o ponto de cruzamento entre a Pensilvânia e Nova

Iorque.







Tudo pronto em Nova Iorque?










Afirmativo.







Diga a eles novamente que eu o quero a nordeste de Midd

letown,

antes de o pegarem, e que seu bilhete de pedágio seja apreendido como

evidência.







Dez

-

quatro.



Merter recolocou o microfone no lugar e sorriu de leve.







Assim que ele passar para Nova Iorque, nada no mundo

impedirá que isto seja um caso federal...

mas ainda faltam alguns retoques.

Não é uma beleza?



Junkins não respondeu. Não achava beleza nenhuma naquilo desde

Darnell, com seu inalador, ao pai de Mercer dando um tiro na cabeça.

Junkins experimentava uma estranha sensação de inevitabilidade, uma

impr

essão de que as coisas terríveis ainda não haviam terminado





estavam apenas começando a acontecer. Sentia

-

se a meio caminho através

de uma história sombria, cujo final talvez se revelasse demasiado terrível.

Exceto que precisava chegar àquele final agora,



não? Sem dúvida.



Persistia a horrenda sensação, a terrível imagem: da primeira vez

que falara com Arnie Cunningham, falava a um homem que se afogava, e

da segunda vez que falara com ele o afogado emergira





e Junkins falava

com um cadáver.





O céu encobert

o a oeste de Nova Iorque começava a clarear, e o

ânimo de Arnie ficou melhor. Era sempre bom afastar

-

se de Libertyville,

afastar

-

se de... de tudo. Nem mesmo o fato de saber sobre o contrabando

no porta

-

mala., era capaz de diminuir aquela euforia. E, pelo m

enos, não

havia drogas desta vez. Lá no fundo de sua mente





quase indistinguível,

mas estava lá





assentava

-

se a vaga especulação sobre como as coisas

seriam diferentes e como sua vida mudaria, se apenas se livrasse dos

cigarros e seguisse em frente. Se a

o menos pudesse deixar para trás aquela

deprimente embrulhada.



Só que, evidentemente, não faria nada disso. Claro que era

impossível abandonar Christine, depois de ter investido tanto nela.






Arnie ligou o rádio e cantarolou junto com uma melodia atual. O so

l,

enfraquecido por ser dezembro, mas ainda tentando ser rigoroso, libertou

-

se inteiramente das nuvens, e ele sorriu.



Ainda sorria quando o carro da Polícia Estadual de Nova Iorque

emparelhou com o dele, na faixa lateral, e o acompanhou. Do alto

-

falante

do



teto do carro começou a ecoar:

Aqui é para o Chrysler! Encoste, Chrysler!

Encoste, Chrysler!



Arnie olhou para o lado, o sorriso desaparecendo de seus lábios. Viu

os óculos escuros. Óculos de tira! O terror que se apoderou dele era mais

forte do que poderi

a imaginar, quanto a qualquer emoção





e não estava

aterrorizado por si mesmo. Sua boca ficou inteiramente seca. A mente

disparou a funcionar de maneira confusa. Viu

-

se pisando no acelerador e

voando dali, talvez o tivesse feito, se dirigisse Christine...

mas não estava

em seu carro. Viu Will Darnell avisando que, se fosse apanhado levando

um saco, o saco era

seu.

E, acima de tudo, viu Junkins, Junkins com

aqueles argutos olhos castanhos





e soube que aquilo era obra dele.



Desejou que Rudolph Junkins estive

sse morto.







Encoste, Chrysler! Não estou falando apenas para ouvir a minha voz!

Encoste imediatamente!

Não posso dizer nada, pensou Arnie,

incoerentemente, enquanto manobrava para o acostamento.



Seus colhões formigavam, o estômago se revolvia furiosamente

.

Podia ver os próprios olhos no retrovisor, aterrorizados por trás da

muralha dos óculos





aterrorizados, mas não por ele. Não por ele.

Christine. Arnie temia por Christine. O que eles poderiam fazer a

Christine.



Sua mente agoniada pelo pânico girou em um



caleidoscópio de

imagens superpostas. Formulários de solicitação para a universidade, com

o veredicto: REJEITADO





CONDENADO POR CRIME estampado sobre

eles. Grades de prisão, aço azulado. Um juiz inclinando

-

se de uma alta

bancada, o rosto branco e acusado

r. Chefões homossexuais em um pátio

de prisão, ansiosos por carne fresca. Christine seguindo no transportador,

até o compressor de carros, no ferro

-

velho atrás da garagem.



E então, quando freou o Chrysler e o estacionou, o carro da Polícia

Estadual parando



logo atrás dele (e mais outro, surgindo como por

mágica, parando à sua frente), do nada irrompeu um pensamento

impregnado de desalentado consolo:

Christine pode cuidar de si.






Houve outro pensamento, quando os tiras saíram e caminharam

para ele, um seguran

do na mão um mandado de busca. Este outro

também pareceu nascer de lugar nenhum, mas reverberou com os tons

ásperos de Roland D. LeBay, o som da voz de um velho:



E ela cuidará de você, rapaz. Tudo quanto tem afazer é continuar

acreditando nela e ela cuidar

á de você.



Arnie abriu a porta do carro e saiu, um momento antes que algum

dos tiras pudesse abri

-

la.







Arnold Richard Cunningham?





perguntou um dos tiras.







Sim, sou eu





respondeu Arnie, calmamente.





Estava indo

muito depressa?







Não, filho





disse out

ro tira



, mas vivemos em um mundo de

sofrimento e dá tudo no mesmo.



O primeiro tira deu um passo em frente, tão formal quanto um

oficial do Exército.







Tenho comigo um documento legal permitindo a revista deste

Chrysler Imperial 1966, em nome do povo do E

stado de Nova Iorque, da

Comunidade da Pensilvânia e dos Estados Unidos da América. Além

disso...







Bem, isso cobre inteiramente toda a maldita linha de frente, não é

mesmo?





disse Arnie. Suas costas latejavam dolorosamente e ele

comprimia o lugar com as

duas mãos. Os olhos do



policial arregalaram

-

se ligeiramente quando ele ouviu a voz idosa

saindo da boca daquele rapazinho, mas prosseguiu.







Além disso, tenho permissão para apreender qualquer

contrabando encontrado no decorrer desta revista, em nome do po

vo do

Estado de Nova Iorque, da Comunidade da Pensilvânia e dos Estados

Unidos da América.







Ótimo





disse Arnie.



Nada daquilo parecia real. Luzes azuis cintilaram em confusão.

Pessoas passando em seus carros se viravam para espiar, mas ele não

sentiu nenh

uma vontade de desviar

-

se, de esconder o rosto





e aquilo era

algo como que um alívio.












-

me as chaves, garoto





disse um dos tiras.







Por que você mesmo não as pega, seu bosta?





disse Arnie.







Não está se ajudando muito, garoto





disse o tira.



No entan

to, também ele o fitou com certa surpresa e um leve temor,

pelo mesmo motivo; por um instante, a voz do rapazinho parecera

quarenta anos mais velha, a voz de um sujeito muito mais duro, em nada

semelhante ao garoto magricela à sua frente.



O tira inclinou

-

s

e, pegou as chaves e três companheiros seus

encaminharam

-

se prontamente para o porta

-

mala.

Eles sabem,

pensou

Arnie, resignado. Enfim, aquilo nada tinha a ver com a obsessão de

Junkins, envolvendo

-

o com Buddy Repperton, "Penetra" Welch e os outros

(pelo me

nos, não diretamente, emendou com cautela). Aquilo dava a

impressão de uma operação bem planejada e bem coordenada contra o

contrabando de Will, desde Libertyville a Nova Iorque e Nova Inglaterra.







Garoto





disse um dos tiras



, gostaria de responder a al

gumas

perguntas ou prestar uma declaração? Se pretende, eu lerei agora os seus

direitos.







Não





replicou Arnie tranqüilo.





Não há nada a dizer.







A situação poderia ficar bem mais fácil para você.







Isto é coação





disse Arnie, sorrindo de leve.





Veja b

em o que

diz ou terminará fazendo um belo furo em sua própria ficha.



O tira ficou vermelho.







Se quer bancar o idiota, é com você.



O porta

-

mala do Chrysler foi aberto. Eles haviam tirado o pneu

sobressalente, o macaco e várias caixas de peças pequenas





pa

rafusos,

porcas, molas, coisas assim. Um dos tiras estava quase inteiramente

dentro do porta

-

mala, ficando para fora apenas suas pernas envoltas em

tecido cinza

-

azulado. Por um momento, Arnie esperou vagamente que

não encontrassem o compartimento secreto,

mas logo rejeitou a idéia





provinha apenas de sua parte infantil, a parte que agora desejava destruir,

porque ultimamente toda essa parte lhe causava sofrimento. Eles o

encontrariam. Quanto mais depressa o encontrassem, mais depressa

terminaria aquele imb

ecil espetáculo de beira de estrada.






Como se algum deus ouvisse seu desejo e decidisse concedê

-

lo

rapidamente, o tira no porta

-

mala exclamou, triunfante:







Cigarros!







Muito bem





disse o tira que havia lido o mandado de busca.





Feche o porta

-

mala.





Viro

u

-

se para Arnie e fez a leitura do aviso sobre

seus direitos.





Entendeu bem os seus direitos, conforme os li?







Entendi





disse Arnie.







Quer prestar algum esclarecimento?







Não.







Entre no carro, filho. Você está preso.



Estou preso,

pensou Arnie e quase

explodiu em uma gargalhada, de

tão tolo o pensamento. Aquilo era um sonho, do qual logo despertaria.

Preso.

Sendo encaminhado para um carro da Polícia Estadual. As pessoas

olhavam para ele...



Lágrimas desesperadas e infantis, salgadas e quentes, aninharam

-

se

em sua garganta e a fecharam.



O peito coçou





uma, duas vezes.



O tira que lera seus direitos tocou

-

lhe o ombro, e Arnie o encolheu,

com uma espécie de desespero. Sentiu que se pudesse mergulhar

profundamente e rapidamente dentro de si, ficaria

bem





mas



a

compreensão o deixava fora de si.







Não me toque!







Será como você quer, filho





disse o tira, afastando a mão. Abriu

a porta traseira do carro policial e convidou Arnie a entrar.



A gente chora em sonhos?

Claro que sim





ele já não lera sobre

pessoas de

spertando de sonhos tristes com lágrimas no rosto? Entretanto,

fosse ou não sonho o que sucedia agora, ele não ia chorar.



Em vez disso, pensaria em Christine. Não em sua mãe ou seu pai,

não em Leigh ou Will Darnell, não em Slawson





todos os miseráveis

bos

tas que o haviam traído.



Pensaria em Christine.






Arnie fechou os olhos e inclinou o rosto pálido, espectral, em

direção às mãos, assim permanecendo. E, como sempre, pensar em

Christine fazia tudo melhorar. Após um momento, conseguiu endireitar o

corpo, cont

emplar a paisagem que desfilava às margens da estrada e

refletir em sua situação.





Michael Cunningham recolocou lentamente o fone no gancho com

infinito cuidado



, como se menos cautela o fizesse explodir e ele,

Michael, fosse atirado para o alto, em seu e

stúdio no andar de cima,

crivado de fragmentos de granada negra.



Recostou

-

se à cadeira giratória atrás de sua mesa, sobre a qual

estavam sua máquina de escrever IBM

-

Corretora Selectric II, um cinzeiro

com os dizeres UNIVERSIDADE HORLICKS em azul e ouro, qu

ase

ilegíveis no fundo sujo, e o manuscrito de seu terceiro livro, um estudo

sobre os encouraçados

Monitor e Merrimac.

Estava no meio de uma página

quando o telefone tocara. Agora, apertando a alavanca de liberação do

lado direito da máquina de escrever, p

uxou a folha solta de sob o rolo,

observando clinicamente sua ligeira curvatura. Colocou

-

a sobre o

manuscrito, no momento pouco mais de uma selva de correções a lápis.



Lá fora, o vento gemia em torno da casa. A manhã cálida e nublada

dera lugar a uma frígi

da e límpida noite de dezembro. O degelo inicial

estacara de imediato e seu filho estava preso em Albany, acusado de

contrabando:

Não, Sr. Cunningham, não se trata de maconha, são duzentos

pacotes de cigarros Winston, sem selagem de impostos.



Do andar de b

aixo, ele podia ouvir o zumbido da máquina de

costura de Regina. Agora teria que se levantar, ir até a porta, abri

-

la,

caminhar corredor abaixo até a escada, descer os degraus, passar pela sala

de refeições e chegar à salinha cheia de plantas, outrora lava

nderia, mas

agora uma sala de costura e ficar parado enquanto Regina erguia os olhos

para ele (estaria usando seus óculos para vista cansada) e então anunciar:

Regina, Arnie foi preso pela Polícia Estadual de Nova Iorque.



Michael tentou iniciar o processo,



levantando

-

se da cadeira, mas

esta pareceu senti

-

lo temporariamente fora de guarda. Girou e inclinou

-

se

muito para trás sobre seus rodízios, no mesmo instante, e Michael

precisou aferrar

-

se à borda da mesa para não cair. Tornou a deslizar




pesadamente para



a cadeira, o coração batendo com dolorosa rapidez em

seu peito.



De repente, foi envolvido por tão complexa onda de desespero e

pesar que gemeu em voz alta e agarrou a testa comprimindo as têmporas.

Os antigos pensamentos retornaram, tão previsíveis como o

s mosquitos

de verão, e também tão enlouquecidos. Seis meses antes, tudo estava bem.

Agora, seu filho estava na cela de uma prisão, em algum lugar. Quais

teriam sido os momentos da ruptura? Como poderia ele, Michael, ter

mudado as coisas? E, exatamente, qu

al a história dessas coisas? Onde a

enfermidade começara a penetrar?







Meu Deus...



Comprimiu mais forte, ouvindo o gemido do inverno fora de suas

janelas. Ele e Arnie haviam colocado as janelas extras para inverno, ainda

no mês anterior. Havia sido um bom

dia, não? Primeiro, Arnie segurando

a escada e olhando para cima; depois que descera, Arnie subira, e ele

ficara gritando para o filho tomar cuidado, com o vento agitando seus

cabelos e as folhas mortas, acastanhadas, atiradas em seus sapatos

desbotados. C

erto, tinha sido um bom dia. Mesmo depois da chegada

daquele carro infernal, parecendo ensombrecer tudo na vida do filho,

como uma moléstia fatal, houve bons dias. Não houve?







Meu Deus...





repetiu, em uma voz fraca e lacrimosa, que

desprezou.



Imagens esp

ontâneas surgiram em seus olhos. Colegas observando

-

o de soslaio, talvez sussurrando no clube da faculdade. Discussões em

coquetéis, com seu nome agitado inquietamente, subindo e descendo,

como um corpo afogado. Arnie só faria dezoito anos dentro de dois m

eses

e, supunha, não poderia ter o nome impresso nos jornais, mas todos

acabariam sabendo. A notícia se espalharia.



De repente loucamente, viu Arnie aos quatro anos, encarapitado em

um triciclo vermelho, adquirido por ele e Regina em um bazar de caridade

(

aos quatro anos, Arnie os chamava "Babá de calidade da mamãe"). A tinta

vermelha do triciclo era pontilhada de escamas de ferrugem, as rodas

estavam com as borrachas gastas, mas Arnie o adorara e, se pudesse, até o

teria levado para a cama. Michael fechou

os olhos e o viu andando no

triciclo, subindo e descendo a calçada, em seu macacão de sarja azul, o

cabelo caindo nos olhos. Então, seu olho mental pestanejou, vacilou ou fez




qualquer coisa, e o enferrujado triciclo do bazar de caridade era Christine,

a ti

nta vermelha cheia de ferrugem, os vidros das janelas branco

-

leitosos

pela idade.



Ele rangeu os dentes. Alguém que o observasse poderia pensar que

estava sorrindo loucamente. Esperou até controlar

-

se um pouco e então se

levantou e desceu para o andar térre

o, a fim de contar o sucedido a Regina.

Ele lhe contaria, e ela refletiria no que deviam fazer, como sempre

acontecera. Regina lhe roubaria a iniciativa, com isto roubando qualquer

bálsamo que, atualmente,

fazer

as coisas proporcionava, deixando

-

o

apenas c

om um doentio pesar e a certeza de que, agora, seu filho era

alguém importante.





A



C

HEGADA DA

T

EMPESTADE



Ela pegou as chaves de meu Cadillac,



Saltou para o meu gatinho e o levou para longe.







Bob Seger





Naquele inverno, a primeira das grandes tempestades d

o nordeste

chegou a Libertyville na véspera do Natal, abrindo caminho através do

terço superior dos E.U.A. e deixando para trás uma ampla e facilmente

previsível trilha da tormenta. O dia começou com um sol brilhante, a

temperatura a dois graus centígrados

, mas os locutores matinais já haviam

previsto alegremente sombras e tristezas, apressando os que ainda não

haviam encerrado as compras de última hora a aproveitarem até o meio

da tarde. Os que planejavam viagens ao velho lar, para um Natal à moda

antiga,

eram aconselhados a um novo planejamento, caso a viagem não

fosse feita em quatro a seis horas.







Se vocês não pretendem passar o Dia de Natal na faixa de

acostamento da I

-

76, em algum ponto entre Bedford e Carlisle, fariam

melhor saindo de casa bem cedo o

u não saindo, em absoluto





aconselhou o locutor da FM

-

104 a seus ouvintes (uma boa parte dos quais

estava demasiado embriagada, para chegar a pensar em ir a qualquer




lugar), e então reiniciou o Programa de Natal, com

"Santa Claus is Corning

to Town",

na v

ersão de Springsteen.



Por volta de 11 da manhã, quando Dennis Guilder finalmente

deixou o Hospital Comunitário de Libertyville (segundo as normas

hospitalares, ele só teria permissão de usar as muletas quando realmente

fora do prédio; até então, teria que

ser empurrado em uma cadeira de

rodas por Elaine), o céu começara a espumar de nuvens e havia um feérico,

fantasmagórico anel em torno do sol. Dennis atravessou cautelosamente o

pátio de estacionamento em suas muletas, o pai e a mãe amparando

-

o de

cada lad

o, nervosos, a despeito de o pátio haver sido escrupulosamente

limpo do menor traço de neve e gelo. Fez uma pausa ao lado do carro da

família e ergueu ligeiramente o rosto, na brisa refrescante. Estar fora do

hospital era como uma ressurreição. Dennis acha

va que poderia ficar ali

por horas e ainda não se dar por satisfeito.





Era aproximadamente uma daquela tarde quando a camioneta da

família Cunningham chegou aos arredores de Ligonier, cento e quarenta e

quatro quilômetros a leste de Libertyville. A esta al

tura, o céu adquirira

um tom uniforme e sugestivo cinza

-

ardósia e a temperatura caíra seis

graus.



Havia sido idéia de Arnie que eles não cancelassem a tradicional

visita de véspera do Natal a tia Vickey e tio Steve, respectivamente, irmã e

cunhado de Regin

a. As duas famílias haviam criado um pouco o informal

ritual de revezamento no correr dos anos, com Vicky e Steve indo à casa

dos Cunningham em alguns anos e os Cunningham indo a Ligonier em

outros. A viagem deste ano fora combinada em inícios de dezembro.



Havia sido cancelada após o que Regina teimosamente chamava "o

problema de Arnie", mas no início da semana anterior Arnie começara a

insistir incessantemente sobre a viagem.



Por fim, após uma longa conversa telefônica com sua irmã na

quarta

-

feira, Regina

concordara com a vontade de Arnie





em especial

porque Vicky parecera calma e compreensiva, sem a menor curiosidade

sobre o que tinha acontecido. Aquilo era importante para Regina, mais

importante, talvez, do que ela consentisse em admitir. Nos últimos oit

o

dias, desde que Arnie havia sido preso em Nova Iorque, ela tivera que

enfrentar um fluxo aparentemente interminável de mórbida curiosidade,

mascarada como simpatia. Conversando com Vicky ao telefone, ela




finalmente se descontrolara e havia chorado. Tinha



sido a primeira e única

vez, desde a prisão de Arnie, que ela se entregava a tão amargo luxo.

Arnie estava na cama, dormindo. Michael, que vinha bebendo demais e,

como pretexto, apelava para o "espírito da

época",

tinha ido ao O'Malley's

para uma ou duas

cervejas com Paul Strickland, outro rejeitado de fábrica,

no jogo político da faculdade. Provavelmente, aquilo terminaria chegando

a seis cervejas, talvez umas oito ou dez. E se mais tarde ela fosse ao

estúdio no andar de cima, iria encontrá

-

lo ereto em su

a cadeira atrás da

mesa, olhando o escuro, com os olhos secos, mas injetados de sangue. Se

tentasse falar com ele, a conversa de Michael seria terrivelmente confusa,

centralizando

-

se demais no passado. Ela supunha que o marido vinha

tendo um muito brando c

olapso mental. Não permitiria a si mesma luxo

idêntico (algo em que já pensara, em seu furioso e sofrido estado

emocional) e, todas as noites, sua mente martelava a arquitetar planos e

esquemas, até as três ou quatro da madrugada. Todos aqueles esquemas e

pensamentos orientavam

-

se em uma direção: "Superamos isto". As duas

únicas opções que permitia à sua mente eram deliberadamente vagas.

Regina pensava no "problema de Arnie" e em "Superarmos isto".



Entretanto, ao falar com a irmã por telefone, dias após a p

risão do

filho, seu férreo controle fraquejara brevemente. Ela chorava no ombro de

Vicky, pelo interurbano, e a irmã a confortara com naturalidade, fazendo

-

a odiar

-

se por todas as suas alfinetadas baratas contra ela, no correr dos

anos. Vicky, cuja única f

ilha largara os estudos antes de terminar o ginásio,

para casar e ser dona de casa, cujo filho único se contentara com uma

escola técnica profissionalizante (jamais uma coisa semelhante para o

seu

filho!





pensara Regina, com secreto júbilo); Vicky, cujo m

arido vendia...

seguros de vida, entre tantas outras coisas estranhas. E Vicky (Oh,

também tão esquisito!) vendia cerâmica e louça. No entanto, havia sido

para Vicky que tivera coragem de chorar, com Vicky é que expressara,

pelo menos em parte, sua tortura

da desilusão, sua mágoa e seu terror; sim,

e também o terrível

constrangimento, ao

saber que os outros comentavam e

que, durante anos, eles haviam desejado vê

-

la entregar os pontos





e

agora estavam satisfeitos. Havia sido Vicky, talvez sempre houvesse sid

o

Vicky. Regina decidiu então que, se afinal haveria um Natal para eles,

naquele ano infeliz, seria na casa de Vicky e Steve, uma residência

suburbana e comum, em estilo de rancho, no alegre subúrbio classe média

de Ligonier, onde a maioria das pessoas ain

da possuía carros americanos

e chamava de "comer fora" uma ida ao McDonad's.






Mike, é claro, concordaria sem discutir com sua decisão. Ela não

esperava e nem suportava mais do que isso.



Para Regina Cunningham, os três dias seguintes à notícia de que

Arnie e

stava "em apuros" haviam sido um exercício permanente para

manter o controle, uma longa luta pela sobrevivência. Sua sobrevivência, a

sobrevivência da família, sobrevivência de Arnie





ele podia não

acreditar nisso, mas ela descobrira que não tinha tempo p

ara preocupar

-

se.

O sofrimento de Mike jamais entrara em suas equações; o pensamento de

que um poderia confortar o outro, jamais lhe passara pela mente, nem

como especulação. Regina cobriu calmamente a máquina de costura, após

Mike ter descido para comunic

ar o ocorrido. Fez isso e, em seguida, foi ao

telefone, começando a agir. As lágrimas que mais tarde derramaria,

conversando com a irmã, ainda estavam a mil anos de distância. Passara

ao lado de Michael como se ele fosse uma peça do mobiliário. Ele a

segui

ra em passo incerto, como havia feito durante todos os anos de seu

casamento.



Regina telefonou para Tom Sprague, advogado da família. Ao saber

que o problema era criminal, Sprague prontamente indicou

-

lhe um colega,

Jim Warberg. Ela ligou para Warberg e foi



atendida por um serviço de

recados telefônicos, que não revelaria o número da residência do

advogado. Regina ficou junto ao telefone por um instante, tamborilando

os dedos levemente contra os lábios, e depois tornou a ligar para o

advogado da família. Spr

ague não queria fornecer o número do colega,

mas acabou cedendo. Quando Regina finalmente desligou, Sprague

sentiu

-

se zonzo, quase chocado. Ela geralmente causava tal reação,

quando crivava o interlocutor de perguntas.



Telefonou para Warberg e este respond

eu que não podia cuidar do

caso, em absoluto. Regina baixou novamente sua lâmina de

bulldozer.

No

fim, além de aceitar o caso, Warberg terminou concordando em partir

imediatamente para Albany, onde Arnie permanecia detido, a fim de ver o

que se podia fazer

. Falando com a voz franca e espantada do homem que

se encheu de Novocaína e depois foi atropelado por um trator, o

advogado informou conhecer um profissional perfeitamente à altura em

Albany, capaz de resolver tudo. Regina foi inflexível. Warberg partiu p

ara

lá, em um avião particular, e deu notícias quatro horas mais tarde.



Comunicou que Arnie estava sendo mantido em Albany por uma

acusação em aberto. Seria extraditado para a Pensilvânia no dia seguinte.




A ação policial havia sido coordenada pela Pensilvâ

nia e por Nova Iorque,

juntamente com três agências federais: a Força

-

Tarefa Federal do Controle

de Drogas, a Divisão do Imposto de Renda e o Departamento do Álcool,

Tabaco e Armas de Fogo. O alvo principal não era Arnie, peixinho miúdo,

mas Will Darnell e



quem quer mais com quem Darnell estivesse

negociando. Tais indivíduos, segundo informou Warberg, com seus

suspeitos laços de envolvimento com o crime organizado e o

desorganizado contrabando de drogas no novo Sul, eram os peixes

graúdos.







É ilegal deter

alguém por uma acusação em aberto!





replicara

Regina prontamente, valendo

-

se de profusa reserva de informações

fornecida pelos programas criminais de TV.



Warberg não se sentia precisamente eufórico por estar onde se

encontrava, já que havia planejado uma

noite tranqüila no lar, lendo um

livro. Replicou bruscamente:







Em seu lugar, eu estaria de joelhos, agradecendo a Deus pelo que

eles estão fazendo! O garoto foi apanhado com a mala do carro entulhada

de cigarros sem selagem e, se eu os pressionar muito, f

icarão felizes em

acusá

-

lo, Sra. Cunningham. Se quer um conselho, a senhora e seu marido

devem ir a Albany. Rapidamente.







Se não me engano, disse que ele seria extraditado amanhã...







Oh, sim, ficou tudo arranjado. Se vamos jogar duro com esses

sujeitos,

devemos nos dar por satisfeitos se o jogo for aqui, em nosso

Tribunal. No caso presente, extradição não é problema.







O que é então?







Aquela gente quer brincar de derrubar todas as peças do dominó.

Eles querem jogar seu filho contra Will Darnell. Arnold n

ão está falando.

Quero que os dois sigam para lá, e o convençam de que falar só irá

beneficiá

-

lo.







Irá mesmo?





perguntou ela, hesitante.







Diabo, é claro!





vociferou Warberg, ao telefone.





Eles não

querem botar seu filho na cadeia. Arnold é menor, filh

o de uma família de

bem, sem qualquer ficha criminal anterior, nem mesmo um registro

escolar de problemas disciplinares. Ele pode sair disto sem nem mesmo

enfrentar um juiz. No entanto, vai ter que falar.






Assim, eles partiram para Albany. Regina foi conduz

ida por um

curto e estreito corredor de ladrilhos brancos, iluminado por fortes

lâmpadas enfiadas em pequenas cavidades no teto e cobertas por uma

grade de arame. O lugar cheirava vagamente a Lysol e urina. Regina

procurou convencer

-

se de que seu

filho

est

ava preso ali, seu

filho, mas

admitir isso foi bastante difícil. Aquilo não parecia real. Tinha muito mais

semelhança com uma possível alucinação.



Quando viu Arnie, tal possibilidade desapareceu rapidamente.. O

anteparo protetor contra choques também desap

areceu e ela sentiu um

medo frio e avassalador. Foi nesse momento que primeiro agarrou

-

se à

idéia de "Superarmos isto", da mesma maneira como um afogado se aferra

ao salva

-

vidas. Aquele era Arnie, era o seu filho, não em uma cela de

prisão (foi a única coi

sa que a pouparam de ver, mas ela ficava grata por,

inclusive, favores insignificantes), porém em um pequeno aposento

quadrangular, cujo único mobiliário eram duas cadeiras e uma mesa

marcada por queimaduras de cigarros.



Arnie a encarara fixamente e seu ro

sto parecia terrivelmente lívido,

tinha uma aparência de caveira. Ele tinha ido ao barbeiro apenas uma

semana antes e cortara o cabelo surpreendentemente curto (após anos,

usando

-

o comprido imitando Dennis), mas agora a luz do teto brilhava

com crueza sobr

e o que sobrara, fazendo

-

o parecer momentaneamente

calvo, como se lhe tivessem raspado a cabeça para abrir

-

lhe a boca.







Arnie!





disse Regina, e caminhou para ele.



Chegou até meio caminho. Arnie desviou os olhos, comprimindo os

lábios, e ela parou. Uma mu

lher mais fraca ter

-

se

-

ia desfeito em lágrimas,

porém Regina era de outra cepa. Deixou que a frieza voltasse, que a

envolvesse novamente. Frieza era tudo o que poderia ajudar agora.



Em vez de abraçá

-

lo





evidentemente algo que Arnie não

desejava



, sentou

-

se e disse a ele o que tinha de ser feito. Arnie recusou

-

se. Regina lhe ordenou que abrisse o bico com a polícia. Ele tornou a

recusar. Ela argumentou. Arnie recusou

-

se. Ela fez um discurso

bombástico. Ele se recusou. Ela suplicou. Ele se recusou. Finalmen

te, ela se

limitou a ficar ali sentada apática, com uma dor de cabeça latejando nas

têmporas. Perguntou a ele por que preferia ficar calado. Arnie recusou

-

se

a explicar.










Pensei que você fosse esperto!





bradou ela, finalmente. Estava

quase louca de frust

ração. O que odiava, acima de tudo, era não conseguir

o que queria, quando sentia uma necessidade absoluta de ter a vontade

satisfeita,

precisava



-

la. De fato, tal coisa nunca lhe acontecera, desde que

saíra de casa. Até o momento presente. Era insultant

e ser derrotada tão

calma e despreocupadamente por aquele menino que, um dia, mamara

em seus seios.





Pensei que você fosse esperto, mas vejo que é um burro!

Você... seu idiota! Eles o porão em uma cela! Quer ir para cadeia, no lugar

desse Darnell? É isto

o que deseja? Ele rirá de você.

Rirá

de você!



Regina não podia imaginar nada pior, e o aparente desinteresse do

filho quanto a alguém rir ou não dele a deixou ainda mais enfurecida.

Levantou

-

se da cadeira e afastou os cabelos de sobre a testa e os olhos, n

o

gesto inconsciente da pessoa se dispondo a lutar. Respirava rapidamente e

tinha o rosto corado. Para Arnie, ela tanto pareceu mais jovem quanto

mais velha como jamais a vira.







Não estou fazendo isso por Darnell





disse ele tranqüilo





e

também não vou p

ara a prisão.







Quem é você, Oliver Wendell Holmes?





replicou ela,

ferozmente, embora houvesse certa dose de alívio em sua fúria. Pelo

menos, Arnie dizia

algo.





Eles o pegaram com o carro dele, lotado de

cigarros no porta

-

mala! Cigarros ilegais!



Arnie re

spondeu, com a mesma tranqüilidade:







Os cigarros não estavam no porta

-

mala. Estavam em um

compartimento debaixo do porta

-

mala. Um compartimento secreto. E

aquele era o carro de Will. Will me disse que pegasse seu carro.



Regina olhou para ele.







Está dizen

do que não sabia da existência dos cigarros?



Arnie a fitou com uma expressão que, simplesmente, ela não

conseguia aceitar, tão estranha nele a achou. Era desprezo, desacato. Bom

como ouro o meu menino, bom como ouro,

pensou ela, alucinadamente.







Eu sabia

e Will também, mas eles têm que provar, não têm? Ela

conseguiu apenas fitá

-

lo, admirada.







Se eles me acusarem disso, de algum modo





disse Arnie





minha sentença será suspensa.










Arnie!





exclamou ela, por fim.





Você não está raciocinando

direito. Talvez



seu pai...







Meu raciocínio está perfeito





cortou Arnie.





Não sei o que

você está fazendo, mas estou raciocinando direito.



Ao falar, Arnie a encarou, e seus olhos cinzentos eram tão

horrivelmente apáticos que Regina não suportou mais, e levantando

-

se

sa

iu dali. Na pequena sala verde da recepção, passou às cegas perto do

marido, sentado em um banco com Warberg.







Vá você





disse a ele.





Veja se o faz voltar à razão!



Regina continuou andando sem esperar resposta e só parou no

exterior do prédio, com o fri

o ar de dezembro pondo cor em suas faces

quentes.



Michael entrou na outra sala para falar com o filho, porém não teve

melhor sorte; quando saiu, tinha apenas a garganta seca e um rosto

parecendo dez anos mais velho do que ao entrar.



No motel, Regina contou



a Warberg o que Arnie tinha dito, e

perguntou

-

lhe se havia alguma possibilidade de ele estar certo.



Warberg refletiu na pergunta.







Sim, é uma defesa possível





afirmou



, mas seria muito mais

viável se Arnie fosse o primeiro dominó da fila. E ele não é.

Há um

negociante de carros usados, aqui em Albany, chamado Henry Buck. Era o

receptor. Também foi agarrado.







E o que disse ele?





perguntou Michael.







Não tenho meios de saber. Quando tentei falar com seu advogado,

ele se recusou. Acho isso um mau sinal.

Se Buck falar, acusará Arnie.

Aposto tudo o que possuo como Buck pode testemunhar que seu filho

sabia da existência daquele compartimento secreto... e isso é mau.



Warberg olhou fixamente para eles.







Compreendam, o que seu filho disse é, em realidade, apen

as uma

meia esperteza, Sra. Cunningham. Falarei com ele amanhã, antes de o

transferirem para a Pensilvânia. Espero fazê

-

lo ver que, nisto tudo, há

uma possibilidade do caso não recair em seus ombros.








Os primeiros flocos de neve começaram a cair do céu car

regado em

torvelinhos, quando eles dobraram para a rua de Steve e Vicky.

Será que

ainda está nevando em Libertyville?,

perguntou

-

se Arnie, e tocou as chaves

em sua etiqueta de couro, dentro do bolso. Provavelmente estava.



Christine continuava na Garagem de



Darnell, apreendida. Aquilo

era bom. Pelo menos, estava resguardada do mau tempo. Ele a recolheria

de novo. Com calma.



A semana anterior parecia um confuso pesadelo. Seus pais,

argumentando com ele na saleta branca, pareciam possuir os desconexos

rostos d

e estranhos: eram cabeças falando em língua estrangeira. O

advogado que haviam contratado, Warley, Warmly ou qualquer coisa,

ficara insistindo sobre algo que denominavam a teoria do dominó, bem

como sobre a necessidade de cair fora do "maldito prédio, ante

s que tudo

caia sobre sua cabeça, garoto





há dois Estados e três agências federais

movimentando as bolas da demolição".



Arnie, no entanto, estava mais preocupado com Christine.



Parecia

-

lhe cada vez mais claro que Roland D. LeBay estava com ele

ou pairando



em algum lugar próximo





talvez se estivesse aglutinando

dentro dele. A idéia não o atemorizou, ela o confortou. Entretanto, era

preciso ser cuidadoso. Não sobre Junkins, Arnie sentia que Junkins tinha

apenas suspeitas, e todas se orientando para direções



erradas, irradiando

-

se a partir de Christine, em vez de convergirem para ela.



Com Darnell, porém... podia haver problemas com Will. Sim,

verdadeiros problemas.



Naquela primeira noite em Albany, depois que seus pais haviam

retornado ao motel, Arnie fora le

vado para uma cela, onde adormecera

com surpreendente facilidade e rapidez. Então, tivera um sonho





não

realmente um pesadelo, mas algo que parecia muito inquietante. Acordou

cautelosamente no meio da noite, com o corpo banhado de suor.



Havia sonhado que

Christine fora reduzida, em escala, a um

pequenino Plymouth 58, não maior do que a mão de um homem. Estava

na alameda de um depósito de carros velhos, circundada por um cenário

em escala, espantosamente perfeito





havia uma rua de plástico que

podia ser Ba

sin Drive e uma outra que podia ser a JFK, onde "Penetra"

Welch havia sido morto. Um pequeno prédio, que parecia exatamente o

Ginásio de Libertyville. E casas de plástico, árvores de papel...






...mais um gigantesco, imenso Will Darnell, que estava nos contr

oles,

os quais indicavam quão rápida ou lentamente o pequenino Fury rodava

por tudo aquilo. Sua respiração sibilava, entrando e saindo dos pulmões

lesados, com um som de vendaval.



Você não quer abrir a boca, guri,

disse Will. Inclinava

-

se para aquele

mundo



em escala reduzida, como o Descomunal Admirável Homem.

Você

não quer abrir a boca para assustar

-

me, porque estou nos comandos. Eu posso

fazer isto...



E, lentamente, Will começava a girar o botão de controle, em direção

à palavra RÁPIDO.



Não!

Arnie tentou

gritar.

Não, não faça isso, por favor! Eu a amo! Por

favor, você a mataria!



Nos trilhos da alameda, a diminuta Christine corria pela Libertyville

em miniatura, cada vez mais depressa, a traseira rabeando nas curvas,

enquanto ela chiava no ponto mais extrem

o da força centrífuga, aquele

mistério de forma côncava. Agora, ela se tornara apenas um borrão de

branco

-

sobre

-

vermelho, o motor emitindo um agudo e furioso zumbido

Por favor!,

gritou Arnie.

Por favooooor!



Afinal, Will começara a girar o controle para trá

s, parecendo

soturnamente satisfeito. O carrinho ia diminuindo a velocidade.



Se começar a acalentar idéias, basta recordar onde está seu carro, guri.

Fique de bico calado, e ambos viveremos para ver outro dia. Já estive em apuros

piores do que este...



Arni

e estendera o braço para apanhar o carrinho, libertá

-

lo daquela

pista de corrida. O Will do sonho empurrara sua mão.



De quem é o saco, guri?



Will, por favor...



Quero ouvir o que vai dizer.



O saco é meu.



Não se esqueça disso, guri.



Arnie despertara com isso



nos ouvidos. Naquela noite, não houve

mais sono para ele.






Seria tão improvável assim que Will soubesse... bem. que soubesse

de algo sobre Christine? Não. Ele via muita coisa por aquela parede

envidraçada, mas sabia como ficar de boca fechada





pelo menos

até a

hora certa de abri

-

la. Podia saber o que Junkins ignorava, que a

regeneração de Christine em novembro não havia sido apenas estranha,

como totalmente impossível. Ele adivinhava que muitos reparos jamais

haviam sido feitos, pelo menos não por Arnie.



O



que mais Will saberia?



Com uma rastejante friagem que subiu de suas pernas para a raiz do

estômago, Arnie finalmente percebeu que Will poderia ter estado na

garagem, na noite em que Repperton e os outros haviam morrido. De fato,

isso era mais do que possí

vel.

Era provável. Jimmy

Sykes não regulava bem

da cabeça e Will não confiaria nele sozinho na garagem.



Você não quer abrir sua boca. Você não quer assustar

-

me, porque eu posso

fazer isto...



Entretanto, mesmo supondo que Will soubesse, quem iria acreditar

nele? Era muito tarde para agora querer iludir

-

se, e Arnie não conseguia

mais libertar

-

se da inconcebível idéia... e nem mesmo queria. Quem daria

crédito a Will, se ele resolvesse contar a alguém que, às vezes, Christine

manobrava a si mesma? Que ela deixa

ra a garagem por si mesma, na noite

em que "Penetra" Welch fora morto, e na outra em que acidentara e

matara aqueles bandidos? A polícia acreditaria nisso? Eles dariam boas

gargalhadas, isso sim. E Junkins? Estava esquentando, mas Arnie não

acreditava que

ele fosse capaz de aceitar tal história, mesmo querendo.

Arnie lhe vira os olhos. Portanto, se Will soubesse, de que lhe adiantaria

tal conhecimento?



Então, com crescente horror, Arnie compreendeu que não importava.

Will estaria fora da prisão, sob fiança,



no dia seguinte ou no outro. Então,

Christine seria sua refém. Ele poderia incendiá

-

la





já incendiara

inúmeros carros nos velhos tempos, como Arnie bem sabia, ao ficar

sentado no escritório dele, ouvindo

-

o recordar





e depois de incendiada,

ao se tornar

uma carcaça carbonizada e inútil, havia o aparelho

compressor, nos fundos, atrás da garagem. A massa queimada de

Christine seguiria pela esteira rolante e se transformaria em um

comprimido cubo de metal.



Os tiras haviam lacrado a garagem.






Bem, isso não adi

antava muito. Will Darnell era raposa bem velha,

estaria preparado para qualquer contingência. Se quisesse entrar lá e

incendiar Christine, ele o faria... embora fosse muito mais provável, Arnie

pensou, que contratasse um especialista em seguros para fazer



o

serviço





um sujeito que atiraria montes de mechas incendiárias dentro

do carro e, em seguida, acenderia um fósforo.



Mentalmente, Arnie podia ver as chamas surgindo. Podia sentir o

cheiro do estofamento chamuscado.



Ficou deitado no beliche da cela, com

a boca seca e o coração

batendo descompassadamente no peito.



Você não quer abrir a boca. Você não quer assustar

-

me...



Claro, se Will tentasse algo e se descuidasse





se sua concentração

falhasse, por apenas um momento



, Christine o pegaria. De certa forma

,

no entanto, Arnie não achava que Will se descuidaria.





No dia seguinte, ele havia sido levado de volta à Pensilvânia,

acusado e depois afiançado por uma soma nominal. Haveria uma

audiência preliminar em janeiro e já se falava em um júri principal. O caso



do contrabando era matéria de primeira página em todo o Estado, embora

Arnie fosse identificado apenas como "um jovem" cujo nome "era mantido

em sigilo pelo Estado e pelas autoridades federais, em vista de sua

condição como menor".



De qualquer modo, o nom

e de Arnie era do conhecimento geral em

Libertyville. A despeito de seu recente e exuberante crescimento em

drive

-

ins,

cadeias de lanchonetes e boliches, Libertyville continuava sendo uma

cidade universitária, onde todos sabiam da vida de todos. Aquelas

pe

ssoas, em sua maioria associadas à Universidade Horlicks, sabiam

quem andara dirigindo para Will Darnell e quem havia sido preso após a

divisa com o Estado de Nova Iorque em um carro com o porta

-

mala

entulhado de cigarros contrabandeados. Era este o pesade

lo de Regina.



Arnie foi para casa sob a custódia dos pais





e fiança de mil

dólares



, após uma breve permanência na prisão. Em verdade, aquilo

não passava de um grande e fedido jogo de Monopólio. Seus pais tinham

vindo com o cartão de Saia da Cadeia. Como



se esperava.












Por que está sorrindo, Arnie?





perguntou Regina.



Michael dirigia a camionete a uma velocidade que poderia ser

acompanhada por alguém a pé, procurando a casa de campo de Steve e

Vicky, através dos redemoinhos da neve.







Eu sorria?







Sim





disse ela, e tocou

-

lhe o cabelo.







Sinceramente, não me lembro





respondeu ele, de forma tão

apática que Regina afastou a mão.





Tinham vindo para casa no domingo e seus pais o deixaram a sós,

fosse por não quererem conversar com ele ou porque estavam

profu

ndamente desgostosos com o filho... podendo ainda haver uma

combinação de ambas as coisas. Arnie pouco estava ligando para aquilo,

eis a verdade. Sentia

-

se desgastado e exausto, um espectro do que era

antes. Sua mãe fora para a cama e dormira a tarde intei

ra, após tirar o

telefone do gancho. Seu pai encerrava

-

se sem necessidade no gabinete de

trabalho, usava a máquina elétrica por algum tempo e depois a

abandonava.



Arnie ficou na sala de estar, vendo uma partida de futebol de

desempate, sem saber quem estav

a jogando e nem se importando,

satisfeito em ver os jogadores correndo de um lado para outro, primeiro

ao brilhante calor do sol californiano, mais tarde em uma mistura de

chuva e neve, que transformara o campo em poças de lama e apagara as

linhas.



Por vol

ta de seis da tarde, ele cochilou.



E sonhou.



Tornou a sonhar, nessa noite e na seguinte, na cama em que dormia

desde pequeno, o olmo lá de fora jogando para o quarto sua sombra

familiar (um esqueleto a cada inverno, que ganhava nova e miraculosa

roupagem a



cada maio). Não eram sonhos como aquele do gigantesco Will,

inclinando

-

se para a alameda entre os carros velhos do pátio. Só conseguia

recordá

-

los por alguns momentos, depois de acordar. Talvez fossem

apenas isso. Uma figura à margem da estrada; um dedo d

escarnado,

tamborilando em uma palma putrefata, como uma lunática paródia de




instruções; uma inquietante sensação de liberdade e... fuga? Sim, fuga.

Nada mais, exceto...



Sim, ele fugia daqueles sonhos e retornava à realidade, com uma

imagem repetitiva: est

ava ao volante de Christine, dirigindo lentamente,

através de terrível nevasca. A neve era tão espessa que literalmente não

enxergava nada além do capô. O vento não ululava, seu som era mais

grave e sinistro, um rugido baixo. Então, a imagem mudava. A neve



deixava de ser neve, era papel picado caindo. O rugido do vento era o

rugido de enorme multidão comprimida nas calçadas da 59 Avenida.

Todos o aplaudiam. Aplaudiam Christine. Aplaudiam, porque ele e

Christine tinham... tinham...



Escapado.



A cada vez que e

ste confuso sonho recuava, ele pensava:

Quando isto

terminar, eu vou embora. Vou embora, com toda a certeza. Vou rodar até o

México.

E o México, quando ele imaginava seu sol inalterável e sua

quietude rural, parecia mais real do que os sonhos.



Pouco depois



de acordar do último de tais sonhos, acudira

-

lhe a

idéia de passar o Natal com tia Vicky e tio Steve, exatamente como nos

velhos tempos. Acordara com essa idéia e ela se firmara em sua cabeça

com peculiar persistência. Parecia uma idéia excelente, importa

ntíssima.

Sair de Libertyville, antes...



Bem, antes do Natal. O que mais poderia ser?



Assim, começou a falar nisso com os pais, sendo mais

particularmente insistente com Regina. Na quarta

-

feira, ela entregou os

pontos repentinamente e concordou. Arnie sabi

a que ela falara com a irmã,

e Vicky não assumira atitudes de mandona, portanto estava tudo certo.



Agora, na véspera do Natal, Arnie sentia que

tudo

em breve estaria

absolutamente perfeito.









Lá está, Mike





disse Regina



, e você vai entrar direitinho po

r

ela, como sempre faz, cada vez que viemos aqui.



Michael soltou um grunhido e manobrou para a entrada de carros.







Eu já tinha visto





respondeu, no tom perpetuamente defensivo

que sempre parecia usar com a esposa.






Ele é um burro,

pensou Arnie.

Ela fala c

om ele como a um burro, o

comanda como a um burro e ele zurra como um burro.







Você está sorrindo de novo





disse Regina.







Estava pensando no quanto amo vocês dois





respondeu Arnie.



Michael olhou para ele, surpreso e comovido; nos olhos de sua mãe

surgiu



um brilho suave, que poderia ter sido provocado por lágrimas. Eles

realmente acreditavam. Os bostas.





Eram umas três da tarde daquela véspera de Natal e a neve

permanecia caindo em rajadas esporádicas, embora tais rajadas

começassem a soldar

-

se, uma as ou

tras. Segundo os meteorologistas, o

atraso na chegada da tempestade nada prenunciava de bom. Ela se tinha

compactado, o que tornava as coisas ainda piores. Havia previsões de

possíveis acúmulos, variando de trinta a quarenta e cinco centímetros,

com fortes



desvios dos ventos mais fortes.



Leigh Cabot estava na sala de visitas de sua casa, diante de uma

pequena árvore de Natal natural em que já começavam a despontar as

agulhas (em sua casa, ela era a voz do tradicionalismo e, durante quatro

anos, havia vencid

o a vontade do pai, que preferia uma árvore artificial,

bem como a da mãe, que optava por um ganso ou galinha assada na época

dos feriados, em vez do peru tradicional do Dia de Ação de Graças). Leigh

estava sozinha em casa. Seus pais tinham ido à residênci

a dos Stewarts,

para os drinques de véspera de Natal. O Sr. Stewart era o novo chefe de

seu pai e os dois davam

-

se bem. A Sra. Cabot esforçava

-

se em promover

aquela amizade. Nos últimos dez anos, os Cabots se haviam mudado seis

vezes, começando tudo de nov

o e, dentre todos os lugares onde tinham

morado, sua mãe gostara mais de Libertyville. Queria continuar ali, e a

amizade do marido com o novo chefe poderia contribuir bastante para

realizar esse seu desejo.



Absolutamente só, e ainda virgem,

pensou ela. Era



uma idéia

totalmente idiota mas de qualquer modo, Leigh se levantou de repente,

como se tivesse sido espetada. Foi à cozinha, demasiado consciente dos

pequeninos ruídos do país das maravilhas em fórmica: relógio elétrico, o

forno onde estava sendo assado

um presunto

(virá

-

lo às seis, se eles ainda

não tiverem voltado,

recordou

-

se), um baque seco do congelador da

Frigidaire, indicando a fabricação de mais um cubo de gelo.






Abriu a geladeira, viu uma embalagem de seis Cocas, ao lado da

cerveja de seu pai e pe

nsou:

Afaste

-

se de mim, Satanás!

Mesmo assim, ela

apanhou uma lata. Pouco importava, se lhe estragasse a pele. Agora não ia

mais sair com ninguém. E daí, se lhe nascessem espinhas?



A casa vazia a deixava inquieta. Isso jamais acontecera antes; Leigh

sempre



se sentira satisfeita e absurdamente competente quando seus pais

a deixavam só





sem dúvida, uma reminiscência da infância. A casa

sempre lhe parecera confortadora, mas agora os sons da cozinha, o uivo

do vento aumentando lá fora, até mesmo o rumor de seu

s chinelos no

linóleo





tais sons pareciam sinistros, até amedrontadores. Se tudo

tivesse ocorrido de maneira diferente, Arnie poderia estar ali, com ela.

Seus pais, especialmente sua mãe, tinham gostado dele. A princípio.

Agora, naturalmente, depois do su

cedido, sem dúvida sua mãe até lhe

lavaria a boca com sabão, se soubesse que estivera pensando nele. No

entanto, ela

pensava

nele. Pensava nele quase o tempo todo. Perguntando

-

se por que Arnie mudara. Perguntando

-

se como ele estaria aceitando o

sucedido. P

erguntando

-

se se ele estaria legal.



O vento aumentou de tom até uivar, em seguida diminuindo um

pouco, recordando

-

lhe





sem qualquer motivo, naturalmente





o motor

de um carro, acelerando e depois desacelerando.



Sem retorno da Curva do Homem Morto,

sussurr

ou sua mente, de

modo estranho. Então, sem o menor motivo (lógico) ela foi até a pia e

despejou a Coca no ralo, perguntando

-

se se iria chorar, vomitar ou o quê.



Leigh percebeu, com uma surpresa crescente, seu estado de quase

terror.



Sem o menor motivo.



Lóg

ico.



Afinal, seus pais haviam deixado o carro na garagem (carros, estava

com carros no cérebro). Não gostava de pensar no pai tentando voltar

para casa, ao sair da residência dos Stewarts, dirigindo um tanto zonzo

devido a três ou quatro martínis (exceto q

ue eles sempre o chamavam

martunis, em típica atitude gozadora de adultos). Eram apenas três

quarteirões de distância e eles dois haviam saído bem agasalhados e

risonhos, como duas crianças grandes, preparando

-

se para fazer um

boneco de neve. A caminhada d

e volta os tornaria sóbrios. Seria bom para

ambos. Seria bom se...






O vento tornou a intensificar

-

se





zumbindo em torno das calhas e

depois murmurejando





e, de súbito, Leigh viu seus pais embriagados

caminhando pela rua, entre nuvens de neve solta, um amp

arando o outro

para que nenhum caísse sobre o traseiro, rindo muito. Papai talvez

beliscasse mamãe, através de suas calças para a neve. A maneira como ele

às vezes a beliscava, quando ficava um pouco tonto de bebida, era algo

que sempre deixara Leigh irrit

ada, porque parecia um ato demasiado

juvenil, para ser praticado por um adulto formado. Naturalmente, é claro,

ela os amava. Seu amor era uma parte da irritação, e sua exasperação

ocasional com eles constituía uma grande parte do amor que lhes

dedicava.



Os



dois estariam caminhando juntos, através de uma neve tão

espessa como fumaça, e então dois enormes olhos verdes se abriam na

brancura atrás deles, parecendo flutuar... olhos que se assemelhavam

terrivelmente aos círculos dos instrumentos do painel de um c

arro, os

mesmos que vira, quando quase morrera sufocada... e aqueles olhos iam

crescendo... perseguindo seus indefesos, risonhos e empilecados pais.



Leigh respirou bruscamente e voltou à sala. Chegou até o telefone,

quase o tocou, mas então afastou

-

se e re

tornou à janela, de onde ficou

olhando para a brancura, os cotovelos apoiados nas palmas em concha.



O que lhe competia fazer? Telefonar para eles? Dizer

-

lhes que estava

sozinha em casa, que ficara pensando no carro velho e algo sorrateiro de

Arnie, sua nam

orada de aço chamada Christine e, por isso, queria que eles

voltassem para casa, por temer pelos dois e por si mesma? O que devia

fazer?



Seja esperta, Leigh. Esperta.



A superfície negra da rua, após ter sido limpa, desaparecia

novamente sob neve recente, m

as devagar. Só agora tinha começado a

nevar com mais intensidade e o vento tentava limpar a rua

periodicamente com fortes rajadas, as quais enviavam membranas de

neve pulverizada, que subia e se fundia ao céu cinza

-

alvacento da tarde

borrascosa, como fanta

smas de fumaça que se contorciam lentamente...



Oh, mas o terror estava ali, era real





e ia acontecer alguma coisa.

Ela sabia. Ficara abalada, ao saber que Arnie fora detido por contrabando,

mas essa reação nada significava, diante do choque, do medo doent

io que

sentira ao abrir o jornal dias antes e ver o que acontecera a Buddy




Repperton e aqueles outros dois rapazes





um dia em que seu primeiro,

louco, terrível e, de certa forma, exato pensamento, havia

sido: Christine.



E agora pendia fortemente sobre ela



a premonição de mais uma

negra ameaça, não conseguia libertar

-

se daquilo, era ridículo, Arnie

estivera na Filadélfia, como membro de um torneio de xadrez, ela fizera

perguntas a respeito do dia certo





e uma coisa nada tinha a ver com a

outra, e não ia ma

is pensar naquilo, ligaria todos os rádio e a televisão,

para encher a casa de sons e impedi

-

la de pensar naquele carro que fedia

como uma sepultura, naquele carro que tentara liquidá

-

la, assassiná

-

la...







Oh, que droga!





sussurrou.





Por que não

paro

com



isso?



Seus braços enrijeceram com os arrepios.



Voltou bruscamente para junto do telefone, encontrou o catálogo e,

como fizera Arnie certa noite, duas semanas antes, Leigh ligou para o

Hospital Comunitário de Libertyville. A voz agradável de uma

recepcioni

sta informou que o Sr. Guilder recebera alta naquela manhã.

Leigh agradeceu e desligou.



Ela ficou pensativa na sala de visitas, olhando para a pequena

árvore de Natal, os presentes, a manjedoura a um canto. Em seguida,

procurou o número dos Guilders no cat

álogo e discou.







Leigh!





exclamou Dennis, agradavelmente surpreso. O fone na

mão dela estava frio.







Posso ir aí falar com você, Dennis?







Hoje?





perguntou ele, sem entender.



Pensamentos confusos passaram pela mente de Leigh. O presunto

no forno. Tinha

que desligar o forno às cinco horas. Seus pais estariam em

casa. Era véspera de Natal. A neve. E... e ela não pensou se seria seguro

sair aquela noite. Caminhar pelas calçadas, quando alguma coisa podia

estar espreitando, dentro da neve. Qualquer coisa. Nã

o podia,

principalmente nessa noite, e isso era o pior. Ela não pensou se seria

seguro estar fora de casa nessa noite.







Leigh?







Não, esta noite, não





respondeu.





Estou tomando conta da

casa para meus pais. Os dois foram a um coquetel.










Certo, os meus

também





disse Dennis alegre.





Eu e minha

irmã estamos jogando Parcheesi. Ela está roubando.



Uma voz soou fracamente:







Não estou roubando coisa nenhuma.



Em outra época, aquilo seria engraçado. Não agora.







Depois do Natal. Na terça

-

feira, talvez. Dia vin

te e seis. Está bem

assim?







Claro





respondeu ele.





É sobre Arnie, Leigh?







Não





disse ela, apertando o telefone com tanta força que sua

mão ficou entorpecida. Precisou esforçar

-

se para controlar a voz.





Não...

Não se trata de Arnie. Quero conversar co

m você sobre Christine.





D

ESABA A

T

EMPESTADE



Minha máquina é envenenada, com tração nas quatro rodas,



Tem um motor Roadrunner, em um Ford 32,



Sim, e noite alta, quando estou sem fazer nada,



Juro que penso em seu rostinho, quando a deixo rodar.



Bem, olhe lá



longe, vê aquelas luzes da cidade?



Vamos, queridinha, venha motorar esta noite.







Bruce Springsteen





Pelas cinco horas daquela tarde, a tempestade havia embranquecido

a Pensilvânia, varando o Estado de uma fronteira à outra, uivando, com a

goela ululante

cheia de neve. Não houve nenhuma correria final de

compras às vésperas do Natal. Em sua maioria, os exaustos e abatidos

balconistas e todos os que lidavam com vendas agradeceram o imprevisto

à Mãe Natureza, embora perdessem as horas extras de trabalho.

Sab

oreando drinques diante do agradável fogo de lareiras acesas pouco

antes, eles comentavam que já teriam serviço de sobra na terça

-

feira,

quando começassem as devoluções.






A Mãe Natureza não parecia tão maternal assim naquela tarde,

quando um prematuro crepú

sculo foi substituído por absoluta escuridão e

depois por uma noite de nevasca. Naquela noite, ela foi uma terrível

feiticeira pagã, uma megera comandando o vento, e o Natal não

significava nada para ela; arrancou todos os ouropéis da Câmara do

Comércio e

os enviou piruetando para o alto do céu escuro, soprou a

grande cena de natividade à frente do posto policial, atirando

-

a para um

monte de neve, onde as ovelhas, as cabras, a Mãe de Deus e o Menino só

seriam encontrados no próximo janeiro, que os revelaria

. E, como

cusparada final no olho da temporada dos feriados, arrancou a árvore de

doze metros à frente do Edifício Municipal de Libertyville, enviando

-

a

através de uma enorme janela para dentro do gabinete do Avaliador de

Impostos da cidade. Muitos dissera

m mais tarde que o lugar fora bem

escolhido.



Às sete da noite, os limpa

-

neve não davam mais conta do recado. Às

sete e quinze, um ônibus abriu caminho laboriosamente pela Main Street,

tendo mais atrás uma fila de carros seguindo sua traseira prateada, como



filhotes acompanhando a mãe. Então a rua ficou vazia, exceto por uns

poucos carros estacionados obliquamente, que já haviam ficado

enterrados até os pára

-

choques, após a passagem dos veículos limpa

-

neve.

De manhã, a maioria deles estaria sepultada por com

pleto. No

cruzamento de Main Street e Basin Drive, um sinal de trânsito, cuja luz

não dirigia ninguém em absoluto, foi torcido pelo vento e dançou

suspenso em seu cabo. Houve um súbito e crepitante som elétrico e a luz

apagou. Dois ou três passageiros do ú

ltimo ônibus da cidade

atravessavam a rua nesse momento; olharam para cima e andaram mais

depressa.



Lá pelas oito da noite, quando os Cabots finalmente chegaram em

casa (para Leigh um imenso mas não falado alívio), as estações locais de

rádio transmitiam u

m pedido da Polícia Estadual da Pensilvânia, para que

todos se mantivessem afastados das ruas e estradas.



Às nove horas, quando Michael, Regina e Arnie Cunningham,

munidos de ponche quente com rum (reconhecidamente uma

Especialidade da Temporada, obra de t

io Steve), estavam em torno da

televisão com tio Steve e tia Vicky, para verem Alastair Sim em

Uma

canção de Natal,

uma extensão de sessenta e cinco quilômetros da auto

-

estrada de pedágio da Pensilvânia havia sido fechada pela neve impelida




e amontoada pel

o vento. Por volta de meia

-

noite, toda ela estaria

intransitável.



Às nove e meia, quando os faróis dianteiros de Christine se

acenderam subitamente na solitária garagem de Will Darnell, colocando

um brilhante arco na escuridão interior, Libertyville estava



com todas as

ruas impedidas, exceto pela passagem ocasional de algum veículo limpa

-

neve.



Na garagem silenciosa, p motor de Christine disparou e morreu.



Disparou e morreu.



No assento dianteiro vazio, a alavanca de mudança baixou para

DRIVE.



Christine começ

ou a mover

-

se.



O dispositivo eletrônico, preso no pára

-

brisa, zumbiu brevemente.

Seu som sussurrante se perdeu no ulular do vento, mas a porta o ouviu;

chocalhou obedientemente para cima em seus trilhos. A neve foi soprada

para o interior e rodopiou como p

oeira na garagem.



Christine partiu para o exterior, espectral dentro da neve. Dobrou à

direita e desceu a rua, seus pneus cortando fundo a neve, com firmeza e

precisão, sem patinar, derrapar ou vacilar.



Um sinal se acendeu





um olho âmbar e pestanejante na



neve. Ela

dobrou para a esquerda, em direção à estrada JFK.





Don Vandenberg sentava

-

se atrás da mesa, no escritório do posto de

gasolina de seu pai. Seus pés e seu pênis estavam erguidos. Ele lia um dos

livros pornográficos do pai, um volume altamente mor

daz e provocante,

intitulado

As Trepadas de Pammie.

Pammie já havia trepado com todo

mundo, excetuando

-

se o leiteiro e o cachorro. O leiteiro vinha subindo a

rua e o cachorro jazia aos pés dela. quando a sineta tocou, indicando um

freguês.



Don ergueu os ol

hos, impaciente. Telefonara para seu pai às seis

horas, quatro horas atrás, perguntando se não seria melhor fechar o

posto





não haveria aquela noite movimento suficiente que pagasse a

eletricidade consumida pelo letreiro. Já em casa, aquecido, com bebida

nas

tripas e seguramente abrigado, ele respondera para mantê

-

lo aberto até




meia

-

noite. Se jamais houvesse um Scrooge, pensara Don ressentido, ao

bater com o telefone no gancho, esse era seu velho.



O simples fato era que Don não gostava mais de ficar ali so

zinho,

durante a noite. Tempos atrás





e não fazia muito





ele teria companhia

à vontade. Buddy estaria lá, e Buddy era como um ímã, atraindo os outros

com sua bebida, sua coca ocasional, mas acima de tudo pela simples força

de sua personalidade. Agora, no



entanto, todos se tinham ido. Todos eles.



Havia vezes, no entanto, que Don imaginava o contrário. Por vezes

(quando estava sozinho, como naquela noite), tinha a impressão de que

poderia erguer os olhos e vê

-

los sentados ali





Richie Trelawney de um

lado,

"Penetra" Welch do outro e Buddy entre eles, com uma garrafa de

Texas Driver na mão e um baseado atrás da orelha. Horrivelmente pálidos,

todos três parecendo vampiros, tinham olhos vidrados, como os de um

peixe morto. Então, Buddy erguia a garrafa e sussur

rava:

Tome um gole, seu

filho da mãe





logo estará morto, como nós.



Algumas vezes tais fantasias eram tão reais que o deixavam com a

boca seca e as mãos trêmulas.



E Don estava perfeitamente a par dos motivos. Eles nunca deveriam

ter arrebentado o carro do C

ara de Cona aquela noite. Cada um dos que

haviam tomado parte na brincadeira tivera morte horrível. Todos eles,

quer dizer, exceto ele próprio e Sandy Galton. Sandy se enfiara em seu

velho e estropiado Mustang, no qual desaparecera para qualquer lugar.

Dur

ante aqueles longos turnos da noite, Don freqüentemente pensava que

gostaria de fazer o mesmo.



Lá fora, o freguês tocou a buzina.



Don bateu com o livro em cima da mesa, perto da máquina de

cartões de crédito, suja de graxa. Depois lutou para enfiar sua jaq

ueta

esforçando

-

se para ver o carro e perguntando

-

se quem seria louco o

bastante para aventurar

-

se na rua, debaixo de semelhante tempestade.

Devido à neve que o vento fazia esvoaçar, era impossível deduzir algo

sobre o carro ou o motorista; Don não consegu

iu ter certeza de nada,

excetuando

-

se os faróis e o formato da carroceria, que era comprida

demais para um carro novo.



Algum dia, pensou ele, enfiando as luvas e dando um relutante

adeus à sua ereção, seu pai instalaria bombas automáticas e toda aquela




mer

da teria fim. Se havia pessoas birutas o suficiente para saírem de casa

em noites iguais àquela, que bombeassem sua própria gasolina.



A porta quase foi arrancada de sua mão. Precisou segurá

-

la com

todas as forças, para que não escapasse e batesse de volta

na lateral de

concreto do prédio e talvez estilhaçasse a vidraça. Esforçou

-

se tanto que

quase caiu sentado sobre o traseiro. A despeito do uivo persistente do

vento (que estivera tentando não ouvir), havia subestimado inteiramente a

potência da tempestade.



A própria profundidade da neve





além de vinte

centímetros





o ajudou a manter

-

se de pé.

Esse carro fodido deve estar com

pneus para neve,

pensou ressentido.

Se o cara me vier com cartão de crédito sou

bem capaz de quebrar a espinha dele.



Abriu caminho pe

nosamente na neve, aproximando

-

se do primeiro

conjunto de ilhas. O filho da mãe estacionara no conjunto mais distante.

Naturalmente. Don tentou erguer, os olhos uma vez, mas o vento lhe

jogou neve no rosto, em uma lambada fedorenta, e ele baixou a cabeça

d

epressa, deixando que o topo do capuz da jaqueta recebesse o impacto

maior.



Cruzou pela frente do carro, banhado por um momento pela luz

brilhante, mas fria, dos faróis dianteiros duplos. Caminhando com

dificuldade, chegou ao lado do motorista. As luzes fl

uorescentes da ilha

em que ficava a bomba transformavam o carro em uma espalhafatosa

mancha borgonha de branco

-

sobre

-

púrpura. As bochechas de Don já

estavam entorpecidas.

Se o cara quiser um dólar de gasolina e me pedir para

checar o óleo, vou dizer pra el

e enfiar no rabo,

pensou, e levantou a cabeça

para as ferroadas da neve, quando o vidro da janela foi descido.







Em que posso a...





começou ele, e a palavra

ajudá

-

lo

se tornou

um grito alto, sibilante e impotente:





aaaaaaahhhhhhh..!



Inclinando

-

se para fo

ra da janela, a menos de quinze centímetros de

seu próprio rosto, estava um cadáver putrefato. Seus olhos eram enormes

órbitas vazias, os lábios mumificados tinham sido repuxados para trás,

sobre alguns poucos dentes amarelados. Uma das mãos, alvacenta, ja

zia

sobre o volante. A outra, estalando horrivelmente, adiantava

-

se para tocá

-

lo.



Don chapinhou para trás, seu coração uma máquina desembestada

no peito, seu terror uma monstruosa rocha quente na garganta. A coisa




morta acenou para ele, sorrindo, enquanto

o motor do carro roncava

subitamente, ao ser acelerado.







Encha o tanque





sussurrou o cadáver. A despeito de seu choque

e seu horror, Don viu que ele usava os esfarrapados remanescentes de um

uniforme do Exército, manchado de bolor.





Encha, seu bosta!



Os



dentes da caveira sorriram, iluminados pela luz fluorescente.

Mais no fundo daquela boca, cintilou um pedacinho de ouro.







Tome um gole, filho da mãe





sussurrou outra voz roucamente, e

Buddy Repperton inclinou

-

se para diante no assento traseiro, estendend

o

uma garrafa de Texas Driver para Don. Vermes afloraram e se torceram

em seu sorriso. Besouros rastejaram no que lhe restava de cabelo.





Acho

que está precisando.



Don gritou agudamente, o som esganiçando

-

se ao partir de sua

garganta. Girou sobre si mesmo



e correu através da neve, em grandes

saltos como um desenho animado; tornou a guinchar, quando o motor do

carro clamou toda a potência de seus cilindros. Olhando por sobre o

ombro, ele viu que era Christine, o automóvel parado perto das bombas, a

Christin

e de Arnie, que agora se movia, soltando neve em jatos com seus

pneus traseiros. As coisas que ele vira haviam desaparecido





o que, de

certa forma, ainda era pior. As coisas tinham sumido. O carro se movia

sozinho.



Don virou

-

se para a rua e agora escalava



o monte de neve formado

pelos limpa

-

neve que passavam. Desceu pelo outro lado. Ali, o vento

havia varrido o pavimento, deixando

-

o limpo de tudo, exceto de um

ocasional montículo de neve. Don escorregou em um deles. Seu pé

escapuliu e ele caiu de costas, c

om um baque surdo.



Um momento depois, a rua era inundada por luz branca. Don rolou

sobre si e ergueu o rosto, os olhos apertados loucamente nas órbitas, em

tempo de ver os imensos círculos brancos dos faróis de Christine, quando

ela irrompeu através do mon

te de neve e arremeteu sobre ele, como uma

locomotiva.





À semelhança da Gália, todo o setor de Libertyville Heights era

dividido em três partes. O semicírculo mais próximo da cidade, sobre os

baixios das montanhas, tinha sido conhecido como Liberty Lookout







até




meados do século XIX (uma Placa do Bicentenário, na esquina das Ruas

Rogers e Tacklin, recordava o fato)





e era a única área realmente pobre

da cidade. Tratava

-

se de uma zona superlotada de edifícios e construções

com estruturas de madeira. Varais

de roupas enfileiravam

-

se

desordenadamente pelos quintais que, em estações mais temperadas,

pululavam de crianças e brinquedos baratos





na maioria dos casos, tanto

as crianças como os brinquedos estavam em péssimas condições. Essa

vizinhança, que outrora

pertencera à classe média, fora cada vez mais

negligenciada desde que, em 1945, cessaram os empregos de guerra. O

declínio instalou

-

se lentamente a princípio, depois ganhando velocidade

nos anos 60 e início dos 70. Agora chegava o pior, embora ninguém se

a

venturasse a afirmá

-

lo, pelo menos em público, quando o declarante

poderia ser citado. Os negros se mudavam para lá. O fato era comentado,

em particular nas melhores partes da cidade, entre churrascos e drinques:

os negros, que Deus nos ajude, os negros es

tão descobrindo Libertyville. A

área, inclusive, até já ganhara um nome





não era mais Liberty Lookout,

mas Low Heights, isto é, o lado inferior de Heights. Era um nome que

para muitos tinha um sabor arrepiante de gueto. O editor do

Keystone

tinha sido dis

cretamente informado, por vários de seus anunciantes de

peso, que o uso impresso de tal frase, que assim ficaria legitimada, os

deixaria muito aborrecidos. E o editor, cuja mãe nunca criara idiotas,

jamais a imprimiu.



Heights Avenue partia de Basin Drive,

em Libertyville propriamente

dita, para então começar a subir. A avenida seguia destramente por entre

Low Heights, deixava esta zona para trás e então embrenhava

-

se por um

cinturão verde, penetrando a seguir em uma área residencial. Esta parte

da cidade er

a conhecida simplesmente como Heights. Tudo isto talvez

pareça um tanto confuso





Heights

-

isto e Heights

-

aquilo



, mas os

moradores de Libertyville sabiam do que estavam falando. Mencionar

Low Heights significava pobreza, gentalha e coisas assim. Abandonad

o o

adjetivo "Low", significava a direção contrária à pobreza. Era ali que se

situavam as belas e antigas residências, em sua maioria elegantemente

distanciadas da rua e, algumas das mais refinadas, erguidas atrás de

espessas sebes de seixos. Os impulsiona

dores de Libertyville e os

endinheirados residiam nesse setor





o dono do jornal, quatro médicos, a

rica e amalucada neta do homem que inventara o sistema ejetor disparo

-

rápido, para pistolas automáticas. Em sua maioria, os demais residentes

eram advogados

.






Além desta área dos poderosos da cidadezinha respeitável, Heights

Avenue passava através de uma zona de bosques, em realidade

demasiado densa para ser chamada de cinturão verde. No ponto mais alto

de Heights, a Stanson Road se ramificava para a esquerda

e ia morrer no

Embankment,

um terrapleno acima da cidade e do

drive

-

in

de Libertyville.



No outro lado desta montanha baixa (mas também conhecida como

Heights) situava

-

se uma vizinhança razoavelmente antiga da classe média,

onde casas de quarenta e cinqüent

a anos envelheciam lentamente.

Quando esta área começava a transformar

-

se em zona rural, Heights

Avenue passava a ser County Road Nº 2.



Às dez e meia daquela véspera de Natal, um Plymouth 1958,

pintado em duas cores, começou a subir pela Heights Avenue, su

as luzes

abrindo caminho através da densa escuridão entupida de neve. Os

residentes veteranos de Heights diriam que nada





exceto, talvez, um

veículo com tração nas quatro rodas





conseguiria subir a Heights

Avenue aquela noite, mas o fato é que Christine

seguiu em frente,

desenvolvendo uns constantes cinqüenta quilômetros por hora, os faróis

dianteiros sondando o terreno, seus limpadores de pára

-

brisa movendo

-

se

ritmicamente para um lado e para outro, totalmente vazia no interior. As

marcas frescas de seus



pneus eram as únicas, em lugares que chegavam

quase a trinta centímetros de profundidade. O vento persistente as enchia

com rapidez. De vez em quando, seu pára

-

choque dianteiro e o capô

explodiam através da crista de um monte de neve acumulada pelo vento,



focinhando a neve pulverizada para os lados, sem nenhuma dificuldade.



Christine passou pela ramificação da Stanson Road e seguiu até a

terraplenagem do

Embankment,

onde Arnie e Leigh haviam tido um

encontro certa vez. Chegou ao alto de Libertyville Height

s e começou a

descer para o extremo mais distante, a princípio através de bosques

escuros, cortados apenas pela fita branca que assinalava a estrada, depois

pelas casas suburbanas, com suas aconchegantes luzes na sala de estar e,

em alguns casos, exibindo

alegres guirlandas de luzes natalinas. Em uma

daquelas casas, um homem jovem que acabara de desempenhar o papel

de Papai Noel e que tomava um drinque de comemoração com a esposa,

olhou casualmente para fora e viu os faróis que iam passando. Apontou

-

os para



ela.







Se aquele sujeito subiu até Heights esta noite





comentou, com

um sorriso



, deve ter vindo empurrado pelo demônio.










Esqueça





respondeu ela.





E agora que as crianças já tiveram a

sua parte, o que eu vou ganhar de Papai Noel?



Ele tornou a sorrir.







Daremos um jeito nisso





respondeu.





Num lugar mais distante da rua, quase onde os Heights deixavam

de ser os Heights, Will Darnell estava sentado na sala da casa simples de

dois pavimentos, que lhe pertencera por trinta anos. Usava um surrado e

desbota

do roupão azul por cima da calça do pijama, a enorme barriga

projetando

-

se como uma lua intumescida. Assistia à conversão final de

Ebenezer Scrooge, junto à Bondade e à Generosidade, mas em realidade

nada via. Sua mente seguia mais uma vez à deriva, atravé

s das peças de

um quebra

-

cabeça que se tornava cada vez mais fascinante: Arnie, Welch,

Repperton, Christine. Will envelhecera uma década naquela semana ou

pouco mais, após a incursão policial. Tinha dito àquele tira Mercer que

estaria de volta aos negócios

, no mesmo lugar, dentro de duas semanas.

No entanto, tinha suas dúvidas. Parecia

-

lhe que, ultimamente, sua

garganta vivia viscosa, devido ao sabor do maldito inalador.



Arnie, Welch, Repperton... Christine.



"





Rapaz!"





chamou Scrooge, de sua janela, como

uma caricatura

do Espírito do Natal, em sua camisola e touca de dormir.





"Aquele belo

peru continua exposto na vitrine do açougueiro?"



"





Qual?"





perguntou o garoto.





"Aquele do meu tamanho?"



"





Sim, sim"





respondeu Scrooge, rindo sufocadamente,

selvag

emente. Era como se os três espíritos, em vez de salvá

-

lo, o tivessem

enlouquecido.





"Aquele do seu tamanho!"



Arnie, Welch, Repperton... LeBay?



Por vezes, ele achava que não fora a ação policial que o deixara tão

prostrado, que o fazia sentir

-

se exausto e



amedrontado o tempo todo.

Tampouco era o fato de haverem atuado contra seu contador favorito ou

porque o pessoal dos impostos federais estivesse metido naquilo e, desta

feita, para valer. Os homens dos impostos não eram o motivo por ter

começado a esquadr

inhar a rua, antes de sair de casa pela manhã; o

Gabinete do Procurador

-

geral do Estado nada tinha a ver com os súbitos




olhares que passara a deitar para trás, sobre o ombro, quando vinha de

carro para casa à noite, voltando da garagem.



Já analisara infini

tamente o que tinha visto aquela noite





ou o que

julgava ter visto. Vezes e vezes sem conta, tentando convencer

-

se de que

aquilo não tinha sido real em absoluto... ou que era absolutamente real.

Pela primeira vez, em anos, via

-

se duvidando dos próprios se

ntidos. E, à

medida que o evento recuava no passado, ficava mais fácil acreditar que

tinha adormecido e sonhara tudo aquilo.



Will não tinha visto Arnie desde a ação policial e nem tentara

telefonar para ele. A princípio, havia pensado em usar seu conhecime

nto

sobre Christine como arma para manter fechada a boca de Arnie, caso ele

enfraquecesse e quisesse falar





Deus sabia que o garoto podia ir longe, a

fim de enviá

-

lo para a prisão, se cooperasse com os tiras. Somente depois

que a polícia agiu por toda par

te, Will percebeu o quanto o garoto sabia, o

que lhe valeu alguns amedrontados momentos de auto

-

avaliação (algo

mais se tornaria perturbador, sendo tão estranho à sua natureza): teriam

todos

eles sabido tanto? Repperton e todos os bandidos clones de

Repper

ton, estendendo

-

se no correr dos anos? Poderia ele, realmente, ter

sido tão estúpido?



Não, acabou decidindo. Era apenas Cunningham. Porque

Cunningham era diferente. Parecia captar as coisas quase intuitivamente.

Não costumava contar vantagens, beber ou men

tir. De uma forma

singular, Will se sentia quase paternal em relação a ele





não que

vacilasse em colocar o garoto em seu devido lugar, caso ele tivesse a mais

remota idéia de virar o barco.

E tampouco vacilaria agora,

garantiu a si

mesmo.



Na TV, um mal

-

ac

abado Scrooge em preto e branco estava em

companhia dos Cratchit. O filme chegava ao fim. Aquele bando, todos eles,

pareciam amalucados, eis a verdade, mas Scrooge era, sem a menor

dúvida, o pior. A expressão de louca alegria em seu olhar não diferia

muito



da de um homem que Will conhecera vinte anos antes, um sujeito

chamado Everett Dingle, que saíra da garagem para casa, certa tarde, e

assassinara toda a família.



Will acendeu um charuto. Qualquer coisa valia a pena, para tirar o

sabor do inalador de sua b

oca, aquele gosto infecto. Ultimamente, respirar

parecia mais difícil do que nunca. Os malditos charutos ainda pioravam a

situação, mas ele estava velho demais para mudar.






O garoto não tinha falado





pelo menos, ainda não. Eles tinham

apanhado Henry Buck,

Will ficara sabendo por seu advogado. Henry, com

sessenta e três anos, avô, negaria Cristo três vezes, se lhe prometessem

liberação ou suspensão da pena, em troca de suas declarações. O velho

Henry Buck estava vomitando tudo quanto sabia o que, felizmente,



não

era grande coisa. Estava a par dos "fogos

-

de

-

artifício" e cigarros, mas isso

constituía apenas dois elos do que, certa vez, havia sido urna cadeia de

seis ou sete elos, abrangendo bebida, carros roubados, armas de fogo com

abatimento (incluindo

-

se alg

umas metralhadoras, vendidas a fanáticos

por armas e caçadores homicidas, que queriam ver se elas "realmente

dilaceram um alce, como me contaram"), e antigüidades roubadas da

Nova Inglaterra. E, nos últimos dois anos, cocaína. Este último havia sido

um eng

ano; Will agora sabia disso. Aqueles colombianos lá de Miami

eram tão loucos como ratos em uma casa de drogas. Por falar nisto, eles

eram

os ratos da casa de drogas. Graças a

Deus,

Arnie não fora agarrado

levando meio quilo de coca.



Bem, os tiras iam feri

-

lo desta vez





a que ponto, muito ou pouco,

dependia bastante daquele especial garoto de dezessete anos e, talvez, de

seu também especial carro. As coisas estavam tão delicadamente

equilibradas como um castelo de cartas





e Will hesitava entre fazer ou

diz

er alguma coisa, temendo que a situação mudasse para pior. E sempre

havia a possibilidade de que Cunningham lhe risse na cara e o chamasse

de louco.



Will levantou

-

se, com o charuto preso entre os maxilares, e desligou

o aparelho de televisão. Devia ir para



cama, porém seria bom tomar um

brandy

primeiro. Ele agora vivia cansado, mas o sono custava a chegar.



Virou

-

se na direção da cozinha... e foi quando a buzina começou a

soar fora da casa. O som chegou até ele acima do uivo do vento, em

buzinadas curtas e i

mperativas.



Will parou de repente na porta da cozinha e apertou com firmeza o

roupão em torno da barriga volumosa. Seu rosto ficou atento, concentrado

e vivo, subitamente o rosto de um homem muito mais novo. Ficou ali por

um momento mais.



Três outras buzin

adas bruscas e breves.






Deu meia

-

volta, tirando o charuto da boca, e caminhou lentamente

pela sala de estar. Um quase sonhador senso de

déjà vu

passou sobre ele

como água tépida. Misturado a uma impressão de fatalismo.



Sabia que era Christine lá fora, antes



mesmo de erguer a cortina e

espiar. Viera buscá

-

lo, e pensou que já parecia saber disso.



O carro estava no início da alameda que vinha até a garagem, pouco

mais do que um fantasma, nas membranas da neve que soprava. A

claridade dos faróis brilhava em cone

s que se alargavam e por fim

desapareciam dentro da tempestade. Por um momento, Will teve a

impressão de haver alguém ao volante, mas piscou de novo e viu que o

carro estava vazio. Tão vazio como quando retornara à garagem, naquela

noite.



Fom! Fom! Fom

-

fom

!



Quase como se estivesse falando.



O coração de Will bateu pesadamente em seu peito. Virou

-

se

bruscamente para o telefone. Chegara, afinal, o momento de telefonar

para Cunningham. Ligar para ele, e dizer

-

lhe que acorrentasse seu

demônio de estimação.



Estav

a a meio caminho quando ouviu o motor do carro gritar. Era

um som semelhante ao brado estridente de uma mulher, farejando traição.

Um momento depois, houve um forte rangido. Will retornou à janela, a

tempo de ver o carro dando marcha à ré, do enorme monte

de neve que

fechava o final de sua entrada para a garagem. O capô de Christine estava

pulverizado de neve e ligeiramente ondulado. O motor tornou a acelerar.

As rodas traseiras giravam sobre a neve pulverizada e então aderiram ao

solo. O Plymouth saltou at

ravés da rua nevada e arremeteu novamente

contra o monte de neve. Mais neve foi atirada para o alto, desgarrando

-

se

ao vento como fumaça de charuto, jogada diante de um ventilador.



Jamais conseguirá,

pensou Will.

E mesmo que consiga invadir a entrada

da ga

ragem... e daí? Está pensando que vou sair e fazer seu jogo?



Com a respiração sibilando mais agudamente do que nunca, ele

voltou para junto do telefone, verificou o número da casa de Cunningham

e começou a discá

-

lo. Seus dedos ficaram nervosos, errou os nú

meros,

praguejou, atingiu o dispositivo de desligar, começou outra vez.






Lá fora, o motor de Christine acelerou. Um instante depois houve

um rangido, quando ela atingiu o monte de neve pela terceira vez. O

vento uivou, e a neve atingiu a grande janela envid

raçada, como areia seca.

Will passou a língua pelos lábios e tentou respirar mais devagar. No

entanto, sua garganta se comprimia, podia senti

-

lo.



O telefone começou a tocar no outro extremo. Três vezes. Quatro.



O motor de Christine gritou. Depois o baque f

orte, quando atingiu

os montes de neve que os limpa

-

neve de passagem haviam empilhado nas

duas extremidades da entrada para carros semicircular.



Seis toques. Sete. Ninguém em casa.







Merda!





sussurrou Will, e bateu com o telefone no gancho.



Seu rosto esta

va pálido, as narinas tremulavam, dilatadas, como as

de um animal farejando o fogo a favor do vento. Seu charuto se apagara.

Atirou

-

o ao tapete e tateou no bolso do roupão de banho, enquanto quase

corria para a janela. Sua mão encontrou a forma confortador

a do inalador

e os dedos se fecharam em torno do dispositivo que o fazia funcionar.



As luzes dos faróis brilharam momentaneamente em seu rosto,

quase o cegando, e ele ergueu a mão livre para proteger os olhos.

Christine colidiu de novo contra o banco de ne

ve. Pouco a pouco ia

abrindo caminho para a entrada de carros. Will a viu recuar para a rua e

desejou, ferozmente, que um limpa

-

neve aparecesse nesse instante e

batesse no carro, fazendo

-

o capotar.



Nenhum limpa

-

neve apareceu. Christine atacou de novo, o mo

tor

uivando, as luzes ofuscando através do relvado coberto de neve. Bateu

contra o monte, empurrando punhados de neve violentamente para os

lados. A dianteira se inclinou e, por um momento, Will pensou que o carro

ia tornar a arremeter contra o que restara



do monte congelado. Então, as

rodas traseiras perderam a tração e giraram freneticamente.



Christine deu marcha à ré.



Will teve a sensação de que sua garganta adquiria o diâmetro de um

alfinete. Seus pulmões lutaram por ar. Pegou o inalador e começou a usá

-

lo. A polícia. Tinha que chamar a polícia. Eles viriam logo. O 58 de

Cunningham não poderia pegá

-

lo. Estava seguro em sua casa. Estava...



Christine retornou, acelerando através da rua. Desta vez, colidiu

contra o monte de neve e o transpôs facilmente, a d

ianteira a princípio se




alteando, inundando a fachada da casa de luz, depois baixando com um

rangido. Estava na entrada da garagem. Sim, tudo bem, mas não

conseguiria ir mais longe, ela... o car...



Christine não diminuiu a marcha. Ainda acelerada, cruzou

t

angencialmente a entrada de carros semicircular, prosseguiu empurrando

a neve mais solta e mais baixa do lado do jardim e rugiu diretamente para

a janela envidraçada, onde Will Darnell continuava olhando para fora.



Ele recuou aos tropeções, arquejando com

dificuldade, e esbarrou

em sua poltrona.



Christine colidiu contra a casa. O janelão envidraçado explodiu,

deixando entrar o vento ululante. O vidro voou em flechas mortais, cada

uma delas refletindo as luzes dos faróis do carro. A neve entrou,

lançando

-

se

sobre o tapete, em erráticas espirais. Os faróis dianteiros

iluminaram momentaneamente a sala com a claridade artificial de um

estúdio de televisão e então recuou, o pára

-

choque dianteiro entortado, o

capô levantado no ar, a grade esmagada em um gotejante

sorriso cromado,

cheio de presas.



Will estava de gatinhas, lutando penosamente para respirar, o peito

pesando como uma pedra. Tinha a vaga sensação de que, se não

tropeçasse na poltrona e caísse, provavelmente seria cortado em tiras pelo

vidro que voara pa

ra todos os lados. Seu roupão se abrira, adejando atrás

dele quando se levantou. O vento que entrava em rajadas pela janela caiu

sobre o

Guia de TV

na mesinha ao lado da poltrona, e a revistinha voou

através da sala até o pé da escada, as páginas velozment

e folheadas. Will

segurou o telefone com as duas mãos e discou 0.



Christine recuou, sobre seu próprio trajeto através da neve. Recuou

toda a distância até o achatado banco de neve no início da entrada de

carros. Então avançou, acelerando rapidamente e, nes

se momento, o capô

começou a desamassar

-

se imediatamente, a grade a regenerar

-

se. Tornou

a chocar

-

se contra a parede da casa, abaixo do janelão. Mais vidro voou;

madeira estilhaçada rangeu e estalou. O pára

-

brisa de Christine, agora

rachado e leitoso, pare

cia espiar para dentro da casa, como um olho

alienígena e gigantesco.







Polícia!





pediu Will à telefonista.



Sua voz era quase inaudível, apenas um murmúrio sibilante. O

roupão esvoaçou ao gélido vento que penetrava pela janela arrombada.




Ele viu que a par

ede abaixo da janela estava quase desmoronada. Pontas

quebradas de sarrafos salientavam

-

se como ossos fraturados. O carro não

poderia entrar ali, poderia?

Poderia?







Por favor, senhor, quer falar mais alto?





pediu a telefonista.





A ligação não está muito



boa.



Polícia,

disse Will, mas agora sua voz nem chegava a sussurro, era

apenas um silvo de ar. Deus do céu, ele estava sufocando, asfixiando

-

se;

seu peito era uma caixa

-

forte trancada. Onde estava seu inalador?







Alô?





chamou a telefonista, indecisa.





estava ele, no chão. Will deixou o telefone cair e agachou

-

se para

pegar o inalador.



Christine atacou de novo, rugindo através do jardim e agora

colidindo com a parte lateral da casa. Desta vez, toda a parede ruiu, como

uma explosão de granada, atirando fr

agmentos de vidro e ripas.

Inacreditavelmente, como em um pesadelo, o radiador amassado e

deformado de Christine estava em sua sala de estar, ela

entrara,

Will podia

sentir o cheiro do escapamento e do motor aquecido.



O chassi de Christine agarrou

-

se em al

go e ela recuou pelo buraco

estilhaçado, com um rangido de tábuas arrancadas, a parte dianteira agora

apenas uma ruína, polvilhada de neve e reboco. Entretanto, voltaria

dentro de poucos segundos e, desta vez, conseguiria... conseguiria...



Will agarrou o i

nalador e correu às cegas para a escada.



Estava apenas na metade dos degraus, quando o uivo acelerado do

motor que avançava foi ensurdecedor. Ele se virou para olhar, mais

amparando

-

se no corrimão do que o agarrando.



A altura em que se encontrava nos degra

us emprestava à cena uma

certa aparência de pesadelo. Ele viu Christine cruzar o jardim coberto de

neve, viu o capô levantar

-

se tanto que a dianteira do carro agora

assemelhava

-

se à bocarra de imenso crocodilo vermelho e branco. De

repente, o capô se solto

u com estrondo, quando o carro tomou a colidir

contra a casa, naquele momento fazendo mais de sessenta e cinco por hora.



Christine arrancou o restante da estrutura da janela, atirando mais

tábuas estilhaçadas através da sala de estar. Os faróis altearam

-

se



ofuscantes e então ela estava

dentro,

ela estava

em sua casa,

deixando atrás

de si um imenso buraco na parede, com um fio elétrico pendendo para o




tapete, como uma negra artéria amputada. Pequenas nuvens da embutida

fibra de vidro isolante dançavam ao ven

to frio como borlas leitosas.



Will gritou, mas não ouviu o próprio grito, em meio ao

ensurdecedor rugido do motor de Christine. O silenciador Seats que Arnie

colocara nela





uma das poucas coisas que ele

realmente

colocara nela,

pensou Will, loucamente





p

endia da entrada da casa, juntamente com a

maior parte do cano de escapamento.



O Fury rugiu através da sala de estar derrubando de lado a

confortável poltrona de Will, deixando

-

a caída ali, como um pônei morto.

O piso sob Christine rangeu inquietamente e u

ma parte da mente de Will

gritou:

Isto mesmo! Afunde! Afunde! Deixe a maldita coisa cair na adega!

Vejamos se ela consegue sair de lá

! Esta imagem foi então substituída pela de

um tigre em um buraco no chão, que havia sido escavado e depois

camuflado por e

spertos nativos.



O assoalho, no entanto, suportou o peso





pelo menos durante

aqueles momentos





sem dar sinais de ruir.



Christine rugiu para ele, através da sala de estar. Em sua esteira

deixava marcas ziguezagueantes de impressões nevadas dos pneus, sobr

e

o tapete. Chocou

-

se contra a escada. Will foi atirado à parede. O inalador

escapou de sua mão e saltitou pelos degraus, de um em um, até chegar ao

último.



Christine deu marcha à ré através do aposento, as tábuas rangendo

sob seu peso. Sua traseira colidi

u com a TV Sony e o tubo de imagens

implodiu. Ela tornou a rugir para diante, batendo na parte lateral da

escada novamente, agora estilhaçando ripas e arrancando reboco. Will

pôde sentir toda a estrutura afrouxar

-

se debaixo dele. Houve uma terrível

sensaçã

o de estar

pendurado.

Por um momento, Christine ficou exatamente

abaixo dele; olhando para baixo, ele viu as entranhas oleosas no

compartimento do motor, sentiu o calor que subia dele. Ela tornou a

recuar e Will embarafustou pelos degraus, ansiando por ar,



aferrando a

gorda salsicha que era seu pescoço com os olhos esbugalhados.



Chegou ao topo da escada, um instante antes de Christine bater

novamente na parede e transformar o centro dos degraus em confusa

ruína. Um longo estilhaço de madeira caiu dentro do

motor. O ventilador

o mastigou e cuspiu fora serragem mal triturada e pequenas farpas. Toda

a casa estava impregnada do cheiro de gasolina e de fumaça do




escapamento. Os ouvidos de Will retiniam com o forte trovejar daquela

máquina impiedosa.



Christine deu



marcha à ré. Agora, seus pneus mastigavam tiras

esfarrapadas do tapete.



Pelo corredor,

pensou Will. O

sótão. Será seguro no sótão. Sim, o sót.. ob,

Deus., oh, Deus., oh, meu DEUS...



A dor final chegou subitamente, aguda como uma ferroada. Como

se um pinge

nte de gelo lhe houvesse perfurado o coração. Seu braço

esquerdo ficou bloqueado pela dor. E não conseguia respirar, o peito se

movia inutilmente. Ele tropeçou para trás. Um pé dançou sobre o nada e

então caiu de costas na escada, em duas grandes reviravol

tas que lhe

fraturaram ossos, as pernas voando acima da cabeça, os braços agitando

-

se, o roupão azul enfunado e trapeando.



Aterrou em um monte enovelado ao pé dos degraus, e Christine

precipitou

-

se para ele: esmagou

-

o, recuou, tornou a esmagá

-

lo, arrancou

o

pesado pilar de sustentação da escada, no final dos degraus, quebrou

-

o

como se fosse um graveto, deu marcha à ré e tornou a esmagar o homem.



Debaixo do assoalho, chegou o crescente gemido dos suportes,

estilhaçando

-

se e ruindo. Christine fez uma pausa no



meio da sala por um

momento, como se ouvisse. Dois de seus pneus estavam vazios e um

terceiro quase fora do aro. O lado esquerdo do carro fora amassado para

dentro e grandes partes dessa área já estavam sem pintura.



De repente, Christine começou a recuar.



O motor guinchou e ela

disparou da sala em marcha à ré, saindo pelo buraco desigual na parede

lateral da casa de Will Darnell, a traseira rebaixando

-

se vários centímetros,

antes de pousar na neve. Os pneus giraram no mesmo lugar, encontraram

apoio e a pux

aram. Ela recuou meio adernando até a rua, o motor tossiu e

falhou, uma fumaceira azul pendia no ar à sua volta, o óleo gotejava e se

espalhava.



Na estrada, ela manobrou e tomou a direção de Libertyville. A

alavanca de mudança caiu para DRIVE mas, a princí

pio, a transmissão

danificada não quis engatar; quando engatou, Christine rodou lentamente,

afastando

-

se da casa. Mais atrás, na casa de Will, uma enorme mancha de

luz refletiu

-

se na neve revolta, em um formato que não tinha a menor

semelhança com o unifor

me retângulo iluminado passando através de

uma janela. A forma da claridade na neve era absurda e estranha.






Ela se moveu lentamente, cambaleando de um lado para outro sobre

os pneus inúteis, como uma velha bêbada seguindo por um beco. A neve

caía pesadamen

te, transformada em linhas inclinadas pelo vento.



Um dos faróis, estilhaçado na última e destrutiva arremetida de

atropelamento, piscou e acendeu.



Um dos pneus começou a reinflar

-

se, depois o outro.



As nuvens de fedorento óleo queimado começaram a diminuir

.



O som incerto e engasgado do motor normalizou

-

se.



O capô desaparecido começou a reaparecer, partindo da base do

pára

-

brisa, assemelhando

-

se fantasticamente a uma estola ou xale que

fossem tricotados por agulhas invisíveis; o metal se construía do nada,

c

intilante aço azulado, em seguida escurecendo para vermelho, como que

impregnado de sangue.



As rachaduras do pára

-

brisa começaram a desfazer

-

se, em sentido

inverso, deixando atrás de si uma superfície de imaculada uniformidade.



Os outros faróis acenderam

-

s

e, um após outro; agora, Christine se

movia rápido, confiante, através da noite tempestuosa, por trás do

escarnecedor corte de suas luzes seguras.



O odômetro girava maciamente ao contrário.





Quarenta e cinco minutos mais tarde, Christine repousava na

escur

idão do boxe vinte, na Garagem Faça

-

Você

-

Mesmo, do falecido Will

Darnell. O vento uivava e gemia nos montes de sucata nos fundos da

garagem, carcaças enferrujadas que talvez possuíssem seus próprios

fantasmas e suas próprias funestas lembranças, enquanto a



neve

pulverizada redemoinhava por entre os assentos rasgados e esfarrapados

e os pisos sem tapetes.



O motor de Christine dava lentos gastos estalidos, esfriando

-

se.








Christine





Canções adolescentes sobre

Morte





L

EIGH

F

AZ UMA

V

ISITA



James Dean, naquele Me

rcury 49,



J

únior Johnson Bonner, nos bosques da Carolim,



Inclusive Burt Reywlds, naquele negro Trans

-

Am,



Todos se reunir

ão no Rancho Cadillac.







Bruce Springsteen





Faltando uns quinze minutos para Leigh chegar, peguei minhas

muletas e caminhei com dificuld

ade at

é a poltrona mais próxima da porta,

a fim de ter certeza de que me ouviria, quando gritasse para ela entrar. Em

seguida, tornei a pegar meu exemplar do

Esquire

e voltei a ler um artigo

intitulado "O Próximo Vietnã", que fazia parte de um trabalho esc

olar.

Ainda não conseguira digeri

-

lo bem. Estava nervoso e assustado, em

parte





grande proporção, creio





era simples ansiedade. Eu queria vê

-

la

outra vez.



A casa estava vazia. N

ão muito depois de Leigh telefonar, naquela

tempestuosa tarde da véspera de N

atal, chamei meu pai de lado e

perguntei

-

lhe se não poderia levar mamãe e Elaine a algum lugar, na tarde

do dia vinte e seis.







Por que não?





concordou ele, bastante amável.







Obrigado, papai.







Tudo bem, mas você me deve uma, Dennis.







Papai!



Ele piscou

solenemente.







Eu coço suas costas e você coca as minhas.










Que grande sujeito!





exclamei.







Muito nobre





concordou ele.



Meu pai, que nada tem de tolo, perguntou se aquilo tinha algo a ver

com Arnie.







Ela é namorada dele, não é?







Bem





respondi, não mu

ito certo sobre como estaria a situação, mas

também pouco à

vontade, por motivos pessoais





ela tem sido. Não sei a

quantas andam agora.







Problemas?







Não fiz um bom trabalho cuidando dele, hein?







Isso é muito difícil de se fazer da cama de um hospital,

Dennis.

Muito bem, tomarei providências para que sua mãe e Ellie estejam fora de

casa, na tarde de terça

-

feira. Apenas, seja cauteloso, está bem?



Depois disso, ponderei o que, exatamente, ele quereria dizer com

sua

última frase; certamente não estaria preo

cupado quanto a eu tentar

atacar Leigh, ainda com uma coxa no gesso e outra meia forma de gesso

nas costas. Talvez receasse apenas que algo andasse terrivelmente fora dos

eixos, com meu velho amigo de infância subitamente transformado em

um estranho





e um



estranho que saíra da prisão sob fiança.



Quanto a

mim,

tinha toda certeza de que alguma coisa n

ão andava

bem, e isso me deixou um bocado assustado. O

Keystone

não é publicado

no Natal, mas todas as três redes de televisão filiadas de Pittsburgh, bem

como

os canais independentes, haviam relatado a história do que tinha

acontecido a Will Darnell, juntamente com bizarras e aterradoras tomadas

de sua casa. O lado que dava para a rua havia sido demolido. Era a única

palavra que se encaixava ali. Aquele lado da

casa parecia ter sido

atravessado por um tanque Panzer, manobrado por algum nazista

enlouquecido. A hist

ória havia estado nas manchetes da manhã





POSSÍVEL ASSASSINATO NA ESTRANHA MORTE DE FIGURA

PROVAVEL

MENTE LIGADA AO MUNDO DO CRIME. Isto já era ruim o

bastante, mesmo sem outra foto da casa de Will Darnell, com aquele

enorme buraco feito em um dos lados. Entretanto, tinha

-

se que ir à página

três, para ler o restante. A outra notícia era menor, porque Will Darnell

havia sido uma figura talvez "ligada ao m

undo do crime", enquanto que




Don Vandenberg fora apenas um reles atendente de posto de gasolina,

evadido da escola.



ATENDENTE DE POSTO DE GASOLINA MORTO EM UM

ATROPELAMENTO E FUGA, NA V

ÉSPERA DE NATAL, dizia o

cabeçalho. Seguia

-

se apenas uma coluna. A hist

ória terminava com o

Chefe de Polícia de Libertyville teorizando que o motorista

provavelmente estaria bêbado ou drogado. Nem ele nem o

Keystone

faziam qualquer tentativa para relacionar as mortes, separadas entre si por

quase 15 quilômetros, na noite de u

ma fortíssima nevasca que

interrompera todo o tráfego no Ohio e oeste da Pensilvânia. Entretanto, eu

era capaz de relacioná

-

las. Não queria fazê

-

lo, mas era impossível deixar

isso de lado. E meu pai não estivera olhando estranhamente para mim

várias vezes,



durante a manhã? Certo. Por uma ou duas vezes, tive a

impressão de que ia dizer qualquer coisa





não tinha idéia do que lhe

responderia, se ele falasse; a morte de Will Darnell, por mais estranha que

fosse, nem por isso era tão estranha quanto minhas susp

eitas. Então, ele

havia se calado sem falar. Era um alívio erguer

-

se uma barreira sobre os

acontecimentos.



A campainha tocou

às duas e quinze.







Entre!





gritei, levantando

-

me de qualquer modo em minhas

muletas. A porta se abriu e a cabeça de Leigh aparece

u.







Dennis?







Eu mesmo. Pode entrar.



Ela entrou, parecendo muito bonita em uma jaqueta para esquiar,

vermelho vivo e cal

ças azul

-

escuras. Leigh empurrou para trás o capuz

forrado de pele do agasalho.







Sente

-

se





disse ela, abrindo o zíper da jaqueta.





V

amos,

imediatamente, é uma ordem! Você parece uma cegonha gigante nessas

coisas.







Continue





respondi, tornando a sentar

-

me, com um baque

deselegante. Quando estamos engessados, nunca é como nos filmes: a

gente não consegue sentar

-

se como Cary Grant, prep

arando

-

se para tomar

um coquetel no Ritz, em companhia de Ingrid Bergman. Tudo acontece de

repente, e se a almofada onde aterramos não emitir um som alto e

insultuoso, como se a repentina descida nos tivesse assustado no melhor




momento, podemos considerar

-

nos felizes. Tive sorte desta vez.





Estou

tão carente de elogios, que chego a ficar doente.







Como vai, Dennis?







Remendando

-

me aos poucos





falei.





E você?







Tenho andado melhor.



Ela falou em voz baixa e mordeu o l

ábio inferior. Às vezes, isto pode

ser

um gesto sedutor em uma garota, mas não naquele momento.







Pendure seu agasalho e sente

-

se.







Certo.



Seus olhos pousaram nos meus, e fit

á

-

los era um pouco demais.

Desviei o rosto, olhando para outro lugar e pensando em Arnie. Ela

pendurou o agasalho e reto

rnou lentamente para a sala de estar.







Seus pais... ?







Consegui que o velho levasse todo mundo





respondi.





Imaginei que talvez





dei de ombros





a gente devesse conversar em

particular.



Ela parou junto do sof

á, olhando para mim através da sala. Fui

nov

amente atingido pela simplicidade de sua boa aparência





o adorável

corpo jovem, delineado nas calças azul

-

escuras e uma suéter em um tom

mais leve, um azul

-

pólvora, formando um conjunto que me levava a

pensar em esquiar. Leigh amarrara os cabelos em um ra

bo

-

de

-

cavalo

frouxo, que pendia sobre seu ombro esquerdo. Os olhos eram da cor de

sua suéter, talvez um pouquinho mais escuros. Uma beldade americana

bem nutrida, diria qualquer um, exceto pelos malares altos, que pareciam

um tanto arrogantes, rememorando

talvez alguma ascendência mais

antiga e mais exótica. Em sua árvore genealógica poderia existir um

viking, umas quinze ou vinte gerações anteriores.



Talvez n

ão fosse bem isso o que eu estava pensando.



Ela me viu observando

-

a por tanto tempo e enrubesceu. D

esviei os

olhos.







Está preocupado com ele, Dennis?







Preocupado? Assustado seria uma palavra melhor.










O que sabe sobre aquele carro? O que ele lhe contou?







Não muito





respondi.





Escute, quer beber alguma coisa?

Parece que há algo na geladeira... Esten

di a mão para minhas muletas.







Nada disso, fique aí!





ordenou ela.





Eu bebo alguma coisa,

mas posso ir apanhar. E você?







Quero uma soda, se sobrou alguma.



Ela foi at

é a cozinha e fiquei olhando sua sombra na parede,

movendo

-

se lentamente, como uma bail

arina. Houve um peso

momentâneo acrescentado ao meu estômago, quase.como uma náusea.

Penso que a isto se chama apaixonar

-

se pela garota do melhor amigo.







Vocês têm um produtor automático de gelo.





A voz dela

chegou até mim.





Também temos um. É formidáve

l!







De vez em quando ele dá a louca e joga cubos de gelo por todo o

chão





respondi.





Como Jimmy Cagney, em

Fúria Sanguinária:

"Tomem,

seus sujos!". Isso deixa minha mãe louca.



Eu estava tagarelando. Ela riu. Cubos de gelo tilintaram nos copos.

Logo ela

voltava, com dois copos de gelo e duas latas de soda.







Obrigado





falei, pegando a minha.







Não,

eu

é que lhe digo obrigada.





Agora seus olhos azuis

estavam escuros e graves.





Obrigada por você estar perto. Se tivesse que

enfrentar isso sozinha, não cre

io que... Oh, eu não sei!







Ora, vamos lá





animei.





A coisa não é tão ruim assim.







Não é? Já soube sobre Will Darnell? Assenti.







E sobre aquele outro? Don Vandenberg?



Isto significava que tamb

ém ela estabelecera a relação. Assenti

novamente.







Estive l

endo. É Christine que preocupa você, Leigh?



Durante muito tempo, fiquei em d

úvida se ela responderia ou não.

Se seria

capaz

de



responder. Pude vê

-

la lutando com a questão, os olhos

baixos para o copo que segurava nas duas mãos. Por fim disse, em voz

muito

baixa:







Acho que ela tentou me matar.






N

ão sei o que eu esperava, mas certamente não era aquilo.







O que está querendo dizer?



Ela come

çou, primeiro vacilante, depois mais depressa, até despejar

toda a história. É uma história que vocês já leram, portanto,

não vou

repeti

-

la aqui; basta dizer que tentei relatá

-

la o mais exatamente possível,

segundo o que ela me contou. Leigh não brincava sobre estar assustada.

Via

-

se isso na lividez de seu rosto, no retardamento ou arquejos de sua

voz, na maneira como as mãos



acariciavam constantemente a parte

superior dos braços, dando a impressão de que sentia frio, apesar da

suéter. E então, quanto mais falava, mais apavorado eu ficava.



Leigh terminou, ao relatar como as luzes do painel de instrumentos

pareciam transformar

-

se em vigilantes olhos, enquanto ela quase perdia

os sentidos. Riu nervosamente ao comentar isto, como se achasse o detalhe

um evidente absurdo, mas n

ão a acompanhei no riso. Estava recordando a

voz seca de George LeBay, nós dois sentados em cadeiras barat

as de pátio,

diante do Hotel Rainbow, enquanto ele me contava a história de Roland,

de Verônica e Rita. Rememorei aqueles fatos, e minha mente estabelecia

inexprimíveis conexões. Luzes acendiam

-

se. Não gostei do que elas

revelavam. Meu coração começou a ba

ter pesadamente no peito e não riria

com Leigh, nem que disso dependesse minha vida.



Leigh me contou o ultimato que lhe dera





ela ou o carro.

Descreveu a furiosa reação de Arnie. Aquela havia sido a última vez que

saíra com ele.







Então, ele foi preso





d

isse ela





e comecei a pensar... pensar

sobre o que aconteceu a Buddy Repperton e aqueles outros rapazes... e o

"Penetra" Welch...







E agora, Vandenberg e Darnell.







Sim, mas isso não é tudo.





Ela bebeu um gole de seu copo e

depois o encheu. A beirada da

lata castanholou brevemente na borda do

copo.





Na véspera de Natal, quando liguei para você,

papai e mam

ãe

tinham ido tomar uns drinques na casa do chefe de meu pai. Então,

comecei a ficar nervosa. Estava pensando sobre... oh, nem sei sobre o que

pensava.







Acho que sabe.






Ela pousou a m

ão na testa e a esfregou, como se estivesse ficando

com dor de cabeça.







Sim, acho que sei. Pensava que o carro podia estar lá fora.

Ela.



fora, pegando eles dois. Entretanto, se Christine estava fora da garagem,

na vésper

a de Natal, suponho que havia muito para mantê

-

la ocupada,

sem prejudicar meus pa...





Leigh bateu com o copo sobre a mesinha,

sobressaltando

-

me.





Ora, por que fico falando nesse carro, como se fosse

uma pessoa?





exclamou. As lágrimas começaram a descer

por seu

rosto.





Por que fico fazendo isso?



Naquela noite, vi claramente como tudo terminaria, se me

dispusesse a consol

á

-

la. Arnie estava entre nós





e parte de mim também

estava. Eu o conhecia há muito tempo. Muitíssimo tempo.



S

ó que isso fora antes





e

isto era agora.



Equilibrei

-

me nas muletas e abri caminho at

é o sofá, deixando

-

me

cair ao lado dela. As almofadas suspiraram. Não foi um chiado, mas

esteve bem perto disso.



Minha m

ãe conserva uma caixa de lenços de papel na gaveta da

mesinha de canto. Tirei



um lenço, olhei para ela, depois tirei um bom

punhado. Entreguei

-

lhe os lenços e Leigh me agradeceu. Então, não

gostando muito de mim mesmo, passei um braço por seus ombros e a

apertei.



Ela se retesou por um instante... e ent

ão permitiu que a puxasse para



meu ombro. Estava trêmula. Ficamos apenas sentados daquela maneira,

ambos receando até o menor movimento, creio. Receando que

pudéssemos explodir. Ou outra coisa qualquer. No outro lado da sala, o

relógio tiquetaqueava imponentemente sobre a lareira. A cl

aridade

brilhante do inverno, penetrando pelas janelas arqueadas, nos permitia

uma visão da rua em três sentidos. A tempestade amainara por volta do

meio

-

dia do Dia de Natal, e agora o firme céu azul sem nuvens parecia

negar que até existisse semelhante co

isa como a neve





porém os

montículos parecidos a dunas que rolavam pelos gramados dos jardins,

abaixo e acima na rua, como os dorsos de grandes animais sepultados,

confirmavam o fato.







O cheiro





falei afinal.





Como pode estar certa disso?










Estava lá!





exclamou, afastando

-

se de mim e sentando

-

se ereta.

Recolhi meu braço, com uma sensação mesclada de desapontamento e

alívio.





Estava lá, realmente... um cheiro horrível de podre.





Ela me

encarou.





Por quê? Você também o sentiu?



Neguei com a cabe

ça. Nun

ca o sentira. Não realmente.







Então, o que sabe sobre aquele carro?





perguntou.





Porque

você sabe alguma coisa. Posso ver no seu rosto.



Era a minha vez de pensar, firme e demoradamente. Por estranho

que possa parecer, o que me veio

à mente foi uma image

m de fissão

nuclear, vista em algum livro didático de ciências. Uma história em

quadrinhos. Ninguém espera vê

-

las em livros didáticos de ciências, mas

como me disse alguém certa vez, existem outros desvios e rodeios ao

longo da trilha da educação pública..

. De fato, esse alguém havia sido o

próprio Arnie. A história em quadrinhos mostrava dois átomos

"envenenados" avançando velozmente um contra o outro, em seguida se

chocando. Rápido! Em vez de um punhado de destroços (e uma

ambulância de átomos para recolh

er os nêutrons mortos e feridos), massa

crítica, reação em cadeia e o diabo de um "big bang".



Decidi, ent

ão, que a analogia daquela história em quadrinhos não

era assim tão estranha. Leigh possuía certos dados de que eu não

dispunha antes. O contrário tamb

ém era verdadeiro. Em ambos os casos,

boa parte daquilo era suposição, uma outra era constituída de sentimentos

subjetivos e circunstâncias... mas tudo em quantidade suficiente para

realmente amedrontar. Perguntei

-

me brevemente o que faria a polícia, se

so

ubesse o que sabíamos. Pude adivinhar: nada. É possível levar

-

se um

fantasma a julgamento? Ou um carro?







Dennis?







Estou pensando





respondi.





Não sente cheiro de madeira

queimada?







O que é que você sabe?





insistiu ela.

Colisão. Massa crítica. Reação

e

m cadeia. Cataplan!



A quest

ão era, segundo eu pensava, que se reuníssemos nossos

dados, teríamos que tomar alguma iniciativa ou contar para alguém. Fazer

alguma coisa. Nós...






Recordei meu sonho: o carro estacionado l

á, na garagem de LeBay, o

motor aceleran

do e diminuindo, tornando a acelerar, os faróis acendendo

-

se, o guincho dos pneus. Tomei as mãos dela nas minhas.







Está bem





falei.





Ouça. Arnie: ele comprou Christine de um

sujeito que agora está morto. Um sujeito chamado Roland D. LeBay. Nós a

vimos e

m seu gramado certo dia, quando voltávamos do trabalho para

casa. Então...







Você está fazendo o mesmo





cortou ela suavemente.







O mesmo, o quê?







Chamando o carro de

ela.

Assenti, sem largar suas mãos.







Sim, eu sei. E difícil parar. A questão é que Arni

e a queria ou

melhor, queria o carro, seja lá o que este for, desde a primeira vez que o

viu. Hoje em dia acho... eu não sabia então, mas sei agora... que LeBay

esperava por Arnie, ele o queria como dono de Christine; acho que até lhe

daria o carro de pres

ente, se fosse o caso. É como se Arnie visse Christine

e soubesse, e então LeBay viu Arnie e soube a mesma coisa.



Leigh libertou as m

ãos das minhas e recomeçou a esfregar

incessantemente os cotovelos.







Arnie disse que pagou...







Sim, é claro que pagou. E

ainda está pagando. Isto é, se restou

algo de Arnie, afinal.







Não entendo o que quer dizer.







Vou mostrar a você





respondi



, em alguns minutos. Primeiro,

preciso fazer um retrospecto.







Está bem.







LeBay tinha mulher e uma filha. Isto foi por volta dos

anos 50.

Sua filha morreu na beira da estrada. Morreu sufocada. Com um

hambúrguer.



O rosto de Leigh ficou branco, depois mais branco ainda. Por alguns

momentos, pareceu t

ão leitosa e translúcida como vidro embaciado.







Leigh!





exclamei vivamente.





Você e

stá bem?










Estou





respondeu ela, com arrepiante placidez. Sua cor não

melhorou. A boca se moveu em horrível careta, que talvez pretendesse ser

um sorriso tranqüilizador.





Estou ótima.





Levantou

-

se.





Por favor,

onde é o banheiro?







No fim do corredor





falei.





Leigh, você está com uma cara

horrível!







Preciso vomitar





respondeu ela, naquela mesma voz plácida.



Caminhou para a porta. Movia

-

se desajeitadamente agora, como

uma marionete, perdida toda a gra

ça de dançarina que eu vira antes em

sua sombra. Sa

iu lentamente da sala, mas quando ficou fora de vista o

ritmo de seus passos acelerou

-

se; ouvi a porta do banheiro ser escancarada

e depois os sons. Recostei

-

me contra o encosto do sofá e coloquei as mãos

sobre os olhos.





Quando voltou continuava p

álida, m

as recuperara um pouco da

coloração antiga. Lavara o rosto e ainda havia algumas gostas de água nas

faces.







Sinto muito





falei







Está tudo bem. Apenas... me assustou um pouco.





Ela esboçou

um ligeiro sorriso.





Acho que a história ainda não acabou, não

é?





Seus olhos se fixaram nos meus.





Responda

-

me uma coisa apenas,

Dennis. O que você disse é verdade? Verdade mesmo?







É





respondi.





Pura verdade. E ainda há mais. Acha que vai

querer ouvir o resto?







Não, mas conte assim mesmo





respondeu ela.







Pode

mos passar por alto





falei, sem muita convicção. Seus

olhos graves, angustiados, se prenderam nos meus.







Acho que seria mais... mais seguro... falarmos tudo.







A esposa dele suicidou

-



se, pouco depois da morte da filha.







O carro...







... estava envolvid

o.







Como?










Leigh...







Como?



Eu lhe contei





não me limitando a falar na menininha e sua mãe,

mas falando também sobre o próprio LeBay, segundo ouvira de seu irmão

George. Seu infindável estoque de raiva. As crianças que riam de suas

roupas e de seu corte



de cabelo. Sua fuga para o Exército, onde roupas e

cabelos eram iguais para todos. A oficina mecânica. O despeito constante

contra os bostas, particularmente aqueles bostas que lhe traziam seus

carros de luxo para serem consertados à custa do governo. A S

egunda

Guerra Mundial. O irmão Drew, morto na França. O velho Chevrolet. O

velho Hudson Hornet. E, através de tudo isso, aquela firme e imutável

pulsação latente: a raiva.







Aquela palavra...





murmurou Leigh.







Que palavra?







Bostas.





Ela precisou forçar

-

se a dizê

-

la, o nariz enrugando

-

se

em lastimável e quase inconsciente repugnância.





Ele

a usa. Arnie.







Eu sei



Entreolhamo

-

nos e suas mãos tornaram a encontrar as minhas.







Você está gelada





falei.



Mais um inteligente comentário de Dennis Guilder, aquel

a fonte de

sabedoria. Eu tinha um milhão deles.







Estou. Tenho a impressão de que nunca mais esquentarei.



Eu quis passar os braços em torno dela, mas não o fiz. Tinha receio.

Arnie ainda estava muito presente em tudo. O terrível naquilo





sim,

terrível





er

a como cada vez mais parecia que ele estava morto... morto ou

vítima de algum estranho encantamento.







O irmão dele falou mais alguma coisa?







Nada que pareça encaixar

-

se.



Entretanto, a recordação brotou como bolha em água parada e

estourou:

Ele era obceca

do e tinha raiva, mas não era um monstro,

tinha dito

George LeBay.

Pelo menos... não creio que fosse.

Eu tivera a sensação de que,

perdido no passado como ele estivera, quase me diria algo mais... porém,




percebera a tempo onde estava e que falava a um estr

anho. O que

pretenderia dizer?



Quase em seguida, tive uma idéia monstruosa. Rejeitei

-

a. Ela se foi...

mas era difícil livrar

-

me dela. Como empurrar um piano. E eu ainda podia

ver seus contornos nas sombras.



Percebi que Leigh me observava atentamente e me p

erguntei quanto

do que estivera pensando se revelaria em meu rosto.







Você tem o endereço do Sr. LeBay?





perguntou ela.







Não.





Refleti por um instante e então recordei o funeral, que

agora parecia infinitamente distante, perdido no tempo.





Mas acho que



o Posto da Legião Americana de Libertyville deve ter. Eles sepultaram

LeBay e entraram em contato com o irmão. Por quê?



Leigh apenas meneou a cabeça e foi até a janela, de onde ficou

espiando para o dia ofuscante.

Fim do ano,

pensei ao acaso.



Ela se virou



para mim, e fiquei novamente surpreso com sua beleza

tranqüila, sem intimações, exceto pelos malares altos e arrogantes, o tipo

de malares que se poderia esperar em uma dama que, provavelmente,

carregasse um punhal à cinta.







Você disse que me mostraria u

ma coisa





disse.





O que era?



Assenti. Agora não podia parar mais. Começara a reação em cadeia.

Seria impossível interrompê

-

la.







Vá lá em cima





pedi.





Meu quarto é a segunda porta à

esquerda. Procure na terceira gaveta da cômoda. Vai ter que procurar

d

ebaixo de minhas cuecas, mas elas não mordem.



Ela sorriu





apenas um pouquinho, mas já era alguma coisa.







E o que vou encontrar? Um pacotinho de droga?







Desisti disso o ano passado





repliquei, sorrindo também.





Este ano passei para o Quaalude. Financio



o vício vendendo heroína no

ginásio.







O que é afinal?







O autógrafo de Arnie





disse



, imortalizado em gesso.







Autógrafo de Arnie? Assenti.










Em duplicata





acrescentei.



Ela os encontrou, e cinco minutos depois estávamos novamente no

sofá, olhando para



dois pedaços de molde de gesso. Pusemo

-

los lado a

lado sobre a superfície de vidro da mesinha de café, ligeiramente

esfiapados nos lados, um pouco sujos pelo uso. Outros nomes ficaram

pela metade em um deles. Eu havia guardado os moldes e mesmo

orientara

o enfermeiro onde cortá

-

los. Mais tarde, eu recortara os dois

quadrados, um da perna direita, outro da esquerda.



Olhamos para eles em silêncio:







Leigh me fitou, inquisitiva e perplexa.







São pedaços dos seus...







Meus moldes de gesso. Exatamente.







Isso

é... alguma brincadeira ou o quê?







Não é nenhuma brincadeira





afiancei.





Eu o vi assinando os

dois moldes.



Agora que tinha dito, sentia uma espécie de relaxamento, de

estranho alívio. Era bom poder partilhar aquilo com alguém. Estivera me

roendo e cutuc

ando a mente por muito tempo.







Não há a menor semelhança entre as duas assinaturas.







Nem precisa me dizer





respondi.





Entretanto, Arnie também

não é muito igual ao Arnie de antigamente. E tudo isso nos leva de volta

àquele maldito carro.





Dei uma fort

e pancada no pedaço de gesso da

esquerda.





Essa não é a assinatura dele! Conheci Arnie a vida inteira, vi

seus trabalhos de casa, vi quando assinava requisições de materiais, seus

recibos de pagamento, e digo que

essa não é a assinatura dele! A

da direita



é

dele. Essa daqui, não. Quer fazer uma coisa para mim amanhã, Leigh?










O quê?



Eu lhe disse. Ela concordou lentamente.







Para nós.







Como?







Farei por nós. Porque temos que fazer alguma coisa, não?







Claro





assenti.





Acho que sim. Posso fazer uma pergun

ta

pessoal? Ela afirmou com a cabeça, os olhos azuis fixos nos meus.







Como tem dormido ultimamente?







Não muito bem





respondeu.





Maus sonhos. E você?







A mesma coisa. Nada muito bom.



Então, por não me conter mais, passei as mãos por seus ombros e a

beij

ei. Houve uma hesitação momentânea e pensei que ela fosse recuar...

mas então o queixo se ergueu e Leigh devolveu o beijo, plena e

firmemente. Talvez houvesse nisso uma espécie de sorte, porque eu estava

praticamente imobilizado.



Quando o beijo terminou, e

la fitou meus olhos interrogativamente.







Contra os sonhos





falei.



Pensei que a frase me sairia tola e falsa, da maneira como aparece no

papel, mas em vez disso soou trêmula, quase dolorosamente franca.







Contra os sonhos





repetiu ela, gravemente, como s

e fosse um

talismã.



Desta vez, ela inclinou a cabeça para mim e tornamos a nos beijar,

observados por aqueles dois informes pedaços de gesso, que nos fitavam

como brancas escleróticas cegas, com o nome de Arnie escrito neles.

Beijamo

-

nos pelo simples confo

rto animal proveniente do contato

animal





bem, isso e algo mais, começava a ser algo mais



, e então nos

abraçamos sem falar e não creio que estivéssemos brincando sobre o que

estava acontecendo conosco





pelo menos, não inteiramente. Era como

também podi

a ser o velho e bom sexo





pleno, maduro, efervescente de

hormônios adolescentes. E talvez ainda houvesse a chance de ser algo

mais pleno e mais agradável do que apenas sexo.






Contudo, havia algo mais naqueles beijos





eu sabia disso, ela sabia

e, provavelm

ente, você também. Aquela outra coisa era uma espécie de

vergonhosa sensação de traição. Eu podia sentir dezoito anos de

lembranças clamando





a fazenda de formigas, os jogos de xadrez, filmes,

as coisas que ele me ensinara, as vezes que eu o protegera, im

pedindo que

o molestassem. Bem, talvez não o tivesse protegido, no final. Talvez o

tivesse visto como era pela última vez





um triste, angustiante final, por

falar nisso





naquela noite do Dia de Ação de Graças, quando ele me

levara os sanduíches de peru e



cerveja.



Penso não ter ocorrido a nenhum de nós dois que, até então, nada de

imperdoável havíamos feito a Arnie





nada que pudesse enfurecer

Christine. Agora, contudo, estava feito.





T

RABALHO DE

D

ETETIVE



Bem, quando as veias se romperem



E eu ficar perdido



na ponte do rio,



Todo arrebentado na estrada



E à margem da água,



Virão médicos pela rodovia,



Prontos a costurar

-

me com linha,



E se eu cair doente,



Sei que ela vem pôr um lençol



na minha cama.







Bob Dylan





O que aconteceu nas mais ou menos três semanas seg

uintes, foi que

eu e Leigh bancamos os detetives





e nos apaixonamos.



No dia seguinte, ela foi à Prefeitura e pagou cinqüenta centavos pela

xerox de dois documentos





estes são enviados para Harrisburg e depois

uma cópia é remetida de volta à cidade.






Desta



vez, minha família estava em casa, quando Leigh chegou. Ellie

aproveitou as menores oportunidades para cair em nossa pele. Estava

fascinada por Leigh e fiquei secretamente feliz quando, cerca de uma

semana após o Ano

-

Novo, começou a amarrar o cabelo para

trás, como

Leigh usava. Tive vontade de gozá

-

la por causa disso... mas resisti à

tentação. Talvez eu estivesse crescendo um pouquinho (mas não o

suficiente para deixar de surrupiar um de seus petiscos, quando o

descobri escondido atrás dos recipientes de p

irex para sobras, dentro da

geladeira).



Exceto pelas incursões ocasionais de Ellie, eu e Leigh ficamos a

maior parte do tempo com a sala de estar para nós naquela tarde

seguinte





vinte e sete de dezembro





após terem sido cumpridas as

amenidades sociais.

Apresentei Leigh a meus pais, mamãe serviu café e

conversamos. Elaine falou quase o tempo todo





tagarelando sobre sua

escola e crivando Leigh de perguntas sobre a nossa. A princípio fiquei

aborrecido, porém grato depois. Meus pais são o máximo, em matéria



de

classe média polida (se mamãe estivesse sendo conduzida à cadeira

-

elétrica e tropeçasse no capelão, certamente lhe pediria desculpas), e

percebi claramente que gostaram de Leigh. Entretanto, também ficou

óbvio





para mim, pelo menos





que estavam perpl

exos e um tanto

constrangidos, perguntando

-

se onde Arnie se encaixaria naquele quadro.



Acho que eu e Leigh nos perguntávamos o mesmo. Por fim, eles

fizeram o que fazem os pais em geral, quando não entendem tais

situações





aceitaram tudo como coisa de cria

nças e foram tratar da

própria vida. Papai foi o primeiro a desculpar

-

se alegando que sua oficina

no porão estava na confusão costumeira de pós

-

Natal e precisava dar um

jeito naquilo. Mamãe disse que ia escrever um pouco.



Ellie olhou solenemente para mim e



perguntou:







Dennis, Jesus tinha um cachorro?



Ca

í na gargalhada, Ellie também. Leigh ficou espiando para nós,

rindo, sorrindo polidamente, da maneira como fazem os estranhos, ante

uma piada de família.







Dê o fora, Ellie





falei.







E se eu não der?





perg

untou ela, mas era apenas rotina,

implicância de garota, porque já estava se levantando.










Faço você lavar minha roupa de baixo





respondi.







Nem

morta!





declarou ela, imponente, e saiu do aposento.







Minha irmãzinha...





comentei. Leigh sorria.







Ela é ót

ima.







Se tivesse que aturá

-

la em tempo integral, garanto como mudaria

de idéia. Vejamos o que você conseguiu.



Leigh colocou as c

ópias em xerox sobre a superfície de vidro da

mesa de café, onde os moldes de gesso haviam estado na véspera.



Era o novo regist

ro de um carro usado, um Plymouth 1958, sed

ã de

quatro portas, vermelho e branco. Estava datado de 1º de novembro de

1978 e assinado por Arnold Cunningham. Seu pai revalidara a assinatura:











Você acha isto parecido com quê?







Com uma das assinaturas em

um daqueles pedaços de gesso que

você me mostrou





disse ela.





Qual?







É a maneira como ele assinou, logo depois que fui acidentado em

Ridge Rock





respondi.





É como ele sempre assinou. Agora, vejamos a

outra.



Ela a colocou ao lado da primeira. Era a fol

ha do registro de um

carro novo, um Plymouth 1958, sed

ã de quatro portas, vermelho e branco.

Estava datado de 1º de novembro de 1957





senti um certo choque ante

aquela exata similaridade e, ao olhar para o rosto de Leigh, percebi que o

mesmo acontecera co

m ela.







Observe a assinatura





disse Leigh, em voz baixa. Observei.








Aquela era a caligrafia que Arnie usara na noite do Dia de A

ção de

Graças: ninguém precisaria ser gênio ou grafólogo para ver isso. Os nomes

eram diferentes, porém a grafia era exatamen

te a mesma. Leigh estendeu

a mão e eu a tomei na minha.



O que meu pai fazia no por

ão, em sua oficina, era fabricar

brinquedos. Imagino que isto possa lhes parecer um tanto singular, mas

acontece que é um

hobby

para ele. Talvez seja mais do que isso





supon

ho

que houve uma época em sua vida, em que teve que fazer a difícil escolha

entre ir para uma faculdade ou trabalhar por conta própria, como

fabricante de brinquedos. Se for verdade, acho que ele escolheu o meio

mais seguro. Às vezes me parece ver isto em

seus olhos, como um velho

fantasma que ainda não repousou de todo, mas provavelmente seja

apenas imaginação minha, que antigamente era menos ativa do que hoje.



Eu e Ellie éramos os principais beneficiados, mas Arnie também

encontrou vários brinquedos fabri

cados por meu pai, debaixo de várias

árvores de Natal e ao lado de vários bolos de aniversário. O mesmo

acontecia com a melhor amiguinha de infância de Ellie, Aimée Carruthers

(que há muito se mudou para Nevada e, atualmente, é mencionada nos

tons melancól

icos reservados aos que morreram jovens e insensatamente),

e muitas outras.



Agora, meu pai doava a maior parte do que fazia ao Fundo 400, do

Exército da Salvação. Antes do Natal, o porão sempre me recordava a

oficina de trabalho de Papai Noel





até pouco a

ntes do Natal, ficava

entulhado de caprichosas caixas de papelão, contendo trenzinhos de

madeira, móveis em miniatura, relógios com ponteiros que realmente

marcavam as horas, bichinhos de pano, um ou dois pequenos teatros de

marionetes. Seu interesse centr

alizava

-

se nos brinquedos de madeira (até a

Guerra do Vietnã, ele fizera batalhões de soldadinhos, porém nos últimos

cinco anos, mais ou menos, os viera abandonando aos poucos e, mesmo

agora, não tenho certeza de que estivesse cônscio da mudança), mas send

o

versátil, penetrava em todos os campos. Na semana seguinte ao Natal,

havia uma pausa. A oficina parecia terrivelmente vazia, com apenas o

cheiro adocicado da serragem para recordar

-

nos que os brinquedos

haviam estado lá.






Nessa semana, ele varria, limpava

, azeitava seus instrumentos e se

preparava para o ano seguinte. Então, quando o inverno ia passando por

janeiro e fevereiro, começariam a surgir de novo os brinquedos e o

aparente lixo que se transformaria em partes de brinquedos





trens e

bailarinas com

articulações de madeira e círculos vermelhos nas

bochechas, uma caixa cheia de estofamento que pertencera ao velho sofá

de alguém e que mais tarde seria o recheio de um urso (os ursos de meu

pai sempre se chamavam Owen ou Olive





eu acabara com seus ursos

Owen entre a infância e o segundo ano primário, enquanto Ellie dera cabo

de um mesmo número de ursos Olive), pequenos enrolados de fios, botões

e olhos isolados, sem corpos, espalhados por sobre a bancada de trabalho,

como algo saído de uma sensacionalista



história de terror. Mais tarde,

surgiriam as caixas das lojas de bebidas e os brinquedos seriam

novamente guardados nelas.



Nos últimos três anos, ele recebera três prêmios do Exército da

Salvação, mas os mantinha escondidos em uma gaveta, como que

envergo

nhado deles. Eu não entendia isso na época, e não entendo agora,

pelo menos inteiramente, mas sei que não era vergonha. Meu pai nada

tinha de que se envergonhar.



Depois do jantar daquela noite, com dificuldade fui descendo a

escada, agarrado ao corrimão co

m um braço e usando a outra muleta

como bastão de esqui.







Dennis





disse papai, amável, mas ligeiramente apreensivo





quer que o ajude?







Não, eu me arranjo.



Ele deixou a vassoura ao lado de um pequeno punhado amarelo de

pó de serra e farpas de madeira, p

ara ver se eu realmente me saía bem na

descida.







Então, que tal um empurrão?







Ha

-

ha, muito engraçadinho!



Terminei de descer, arrastei

-

me para a grande poltrona que ele

mantém a um canto, perto de nossa antiga televisão preto

-

e

-

branco, e me

sentei.

Pluft!







Como está indo?





perguntou ele.







Bastante bem.






Ele pegou um punhado de cavacos de madeira com um pano de pó,

atirou

-

o em sua cesta de lixo, espirrou e apanhou um pouco mais.







Não sente dor?







Não. Bem... um pouco.







Precisa tomar cuidado com degraus.



Se sua mãe visse o que

acabou de... Sorri







Eu sei. Ela gritaria.







Onde

está

sua mãe?







Ela e Ellie foram à casa dos Renneke. Dinah Renneke ganhou

uma coleção completa dos discos de Shaun Cassidy, no Natal. Ellie está

roxa

de inveja.







Pensei que Shaun t

ivesse passado de moda.







Talvez ela receie que a moda esteja voltando.



Papai riu. Houve um silêncio amistoso por um momento, eu sentado,

ele fazendo a limpeza. Eu sabia que papai ia acabar tocando no assunto, e

assim foi.







Leigh costumava sair com Arnie,



não é?





perguntou.







Costumava





respondi



Ele olhou para mim, depois prosseguiu com seu trabalho. Pensei

que fosse perguntar se eu julgava aquilo prudente ou talvez mencionar

que um sujeito roubar a garota de outro não era a melhor maneira de

incentivar

uma amizade. Entretanto, não disse nem uma coisa nem outra.







Mal temos visto Arnie ultimamente. Será que ficou envergonhado

da confusão em que se meteu?



Minha impressão era de que papai não acreditava nisso, em

absoluto. Estava apenas jogando verde.







Não



sei





respondi







Não creio que ele tenha muito com que se preocupar. Agora, com

Will Darnell morto...





Papai sacudiu o pano de pó acima da cesta de lixo

e as aparas de madeira deslizaram para dentro dela com um pluft

macio.





Enfim, duvido muito que eles



até se dêem o trabalho de

instaurar processo.










É mesmo?







Não há nada sério contra Arnie. Pode ser multado e o juiz

provavelmente lhe fará um sermão, porém ninguém vai querer colocar

uma marca negra permanente na ficha de um jovem e decente suburbano

bra

nco, destinado a cursar uma faculdade e assumir um próspero lugar na

sociedade.



Papai me dirigiu um olhar agudo e questionante. Eu me remexi na

poltrona, sentindo

-

me repentinamente pouco à vontade.







Sim, acho que sim





respondi.







A menos que ele não seja



mais assim, hein, Dennis?







Não é não. Arnie mudou.







Quando foi a última vez que o viu?







No Dia de Ação de Graças.







E ele estava bem?



Sacudi a cabeça lentamente, de súbito sentindo vontade de chorar e

soltar tudo o que sabia. Já me sentira assim antes

e ficara calado; desta vez

também consegui calar

-

me, porém por uma razão diferente. Recordei o

que Leigh me dissera, quanto a ficar nervosa por causa dos pais, na

véspera do Natal. E agora, a mim parecia que quanto menos pessoas

soubessem de nossas suspeit

as, tanto melhor... para elas.







O que há de errado com ele?







Não sei.







Leigh sabe?







Não. Não há nenhuma certeza. Temos... algumas suspeitas.







Quer falar sobre isso?







Quero. Por um lado, eu quero, mas acho que seria melhor não

falar.







Está bem





diss

e ele.





Não fale por enquanto.



Varreu o chão. O som das cerdas duras sobre o concreto do piso era

quase hipnótico.










Talvez fosse melhor você ter uma conversa com Arnie, o quanto

antes.







Sim, já pensei nisso.



Entretanto, eu não ansiava nem um pouco pelo

encontro. Houve

outro período de silêncio. Papai terminou de varrer e depois passou os

olhos em torno.







Parece que fiz um bom serviço, não?







Excelente, papai.



Ele sorriu com certa tristeza e acendeu um Winston. Desde seu

ataque do coração parara de fumar



quase completamente, mas mantinha

um maço por perto e de vez em quando fumava um





em geral quando

estava tenso.







Droga, isto aqui parece deserto como o diabo!







Hum... também acho.







Quer uma ajudazinha para subir, Dennis? Ajeitei

-

me nas muletas.







Não

é para se desprezar.



Ele olhou para mim e deu uma risadinha abafada.







Long John Siver. Só falta o papagaio.







Vai ficar aí parado, rindo, ou me ajudar?







Ajudar, é claro.



Passei um braço por seu ombro, de certa forma sentindo

-

me

novamente criança





aquilo



provocou lembranças esquecidas de papai

me levando para cima, para minha cama nas noites de domingo, depois

que eu começava a cochilar, quando o

Programa de Ed Sullivan

ia pelo meio.

Até o cheiro da loção de barba era o mesmo.



No alto da escada, ele disse

:







Interrompa

-

me, se eu estiver sendo muito indiscreto, Denny.

Leigh não está mais saindo com Arnie, está?







Não, papai.







Está saindo com você?







Eu... bem, realmente não sei. Acho que não.










Ainda

não, é o que quer dizer.







Bem., é sim, acho que é isso.



Eu começava a sentir

-

me constrangido e ele devia ter percebido, mas

insistiu.







Seria correto afirmar que ela rompeu com Arnie porque ele não

era mais o mesmo?







Sim, creio que seria correto dizer isso.







Ele sabe sobre você e Leigh?







Papai, não há nada

para saber... pelo menos por enquanto.



Ele pigarreou, pareceu considerar aquilo, e não disse nada. Soltei

-

me

dele e procurei ajeitar minhas muletas. Talvez tivesse demorado um

pouco mais do que o necessário nisso.







Vou lhe dar um conselho de graça





disse



meu pai

finalmente.





Não deixe o Arnie saber o que há entre você e ela... e nem

se incomode em protestar, quanto a não haver nada. Estão tentando ajudá

-

lo de alguma forma, não é isso?







Não sei se existe alguma coisa que eu ou Leigh possamos fazer

por Ar

nie, papai.







Eu o vi umas duas ou três vezes





disse papai.







Você o viu?





perguntei sobressaltado.





Onde? Meu pai deu de

ombros.







Oh, na rua. No centro da cidade. Afinal, Libertyville não é tão

grande assim, Dennis. Ele...







O quê?







Mal pareceu recon

hecer

-

me. E parece mais velho. Agora que

ficou sem as espinhas, parece muito mais velho. Eu costumava pensar que

saíra ao pai, mas agora...





Ele se interrompeu de repente.





Dennis, já

pensou que Arnie possa estar tendo alguma espécie de colapso nervoso?













respondi.



No entanto, eu desejaria ter

-

lhe dito que havia outras possibilidades.

Possibilidades piores, que talvez levassem meu pai a pensar se não seria

eu quem estava tendo um colapso nervoso.










Seja cauteloso





disse ele. Embora não mencionasse o



que

sucedera a Will Darnell, de repente tive a forte intuição de que pensava

naquilo.





Seja cauteloso, Dennis.



Leigh telefonou para mim no dia seguinte e disse que seu pai

recebera um chamado de Los Angeles, sobre negócios de fim de ano e que,

no impulso



do momento, propusera levar a família, para que se

afastassem do frio e da neve.







Mamãe não fala em outra coisa e eu, simplesmente, não encontro

um motivo para me recusar a ir





disse ela.





Serão apenas dez dias e as

aulas só vão começar a oito de janei

ro.







Parece uma excelente idéia





respondi.





Divirta

-

se por lá..







Acha que eu deveria ir?







Se não for, seria bom examinar sua cabeça.







Dennis?







O que é?



A voz dela baixou um pouco.







Vai tomar cuidado, não vai? Eu... bem, ultimamente tenho

pensado mu

ito em você.



Ela desligou em seguida, deixando

-

me surpreso e satisfeito





embora permanecesse a sensação de culpa, um pouco menor agora, mas

ainda existente. Papai perguntara se eu estava tentando ajudar Arnie.

Estaria? Ou talvez me limitava a espionar uma



parte de sua vida, que ele

rotulara de proibida... e roubava sua namorada enquanto isso? E,

exatamente o que, Arnie

faria ou diria

se descobrisse?



Minha cabeça latejava com tantas perguntas e pensei que talvez até

fosse bom Leigh afastar

-

se de Libertyvill

e durante alguns dias.



Como ela tinha dito sobre nossos pais





parecia mais seguro.





No dia 29, sexta

-

feira, o último dia útil do ano velho, liguei para o

Posto da Legião Americana de Libertyville e pedi para falar com o

secretário. Eu conseguira seu nome,



Richard McCandless, com o porteiro

do prédio, que também me fornecera o número de telefone onde o

encontraria. Descobri que o número pertencia a uma boa casa de móveis




de Libertyville, em nome de David Emerson. Disseram

-

me que esperasse

um momento, e entã

o ouvi a voz de McCandless, grave e rouca,

parecendo ser de um homem forte e sessentão





como se ele e Patton

houvessem aberto caminho para Berlim, através da Alemanha, ombro a

ombro e talvez abocanhando no ar as balas inimigas, à medida que

avançavam.







M

cCandless





disse ele.







Sr. McCandless, meu nome é Dennis Guilder. Em agosto passado,

os senhores providenciaram um funeral em estilo militar, para um homem

chamado Roland D. LeBay...







Ele era seu amigo?







Não, apenas um mero conhecido, mas...







Então cr

eio que não ferirei seus sentimentos com o que vou

dizer





respondeu McCandless, a voz soando como se cascalhos

chocalhassem em sua garganta. Parecia uma mistura de Andy Devine e

Broderick Crawford.





LeBay não passava de um grande filho da mãe e,

se minha



vontade prevalecesse, a Legião não levantaria um dedo para

sepultá

-

lo. LeBay abandonou a organização em 1970, mas se não a

abandonasse, nós o expulsaríamos. Aquele homem foi o bastardo mais

brigão que já existiu.







É mesmo?







Pode ter certeza. Ele começav

a uma discussão com alguém e fazia

aquilo transformar

-

se em briga. Não se podia jogar pôquer com o cretino e,

certamente, não se podia também beber com ele. Era impossível a

convivência com ele; antes de mais nada, porque LeBay não se dava com

ninguém. E n

ão precisava ir muito longe para exaltar

-

se e brigar. Um

louco filho da mãe, se perdoa a minha franqueza. Quem é você, rapaz?



Por um insano momento, pensei em citar Emily Dickinson para ele:

"Não sou ninguém! Quem é você?".







Um amigo meu comprou um carro

de LeBay, pouco antes dele

morrer..







Quê! Não me diga que foi aquele 57!







Bem, em realidade, era um 58...










Certo, certo, 57 ou 58, vermelho e branco. Era a única maldita

coisa com que ele se preocupava. Tratava o carro como se fosse uma

mulher. Sabia qu

e foi por causa desse carro que ele deixou a Legião?







Não, não sabia





respondi.





O que aconteceu?







Ah, merda. Uma velha história, garoto. Bem, estou enchendo seus

ouvidos de sujeira, mas o caso é que vejo tudo vermelho, sempre que

penso naquele filho d

a mãe do LeBay. Ainda tenho as cicatrizes nas mãos.

Tio Sam ficou com três anos de minha vida durante a Segunda Guerra

Mundial e isso só me rendeu uma condecoração, um Coração Púrpura,

embora permanecesse em combate todo aquele tempo. Abri caminho a

duras

penas através de metade daquelas merdinhas de ilhas do Pacífico

Sul. Eu e mais cinqüenta outros caras sujeitamos Guadalcanal e uma carga

banzai... dois milhões de fodidos japoneses avançando contra nós,

excitados até os olhos e agitando aquelas espadas que



recortam de latas de

café, e nunca tive um arranhão. Duas balas passaram certeiras a meu lado,

e pouco antes de finalizarmos a carga, o sujeito mais perto de mim teve as

tripas rearrumadas por cortesia do Imperador do Japão, mas as únicas

vezes que vi a c

or de meu próprio sangue, lá no Pacífico, era quando me

cortava fazendo a barba. Então...



McCandless riu.







Ora, que merda, lá vou eu outra vez! Minha mulher diz que um

dia toda essa merda me cairá na boca, de tanto eu arreganhá

-

la. Como é

mesmo o seu nome

?







Dennis Guilder.







Ok, Dennis, sujei seus ouvidos, agora suje os meus. O que deseja?







Bem, meu amigo comprou aquele carro e o restaurou... para uma

espécie de exibição, seria o termo. Um carro de exposição.







Hum

-

hum, justo como LeBay





disse McCandles

s, e minha boca

ficou seca.





Ele adorava aquele carro fodido, posso lhe garantir. Não

dava uma merda pela mulher... sabia o que aconteceu com ela?







Sim





respondi







Ele a levou a isso





disse McCandless, carrancudamente.





Depois que a filha deles morreu

, a esposa não recebeu dele o menor

consolo. Aliás, não acredito que ele também desse a mínima merda pela

criança. Desculpe, Dennis, mas não consigo me conter. Falo assim o tempo




todo. Sempre. Minha mãe costumava dizer: "Dickie, sua língua é presa no

meio

e solta nas extremidades." O que foi que você disse que queria?







Eu e meu amigo fomos ao funeral de LeBay





expliquei





e

depois que a cerimônia terminou, apresentei

-

me a seu irmão...







Parecia um sujeito decente





cortou McCandless.





Professor

em Ohio.







Exatamente. Conversamos e ele me deu a impressão de ser um

homem bastante correto. Contei

-

lhe que faria em minha prova final de

inglês um trabalho sobre Ezra Pound...







Ezra o quê?







Pound.







Merda, quem é? Estava no funeral de LeBay?







Não, senhor. Poun

d foi um poeta.







Um o quê?







Poeta. Também já morreu.







Oh





disse McCandless, demonstrando dúvida.







De qualquer modo, LeBay, eu me refiro a George LeBay, disse

que me enviaria algumas revistas sobre Ezra Pound, para a minha prova,

se eu quisesse. Bem, a

contece que eu poderia usá

-

las, mas esqueci o

endereço dele. Pensei que o senhor poderia ter.







Claro, deve estar nos registros; tudo isso é registrado. Odeio ser

um maldito secretário, mas meu ano termina em julho e nunca mais quero

o cargo. Sabe o que qu

ero dizer? Um fodido, nunca mais!







Espero não estar incomodando muito.







Não, diabo, não! Quero dizer, afinal, para que serve a Legião

Americana, não é mesmo? Para ajudar os outros. Me dê seu endereço,

Dennis, e vou enviar um cartão com a informação.



Forn

eci

-

lhe meu nome e endereço, desculpando

-

me por tê

-

lo

perturbado em seu trabalho.







Não, nem pense nisso





respondeu ele.





De qualquer modo,

estou em minha maldita folga para o café.






Por um momento, senti

-

me tentado a perguntar

-

lhe o que ele fazia

na casa



de móveis de David Emerson, onde a elite de Libertyville

comprava. Seria um vendedor? Eu podia vê

-

lo mostrando a mercadoria a

alguma jovem elegante, dizendo:

Veja aqui este fodido e lindo sofá, madame, e

aqui esta maldita poltrona, posso lhe garantir que

não tínhamos nada disto em

Guadalcanal, quando aqueles fodidos japoneses drogados caíram sobre nós, com

suas espadas de lata.



Sorri ligeiramente, mas o que ele disse em seguida logo me deixou

sério.







Andei umas duas vezes naquele carro de LeBay. Não pude

gostar

dele. Raios me partam se sei por que, mas o caso é que nunca fui com ele.

E nunca mais entrei nele, depois que sua esposa... você entende. Céus,

aquilo me dava arrepios.







Acredito que sim





falei, e minha voz parecia vir de muito

longe.





Escute, o



que

aconteceu,

quando ele saiu da Legião? O senhor não

disse que tinha algo a ver com o carro?



Ele riu, parecendo um pouco satisfeito.







Não está mesmo interessado nessa velha história, está?







Bem... estou. Claro que estou. Meu amigo comprou o carro,

lem

bre

-

se.







Sendo assim, vou contar. Sim, foi uma maldita coisa curiosa.

Alguns companheiros mencionam isso de vez em quando, se temos

alguma folga. Não fui o único com cicatrizes nas mãos. Falando

francamente, foi algo de arrepiar.







Como aconteceu?







Ah, u

ma brincadeira de criança. Bem, na verdade, ninguém

gostava do filho da puta, você entende. Era um estranho, um solitário...



Como Arnie,

pensei.





... e todos tínhamos bebido





terminou McCandless.





Foi após a

reunião, e LeBay se mostrara um sujeito ainda

mais cretino que de

costume. Havia um grupo nosso no bar, compreenda, e podíamos dizer

que LeBay se dispunha a voltar para casa. Estava pegando seu blusão e

discutindo com Anderson "Cachorrinho" sobre um detalhe de beisebol.

Quando LeBay ia embora, era sem

pre do mesmo jeito, garoto. Ele saltava




para aquele Plymouth, dava marcha à ré e depois pisava. Aquela coisa

disparava do pátio de estacionamento como um foguete, jogando cascalho

para toda parte. Então a idéia foi de Sonny Bellerman... quatro de nós

saímo

s pela porta dos fundos e fomos para o pátio de estacionamento,

enquanto LeBay gritava com "Cachorrinho". Ficamos atrás do canto mais

distante do prédio, porque sabíamos onde ele terminava a marcha à ré do

carro, antes de disparar para diante. Ele sempre o



chamava por um nome

de mulher, já lhe disse, era como se fosse casado com a maldita coisa.



'"Fiquem de olhos bem abertos e cabeça baixa, ou ele nos verá', disse

Sonny. 'E não se movam, enquanto eu não mandar.' Estávamos todos um

tanto ou quanto de pileque

, entenda.



"Então, uns dez minutos depois, lá vinha ele, bêbado como um

gambá e apalpando os bolsos à procura das chaves. Sonny disse: 'Fiquem

atentos, caras, e bem agachados!'



"LeBay entrou no carro e deu marcha à ré. Tudo perfeito, porque

parou para acen

der um cigarro. Enquanto fazia isso, nós agarramos o

pára

-

choque traseiro daquele Fury e levantamos as rodas traseiras do chão,

para que quando ele tentasse seguir em frente, jogando cascalho para

todos os lados, como sempre, você me entende, as rodas fica

riam apenas

girando, sem ir a lugar nenhum. Entende o que quero dizer?"







Entendo





respondi.



Era

uma brincadeira de criança. Tínhamos feito aquilo de vez em

quando nos bailes do colégio. Certa vez, de molecagem, tínhamos

impedido a partida do Dodge do tre

inador Puffer, suspendendo do chão

suas rodas de tração.







No entanto, tivemos uma espécie de choque. Ele acendeu o

cigarro e depois ligou o rádio. Era outra coisa que nos deixava loucos da

vida, aquela maneira como ele sempre ficava ouvindo

rock and roll,



como

se fosse algum garotão, e não um fodido coroa, já podendo candidatar

-

se à

aposentadoria da Segurança Social. Então, ele puxou a alavanca para

"dirigir". Não podíamos ver, porque estávamos todos agachados, para não

sermos surpreendidos. Recordo que So

nny Betertnan ria baixinho e,

pouco antes de acontecer, cochichou: "Estão pra cima, homens?", e eu

cochichei de volta: "Seu pau está pra cima, Bellerman." Ele foi o único que

se machucou de verdade, entenda. Por causa da aliança. E eu juro por




Deus, aquela

s rodas

estavam

para cima! Tínhamos a traseira daquele

Plymouth uns dez centímetros fora do chão.







O que aconteceu?





perguntei.



Enfim, pela maneira como marchava a história, eu julgava adivinhar

o que sucedera.







O que aconteceu? Ele arrancou como sempre

, foi o que aconteceu.

Igualmente como se as quatro rodas estivessem pousadas no chão. O carro

atirou cascalho para os lados e puxou aquele pára

-

choque traseiro de

nossas mãos, levando consigo um metro de pele esfolada. Arrancou a

maior parte do dedo anula

r de Sonny Bellerman; sua aliança ficou presa

no pára

-

choque, entenda, e aquele dedo saltou como rolha, saindo de uma

garrafa. E ouvimos LeBay rindo enquanto se afastava, como se soubesse o

tempo todo que estávamos ali. Ele poderia saber, compreenda; se ti

vesse

ido ao banheiro, ao terminar a forte discussão com "Cachorrinho", ele bem

podia ter olhado pela janela, enquanto nos esgueirávamos, podia ter

-

nos

visto de pé atrás do prédio, esperando por ele.



"Bem, isto foi o fim para ele e a Legião. Nós lhe mandam

os uma

carta, dizendo que não o queríamos mais lá, e ele saiu. E agora, veja só

como este mundo é gozado: foi justamente Sonny Bellerman que se

levantou na reunião, pouco depois da morte de LeBay, afirmando que

devíamos fazer por ele o que era devido, pouc

o importando o que

acontecera. 'Certo', disse Sonny. 'O cara era um sujo filho da puta, mas

lutou na guerra como nós. Então, por que não lhe darmos aquilo a que

tem direito?' Então, foi o que fizemos. Eu não concordei. Acho que Sonny

Bellerman é muito mais



cristão do que eu jamais seria."







Talvez não tivessem levantado as rodas traseiras do chão





falei,

pensando no que acontecera aos sujeitos que tinham rebentado Christine,

em novembro. Eles haviam perdido muito mais do que a pele dos dedos.







Nós levanta

mos, tenho certeza





afirmou McCandless.





Quando recebemos a saraivada de cascalho, ele veio das rodas

dianteiras.

Até hoje, não consigo imaginar como ele conseguiu aquilo. É muito

esquisito, acho eu. Gerry Barlow, que estava em nosso grupo, quando

suspen

demos o carro, sempre comentou que LeBay devia ter, de certa

forma, conseguido adaptar uma tração nas quatro rodas. Entretanto, não

acredito que se possa fazer essa conversão. O que me diz?










Concordo plenamente





respondi.





Não creio que isso possa

ser f

eito.







Certo, jamais poderia





assentiu McCandless.





Nunca. Bem, ei,

acho que gastei a maior parte de minha folga para o café, garoto. Vou

voltar e beber outra meia xícara, antes de esgotar o tempo. Mandarei o

endereço para você, se tivermos. Acho que te

mos.







Obrigado, Sr. McCandless.







Foi um prazer, Dennis. Cuide

-

se.







Certo. Use e não abuse, está bem? Ele riu.







Era o que costumávamos dizer no 5

9



de Combate.



Desligou. Recoloquei lentamente o fone no gancho e meditei sobre

carros que continuam se moven

do mesmo depois de erguidas do chão

suas rodas com tração. Uma coisa

esquisita.

Sim, era realmente esquisito, e

o Sr. Candless ainda tinha as cicatrizes para prová

-

lo. Isso me fez recordar

algo dito por George LeBay. Também ele tinha uma cicatriz, resultan

te de

sua associação com Roland D. LeBay. E, à medida que envelheceu,

sua

cicatriz aumentou.





V

ÉSPERA DO

A

NO

-

N

OVO



Por que esse jovem e arrojado astro



morreu em seu carro?



Ninguém sabe o motivo...



Pneus chiando, o fogo rugindo,



e acabou

-

se o jovem astro,



Oh

, como puderam deixá

-

lo morrer?



No entanto, um jovem se foi, mas sua



lenda persiste,



Porque ele morreu sem motivo...







Bobby Troup








Liguei para Arnie, na véspera do Ano

-

Novo. Eu tivera uns dois dias

para refletir e não queria realmente vê

-

lo, mas era preci

so. Seria

impossível decidir qualquer coisa enquanto não o visse de novo,

pessoalmente. E até ver Christine outra vez. Eu mencionara o carro a meu

pai, durante o café, de passagem, como por casualidade. Ele me disse que

certamente todos os carros apreendid

os na Garagem de Darnell, àquela

altura, já teriam sido fotografados e entregues aos donos.



Foi Regina Cunningham quem atendeu, em voz fria e formal:







Residência dos Cunningham.







Oi, Regina, sou eu, Dennis.







Dennis!





Ela pareceu satisfeita e surpresa.

Por um instante, era

a voz da antiga Regina, a que dava para mim e Arnie sanduíches de

manteiga de amendoim recheados com pedacinhos de bacon (manteiga de

amendoim e bacon, em pão integral, é claro).





Como vai você?

Soubemos que já teve alta do hospital.







Vou me virando





falei.





E você? Houve um breve silêncio,

depois ela disse:







Bem, você sabe como andaram as coisas por aqui.







Problemas





respondi.





Sim, eu sei.







Todos os problemas que não tivemos em anos anteriores





enfatizou ela.





Acho que esta

vam todos amontoados em um canto,

esperando por nós.



Pigarreei de leve e não disse nada.







Queria falar com Arnie?







Sim, se ele estiver por aí. Após outra breve pausa, ela disse:







Eu me lembro como, nos velhos tempos, vocês dois viviam

correndo um para a



casa do outro, na véspera do Ano

-

Novo. Queriam ver

a entrada do Ano

-

Novo. Não era assim que diziam, Dennis?



Ela parecia quase tímida, e isso nada tinha a ver com a antiga Regina,

sempre marchando a todo vapor.







Bem... sim





respondi.





Coisas de crianças

, eu sei, mas...










Não!





exclamou ela, viva e rapidamente.





De modo algum! Se

Arnie já precisou de você, Dennis, se ele já precisou de algum amigo, este

é o momento. Ele... está lá em cima, dormindo. Tem dormido demais.

Além disso, não... ele não... não.

..







Não o que, Regina?







Ele não se inscreveu para a faculdade!





explodiu ela, mas

baixou a voz imediatamente, como se Arnie pudesse ouvi

-

la.





Nem uma!

O Sr. Vickers, conselheiro de orientação do colégio, telefonou para mim e

me disse! Arnie alcançou 70

0 pontos de média, quase podia entrar para

qualquer universidade do país... pelo menos poderia, antes deste... deste

problema...





Sua voz tremulou em direção às lágrimas, mas ela

conseguiu controlar

-

se de novo.





Converse com ele, Dennis. Se pudesse

ficar



algumas horas com ele esta noite... beberem juntos algumas cervejas

e... e então apenas falar com ele...



Ela se interrompeu, mas eu podia perceber que havia algo mais.

Algo que ela precisava dizer e não podia.







Por favor, Regina





falei. Eu não gostava d

a antiga Regina, a

dominadora compulsiva que parecia dirigir a vida do marido e do filho de

maneira a ajustar

-

se à sua própria programação, porém gostava ainda

menos desta mulher angustiada e chorosa..





Vamos, se acalme, está bem?







Eu receio falar com el

e





declarou ela, por fim.





Michael

também não tem coragem... Arnie... parece explodir, se alguém o contraria

em alguma coisa. A princípio, era apenas sobre o carro; agora é também

sobre a universidade. Converse com ele, Dennis, por favor.





Houve uma

out

ra breve pausa e então, quase por casualidade, ela soltou o que lhe roia

o coração:





Acho que nós o estamos perdendo.







Não, Regina, escute...







Vou chamá

-

lo





disse ela, abruptamente, largando o fone.



A espera pareceu alongar

-

se. Apertei o fone entre o q

ueixo e o

ombro e fiquei batendo com os nós dos dedos contra o gesso que ainda me

cobria a parte superior da perna esquerda. Lutei contra um ansioso desejo

de simplesmente desligar o telefone e fugir de toda aquela confusão.



Então, tornaram a erguer o fone



no outro lado.







Alô?





disse uma voz circunspecta.






O pensamento que me atravessou a mente, com absoluta segurança,

foi:

Esse não é Arnie.







Arnie?







Está me parecendo Dennis Guilder, a boca que anda como um

homem





disse a voz. Agora ela

parecia a

de Arn

ie, claro, mas ao mesmo

tempo não parecia. A voz dele não ficara mais grave, mas dava a

impressão de ter

-

se

enrouquecido,

como por usá

-

la demais ou gritar muito.

Era alheia, como se eu estivesse falando com um estranho que exibia uma

excelente imitação de

meu amigo Arnie.







Cuidado com o que está dizendo, seu cacete





falei.



Eu sorria, mas minhas mãos estavam frias. Geladas.







Compreenda





disse ele, em tom confidencial



, sua cara e meu

traseiro mostram uma suspeita semelhança.







Já notei a semelhança mas,



da última vez, pensei que fosse o

contrário





repliquei. Então, um pequeno silêncio caiu entre nós, já

havíamos completado o que, conosco, significavam as amenidades.





Bem, o que está fazendo esta noite?





perguntei.







Pouca coisa





respondeu.





Nada de

encontros ou coisa assim.

E você?







Bem, estou em plena forma





falei.





Vou pegar Roseanne e

levá

-

la ao Estúdio 2000. Você pode ir conosco e, se quiser, segurar minhas

muletas enquanto dançamos.



Ele riu um pouquinho.







Tenho uma sugestão





disse eu.





Tal

vez nós dois pudéssemos

ver o Ano

-

Novo, como antigamente. O que acha?







Ótimo!





exclamou ele. Parecia gostar da idéia, mas ainda não

era bem o velho Arnie.





Ver Guy Lombardo e toda aquela turma bacana.

Tá legal.



Fiz uma pausa momentânea, ainda incerto so

bre o que dizer.

Respondi por fim, cautelosamente:







Bem, talvez Dick Clark ou qualquer outro. Guy Lombardo já

morreu, Arnie.










É mesmo?





ele pareceu perplexo, vacilante.





Oh. Oh, sim,

acho que morreu mesmo. E Dick Clark ainda pinta por aí, não?







Certo





respondi.







Vou ter que maneirar, Dick, com um bom ritmo, você poderá

dançar





disse Arnie, mas não era a voz dele, em absoluto.



Minha mente efetuou uma súbita e hedionda conexão



(o melhor cheiro do mundo... exceto, talvez, o de uma cona)



e senti que a m

ão se apertava convulsivamente sobre o fone. Acho

que quase gritei. Eu não estava falando com Arnie, mas com Roland D.

LeBay. Estava falando com um morto.







Aqui é Dick, tudo bem





ouvi

-

me dizendo, como que à distância.







Como está indo, Dennis? Você pode

dirigir?







Não, ainda não. Acho que vou pedir ao velho para me levar.





Fiz uma breve pausa, depois mergulhei de cabeça:





Pensei que você

talvez pudesse me trazer de volta, se já está com seu carro. Pode ser?







Claro!





ele pareceu sinceramente excitado.





Vai ser muito

bom, Dennis! Excelente! Daremos algumas boas risadas. Como nos velhos

tempos.







Certo





respondi. E então, juro por Deus, como saiu quase sem

sentir, acrescentei:





Como na oficina mecânica.







Sim, isso mesmo!





replicou Arnie, rindo.





Um

barato! Até lá,

Dennis.







Tudo bem





respondi, automaticamente.





Até lá.



Desliguei, fiquei olhando para o telefone e, de repente, comecei a

tremer de alto a baixo. Nunca havia sentido tanto medo na vida como

naquele momento. O tempo passa: a mente reconst

rói suas defesas.

Imagino que um dos motivos sobre a existência de tão pouca convincente

evidência a respeito de fenômenos psíquicos é porque a mente se põe a

funcionar, reestruturando a evidência. Uma pequena porção é melhor do

que muita insanidade. Quest

ionei mais tarde o que ouvira ou me fiz

acreditar que Arnie não entendera bem meu comentário, mas naqueles

poucos momentos, após colocar o fone no gancho, tinha certeza: LeBay se

apossara dele. De algum modo, morto ou não, LeBay estava nele.






E LeBay assumi

a o comando.





A véspera do Ano

-

Novo foi um dia frio, de céu límpido. Papai me

deixou em casa dos Cunningham faltando quinze para as sete e ajudou

-

me a caminhar até a porta dos fundos





muletas não foram feitas para o

inverno ou aléias cobertas de neve.



A c

amioneta dos Cunningham não estava ali, mas Christine

descansava na entrada para carros, seu brilhante revestimento vermelho e

branco recamado por uma condensação de cristais de gelo. Havia sido

liberada, juntamente com os demais carros embargados, somente



naquela

semana. Só em olhar para aquele carro fui tomado de uma estranha

sensação de medo, como uma dor de cabeça. Não queria voltar para casa

naquele carro, nem nessa noite, nem nunca. Preferia meu Duster, comum

e fabricado em série, com os assentos cobe

rtos de vinil e o idiota adesivo

no pára

-

choque: CARRO DO STAFF DA MÁFIA.



A luz da entrada dos fundos foi acesa e vimos a silhueta de Arnie

caminhar para a porta. Ele nem mesmo

parecia

Arnie. Tinha os ombros

caídos e os movimentos pareciam mais velhos. Fal

ei para mim mesmo que

devia ser tudo imaginação, produto das suspeitas que acalentava e,

naturalmente, eu estava cheio de merda... e sabia disso.



Ele abriu a porta e se inclinou para fora, em uma velha camisa de

flanela e

jeans.







Dennis!





exclamou.





Olá

, amigão!







Oi, Arnie





falei.







Olá, Sr. Guilder.







Oi, Arnie





disse meu pai, levantando a mão enluvada.





Como

tem passado?







Hum... Sabe como é, não muito bem, mas tudo vai mudar. Ano

-

Novo, vida nova, sai a velha merda, entra a nova merda, certo?







Cre

io que sim





disse meu pai, parecendo algo chocado.





Tem

certeza de não querer que eu volte para apanhá

-

lo, Dennis?



Eu queria que ele voltasse, mais do que tudo. No entanto, Arnie

olhava para mim e sua boca ainda sorria, mas os olhos eram opacos e

vigilan

tes.










Não é preciso, Arnie me levará para casa... se aquela banheira

enferrujada ainda conseguir rodar.







Oh

-

oh, veja lá o que diz de meu carro





disse Arnie.





Christine

é muito sensível.







É mesmo?





perguntei.







Claro que é





disse Arnie, sorrindo. Vir

ei a cabeça e desculpei

-

me:







Sinto muito, Christine.







Ótimo! Assim está melhor.



Por um momento, nós três ficamos ali, eu e meu pai ao pé dos

degraus da porta da cozinha, Arnie na soleira mais acima, nenhum de nós

parecendo saber o que dizer em seguida. S

enti uma espécie de pânico





alguém precisava

dizer qualquer coisa, ou então toda aquela ridícula

representação de que nada mudara acabaria ruindo pelo próprio peso.







Muito bem, garotos





disse meu pai, afinal



, fiquem sóbrios. Se

forem além de duas cerv

ejas, ligue para mim, Arnie.







Não se preocupe, Sr. Guilder.







Estaremos muito bem





falei, exibindo um sorriso que eu sabia

forçado e falso.





Volte para casa e durma seu merecido sono para

descansar sua beleza, papai. Está precisando.







Oh

-

oh





respondeu



meu pai.





Veja lá o que diz de meu rosto.

Ele é muito sensível. Papai voltou para o carro. Fiquei vendo

-

o ir

-

se, com

minhas muletas sob as axilas. Observei

-

o enquanto cruzava por trás de

Christine. Então, quando manobrou na entrada para carros e tomou a

direção de casa, eu me sentia um pouco melhor.





Bati a neve da ponteira de cada muleta, cuidadosamente, enquanto

ainda estava na soleira. A cozinha dos Cunningham tem piso ladrilhado e

uns dois quase

-

acidentes me ensinaram que, sobre superfícies lisas, dua

s

muletas com neve podem transformar

-

se em patins para gelo.







Você sabe realmente manobrar esses bichinhos





comentou

Arnie, vendo

-

me cruzar pela cozinha.






Tirou do bolso da camisa de flanela um maço de Tiparfilos, escolheu

um, enfiou na boca a boquilha de



plástico branco e o acendeu, com a

cabeça inclinada para um lado. A chama do fósforo brincou

momentaneamente em seu rosto, como tiras de pintura amarela.







É uma capacidade que perderei com satisfação





respondi.





Quando foi que começou com os charutos?







Na Garagem de Darnell





respondeu.





Só não fumo diante de

mamãe. O cheiro a deixa fora de si.



Arnie não fumava como um cara aprendendo o hábito





parecia

um homem, veterano de vinte anos naquilo.







Pensei em fazer um pouco de pipoca





disse.





O que ach

a?







É uma boa. Tem cerveja?







Afirmativo. Tem uma embalagem de seis na geladeira e mais

duas lá embaixo.







Grande!





Sentei

-

me cuidadosamente à mesa da cozinha,

estirando a perna esquerda.





Onde estão seus pais?







Foram a uma reunião de fim de ano na cas

a dos Fassenbach.

Quando é que vai tirar esse gesso?







Talvez no final de janeiro, se tiver sorte.





Agitei minhas muletas

no ar e exclamei dramaticamente:





Tiny Tim voltou a andar! Que Deus

nos abençoe, a cada um de nós!



A caminho do fogão, com uma frigi

deira, um saco de milho de

pipocas e uma garrafa de óleo, Arnie riu e balançou a cabeça.







O mesmo velho Dennis. Não arrancaram muita coisa de você, seu

bosta.







Você não deu muito as caras no hospital pra me visitar, Arnie.







Levei uma ceia de Ação de Gra

ças pra você, que diabo queria

mais, sangue? Dei de ombros. Ele suspirou.







Às vezes, penso que você era o meu amuleto, Dennis.







Largue do meu pé, seu cérebro de borracha.










Falo sério. Estive em maus lençóis, desde que você se arrebentou,

e ainda continu

o. Fervendo em água quente. É um milagre que não pareça

uma lagosta.



Ele riu com vontade. Não era o riso que se esperaria de um jovem

em apuros, mas o de um homem





sim, um homem





que está se

divertindo imensamente. Arnie colocou a frigideira no fogo e de

spejou o

óleo dentro dela. Seu cabelo, mais curto do que costumava ser e penteado

para trás, em um estilo novo para mim, caiu sobre a testa. Ele o jogou para

trás com um gesto brusco da cabeça e acrescentou a pipoca ao óleo.

Colocou ruidosamente uma tampa

na frigideira. Depois foi à geladeira.

Pegou uma embalagem de seis cervejas. Colocou

-

a à minha frente, com

um baque surdo, retirou duas latas e as abriu. Entregou

-

me uma e ficou

com a sua. Ergui a minha.







Um brinde





disse Arnie.





Morte aos bostas do mun

do, em

1979! Baixei minha lata lentamente.







Não posso brindar a isso, cara.



Vi uma fagulha de raiva nos olhos cinzentos. Uma fagulha que

pareceu piscar neles, como falsificado bom humor, para então desaparecer.







Bem, então a que

pode brindar... cara?







Q

ue tal um brinde à universidade?





perguntei calmamente.



Ele me fitou com ar carrancudo, o bom humor anterior desaparecido

como que por encanto.







Eu devia imaginar que ela encheu você com esse lixo. Minha mãe

é uma mulher que não se detém diante de nada,

para conseguir o que

quer. Você sabe disso, Dennis. Ela beija até o traseiro do diabo, se for

preciso.



Larguei minha lata de cerveja, ainda cheia.







Bem, ela não beijou meu traseiro. Apenas disse que você não fez

nenhuma inscrição ainda e que estava preocu

pada.







A vida é minha





disse Arnie. Seus lábios se torceram,

modificando o rosto, tornando

-

o incrivelmente feio.





Faço o que bem

entendo.







E a universidade não está em seus planos?










É claro que sim, mas quando eu me decidir. Diga isso a ela, caso

perg

unte. Quando chegar o momento. Não esse ano. Definitivamente não.

Se ela está pensando que vou para a Universidade de Pittsburgh, para a

Horlicks ou Rutgers, bancar o calouro e ficar berrando como louco nos

jogos de futebol do colégio, deve estar maluca. N

ão, depois de toda a

merda que passei esse ano. Não dá, cara.







E o que

vai fazer?







Vou cair fora





respondeu ele.





Entrar em Christine e motorar

por aí, esquecendo essa cidadezinha de programa único. Você entende?





Sua voz começou a alterar

-

se, ficando



estridente, fazendo com que o

horror me invadisse novamente. Sentia

-

me impotente contra aquele medo

efeminado e só desejava que não transparecesse no meu rosto. Porque

agora não era apenas a voz de LeBay, mas até mesmo seu

rosto,

pairando

sob o de Arnie c

omo alguma coisa morta, preservada em formol.





Minha vida tem sido uma tempestade de merda este ano e acho que o

maldito Junkins continua atrás de mim, a todo vapor. Seria melhor tomar

cuidado, antes que alguém acabe com ele...







Quem é Junkins?





pergunt

ei.







Não importa





respondeu Arnie.





Não é importante.





Atrás

dele, o óleo começou a chiar. Um punhado de milho estourou





ploft!





contra a tampa.





Tenho que agitar aquilo, Dennis. Vai querer um brinde

ou não? Para mim, não faz diferença.







Está bem





falei.





Que tal um brinde a nós?



Ele sorriu, aliviando um pouco a constrição em meu peito.







A nós, legal, é uma boa pedida, Dennis. A nós. Não podia ser

outra coisa, hein?







Claro





respondi, com voz algo enrouquecida.





Não podia ser

outra coisa. Fizem

os tintim com as latas de cerveja e bebemos.



Arnie foi para o fogão e começou a agitar a frigideira, onde o milho

explodia velozmente. Deixei uns dois goles de cerveja deslizarem pela

minha garganta. Àquela altura, cerveja ainda era mais ou menos novidade

para mim e nunca ficara embriagado com ela, porque gostava do sabor e

alguns amigos





Lenny Barongg era o principal deles





me tinham dito

que quando a gente fica tropeçando, levantando, vomitando pela camisa




abaixo, leva semanas sem conseguir olhar para a



coisa. Infelizmente,

desde então venho descobrindo que isso não é a pura verdade.



Arnie, entretanto, bebia como se a Proibição fosse ser reinstaurada a

primeiro de janeiro; esvaziara sua primeira lata, antes mesmo da pipoca

terminar de estourar. Amassou a



vazia, piscou para mim e disse:







Veja como coloco bem no traseiro do vagabundinho, Dennis.



A alusão me escapôu, de maneira que apenas dei um sorriso forçado,

quando ele jogou a lata na cesta do lixo. Ela acertou primeiro a parede,

antes de cair na cesta.







Cesta





falei.







Perfeito





disse ele.





Quer me passar outra?



Entreguei

-

lhe a lata, imaginando, que diabo, meus pais planejavam

ver a entrada do Ano

-

Novo em casa e, se Arnie ficasse realmente bêbado e

incapaz de dirigir, eu podia ligar para papai. Arni

e, bêbado, talvez

dissesse coisas que jamais diria estando sóbrio e, por outro lado, eu não

queria voltar com ele para casa em Christine.



A cerveja, entretanto, não pareceu afetá

-

lo. Ele terminou de preparar

a pipoca, despejou

-

a em uma grande tigela de plá

stico, derreteu meia

barra de margarina, despejou

-

a sobre as pipocas, salgou e disse:







Vamos para sala ver TV. O que acha?







Para mim, está ótimo.



Peguei minhas muletas, apoiei

-

as sob as axilas





ultimamente havia

a sensação de que estava ficando calejado



debaixo dos braços e então

tateei pelas três cervejas que ainda estavam sobre a mesa.







Eu volto para apanhar





disse Arnie.





Vamos. Antes que você

acabe derrubando tudo. Sorriu para mim, e naquele momento não era

outro senão Arnie Cunningham, a tal pont

o que



meu coração se confrangeu um pouco ao olhar para ele.



Havia um especial de véspera de Ano

-

Novo passando na TV,

bastante chato. Donny e Marie Osmond cantavam, ambos mostrando seus

gigantescos dentes brancos, em sorrisos amistosos mas, ao mesmo tempo,

parecendo o riso de tubarões. Deixamos a TV ligada e conversamos. Falei

a Arnie sobre as sessões de fisioterapia e como estava me exercitando com




pesos. Depois de duas cervejas, confessei

-

lhe que receava nunca mais

tornar a caminhar direito. Deixar de joga

r futebol pela escola não me

incomodava, porém aquilo, sim. Ele assentia, calma e compreensivamente,

enquanto eu falava.



Eu poderia terminar aqui, e dizer que jamais passara uma noite tão

peculiar em minha vida. Coisas piores aguardavam, mas nada era tão

e

stranho, tão...

tão desconexo.

Era como posar para um filme, cujas imagens

estão quase





mas não inteiramente





fora de foco. Por vezes ele me

parecia Arnie, mas em outras não havia a mais remota semelhança. Ele

adquirira modos que eu nunca percebera antes







girar as chaves do carro

nervosamente sobre o retângulo de couro ao qual estavam afixadas,

estalar os nós dos dedos e, ocasionalmente, morder a polpa do polegar

com os incisivos superiores. Houve ainda aquele comentário sobre

"colocar bem no traseiro do



vagabundinho", quando atirou fora a lata de

cerveja. E, embora houvesse bebido cinco cervejas, quando eu ainda

terminava a minha segunda, apenas sorvendo uma atrás da outra, ele

ainda não parecia bêbado.



Além disso, havia os gestos que eu sempre associara



a Arnie, que

pareciam ter desaparecido completamente: o puxão rápido e nervoso do

lóbulo da orelha quando falava, o estiramento súbito das pernas,

terminando com os tornozelos brevemente cruzados, seu hábito de

exprimir satisfação, deixando o ar sibilar a

través dos lábios franzidos, em

vez de rir abertamente. O último ocorrera uma ou duas vezes. No entanto,

era mais freqüente indicar sua jovialidade em uma série de esganiçadas

risadinhas sufocadas, que eu associava a LeBay.



O especial terminou às onze da n

oite e Arnie girou o botão da TV,

até encontrar uma festa

-

dançante em algum hotel de Nova Iorque, onde

insistiam em mostrar Times Square, na qual já se amontoara uma boa

multidão. Não era Guy Lombardo, mas bem próximo disso.







Você não vai mesmo para a uni

versidade?





perguntei.







Não este ano. Eu e Christine iremos para a Califórnia, logo depois

da formatura do colégio. Para aquelas praias douradas de sol.







Seus velhos já sabem?



Ele pareceu sobressaltar

-

se à idéia.










Diabo, não! E não vá contar a eles! Pr

eciso tanto que eles saibam

disso, como preciso de um peru de borracha.







O que pretende fazer por lá? Ele deu de ombros.







Trabalhar consertando carros. Sou tão bom nisso como em

qualquer coisa.





Então, ele me deixou atônito, ao dizer, casualmente:





Esp

ero convencer Leigh a ir comigo.



A cerveja entrou pelo buraco errado e comecei a tossir, pulverizando

minhas calças. Arnie me bateu duas vezes nas costas, com força.







Você está bem?







Estou





consegui dizer.





A cerveja entrou no canal errado.

Arnie... se



pensa que ela vai com você, está vivendo num mundo de sonho.

Leigh está às voltas com requerimentos para a universidade. Tem um

punhado deles, cara. Ela está seriamente envolvida nisso.



Os olhos dele estreitaram

-

se imediatamente e tive a desagradável

sens

ação de que a cerveja me traíra, fazendo

-

me falar mais do que devia.







O que mais sabe sobre minha garota?



De repente, eu me sentia como se houvesse caído em um enorme

campo, fortemente minado.







Ela não fala em outra coisa, Arnie. Quando começa com o assu

nto,

ninguém consegue fazê

-

la calar

-

se.







Companheiro... Não está se intrometendo, está, Dennis?





Ele

me observava atentamente, os olhos cheios de suspeita.





Você não faria

uma coisa dessas, hein?







Não





respondi, mentindo da maneira mais absoluta e

com

pleta.





Não sei como pode imaginar uma coisa dessas.







Então, como sabe tanto sobre o que ela anda fazendo?







Eu a vi por aí





respondi.





Falamos sobre você.







Ela fala sobre mim?







Sim, mais ou menos





repliquei, com naturalidade.





Disse que

vocês dois



tiveram uma discussão sobre Christine.



Era a coisa certa a dizer. Ele relaxou.










Foi uma discussãozinha de nada. Sem nenhuma importância. Ela

virá me procurar. E se quer ir para a universidade, há boas universidades

na Califórnia. Nós nos casaremos, Denni

s. Vamos ter filhos e toda essa

merda.



Lutei para manter o rosto impassível.







Ela já sabe disso? Ele riu.







Nem desconfia! Ainda não, mas vai saber. Dentro em breve. Eu a

amo e nada pode acontecer para nos atrapalhar.





O riso extinguiu

-

se.





O que ela di

sse sobre Christine?



Outra mina.







Disse que não gostava do carro. Acho que... bem, talvez estivesse

um pouco enciumada. Novamente, era a coisa certa a dizer. Ele relaxou

ainda mais.







Sim, claro que é isso. Enfim, ela vai aparecer, Dennis. O

verdadeiro am

or nunca transcorre tranqüilamente, mas ela vai aparecer,

não se preocupe. Se tornar a vê

-

la, diga que vou telefonar. Ou dê o recado,

quando as aulas recomeçarem.



Pensei em dizer

-

lhe que, naquele exato momento, Leigh estava na

Califórnia mas decidi ficar c

alado. Perguntei

-

me o que este novo e

desconfiado Arnie faria se soubesse que eu beijara a garota com quem

pensava casar, que a abraçara... que estava me apaixonando por ela.







Veja, Dennis!





exclamou Arnie, apontando para a TV.



A câmera mostrava Times Sq

uare novamente. A multidão era um

imenso





mas ainda crescente





organismo. Passava pouco de onze e

meia. O ano velho estava nas últimas.







Veja aqueles bostas!



Ele cacarejou sua risada estridente e excitada, terminou a cerveja e

desceu para pegar uma nova



embalagem de seis. Fiquei sentado,

pensando em Welch e Repperton, em Trelawney, Stanton, Vandenberg e

Darnell. Pensei em como Arnie





ou quem quer que ele se tornara





julgava que ele e Leigh haviam tido apenas uma briguinha de namorados

sem importância e



em como encerrariam o ano letivo casando

-

se, como

naquelas melosas baladas de amor dos anos 50.



E, oh, Deus, tive um grande calafrio.








Vimos o Ano

-

Novo entrar.



Arnie arranjou umas duas bombinhas e estalos de festa





do tipo

que estoura e solta então uma n

uvem de pequenas serpentinas de papel

crepom. Erguemos um brinde a 1979 e conversamos mais um pouco sobre

assuntos neutros, como a decepcionante derrota dos Phillies nos

desempates e as chances dos Steelers de fazerem toda a caminhada até a

Grande Taça.



A

tigela de pipoca baixara até o milho sem estourar e os caroços

queimados, quando decidi fazer uma das perguntas que estivera evitando.







O que acha que aconteceu a Darnell, Arnie?



Ele me fitou vivamente, depois tornou a olhar para a TV, onde casais

dançava

m, com confetes do Ano

-

Novo nos cabelos. Bebeu mais um pouco

de cerveja.







As pessoas com quem negociava calaram a boca dele, porque

podia falar demais. É o que acho que aconteceu.







As pessoas para quem .ele trabalhava?







Will costumava dizer que a Gangue



do Sul era ruim





explicou

Arnie



, mas que os colombianos ainda eram piores.







Quem são os...







Os colombianos?





Arnie riu cinicamente.





Caubóis da cocaína,

é isso que eles são. Will costumava comentar que eles matam um sujeito

até mesmo se o cara olha

r para suas mulheres da maneira errada e

algumas vezes, quando olham da maneira certa. Talvez tenha sido coisa

dos colombianos. O negócio foi feito bastante bem do jeito deles.







Você estava entregando coca para Darnell? Arnie deu de ombros.







Eu entregava



muamba

para Will. Só transportei coca para ele uma

ou duas vezes, e dou graças a Deus por não estar levando nada pior do

que cigarros sem selagem, quando me pegaram. Eles me pegaram com a

mão na massa, cara. Uma boa merda. Entretanto, se a situação fosse

a

mesma, provavelmente eu faria tudo de novo. Will podia ser um velho

filho da mãe, sujo e nojento, mas era legal, em certo sentido.





Seus olhos

ficaram velados, estranhos.





Sim, de certo modo era legal. Só que sabia

demais. Aí está por que o liquidaram.



Sabia demais... e, cedo ou tarde,




terminaria dando com a língua nos dentes. Acho que foram os

colombianos. Uns filhos da puta.







Não pesquei nada. E nem é da minha conta, acho. Ele olhou para

mim, sorriu e piscou.







Era a teoria do dominó. Pelo menos, ass

im devia ser. Havia um

sujeito chamado Henry Buck. Supõe

-

se que ele me acusaria. Então, eu

acusaria Will. E depois... a grande jogada... Will certamente acusaria os

caras lá do Sul, que lhe vendiam a droga, as bolinhas, cigarros e bebida.

Eram eles que Jun

... que os tiras realmente queriam. Especialmente os

colombianos.







E acha que eles o mataram? Arnie me fitou opacamente.







Eles ou a Gangue do Sul, lógico. Quem mais poderia ser? Sacudi

a cabeça.







Bem





disse ele



, tomamos outra cerveja e levo você em c

asa.

Eu adorei essa noite, Dennis. Realmente adorei.



Havia um toque de verdade naquilo, mas Arnie jamais faria um

comentário enfático como: "Eu adorei essa noite, realmente adorei". Nunca

o velho Arnie.







Hum... eu também, cara.



Eu não queria outra cerveja

, mas aceitei assim mesmo. Desejava

adiar o momento inevitável de entrar em Christine. De tarde, parecera um

passo necessário





experimentar, eu mesmo, a atmosfera daquele carro...

se houvesse alguma atmosfera para experimentar. Agora, a idéia parecia

ater

radora, uma loucura. O segredo do que eu e Leigh nos estávamos

tornando, um para o outro parecia um enorme ovo quebradiço em minha

cabeça.



Diga

-

me, Christine, você pode ler pensamentos?



Senti um riso aloucado subindo em minha garganta e despejei

cerveja so

bre ela.







Escute





falei



, vou ligar para o velho vir me buscar, se você

quiser, Arnie. Ele ainda deve estar de pé.







Não há problema





disse Arnie.





Eu conseguiria caminhar três

quilômetros em linha reta, não se preocupe.










Eu só pensei...







Aposto com

o está louco para voltar a dirigir, não está?







Bem, estou, é claro.







Nada melhor do que a gente estar atrás do volante de nosso

próprio carro





disse Arnie, e então seu olho esquerdo baixou na piscada

remelosa de um velho devasso.





Exceto, talvez, uma c

ona.





Chegara a hora. Arnie desligou a TV e fiz minha penosa caminhada

de muletas através da cozinha, levei algum tempo para conseguir vestir

minha velha jaqueta de esqui, esperando que Michael e Regina chegassem

de sua festa e adiassem as coisas por algum



tempo mais





talvez Michael

sentisse o cheiro de bebida no hálito de Arnie e me oferecesse uma carona.

Ainda estava bem clara em minha mente a lembrança da tarde em que eu

deslizara para trás do volante de Christine, quando Arnie estava em casa

de LeBay,

negociando com o velho filho da mãe.



Arnie pegara umas duas cervejas na geladeira





"Para a estrada",

intimou. Pensei em dizer

-

lhe que se fosse apanhado embriagado, por estar

em liberdade sob fiança, provavelmente iria para a cadeia antes de piscar

um olho

. Depois decidi ser melhor ficar calado. Saímos.



A primeira manhã de 1979





madrugada, aliás





estava

terrivelmente fria, o tipo de frio que faz a umidade do nariz congelar em

segundos. Os bancos de neve, à margem da entrada para carros,

cintilaram como bi

lhões de diamantes. E lá estava Christine, as vidraças

negras embaciadas pela neve. Olhei para o carro.

A Gangue,

dissera Arnie.

A Gangue do Sul ou os colombianos.

Soava melodramático, mas possível





não, mais: soava plausível. Entretanto, a Gangue liquida

va pessoas a tiros,

empurrava

-

as de janelas, estrangulava

-

as. Segundo a lenda, Al Capone se

livrara de um pobre otário com um bastão de beisebol recheado de

chumbo. Só que... dirigir um carro sobre o gramado nevado de um sujeito,

atirá

-

lo contra a parede d

e sua casa e entrar em sua sala de estar...



Os colombianos, talvez. Arnie tinha dito que os colombianos eram loucos.

Mas loucos

assim?

Eu não acreditava.



Christine reluzia à luz que vinha da casa e à luminosidade das

estrelas. E se

tivesse sido

ela? E se e

la descobrisse que eu e Leigh tínhamos




nossas suspeitas? Pior ainda, e se descobrisse que nós andávamos de

namorico?







Precisa de ajuda nos degraus, Dennis?





perguntou Arnie,

sobressaltando

-

me.







Não. Posso me entender com a escada





respondi.





Prefiro

u

ma mãozinha na alameda.







Não tem problema, cara.



Desci os degraus da cozinha em diagonal, aferrando o corrimão com

uma das mãos e sustendo as muletas na outra. Na alameda, apoiei

-

me

sobre elas, dei uns dois passos e então escorreguei. Uma pontada

imprecis

a de dor correu por minha perna esquerda acima, aquela que

ainda não valia nada. Arnie me agarrou.







Obrigado





falei, contente pela chance de parecer amedrontado.







Vá com calma.



Chegamos ao carro, e Arnie perguntou se eu podia entrar sozinho.

Respondi qu

e podia. Ele me deixou e passou pela frente do capô de

Christine. Segurei a maçaneta com mão enluvada e uma impotente

sensação de medo, de repulsa, me envolveu por completo. Só então

comecei a acreditar, bem lá no fundo, sentir onde uma pessoa vive.

Porque



a maçaneta estava viva em minha mão. Eu a sentia como uma fera

viva, que estivesse adormecida. Aquela maçaneta não parecia de aço

cromado; Santo Deus, ela dava a sensação de pele. Como se eu pudesse

apertá

-

la e despertar a fera, rugindo.



Fera?



Certo,

que

fera?



O que seria? Alguma espécie de

Ifrit?

Um carro comum que, de certa

forma, se tornara a perigosa, fedorenta morada de um demônio? Uma

sobrenatural manifestação da prolongada personalidade de LeBay, uma

demoníaca casa mal

-

assombrada que rodava sobre pn

eus Goodyear? Eu

não sabia. Sabia apenas que estava assustado, aterrorizado. Achava que

não conseguiria ir em frente com aquilo.







Ei, você está bem?





perguntou Arnie.





Consegue entrar?







Consigo





respondi roucamente.






Apertei o polegar sobre o botão aba

ixo da maçaneta, abri a porta,

virei

-

me de costas para o banco e deixei o corpo cair sobre ele, as pernas

rigidamente estendidas. Segurei a perna e a girei. Era como mover um

móvel. Meu coração martelava no peito. Puxei a porta e a fechei.



Arnie girou a ch

ave e o motor ganhou vida





como se a máquina

estivesse quente, em vez de gelada. Então, fui assaltado pelo cheiro,

parecendo vir de toda parte, mas principalmente parecendo emanar do

estofamento: o fedor forte, doentio e apodrecido de morte e decomposição

.





Não sei como descrever aquela ida para casa, aqueles cinco

quilômetros rodados, que não duraram mais de dez ou doze minutos, sem

dar de mim mesmo a impressão de um fugitivo de hospício. Não há meios

de ser objetivo a respeito; apenas estar aqui e tentar

, é bastante para me

deixar gelado e ardente ao mesmo tempo, febril e indisposto. Não é

possível separar o que era real e o que minha mente podia ter elaborado:

nenhuma linha divisória existia entre o objetivo e o subjetivo, entre a

verdade e a horripilant

e alucinação. Entretanto, nada foi produto da

embriaguez, posso garantir





se não outra coisa, pelo menos isto eu posso

garantir. Qualquer tonteira que a cerveja pudesse ter provocado,

evaporou

-

se imediatamente. O que se seguiu foi uma lúcida excursão pela



terra dos amaldiçoados.



Para início de conversa, nós recuamos no tempo.





Por um momento, não era Arnie quem dirigia, em absoluto; era

LeBay, putrefato e fedendo a sepultura, metade esqueleto e metade carne

apodrecida, esponjosa, botões esverdinhados e cor

roídos. De sua gola

subiam larvas, abrindo caminho lentamente. Pude ouvir um lento

zumbido e, a princípio, pensei que fosse algum curto

-

circuito em qualquer

das luzes no painel de instrumentos. Só mais tarde comecei a pensar que

poderia ter sido o som de m

oscas, procriando em sua carne. Era inverno,

sem dúvida, mas...



Em certas ocasiões, parecia haver outras pessoas no carro, conosco.

Olhei uma vez pelo espelho retrovisor e vi um manequim de cera de uma

mulher, fitando

-

me com os olhos vivos e cintilantes de



um troféu

empalhado. Penteava os cabelos no estilo pajem, em moda nos anos 50.

Suas faces pareciam demasiado pintadas com rouge e recordei que o




envenenamento por monóxido de carbono, presumivelmente, emprestava

a ilusão de vida e de pele corada. Mais tar

de, tornei a espiar pelo espelho e

tive a impressão de ver uma menininha lá, o rosto escurecido pela asfixia,

os olhos esbugalhados como os de um animal empalhado, cruelmente

comprimido. Fechei os olhos e, ao abri

-

los, Buddy Repperton e Richie

Trelawney su

rgiram no espelho retrovisor. O sangue se coagulara em

placas secas sobre a boca, queixo, pescoço e a camisa de Buddy. Richie era

uma massa carbonizada





mas com olhos vivos e atentos. Buddy

estendeu o braço lentamente. Segurava uma garrafa de Texas Driver



na

mão enegrecida. Tornei a fechar os olhos. Depois disso, não olhei mais

para o espelho.



Recordo que o rádio transmitia

rock:

Dion e os Belmonts, Ernie K

-

Doe, os Royal Teens, Bobby Rydell ("Oh, Bobby, oh... everything's cool...

we're glad you go to a swi

nging' school...")



Recordo ainda que, por um momento, parecia haver um dado

vermelho de isopor pendendo do espelho retrovisor, depois ali havia

sapatinhos de criança, em seguida, nem uma coisa nem outra.



Acima de tudo, recordo ter insistido na idéia de que



tais coisas





o

fedor de carne putrefata e os estofados bolorentos





existiam apenas em

minha mente, que eram como as miragens que atormentam a consciência

de um fumador de ópio.



Eu era alguém mais ou menos drogado, tentando manter uma

espécie de conversa



racional com uma pessoa lúcida. Sim, porque eu e

Arnie conversávamos; lembro

-

me disso, mas não do que dizíamos.

Procurei controlar

-

me. Mantive a voz normal. Tinha reações. E aqueles

dez ou doze minutos pareceram durar horas.



Já disse que é impossível ser

objetivo sobre aquela corrida; caso

tenha existido alguma progressão lógica de eventos, agora ficou perdida

para mim, bloqueada. Aquela jornada através da noite negra e gelada foi,

de fato, como uma viagem por uma avenida, a caminho do inferno. Não

consigo



recordar tudo o que aconteceu mas, ainda assim, recordo mais do

que desejaria. Saímos da entrada para a garagem, em marcha à ré, e

penetramos no parque de diversões de um mundo louco, onde eram reais

todos os arrepios de medo.








Falei que recuamos no tempo

, mas teríamos realmente recuado? As

ruas atuais de Libertyville conti

nuavam lá, porém eram como uma tênue

capa velando um filme





como se a Libertyville de fins dos anos 70

houvesse sido desenhada sobre plástico transparente, cobrindo um tempo

que, de ce

rta forma, era mais real. Pude sentir que o tempo estendia suas

mãos mortas para nós, tentando capturar

-

nos, pren

der

-

nos para sempre.

Arnie parava em cruzamentos onde a via era preferencial para nós; em

outros, embora as luzes de trânsito estivessem verme

lhas, seguia

suavemente com Christine, sem ao menos reduzir a marcha. Na Rua

Principal, vi a Joalheria Shipstad e o Teatro Strand, ambos demolidos em

1972, a fim de darem lugar ao novo Banco Comercial da Pensilvânia. Os

carros estacionavam ao longo da rua





reunidos em grupos aqui e ali,

onde aconteciam as festas de comemoração do Ano

-

Novo



, todos

parecendo anteriores aos anos 60... ou de antes de 1958. Buicks de portas

alongadas. Uma camioneta De Soto Firelite, de comprida carroceria azul,

parecendo recém

-

saída da linha de montagem. Um cupê Dodge Lancer 57,

de quatro portas. Fords Fairiane, com suas características traseiras, cada

uma com enormes dois pontos de lado. Pontiacs nos quais a grade do

radiador ainda não fora fendida. Ramblers, Packards e alguns



Studebakers, com a dianteira em forma de bala, e um Edsel, fantástico e

novo em folha.







Sim, este ano será melhor





disse Arnie.



Olhei para ele. Levava a lata de cerveja aos lábios e, antes de tocar a

boca, seu rosto transformava

-

se no de LeBay, uma figu

ra em

decomposição, extraída de alguma história em quadrinhos de terror. Os

dedos que seguravam a lata eram apenas ossos. Posso jurar para quem

quiser, que eram apenas ossos





e as calças jaziam achatadas contra o

assento, como se dentro delas nada mais ho

uvesse além de cabos de

vassoura.







Será mesmo?





falei, respirando o desagradável e asfixiante

miasma do carro o mais lentamente possível, tentando não sufocar.







Será





disse LeBay, só que ele agora era Arnie novamente, e

quando paramos em um sinal verme

lho vi um Camaro 77 passar em

disparada.





Tudo quanto peço é que fique do meu lado um pouco,

Dennis. Não deixe minha mãe arrastá

-

lo para essa merda. As coisas vão

ser diferentes.






Ele era LeBay de novo, sorrindo um sorriso descarnado e eterno,

ante a idéia



de que as coisas seriam diferentes. Senti meu pensamento

oscilar. Sem dúvida, logo começaria a gritar.



Baixei os olhos, desviando

-

os daquele rosto horrendo, e vi o que

Leigh tinha visto: instrumentos do painel de controle que não eram

instrumentos em abso

luto, mas verdes olhos luminosos, esbugalhando

-

se

para mim.





Em algum ponto, o pesadelo terminou. Paramos junto ao meio

-

fio,

em um local da cidade que nem mesmo reconheci, um setor que podia

jurar nunca ter visto antes. Havia construções nos lotes de terre

no por

toda parte, algumas casas já com três quartos edificados, outras apenas

nas estruturas. A meio caminho do quarteirão, mais abaixo, iluminado

pelos faróis de Christine, um cartaz dizia:





PROPRIEDADES MAPLEWAY



VENDA EXCLUSIVA DOS CORRETORES DE LIBERTY

VILLE



Um bom lugar para criar seus filhos



Pense nisto









Bem, aqui estamos





disse Arnie.





Acha que pode fazer a

caminhada sozinho, cara? Olhei indeciso em torno, para aquele projeto de

urbanização deserto e coberto de neve. Depois concordei. Era melhor f

icar

ali, de muletas e sozinho, do que naquele terrível carro. Senti um largo

sorriso plastificado em meu rosto.







Claro que posso. Obrigado.







Sem suar





disse Arnie. Terminou sua cerveja e LeBay a atirou

em uma sacola de lixo.





Outro soldado morto.







Si

m





respondi.





Feliz Ano

-

Novo, Arnie.



Procurei a maçaneta e a abri. Perguntei

-

me se conseguiria sair, se

meus braços trêmulos agüentariam as muletas.



LeBay olhava para mim, sorrindo.










É só ficar do meu lado, Dennis





disse ele.





Sabe o que

acontece aos

bostas que não ficam.







Sim, claro





sussurrei.



Eu sabia perfeitamente. Botei minhas muletas para fora do carro e

icei o corpo para elas, pouco ligando para qualquer gelo existente no solo.

Elas me manteriam. E, imediatamente, o mundo sofreu uma reviravolt

a,

uma completa transformação. Surgiram luzes





só que, evidentemente,

elas haviam estado ali o tempo todo. Minha família se mudara para as

Propriedades Mapleway em junho de 1959, um ano antes de meu

nascimento. Ainda morávamos ali, mas a área não era mais



conhecida

como Propriedades Mapleway, desde 1963 ou 64, no máximo.



Fora do carro, eu olhava para minha casa, em minha rua

perfeitamente normal





apenas outra parte de Libertyville, Pensilvânia.

Tornei a olhar para Arnie quase esperando ver LeBay novamente

,

motorista de táxi vindo do inferno, com sua carga de muitos mortos,

trazida das profundezas da noite.



No entanto, era apenas Arnie, usando seu blusão do ginásio, com

seu nome costurado acima do bolso do peito. Arnie, parecendo tão pálido

e tão sozinho. A

rnie, com uma lata de cerveja pousada na virilha.







Boa noite, cara.







Boa noite





respondi.





Tome cuidado quando voltar para casa.

Não vai querer que o apanhem, não?







Não me apanharão





disse ele.





Cuide

-

se, Dennis.







Pode deixar.



Bati a porta. Meu hor

ror fora substituído por uma profunda e

terrível angústia





como se ele tivesse sido sepultado. Sepultado vivo.

Fiquei espiando, enquanto Christine se afastava do meio

-

fio e começava a

descer a rua. Espiei, até vê

-

la dobrar a esquina e desaparecer de vista

.

Então, comecei a subir a entrada para minha casa. A alameda estava em

boas condições. Meu pai se dera ao trabalho de despejar sobre ela quase

um saco de cinco quilos de Halite a fim de torná

-

la antiderrapante,

preocupado comigo.



Eu já fizera três quartos



da caminhada até a porta quando uma

espécie de fumaça cinzenta pareceu flutuar para mim e envolver

-

me. Tive

que parar e abaixar a cabeça tentando me recuperar. Posso perder os




sentidos, aqui fora, pensei confusamente, e morrer congelado em minha

própria c

alçada, onde um dia eu e Arnie brincamos de amarelinha, pique

e estátua.



Por fim, pouco a pouco, o acinzentado começou a clarear. Senti um

braço em torno de minha cintura. Era papai, de roupão e chinelos.







Dennis, você está bem?



Se eu estava bem? Eu havia



sido trazido para casa por um cadáver!







Estou





respondi.





Apenas um pouco tonto. Vamos entrar.

Você vai acabar congelando aqui fora.



Ele subiu os degraus comigo, o braço ainda em torno de minha

cintura





e era bom senti

-

lo ali.







Mamãe ainda está acord

ada?





perguntei.







Não. Ela viu o romper do ano e depois foi para a cama. Ellie

também. Você está bêbado, Dennis?







Não.







Pois não me parece bem





disse ele, batendo a porta atrás de nós.



Deixei escapar uma risada que parecia um breve e louco ganido. As

coisas ficaram novamente cinzentas... porém apenas por pouco tempo,

agora. Quando recuperei o controle, papai olhava para mim, muito

preocupado.







O que aconteceu lá?







Papai...







Fale comigo, Dennis!







Não posso, papai.







O que há com ele? O que há de err

ado com ele, Dennis?



Apenas balancei a cabeça e não era por causa da loucura daquilo

tudo, de receio por mim. Agora eu temia por todos eles





meu pai, minha

mãe, Elaine, os pais de Leigh. Temia horrivelmente por eles.



E só ficar do meu lado, Dennis. Sabe o



que acontece aos bostas que não

ficam.



Teria eu ouvido realmente aquilo?






Ou aquilo estava apenas em minha mente?



Meu pai ainda olhava para mim.







Não posso.







Está bem





disse ele.





Por enquanto. Acho eu. Ainda assim,

preciso saber uma coisa, Dennis, e q

uero que você me diga. Tem algum

motivo para crer que Arnie estivesse envolvido, de qualquer modo, na

morte de Darnell e na daqueles rapazes?



Pensei no rosto sorridente e putrefato de LeBay, as calças frouxas em

torno de algo que só poderiam ser ossos.







N

ão





respondi, e era quase a verdade.





Arnie, não.







Certo





disse ele.





Quer ajuda na escada?







Posso dar um jeito. Vá para a cama também, papai.







Sim, irei logo. Feliz Ano

-

Novo, Dennis... e se quiser falar comigo,

ainda estarei aqui.







Não há nada par

a dizer





respondi. Nada que eu

pudesse

dizer...







De certa forma





disse ele



, não acredito muito.





Fui para o quarto, enfiei

-

me na cama e deixei a luz acesa. Não

consegui dormir. Aquela foi a mais longa noite de minha vida e por várias

vezes pensei em l

evantar

-

me e ir para junto de mamãe e papai, como fazia

quando era criança. Em certo momento, cheguei realmente a surpreender

-

me saindo da cama e tateando pelas muletas. Deitei

-

me outra vez. Sim, eu

receava por todos eles, mas isso não era o pior. Não era

mais.



Eu receava perder a razão. Aí estava o pior.



O sol acabava de despontar no horizonte, quando finalmente

adormeci e tive um sono agitado, por umas três ou quatro horas. Quando

acordei, minha mente já começava a tentar curar

-

se da irrealidade. Meu

prob

lema era que, simplesmente, eu não podia mais dar ouvidos àquela

canção de ninar. Os versos se apagaram para sempre.








G

EORGE

L

E

B

AY

N

OVAMENTE



Naquela noite fatídica, quando o carro



ficou preso



Nos trilhos da ferrovia,



Eu a puxei para fora e você estava salv

a,



Mas você fugiu correndo...







Mark Dinning





Na sexta

-

feira, cinco de janeiro, recebi um cartão de Richard

McCandless, secretário do Posto da Legião Americana de Libertyville.

Escrito nas costas, em manchada caligrafia a lápis, estava o endereço da

residê

ncia de George LeBay em Paradise Falls, Ohio. Fiquei com o cartão

no bolso traseiro das calças a maior parte do dia, tirando

-

o ocasionalmente

e olhando para ele. Não queria telefonar para George LeBay; não queria

voltar a falar com ele sobre seu louco irmã

o Roland; não queria que aquela

alucinada situação persistisse, em absoluto.



Naquela tarde, meus pais foram ao Monroeville Mall com Ellie, que

queria gastar parte do dinheiro ganho no Natal em um novo par de esquis.

Meia hora depois que eles se foram, pegu

ei o telefone e coloquei o cartão

de McCandless à minha frente. Uma ligação para a telefonista situou

Paradise Falls na área de código 513





oeste do Ohio. Após uma pausa

para refletir, disquei 513 e pedi à telefonista de auxílio o número de LeBay.

Anotei

-

o no cartão, fiz nova pausa para refletir





agora uma pausa mais

longa



, e então ergui o fone do gancho uma terceira vez. Disquei metade

do número de LeBay e então desliguei.

Foda

-

se,

pensei, tomado de um

nervoso ressentimento que não me lembrava de ter s

entido antes.

Já chega

o que houve, portanto, foda

-

se, não vou ligar para ele. Estou cheio disso tudo, lavo

minhas mãos de toda essa situação nojenta. Que ele vá para o inferno, em seu

próprio carro restaurado. Foda

-

se!







Foda

-

se!





sussurrei e afastei

-

me

dali, antes que a consciência

começasse a pesar novamente.



Fui para o andar de cima, tomei um banho de esponja e fui me

deitar. Adormeci profundamente antes de Ellie e meus pais voltarem,

continuando a dormir muito bem por toda a noite. Foi uma boa coisa,




porque demorei muito tempo para voltar a dormir tão bem assim. Muito

tempo mesmo.





Enquanto eu dormia, alguém





alguma coisa





matou Rudolph

Junkins, da Polícia Estadual da Pensilvânia. Estava no jornal, quando me

levantei na manhã seguinte. INVESTIGADOR D

O CASO DARNELL

ASSASSINADO PERTO DE BLAIRSVILLE, bradavam as manchetes.



Meu pai estava lá em cima, tomando uma ducha. Ellie e duas

amigas davam risadinhas na varanda, entretidas em jogar Monopólio.

Minha mãe elaborava uma de suas histórias no quarto de cos

tura. Eu

estava sozinho à mesa, petrificado e assustado. Ocorreu

-

me que Leigh e

sua família voltariam da Califórnia no dia seguinte, no outro começariam

as aulas e, a menos que Arnie (ou LeBay) mudasse de idéia, ela seria

ativamente perseguida.



Empurrei le

ntamente o prato, com os ovos que fritara para mim.

Não os queria mais. Na noite anterior, parecera possível deixar de lado

toda aquela horrenda e inexplicável situação envolvendo Christine, com a

mesma facilidade com que deixava meu café da manhã de lado.



Agora, eu

me perguntava como pudera ser tão ingênuo.



Junkins era o homem que Arnie mencionara na véspera do Ano

-

Novo. Nem brincando, eu poderia acreditar que não fora. O jornal dizia

que ele estivera encarregado da investigação sobre Will Darnell na

Pensi

lvânia, dando a entender que alguma sombria organização criminosa

estava por trás do assassinato. Arnie apontaria a Gangue do Sul. Ou os

malucos colombianos.



Eu pensava diferente.



O carro de Junkins havia sido encontrado em uma solitária estrada

rural, e c

astigado a tal ponto que só serviria para o ferro

-

velho,



(Aquele maldito Junkins continua atrás de mim, a todo vapor. Seria melhor

tomar cuidado, antes que alguém acabe com ele..

É

só ficar do meu lado, Dennis.

Sabe o que acontece aos bostas que não ficam.

..)

com Junkins ainda em seu

interior.



Quando Repperton e seus amigos morreram, Arnie estava na

Filadélfia, jogando xadrez. Quando Darnell foi morto, ele estava em

Ligonier com os pais, visitando parentes. Álibis à prova de fogo. Imaginei




que ele teria out

ro para Junkins. Sete





sete mortes agora, todas

formando um círculo mortal em torno de Arnie Cunningham e Christine.

Certamente, a polícia podia ver isso; só um cego perderia tão explícita

cadeia de motivação. O jornal, entretanto, não dizia que alguém es

tava

"auxiliando a polícia nas investigações", como colocariam tão

delicadamente os ingleses.



Evidentemente, a polícia não tem o hábito de transmitir tudo o que

sabe aos jornais. Eu estava a par disto, porém cada instinto meu dizia que

os tiras estaduais n

ão investigavam Arnie seriamente, em conexão com

este último assassinato por automóvel.



Arnie estava a salvo de suspeitas.



O que Junkins teria visto à sua retaguarda, naquela estrada rural,

nos arredores de Blairsville? Um carro vermelho e branco, pensei.

Talvez

vazio, talvez dirigido por um cadáver.



Um calafrio me percorreu a espinha e fiquei com os braços

arrepiados.



Sete pessoas mortas.



Aquilo tinha que acabar. Sem mais qualquer outro motivo, senão o

de que matar pode tomar

-

se hábito. Se Michael e Regina



discordassem dos

planos loucos de Arnie sobre a Califórnia, então um deles, talvez ambos,

poderiam ser as próximas vítimas. Supondo

-

se que ele procurasse Leigh

no colégio na próxima terça

-

feira, que lhe pedisse para casar com ele... e

ela simplesmente dis

sesse não? O que poderia Leigh ver junto ao meio

-

fio,

esperando, quando voltasse para casa à tarde?



Meu Deus do céu, eu estava assustado.



Minha mãe surgiu nesse momento.







Você não está comendo, Dennis. Ergui os olhos.







Andei lendo o jornal. Acho que não

tinha muita fome, mamãe.







Precisa comer direito ou não ficará bom. Quer que prepare sua

aveia? Meu estômago comprimiu

-

se à idéia, mas sorri e abanei a cabeça.







Não. Comerei um pouco mais no almoço.







Promete?







Prometo.










Você se sente bem, Denny? Ultima

mente me parece tão cansado,

tão abatido...







Estou ótimo, mamãe.



Ampliei o sorriso, para mostrar

-

lhe o quanto estava ótimo. Então,

pensei nela, saindo de seu Reliant azul, no Monroeville Mall, e dois carros

atrás; havia um outro, branco e vermelho, espera

ndo. Mentalmente, eu a

via passar diante dele, com a bolsa debaixo do braço, vi a alavanca de

transmissão de Christine cair subitamente para DRIVE...







Tem certeza? Não é a perna que o incomoda, é?







Não.







Está tomando suas vitaminas?







Estou.







E seu chá



de botões de rosa?



Comecei a rir. Ela pareceu irritada por um instante, depois sorriu.







Você é um tratante, Dennis Guilder





disse, com seu melhor

sotaque irlandês (que é bastante bom, uma vez que sua mãe nascera no

velho torrão)



, e não tem jeito mesmo

!



Ela voltou para o quarto de costura e, após um momento,

recomeçaram as explosões irregulares de sua máquina de escrever.

Recolhi o jornal e olhei para a foto do carro amassado de Junkins. O

CARRO DA MORTE, dizia a legenda.



Tente isto, pensei: Junkins tem



um interesse muito maior do que apenas

descobrir quem vendia excitantes ilegais e cigarros a Will Darnell. Junkins é um

detetive estadual, e um detetive estadual trabalha em mais de um caso, ao mesmo

tempo. Poderia estar querendo descobrir quem matou "Pen

etra" Welch. Ou podia

estar...



Peguei as muletas, fui até o quarto de costura e bati à porta.







O que é?







Lamento incomodar, mamãe...







Não seja tolo, Dennis.







Você vai hoje ao centro da cidade?







Poderia ir. Por quê?










Porque eu gostaria de ir à bibliot

eca.





Por volta das três horas da tarde daquele sábado, a neve recomeçara

a cair. Eu sentia uma ligeira dor de cabeça após ficar forçando a vista na

tela de microfilmes, mas conseguira o que queria. Meu pressentimento

estava certo





não que isso significas

se um grande salto intuitivo.



Junkins havia sido encarregado do caso de atropelamento e fuga que

vitimara "Penetra" Welch, certo... mas também fora incumbido de

investigar o que acontecera a Repperton, Trelawney e Bobby Stanton. Ele

teria de ser um tira mu

ito tapado, para não ler o nome de Arnie nas

entrelinhas do que sucedia.



Recostei

-

me na cadeira, desliguei a máquina e fechei os olhos.

Procurei ser Junkins, por um minuto. Ele desconfia do envolvimento de

Arnie naquelas mortes. Não de patrociná

-

las, mas d

e envolvimento nelas

de algum modo. Desconfia de Christine? Talvez sim. Nos filmes de

detetives na TV, eles sempre são os maiores para identificar armas,

máquinas de escrever usadas na redação de notas de resgate e carros

envolvidos em atropelamentos e fug

as. Fragmentos de tinta, arranhados

na pintura, talvez...



Surge o caso do contrabando de Darnell. Para Junkins, isso é

excelente. A garagem será fechada e embargado tudo que estiver nela.

Talvez Junkins suspeite...



De quê?



Esforcei

-

me em imaginar. Sou um t

ira. Acredito em respostas

legítimas, respostas saudáveis, respostas rotineiras. Então, de que suspeito?

Após um momento, surge a idéia.



De um cúmplice, naturalmente. Suspeito da existência de um

cúmplice. Tem de haver um cúmplice. Ninguém, em seu juízo pe

rfeito,

desconfiaria que o carro estivesse fazendo aquilo sozinho. Então...?



Então, depois de fechada a garagem, Junkins leva para lá os

melhores técnicos e laboratoristas que consegue. Eles examinam Christine

de ponta a ponta, procurando provas do que aco

nteceu. Raciocinando

como Junkins





pelo menos, tentando



, penso que tem de existir

alguma evidência. Atingir um corpo humano não é como atingir um




travesseiro de penas. Bater contra a barreira de estrada nas Squantic Hills,

também não é como bater contra



um travesseiro de penas.



Então o que descobrem aqueles peritos em homicídios por veículos?



Nada.



Não encontram amassados, nenhuma pintura retocada, nenhuma

mancha de sangue. Não encontram fragmentos marrons da pintura da

barreira na estrada das Squantic H

ills





que foi quebrada





encravados

no carro. Em resumo, Junkins não encontra a mais remota evidência de

que Christine foi usada em cada crime. Agora, saltando à frente, para o

assassinato de Darnell. Junkins retorna à garagem no dia seguinte, a fim

de ch

ecar Christine? Eu voltaria, se fosse ele. A parede de uma casa

também não é um travesseiro de penas





e um carro que acabou de

rompê

-

la deve apresentar danos importantes, danos que, simplesmente,

não poderiam ser reparados da noite para o dia. E, quando e

le chega, o

que encontra?



Apenas Christine, sem o menor problema no pára

-

choque.



Isto conduz a outra dedução, esta explicando por que Junkins nunca

deixou alguém vigiando o carro. Eu não entendia por que ele nunca

suspeitou do envolvimento de Christine. No



fim, porém, a lógica o

orientara





e talvez o tivesse matado, também. Junkins não pusera

alguém vigiando Christine, porque o álibi do carro, embora mudo, era tão

à prova de fogo como o de seu dono. Se ele inspecionara Christine,

imediatamente após o assas

sinato de Will Darnell, deve ter concluído que

o carro não podia estar envolvido, por mais persuasiva que a evidência

em contrário pudesse parecer.



Nem um arranhão naquele carro. E por que não? Simplesmente

porque Junkins não tinha todos os fatos. Refleti

no odômetro que girava

para trás e recordei Arnie dizendo:

Apenas um defeito.

Pensei no ninho de

rachaduras do pára

-

brisa, parecendo cada vez ficar menor e recuar





como se também recuasse para dentro. Pensei na extravagante

substituição de peças que não d

emonstrava qualquer ritmo ou razão. Por

último, evoquei aquela fantástica corrida de pesadelo, ao voltar para casa

na noite de domingo





carros antigos que pareciam novos, estacionados

no meio

-

fio, diante de casas onde havia festas, no Teatro Strand, ainda



intacto em toda a sua solidez de tijolos amarelos, o projeto de urbanização




pela metade, já completado e ocupado pelos suburbanos de Libertyville

vinte anos atrás.



Apenas um erro.



Refleti que ignorar aquele erro era o que tinha

realmente

matado

Rudolph Ju

nkins.



Porque, vejamos: quando temos um carro durante algum tempo, ele

vai

-

se estragando, pouco importa quantos cuidados lhe dediquemos e, em

geral, os estragos acontecem ao acaso. Um carro sai da linha de montagem

como um bebê recém

-

nascido, e precisament

e como um recém

-

nascido

começa a rodar entre corredores indígenas, no correr dos anos. As

pedradas e flechadas de punição que o acertam ao acaso, arriam uma

bateria aqui, arruínam uma barra de direção ali, congelam um mancal

acolá. A bóia do carburador emp

erra, um pneu fura, há um curto na parte

elétrica, o estofamento começa a deteriorar

-

se.



É como um filme. E, se pudermos rodar o filme para trás...







Deseja mais alguma coisa?





perguntou o funcionário

encarregado da Seção de Microfilmes atrás de mim, e eu



quase gritei.





Mamãe me esperava no saguão principal e tagarelou a maior parte

do caminho para casa, falando sobre o que escrevia e suas novas aulas, de

dança de discoteca. Assenti e respondi com acerto, a maioria das vezes.

Enquanto isso, pensava que, se



Junkins

levara

seus técnicos, altamente

especializados em carros, se ele os trouxera de Harrisburg, certamente

todos haviam deixado de enxergar um elefante, enquanto procuravam

pela agulha. Aliás, eu não podia censurá

-

los. Carros não costumam rodar

ao con

trário, como acontece com filmes. E não existem fantasmas,

espectros ou demônios, preservados em óleo para motor.



Acredite em um, acredite em todos,

pensei





e estremeci.







Quer que ligue o aquecedor, Denny?





perguntou minha mãe,

com ar jovial.







Você que

r, mamãe?



Pensei em Leigh, que devia chegar no dia seguinte. Leigh, de rosto

adorável (acentuado pelos malares oblíquos, quase cruéis), o corpo jovem

e docemente sensual, ainda não deteriorado pelas forças do tempo e da




gravidade; como aquele Plymouth de m

uito tempo atrás, enviado em 1957

por uma transportadora de Detroit, em certo sentido, ela ainda estava no

período de garantia. Então pensei em LeBay, morto e não

-

morto ao

mesmo tempo, e recordei sua lascívia (seria aquilo lascívia ou apenas uma

pulsão par

a estragar as coisas?). Recordei Arnie, comentando com

tranqüila certeza que eles iam casar

-

se. Em seguida, com impotente

nitidez, visualizei a noite de núpcias. Vi Leigh erguendo os

-

olhos, na

penumbra de algum quarto de motel, para ver apenas um pútrido

e

sorridente cadáver, reclinado sobre ela. Eu a ouvi gritar, enquanto

Christine, uma Christine enfeitada com serpentinas de papel crepom e

letreiros de RECÉM

-

CASADOS, escritos com espuma de sabão,

aguardava fielmente do lado de fora, além da porta trancada

. Christine





ou a terrível força fêmea que a animava





saberia que Leigh não ia durar

muito... e ela, Christine, estaria próxima, depois que Leigh se fosse.



Fechei os olhos, procurando afastar aquelas imagens, mas isso

apenas as intensificou.



Tudo começar

a com Leigh querendo Arnie, e progredira

logicamente, até o ponto em que Arnie a queria de volta. Entretanto, não

terminara aí, terminara? Porque agora, LeBay possuía Arnie...

e ele

desejava Leigh.



Entretanto, LeBay não ia tê

-

la. Não a teria, se eu pudesse



impedir.



Naquela noite, telefonei para George LeBay.









Perfeitamente, Guilder





disse ele. Parecia mais velho, mais

cansado.





Lembro

-

me muito bem de você. Tagarelei até cansá

-

lo, diante

de meu quarto, naquele hotel que acredito tenha sido o mais depress

ivo

do universo. O que posso fazer por você?



Por seu tom, parecia esperar que eu não quisesse demais. Vacilei.

Devia contar

-

lhe que seu irmão voltara do mundo dos mortos? Que nem

mesmo a sepultura fora capaz de exterminar seu ódio pelos bostas? Que

ele se

apoderara de meu amigo, que o escolhera, tão definitivamente como

Arnie escolhera Christine? Devíamos discorrer sobre mortalidade, sobre

tempo e amor rançoso?







Guilder? Você desligou?










Estou com um problema, Sr. LeBay, e não sei ao certo como falar

-

lhe a



respeito. Tem relação com seu irmão.



Algo novo surgiu então em sua voz, algo tenso e controlado.







Não imagino que tipo de problema poderia ter, relacionado a

meu irmão. Rollie está morto.







Pois é justamente isto.





Agora, eu era incapaz de controlar a v

oz,

que tremulava para uma oitava mais alta e depois caía novamente para

um tom grave.





Não acredito que ele esteja morto.







De que está falando?





A voz era tensa, acusadora e...

amedrontada.





Se esta é a sua maneira de pilheriar, eu lhe asseguro que



o poderia ter pior gosto.







Falo sério. Permita

-

me, apenas, contar ao senhor parte do que

vem acontecendo, desde que seu irmão morreu.







Escute, Guilder, tenho vários maços de provas para corrigir e um

romance que pretendo terminar, de maneira que não tenh

o tempo a

perder com...







Por favor





pedi.





Por favor, Sr. LeBay, por favor, ajude

-

me e

ajude meu amigo. Houve uma longa, longuíssima pausa, e então LeBay

suspirou.







Conte a sua história





disse, e depois, após uma breve pausa,

acrescentou:





Maldito sej

a!





Transmiti a história para ele, à maneira de um moderno telegrama

interurbano. Podia imaginar minha voz passando através de postos de

conexão computadorizados, cheios de circuitos miniaturizados, para

finalmente chegar aos ouvidos do homem.



Contei

-

lhe o



problema de Arnie com Repperton, a expulsão de

Buddy e sua vingança. Falei sobre a morte de "Penetra" Welch, sobre o que

acontecera nas Squantic Hills e o que acontecera durante a tempestade da

véspera de Natal. Falei sobre as rachaduras no pára

-

brisa, pa

recendo

recuar, e um odômetro que girava ao contrário, com a máxima certeza.

Falei sobre o rádio que parecia transmitir apenas a WDIL, uma estação

que transmitia músicas antigas, pouco importando para onde se movesse

o ponteiro do

dial





o que provocou um

leve grunhido surpreso em




George LeBay. Falei sobre a assinatura em meus moldes de gesso,

expliquei como a assinatura de Arnie, feita na noite do Dia de Ação de

Graças, combinava com a de seu irmão, no formulário original do registro

de Christine. Falei so

bre o constante uso de Arnie da palavra "bostas".

Sobre a maneira como ele passara a pentear o cabelo, no estilo cheio de

brilhantina dos anos 50. De fato, contei

-

lhe tudo, exceto o que acontecera

comigo, quando Arnie me trouxera para casa, naquela madruga

da de

Ano

-

Novo. Pensara contar

-

lhe também isto, porém não pude. Jamais

comentei uma vírgula daquilo com ninguém, até descrevê

-

lo aqui, quatro

anos depois.



Quando terminei, houve silêncio na linha.







Sr. LeBay? Ainda está me ouvindo?







Eu não desliguei





di

sse ele, finalmente.





Guilder... Dennis...

não é minha intenção ofendê

-

lo, mas deve compreender que, o que está

sugerindo, transcede quaisquer possíveis fenômenos psíquicos,

estendendo

-

se até...





A voz dele extinguiu

-

se.







Até a loucura?







Não é bem a pa

lavra que eu empregaria. A julgar pelo que diz,

você esteve envolvido em um terrível acidente de futebol. Ficou dois

meses no hospital, sofrendo dores atrozes por algum tempo. Bem, não

seria o caso de sua imaginação...







Sr. LeBay





interrompi



, seu irmão



nunca usou uma frase com

o termo vagabundinho?







Como?







Vagabundinho. Como quando se joga uma bola de papel em uma

cesta de papéis e, acertando, a gente diz "Cesta"? Só que, em vez disso,

"Veja como coloco bem no traseiro do vagabundinho." Seu irmão

cost

umava dizer isso?







Como é que você sabe?





E então, sem me dar tempo para

responder:





Ele empregou a frase em alguma das ocasiões em que o

viram, não?







Não.







Você é um mentiroso, Guilder.






Não respondi. Estava trêmulo, de joelhos bambos. Nenhum adulto

j

á me dissera aquilo, em toda a minha vida.







Sinto muito, Dennis, mas meu irmão está morto. Era um

desagradável, talvez até mesmo um perverso ser humano, porém está

morto e todas essas mórbidas fantasias e idéias...







Quem era o vagabundinho?





consegui pe

rguntar. Silêncio.







Seria Charlie Chaplin?



Não pensei que ele fosse dar alguma resposta. Então, por fim, em

voz opressa, ele disse:







Somente em segunda

-

mão. Ele aludia a Hitler. Havia uma

passável semelhança entre Hitler e o pequeno vagabundo de Chaplin.



Chaplin fez um filme chamado O

Grande Ditador.

É provável que você

nunca o tenha visto. De qualquer modo, era um nome bastante comum

para ele, durante os anos de guerra. Você ainda era muito novo, para

poder lembrar. Entretanto, isso nada significa.



Foi a



minha vez de ficar em silêncio.







Nada significa!





gritou ele.





Nada! São fantasias e sugestões,

nada mais! Procure entender isto!







Há sete pessoas mortas, aqui no oeste da Pensilvânia





respondi.





Não é apenas uma fantasia. Há as assinaturas em meus

moldes de gesso. Também não são fantasias. Eu guardei esses moldes, Sr.

LeBay. Posso enviá

-

los para o senhor. Dê uma olhada neles e me diga se

uma das assinaturas não foi feita na caligrafia de seu irmão.







Poderia ser uma falsificação, consciente ou não.







Se acredita nisso, procure um perito em grafologia. Eu pago.







Você mesmo poderia fazer isso.







Sr. LeBay





falei



,

eu

não preciso mais ser convencido.







Certo, mas então, o que quer de mim? Que eu partilhe suas

fantasias? Não farei isso. Meu irmão está



morto. O carro dele não passa de

um carro.



Ele mentia, eu podia senti

-

lo. Senti

-

o, mesmo pelo telefone.










Quero que me explique uma coisa que me disse, na noite em que

conversamos.







O que poderia ser?



A voz soava desconfiada. Passei a língua nos lábios.







O senhor disse que ele era obcecado e furioso, mas que não era

um monstro. Pelo menos, segundo disse, não acreditava que fosse. Então,

tive a idéia de que mudou inteiramente de assunto... porém, quanto mais

eu penso nisso, mais acredito que não mudou de

assunto, não. Sua frase

seguinte foi de que ele nunca as agredira. A esposa e a filha.







Francamente, Dennis. Eu...







Ouça, se o senhor ia dizer alguma coisa, pelo amor de Deus, diga

agora!





exclamei. Minha voz entrou em colapso. Enxuguei a testa, e a

mão



ficou molhada de suor pegajoso.





Não é mais fácil para mim do que

para o senhor, Arnie está obcecado por uma garota, o nome dela é Leigh

Cabot, mas acho que não é Arnie quem está obcecado por ela, de maneira

alguma. Acho que é o seu irmão, seu irmão mort

o,

agora, fale comigo, por

favor!



Ele suspirou.







Falar com você?





perguntou.





Falar

com você? Falar sobre

velhos acontecimentos... não, essas antigas suspeitas... isso seria quase o

mesmo que despertar um espírito maligno adormecido, Dennis. Por favor,

eu não sei de nada.



Eu podia ter

-

lhe dito que o espírito maligno já fora despertado, mas

ele sabia perfeitamente.







Diga

-

me sobre o que suspeita.







Telefonarei mais tarde para você.







Sr. LeBay... por favor...







Telefonarei mais tarde





repetiu ele.





Agor

a, preciso ligar para

minha irmã Márcia, no Colorado.







Se isso pode ajudar, eu ligarei...







Não. Ela nunca falaria com você. Só comentamos o assunto entre

nós, uma ou duas vezes, se tanto. Espero que sua consciência esteja limpa

nisto tudo, Dennis. Sim, p

orque está nos pedindo para abrir velhas feridas,




para fazê

-

las sangrar novamente. Portanto, vou perguntar mais uma vez:

está bem certo do que disse?







Estou





sussurrei.







Eu ligo mais tarde





disse ele, e desligou.



Passaram

-

se quinze minutos, depois vint

e. Dei volta à sala em

minhas muletas, incapaz de sentar

-

me e ficar quieto. Espiei para a rua lá

fora através da vidraça, uma rua varrida pelo vento, um estudo em

brancos e pretos. Aproximei

-

me do telefone por duas vezes e não ergui o

fone, temendo que ele



pudesse estar tentando ligar para mim, ao mesmo

tempo, e receando mais ainda que não ligasse. Da terceira vez, justamente

quando pousei a mão sobre ele, a campainha tocou. Puxei

-

a rapidamente,

como se houvesse sido picado, mas depois o ergui do gancho.







Oi?





exclamou a voz afogueada de Ellie, no andar de baixo.





É

você, Donna?







Por favor, Dennis Guilder...





começou a voz de LeBay,

parecendo mais velha e mais cansada do que nunca.







Já atendi, Ellie





avisei.







Tá legal, e daí?





replicou ela, atrevida

, antes de desligar.







Alô? Sr. LeBay?





perguntei, com o coração em disparada.







Falei com ela





anunciou ele, em voz soturna.





Márcia me

disse para fazer o que achasse melhor. No entanto, está amedrontada.

Juntos, você e eu, conspiramos para amedrontar

uma velha senhora que

nunca fez mal a ninguém e que nada tem a ver com isto.







É por uma boa causa





falei.







Será?







Se eu pensasse o contrário, não teria telefonado para o senhor





respondi.





Vai ser franco comigo ou não, Sr. LeBay?







Sim, mas para você



e mais ninguém





disse ele.





Se comentar

com outra pessoa, negarei tudo. Entendido?







Certo.







Muito bem





ele suspirou.





Em nossa conversa do verão

passado, Dennis, eu lhe disse uma mentira sobre o que acontecera e outra




mentira a respeito do que eu...



do que eu e Marcy sentimos quanto a isso.

Mentíamos para nós mesmos. Se não fosse por sua causa, creio que

continuaríamos mentindo entre nós sobre aquele... aquele incidente à

beira da estrada... pelo resto de nossas vidas.







Fala da garotinha? Da filha d

e LeBay?







Sim





disse ele lentamente.





De Rita.







O que aconteceu realmente, quando ela se sufocou?







Minha mãe costumava chamar Rollie de sua

changeling



*







disse

LeBay.





Eu lhe contei isso?







Não.







Não, claro que não. Segundo lhe disse naquela época,



achava que

seu amigo seria mais feliz livrando

-

se do carro, porém é a coisa que uma

pessoa pode dizer em defesa das próprias crenças, porque o irracional... o

irracional se intromete nisso.



Ele fez uma pausa e não o apressei. George LeBay diria ou não o q

ue

tinha a dizer. Nada mais simples.







Minha mãe dizia que ele era um bebê de gênio excelente, até os

seis meses de idade. E então... ela dizia que foi então que o duende Puck

apareceu. Que Puck levou seu afável bebê para brincar com ele,

substituindo

-

o po

r um

changeling.

Ela ria, ao falar nisso. No entanto,

nunca comentava em presença de Rollie ou quando ele estava por perto...

e seus

olhos

jamais eram felizes, Dennis. Creio que... bem, era sua única

explicação para o que ele era, para o fato de ser tão in

tocável em seu ódio...

tão egoísta em seus raros e simples objetivos.



"Havia um garoto





esqueci seu nome





um garoto maior, que

surrou Rollie três ou quatro vezes. Um valentão. Ele começava pelas

roupas de Rollie e perguntava se usara as peças de baixo um



ou dois

meses seguidos. Rollie lutava com ele, xingava

-

o e o ameaçava, mas o

valentão ria dele, segurava

-

o à distância com seus braços mais compridos

e o surrava até cansar

-

se, ou até o nariz de Rollie deitar sangue. Então,

Rollie ficava sentado na esquin

a, fumando um cigarro e chorando, com

                                        

             



*



Criança boba, feia ou de mau gênio, que se acredita ter sido trocada, ao nascer, pelas

fadas. (N.T.)






sangue e ranho secando no rosto. E se eu ou Drew nos aproximávamos,

ele nos espancava para valer.



"A casa do valentão pegou fogo certa noite, Dennis. O valentão, o

pai do valentão e o irmãozinho do valentão foram morto

s. A irmã do

valentão sofreu queimaduras horríveis. Presumia

-

se que o incêndio se

originara no fogão da cozinha





e talvez assim fosse, realmente.

Entretanto, as sirenes dos bombeiros me despertaram e eu ainda estava

acordado, quando Rollie entrou no quart

o em que dormíamos, subindo

pela latada de hera junto à parede. Havia fuligem em sua testa e ele

cheirava a gasolina. Ele me viu deitado, com os olhos abertos, e disse: "Se

contar alguma coisa, George, mato você." Desde aquela noite, Dennis,

tentei convenc

er

-

me de que cumpriria a palavra, caso eu contasse que ele

estivera lá fora, espiando o incêndio. Bem, talvez fosse apenas isso."



Eu tinha a boca seca. Parecia haver uma bola de chumbo em meu

estômago. Os cabelos da nuca estavam eretos.







Que idade seu irm

ão tinha na época?





perguntei, em voz rouca.







Ainda não fizera treze anos





disse LeBay, com falsa e terrível

calma.





Certo dia de inverno, coisa de um ano mais tarde, houve uma

briga durante um jogo de hóquei. Um sujeito chamado Randy

Throgmorton abriu



uma fenda na cabeça de Rollie, com seu bastão. Bateu

nele até deixá

-

lo sem sentidos. Nós o levamos ao velho Dr. Farner... Rollie

já recuperara os sentidos então, porém continuava grogue, e o médico deu

doze pontos em seu couro cabeludo. Uma semana mais ta

rde, Randy

Throgmorton caiu através do gelo, na lagoa Palmer, e afogou

-

se. Estivera

patinando em uma área claramente marcada por avisos de GELO FINO.

Aparentemente.







Está dizendo que seu irmão matou essas pessoas? Está dando a

entender que LeBay matou a p

rópria filha?







Não que ele a matou, Dennis, nunca pensei nisso. Ela morreu

asfixiada. Estou sugerindo que ele podia tê

-

la deixado morrer.







O senhor disse que ele a virou de cabeça para baixo... que bateu

nas costas dela, tentou fazê

-

la vomitar...







Foi o



que Rollie me contou no funeral





disse George.







Então, o que...










Eu e Márcia comentamos o caso mais tarde. Somente aquela vez,

compreenda. Durante o jantar daquela noite. Rollie me dissera: "Eu a

suspendi por suas botas e tentei arrancar o filho da put

a de lá, a tapas,

Georgie. Só que a coisa estava muito no fundo da garganta". E o que

Verônica disse a Márcia foi: "Rollie a suspendeu no ar pelos sapatos e

tentou arrancar de lá o que quer que a estava sufocando dando

-

lhe tapas,

mas a coisa estava muito n

o fundo da garganta." Eles contaram

exatamente a mesma história, empregando exatamente as mesmas

palavras. Sabe o que isso me levou a pensar?







Não.







Pensei em Rollie, escalando a janela do quarto e cochichando para

mim:

"Se contar alguma coisa, Georgie,

mato você."







Bem, mas... por quê? Por que ele iria?







Mais tarde, Verônica escreveu para Márcia, dando a entender que

Rollie pouco fizera para salvar a filha. E que, já bem no fim, ele a colocara

novamente no carro. Para que não ficasse ao sol, explicara.



Na carta,

entretanto, Verônica disse ter pensado que Rollie desejava que a menina

morresse no carro.



Eu não queria dizer aquilo, mas era preciso.







Está sugerindo que seu irmão ofereceu a filha como uma espécie

de sacrifício humano? Houve uma longa, refle

xiva e tenebrosa pausa.







Não. Ele não o faria, de alguma forma consciente





disse

LeBay.





Não mais do que sugiro ter ele assassinado a filha

conscientemente. Se conhecesse meu irmão, veria o quanto é ridículo

suspeitar dele como tendo parte com feitiçari

a, bruxaria ou pactos com

demônios. Rollie acreditava apenas nos próprios sentidos... exceto,

imagino, sua própria vontade. Apenas sugiro que ele poderia ter tido

alguma... alguma intuição... ou que poderia ter sido dirigido a fazer o que

fez. Minha mãe di

zia que ele era um

changeling.







E Verônica?







Não sei





disse ele.





O veredicto policial foi de suicídio,

embora ela não deixasse qualquer nota explicando seu ato. Sim, poderia

perfeitamente ser suicídio. Não obstante, a pobre mulher tinha feito

alguns a

migos na cidade e muitas vezes me pergunto se talvez não tivesse

dado a entender a qualquer deles, como fez com Márcia, que a morte de




Rita não havia sido bem como ela e Rollie tinham contado. Eu me

pergunto se Rollie descobriu.

Se contar alguma coisa, Geo

rgie, mato você.

Não

há prova de nada, evidentemente. No entanto, eu gostaria de saber por

que ela quis morrer daquele jeito... e fico surpreso ao pensar em como

uma mulher sem o menor conhecimento sobre carros, saberia o suficiente

para pegar uma mangueir

a, adaptá

-

la ao cano de descarga e enfiá

-

la

através da janela do carro. Procuro não meditar muito nessa coisa. Às

vezes me fazem perder o sono.



Refleti nas coisas que ele tinha dito e nas que não dissera





o que

deixara nas entrelinhas. Intuitivo, ele diss

era.

Tão egoísta em seus raros e

simples objetivos.

Suponhamos que Roland LeBay houvesse percebido, de

algum modo que não admitiria nem para si mesmo, que estava investindo

seu Plymouth com algum poder sobrenatural? E suponhamos que ele

estivesse apenas es

perando pela chegada do herdeiro certo... e então...







Isto responde às suas perguntas Dennis?







Creio que sim





respondi, lentamente.







O que vai fazer?







Creio que o senhor sabe.







Destruir o carro?







Vou tentar





respondi.



Então, olhei para minhas mulet

as, descansando contra a parede.

Minhas malditas muletas.







Você pode destruir também seu amigo.







Eu posso salvá

-

lo





repliquei. George LeBay comentou, em voz

lenta:







Eu me pergunto se isso ainda será possível.





A



T

RAIÇÃO



Havia sangue e vidro por toda pa

rte,



E não vi mais ninguém além de mim






Quando a chuva caiu, forte e fria,



Vi um rapaz, jazendo à beira da estrada,



Ele pediu "Por favor, senhor,



quer me ajudar?"







Bruce Springsteen





Eu a beijei.



Seus braços passaram em torno de meu pescoço. Uma de suas mã

os

frias pressionou minha nuca de leve. Para mim, não havia mais dúvidas

sobre o que estava acontecendo; quando se afastou ligeiramente, com os

olhos semicerrados, pude ver que também ela não tinha dúvidas.







Dennis





ela murmurou, e tornei a beijá

-

la. Nos

sas línguas se

tocaram suavemente. Por um instante, seu beijo intensificou

-

se e pude

sentir a paixão denunciada por aqueles altos malares. Então, ela ofegou

um pouco e recuou.





Já chega





disse.





Acabaremos presos por

atentado ao pudor ou coisa assim.



Er

a dezoito de janeiro. Estávamos estacionado no pátio atrás do

Kentucky Fried local, com os restos de um excelente jantar de galinha

espalhados à nossa volta. Estávamos em meu Duster e só isso já era um

grande acontecimento para mim





era a primeira vez que



eu estava ao

volante, desde o acidente. Naquela mesma manhã, o médico retirara o

enorme molde de gesso de minha perna esquerda e o substituíra por um

aparelho ortopédico. Em tom grave, ele me aconselhara a não retirar o

aparelho, mas eu podia notar que es

tava satisfeito sobre a maneira como

as coisas estavam indo. O médico atribuía isso à sua técnica superior;

minha mãe, ao pensamento positivo e canja de galinha; o treinador Puffer,

ao chá de botões de rosa.



Quanto a mim, achava que Leigh Cabot tinha muito



a ver com

aquilo.







Precisamos conversar





disse ela.







Não. Vamos namorar um pouco mais





respondi.







Conversamos agora. Namoramos depois.







Ele começou de novo? Ela assentiu.






No correr das quase duas semanas, desde minha conversa telefônica

com LeBay





as duas primeiras do turno letivo de inverno



, Arnie

estivera agindo para uma

aproximação

com Leigh, e agindo com tal

intensidade que eu e ela ficamos assustados. Eu lhe contara minha

conversa com George LeBay (mas não, como já disse, minha terrível volta



para casa com Arnie, na madrugada de Ano

-

Novo) e tornara o mais claro

possível que, de modo algum, ela devia simplesmente romper com ele.

Isso o tornaria enfurecido e, naquela época, se Arnie se enfurecia com

alguém, coisas desagradáveis aconteciam a tal

pessoa.







Isso é como enganá

-

lo





comentou Leigh.







Eu sei





respondi, mais rispidamente do que pretendia.





Não

gosto da situação, porém não quero aquele carro em ação novamente.







E depois? Meneei a cabeça.



Em verdade, eu começava a sentir

-

me como o Prín

cipe Hamlet,

adiando indefinidamente. Claro que sabia o que tinha de ser feito:

Christhie precisava ser destruída. Juntamente com Leigh, já havia

discutido maneiras de como fazê

-

lo.



A primeira idéia partira dela





coquetéis Molotov. Encheríamos

algumas gar

rafas de vinho com gasolina, acenderíamos os pavios ("Pavios?

Que pavios?", perguntei. "Lenços de papel fariam o mesmo", respondeu

ela prontamente, de novo aumentando minha curiosidade sobre seus

antepassados de malares altos) e as jogaríamos pelas janelas



de Christine.







E se as portas estiverem trancadas, com os vidros levantados?





perguntei.





Em geral, é como costumam ficar, você sabe.



Ela me fitou como se eu fosse um perfeito idiota.







Está dizendo que a idéia de bombardear o carro de Arnie é

certa





respondeu



, mas tem escrúpulos apenas em quebrar alguns

vidros?







Não





repliquei



, mas quem chegará perto do carro o

suficiente para quebrar os vidros com um martelo, Leigh? Você?



Ela olhou para mim, mordendo o carnudo lábio inferior. Não disse

nada. A

idéia seguinte fora minha. Dinamite. Leigh refletiu nisso e

meneou a cabeça.







Eu poderia conseguir sem muito esforço, acho





falei.






Eu continuava vendo Brad Jeffries de tempos em tempos e ele ainda

trabalhava para a Penn

-

DOT, que tinha dinamite suficiente



para mandar o

Estádio Three Rivers à lua. Pensei que poderia apanhar a chave certa, sem

Brad saber de nada





ele geralmente ficava meio tocado, quando via os

jogos dos Pingüins pela televisão. Eu pegaria a chave dos explosivos na

prateleira, durante o ter

ceiro período de um tempo, e a devolveria no

terceiro período de outro. Era bastante remota a possibilidade de que ele

precisasse de explosivos em janeiro e, desta forma, desse por falta da

chave. Era um embuste, outra traição





porém um meio de resolver a



situação.







Não





disse ela.







Por que não?



Para mim, a dinamite parecia constituir o tipo da destruição total

que o momento exigia.







Porque agora Arnie deixa o carro estacionado na entrada da

garagem da casa dele. Você quer mesmo explodir um carro e man

dar

estilhaços de metal por todo um bairro? Arriscar

-

se a que um pedaço de

vidro arranque a cabeça de alguma criança?



Pestanejei. Não tinha pensado nisso mas, quando ela falou, a

imagem se destacou nitidamente, em toda a sua hediondez. Isso me fez

pensar e

m outras coisas. Acender uma banana de dinamite no cigarro e

depois jogá

-

la contra o objeto a ser destruído... bem, podia ser muito legal

nos faroestes do canal 2, na tarde de sábado, mas a situação se modificava

radicalmente na vida real. Ainda assim, ape

guei

-

me à idéia o mais que

pude.







E se agíssemos à noite?







Continuaria muito perigoso





replicou ela.





E você sabe muito

bem. Está em sua cara. Houve uma longa, demorada pausa.







O que me diz do compressor de ferro

-

velho, na Garagem de

Darnell?





arrisc

ou Leigh por fim.







Continuam as objeções básicas de antes





falei.





Quem

dirigiria Christine até lá? Eu, você ou Arnie?



Foi aí que as coisas pararam.







O que vai ser para hoje?





perguntei a ela.










Ele me convidou para sairmos à noite





respondeu Leigh.





Boliche, desta vez.





Nos dias anteriores havia sido cinema, sair para

jantar, ir ver TV na casa dele, propostas de encontros para estudar.

Christine estava em todos os planos, como meio de transporte.





Ele

começa a irritar

-

se com minhas recusas e meu e

stoque de pretextos está

acabando. Se vamos mesmo fazer alguma coisa, terá de ser logo.



Assenti. Uma coisa era o fracasso em encontrarmos um método

satisfatório. Outro impedimento que nos continha era minha perna. Agora

que retirara o gesso, eu recebera or

dens estritas do médico para usar as

muletas, mas já havia testado a perna esquerda sem elas. Sentia alguma

dor, porém não tanto quanto eu temia.



Essas coisas pesavam, claro





porém o melhor de tudo dizia

respeito a nós dois. À descoberta um do outro. E, e

mbora isto pareça

sórdido, acho que deveria acrescentar algo mais, se é que pretendo

esclarecer tudo com a mais absoluta franqueza (e havia prometido a mim

mesmo, quando comecei a relatar a história, que a interromperia se não

pudesse manter a verdade). O

sabor do perigo acrescentara algo ao que eu

sentia por Leigh





e, acho, ao que ela sentia por mim.



Ele era meu melhor amigo, mas havia ainda uma vil e insensata

atração, na idéia de que nós dois nos víamos sem que ele soubesse. A cada

vez que a tomava nos

braços, sempre que minha mão deslizava pela

curvatura firme de seus seios, eu sentia isso. A traição. Poderiam me dizer

por que havia tal atração? Pois havia. Pela primeira vez na vida, eu me

apaixonara por uma garota. Já escorregara antes, mas agora eu le

vara o

grande trambolhão. E o adorava. E adorava Leigh. No entanto, aquela

constante sensação de traição... era algo rastejante, ao mesmo tempo

vergonhoso, e também uma louca espécie de incentivo. Podíamos

comentar entre nós dois (e assim fazíamos) que fic

ávamos de boca fechada

para proteger nossas famílias e a nós mesmos.



Isso era verdade.



Porém não toda a verdade, Leigh. Não, não era toda a verdade.





De certo modo, nada pior podia ter acontecido. O amor abranda o

tempo de reação, emudece a noção de perigo

. Minha conversa com LeBay

acontecera doze longos dias antes e meus cabelos da nuca não ficavam




mais eriçados ao refletir no que ele tinha dito





e, pior ainda, no que

havia sugerido.



O mesmo era verdadeiro





ou não





quanto às poucas vezes em

que converse

i com Arnie ou o vi pelos corredores. De certa estranha

maneira, era como se estivéssemos novamente em setembro e outubro,

quando nos havíamos afastado, simplesmente, porque Arnie andava

muito ocupado. Ao conversarmos, ele se mostrava amável, embora fossem



frios os olhos cinzentos atrás dos óculos. Esperei que uma lamentosa

Regina ou um angustiado Michael ligassem para mim, com a notícia de

que Arnie finalmente parara de brincar com eles e desistira da idéia de ir

para a universidade no outono.



Tal não acon

teceu, e foi o próprio Boca de Motor





nosso

conselheiro de orientação





quem me disse que Arnie levara para casa

um punhado de informações impressas sobre a Universidade da

Pensilvânia, a Universidade Drew e a Estadual da Pensilvânia. Eram as

universidade

s em que Leigh estava mais interessada. Eu sabia disso e

Arnie também.



Duas noites antes, eu ouvira, sem querer, uma conversa de mamãe e

minha irmã Ellie, na cozinha.







Por que Arnie não vem mais aqui, mamãe?





perguntara Ellie.





Ele e Dennis brigaram?







Não, querida





respondera minha mãe.





Não creio que tenham

brigado. Só que, quando amigos ficam mais velhos... às vezes se afastam.







Isso nunca irá acontecer comigo





dissera Ellie, com a firme

convicção dos que acabaram de fazer quinze anos.



Fiquei sent

ado na sala, perguntando

-

me em que, de fato, consistia

tudo aquilo: alucinação, provocada por minha longa permanência no

hospital, segundo LeBay sugerira, e um simples crescente afastamento,

um espaço que crescia entre dois amigos de infância. Era possível



observar

-

se uma certa lógica nisso, perceber

-

se o distanciamento que

nascera entre nós, mesmo não se levando Christine em consideração.



Desta forma, os fatos cruéis ficavam de fora, mas era confortador.

Acreditar nisso permitiria que eu e Leigh levássemos



nossas vidas

rotineiras





envolvidos em nossas atividades escolares, esforçando

-

nos

um pouco mais para as Provas de Progressos Escolásticos de março e,




naturalmente, saltando para os. braços um do outro assim que seus pais

ou os meus saíssem da sala. Quer

íamos ter liberdade para namorar,

porque éramos dois adolescentes excitados, completamente atraídos um

pelo outro.



Eram coisas que me acalentavam... que nos acalentavam. Estávamos

sendo cautelosos





em verdade, tão cautelosos como adúlteros, em vez

de apen

as dois jovens



, mas eu havia retirado o gesso da perna nesse dia,

pudera usar novamente as chaves de meu Duster, em vez de apenas ficar

olhando para elas e, movido por um impulso, ligara para Leigh,

perguntando se ela gostaria de ir comigo ao mundialment

e famoso

Colonel's, para comermos um pouco de seus também mundialmente

famosos frangos crocantes. Ela ficara eufórica.



Assim, pode

-

se ver como nossa cautela diminuiu, como nos

tornamos um pouquinho indiscretos. Estávamos sentados no pátio de

estacionamento

, com o motor do Duster ligado para termos um pouco de

calor, e conversávamos sobre a forma de darmos um fim àquele velho e

infinitamente esperto monstro feminino, como duas crianças brincando de

caubói.



Nenhum de nós viu Christine, quando ela estacionou à



nossa

retaguarda.









Tudo indica que ele esteja se aprontando para um longo cerco





falei.







Como assim?







As universidades que vem escolhendo. Ainda não pensou nisso?







Não entendi





respondeu ela, intrigada.







São as universidades que mais interessam a

você





falei

pacientemente.



Leigh olhou para mim. Olhei também para ela, tentando sorrir, mas

não conseguindo.







Está bem





falei.





Vamos discutir o caso mais uma vez.

Coquetéis Molotov estão fora. A dinamite parece arriscado, mas se nós...



Uma respiração



ofegante de Leigh me interrompeu de estalo

juntamente com a expressão de assustado horror em seu rosto. Ela olhava




através do pára

-

brisa, a boca aberta, os olhos arregalados. Virei

-

me

naquela direção e o que vi foi tão espantoso que, por um momento,

també

m fiquei imobilizado.



Arnie estava parado diante de meu Duster.



Havia estacionado bem atrás de nós e tinha ido apanhar seu frango,

sem perceber quem estava ali





e por que deveria? Estava quase escuro,

de maneira que um Duster de quatro anos, sujo de lama,



fica muito

semelhante a qualquer outro. Arnie tinha ido, voltava com o frango frito e

retornava a seu carro... mas parara diante do meu, ficara olhando através

do pára

-

brisa para nós dois, sentados muito juntos e abraçados, fitando

-

nos profundamente dentr

o dos olhos, como dizem os poetas. Apenas uma

coincidência





uma sombria, terrível coincidência. Exceto que, agora,

parte de minha mente estava absolutamente convicta de que havia sido

Christine... de que havia sido ela que o conduzira até ali.



Houve, entã

o, um longo e gélido momento de silêncio. Um pequeno

gemido escapou da garganta de Leigh. Arnie tinha parado a meio

caminho do pequeno pátio de estacionamento, trajando seu blusão do

ginásio, calças

jeans

desbotadas e botas. Um cachecol de cor lisa fora

en

rolado em torno do pescoço. Ele erguera a gola do blusão e as lapelas

negras emolduravam um rosto que se torcia lentamente da expressão de

terrível incredulidade para uma pálida careta de ódio. A sacola de listras

vermelhas e

brancas, tendo impressa o rost

o sorridente do

Colonel





o

Coronel





escapou de uma de suas mãos enluvadas e caiu no piso

nevado do pátio de estacionamento.







Dennis





sussurrou Leigh.





Dennis... Oh, meu Deus!



Ele come

çou a correr. Pensei que vinha para o carro, talvez

pretendendo arra

ncar

-

me dali e agredir

-

me. Eu podia me ver apoiado

fracamente na perna ainda não de todo boa, sob as luzes do pátio que

tinham sido acesas justamente naquele minuto, enquanto Arnie





cuja

vida eu salvara durante todos aqueles anos, desde o jardim da infânc

ia





acabava com a minha raça. Ele correu, a boca torcida em um esgar que eu

jamais vira antes





mas aquele não era o seu rosto. Agora era o rosto de

LeBay.



Arnie n

ão parou em meu carro, ele continuou correndo. Virei

-

me no

assento, e então avistei Christin

e.






Abri minha porta e lutei para sair, agarrando

-

me

à calha da porta

para apoio. O frio me deixou imediatamente com os dedos dormentes.







Dennis, não





gritou Leigh.



Consegui ficar em p

é, justamente quando Arnie escancarou a porta

de Christine.







Arnie!





gritei.





Ei, cara!



Houve um movimento brusco e seco de sua cabe

ça. Os olhos dele

estavam arregalados, opacos e fixos. Um fio de saliva começava a escorrer

de um canto da boca. A grade do radiador de Christine também parecia

rosnar.



Ele ergueu os dois punh

os e os sacudiu para mim.







Seu bosta!





A voz era aguda e incerta.





Fique com ela! Você a

merece! Vocês são uns merdas! Que fiquem um com outro! Não ficarão assim por

muito tempo!



As pessoas tinham acudido

às janelas envidraçadas do Kentucky

Fried Chicke

n e do vizinho Kowloon Express para verem o que estava

acontecendo.







Arnie! Vamos conversar, cara...



Ele saltou para o carro e bateu a porta com for

ça. O motor de

Christine rugiu e seus faróis ganharam vida, os ofuscantes olhos brancos

de meu sonho, espet

ando

-

me como a um besouro em um cartão. E, acima

deles, havia o rosto terrível de Arnie, o rosto de um demônio enfurecido.

Aquele rosto, cheio de ódio e fantasmagórico, habitou meus sonhos desde

então. Um rosto que desapareceu em seguida, sendo substituído



por uma

caveira, uma sorridente caveira.



Leigh deixou escapar um grito agudo, estridente. Tamb

ém tinha se

virado para espiar, portanto, percebi que aquilo não era apenas

imaginação minha. Ela vira o mesmo que eu.



Christine projetou

-

se com um rugido, os pn

eus traseiros girando e

atirando neve para tr

ás. Arnie não arremeda contra o Duster





era a mim

que visava. Creio que sua intenção seria esmagar

-

me como geléia entre os

dois carros. Fui salvo por minha perna esquerda, ainda em más condições,

pois falhou e

caí de costas dentro do carro, batendo com a anca direita no

volante e fazendo a buzina soar.






Uma onda de vento gelado fustigou

-

me o rosto. O brilhante flanco

vermelho de Christine passou a uns noventa cent

ímetros de mim.

Disparou rugindo pela alameda de s

aída do pátio e entrou na JFK Drive

como um foguete, sem diminuir a marcha, a traseira rabeando.

Desapareceu em seguida, ainda acelerando.



Olhei para a neve e vi as marcas recentes, ziguezagueantes de seus

pneus. Mais uns dez cent

ímetros, e Christine colid

iria contra minha porta

aberta.



Leigh chorava. Usei as m

ãos para colocar minha perna esquerda

dentro do carro, bati a porta e a abracei. Seus braços me procuraram às

cegas e então me apertaram, com a força do pânico.







Não era... não era ele que...







Pssst

, Leigh. Não se preocupe. Não pense mais nisso.







Não era Arnie que estava dirigindo aquele carro! Era uma pessoa morta!

Era urna pessoa morta!







Era LeBay





falei. Agora que falara, senti uma espécie de calma

irreal, em vez da trêmula reação que seria mai

s natural, isso e a culpa de,

finalmente, ter sido apanhado com a garota de meu melhor amigo.





Era

ele, LeBay. Você acabou de conhecer Roland D. LeBay.



Ela chorou, tomada de medo, de choque e de horror, apertando

-

se

contra mim. Fiquei satisfeito em t

ê

-

la.



Minha perna esquerda latejava

monotonamente. Ergui os olhos para o espelho retrovisor e vi a vaga vazia,

pouco antes ocupada por Christine. Agora que acontecera, parecia

-

me que

quaisquer outras conclusões seriam impossíveis. A paz das duas últimas

semanas

, a alegria pura de ter Leigh a

meu lado, tudo isto agora parecia

ser a situa

ção antinatural, a situação falsa





tão falsa como a mistificada

guerra entre a conquista da Polônia por Hitler e o devastador assalto da

Wehrmacht contra a França.



Ent

ão, comecei



a ver o final das coisas, como ele seria.



Ela ergueu para mim o rosto lavado de l

ágrimas.







E agora, Dennis? O que vamos fazer?







Agora, vamos dar um fim nisso.







Como? O que quer dizer?






Falando mais para mim do que para ela, respondi:







Ele precisa de um



álibi. Temos de estar prontos, para quando ele

se afastar daqui. A garagem. A Garagem de Darnell. Vamos encurralar

aquele carro lá dentro. Tentar matá

-

lo,







Dennis, de que está falando?







Ele deixará a cidade





falei.





Não entende? Todas aquelas

pessoas

que Christine matou... bem, elas formam um círculo em torno de

Arnie. Ele sabe disso. Ele fará com que Arnie torne a sair da cidade.







Está falando de LeBay? Assenti, e Leigh estremeceu.







Precisamos matá

-

lo. Você sabe disso.







Sim, mas... como? Por favor,



Dennis... como faremos? Por fim, eu

tinha uma idéia.





P

REPARATIVOS



Há um matador na estrada,



Seu cérebro se contorce como um sapo...







The Doors





Levei Leigh at

é sua casa e lhe disse para telefonar

-

me, se visse

Christine rodando pelos arredores.







E o que



você fará? Virá até aqui com um lança

-

chamas?







Uma bazuca





falei, e ambos começamos a rir histericamente.







Abaixo o 58! Abaixo o 58!





gritou Leigh e rimos ainda mais.



N

ão obstante, por todo o tempo em que ríamos, estávamos meio

mortos de medo... talve

z mais do que meio. Enquanto ficávamos ali, rindo,

eu me sentia perturbado por Arnie, perturbado pelo que ele tinha visto e

pelo que eu havia feito. Creio que Leigh sentia o mesmo. No entanto, há

momentos em que só nos resta rir. Às vezes, é apenas o que f

azemos. E

quando o riso se solta

-

, nada pode sufocá

-

lo. O riso continua, cumprindo o

seu dever...










E o que digo a meus pais?





perguntou Leigh quando,

finalmente, conseguimos controlar

-

nos.





Preciso dizer

alguma coisa

a eles,

Dennis! Não vou deixar que s

e arrisquem a serem atropelados na rua!







Não diga nada





falei.





Não diga nada, mesmo.







Mas...







Em primeiro lugar, eles não acreditariam em você. Em segundo,

nada irá acontecer, enquanto Arnie permanecer em Libertyville. Aposto

minha vida nisso.







Só i

sso, bobão?





sussurrou ela.







Não. Aposto minha vida, a de minha mãe, meu pai e minha irmã.







Como saberemos, se ele deixar a cidade?







Eu vou cuidar disso. Você ficará doente amanhã. Não irá à aula.





Já estou doente





disse, em voz baixa.





Dennis, o que



vai

acontecer? O que está planejando?







Eu telefono pra você mais tarde, esta noite.





Beijei

-

a. Seus lábios

estavam frios.



Quando cheguei em casa, Elaine enfiava sua jaqueta relutantemente,

murmurando surdas imprecações contra pessoas que mandam outras

c

omprar pão e leite no Tom's justamente quando vai começar

Dance Fever

na

TV. Ela se dispunha a me xingar também, mas se alegrou, quando me

ofereci para dar

-

lhe uma carona até o mercado, ida e volta. Ellie também

me dirigiu um olhar suspeito, como se tão in

esperada gentileza com a

irmã menor assinalasse o início de alguma doença. Herpes, talvez.

Perguntou se eu me sentia bem. Apenas sorri com suavidade e lhe disse

para entrar no carro antes que eu mudasse de idéia, embora a esta altura

minha perna direita do

esse e a esquerda latejasse furiosamente. Eu podia

falar e insistir com Leigh sobre como Christine não atacaria, enquanto

Arnie estivesse em Libertyville, e racionalmente, sabia que assim seria.

Entretanto, isto não modificou o instintivo peso no estômago,



quando

pensei em Ellie caminhando os dois quarteirões até o Tom's e cruzando as

escuras ruelas suburbanas, com sua berrante jaqueta amarela. Eu ficava

vendo Christine, estacionada em uma daquelas ruas, agachada no escuro

como um velho e maldito cão de caç

a.



Ao chegarmos ao Tom's, dei

-

lhe um dólar.










Compre chocolate e uma Coca para cada um de nós.







Você está se sentindo bem mesmo, Dennis?







Estou. E se gastar meu troco naquele jogo de Asteróides, quebro o

seu braço.



Aquilo pareceu sossegá

-

la. Ellie saiu,

e fiquei encurvado atrás do

volante do Duster, pensando na terrível enrascada em que estávamos

metidos. Não podíamos contar a ninguém





aí estava o pesadelo. E aí

residia a força de Christine. Poderia chegar até meu pai, em sua oficina de

brinquedos e dize

r que o que Ellie chamava de "aquele velho e horroroso

carro vermelho de Arnie Cunningham" agora se dirigia sozinho? Poderia

ligar para os tiras e lhes dizer que um sujeito morto queria matar minha

namorada e a mim? Não. A única coisa a nosso favor, além d

o fato de que

o carro não se moveria enquanto Arnie não tivesse um álibi, era que ele

não queria testemunhas





"Penetra" Welch, Don Vandenberg e Will

Darnell haviam sido liquidados sozinhos, de madrugada, Buddy

Repperton e seus dois amigos tinham sido mort

os em local isolado.



Elaine chegou, com uma sacola apertada contra o busto florescente,

entrou no carro, entregou meu chocolate e minha Coca.







O troco





pedi.







Você é um sovina





respondeu, mas colocou vinte e poucos

centavos em minha mão estendida.







Eu



sei, mas gosto de você assim mesmo





falei.



Puxei seu capuz para trás, desmanchei

-

lhe o cabelo e depois a beijei

na orelha. Ela pareceu surpresa e desconfiada





mas então sorriu. Não

era má pessoa, minha irmã Ellie. Imaginá

-

la atropelada na rua,

simplesme

nte porque eu me apaixonara por Leigh Cabot, depois que

Arnie perdera a cabeça e a deixara... Francamente, eu não podia permitir

que isso acontecesse.



Em casa, subi penosamente para o andar de cima, depois de dizer

olá para mamãe. Ela queria saber como est

ava a perna e respondi que em

ótimo estado. No entanto, quando cheguei ao andar de cima, a primeira

parada foi no armário de remédios que havia no banheiro. Tomei duas

aspirinas para amenizar a dor nas pernas, que agora pareciam cantar

Ave

-

Maria.

Depois fu

i até o quarto de meus pais, onde fica a extensão do

telefone, e me sentei na cadeira de balanço de mamãe, com um suspiro.






Ergui o fone do gancho e fiz a primeira de minhas ligações.







Dennis Guilder, o flagelo do projeto de extensão da estrada!





exclamou



Brad Jeffries, alegremente.





É bom falar com você, rapaz.

Quando é que vai aparecer, para vermos os Pingüins outra vez?







Não sei





respondi.





Já me cansei de ver aleijados jogando

hóquei. Mas se você estiver interessado em um bom time, como os

Voadores

...







Céus, ter que ouvir isto de um garoto que nem mesmo é meu

filho!





exclamou Brad.





Acho que o mundo está mesmo caminhando

para o inferno.



Tagarelamos um pouco mais, chutando de um lado para outro, e

então lhe disse o motivo do telefonema. Ele riu.







O que há, Denny? Querendo negociar por conta própria?







É possível





repliquei, pensando em Christine.





Somente por

algum tempo.







Não quer falar a respeito?







Bem, ainda não. Conhece alguém que tenha um troço desses para

alugar?







Claro que sim, Dennis.



Escute, só há um sujeito que poderia fazer

negócio com você, nas bases que mencionou. Johnny Pomberton. Vive

perto de Ridge Road. Ele tem mais rodantes do que Carter tem pílulas

para o fígado.







Ok





respondi.





Obrigado, Brad.







Como vai Arnie?







Acho qu

e está bem. Não o tenho visto tanto quanto antes.







Um cara curioso, Dennis. Nem em minha pior suposição pensaria

que ele ia durar todo o verão por aqui, assim que botei os olhos nele. No

entanto, se mostrou decidido como o diabo.







Certo





respondi.





Tud

o isso e ainda mais.







Diga olá para ele, quando se encontrarem.







Direi, Brad. Não se preocupe.










Apareça, Dennis. Venha qualquer noite e esvazie algumas latas

de cerveja comigo.







Vou aparecer. Boa noite.







Boa noite, Denny.



Desliguei e fiquei olhando pa

ra o telefone por um ou dois minutos,

indeciso, sem muita vontade de fazer a ligação seguinte. No entanto, era

preciso fazê

-

la; seria a ligação central para toda aquela lamentável e

estúpida situação. Peguei o fone e disquei de cor o número dos

Cunningham.



Se Arnie atendesse, eu simplesmente desligaria, sem nada

dizer. No entanto, tive sorte, foi Michael quem respondeu.







Alô?



Sua voz soava cansada e um pouco amortecida.







Aqui é Dennis, Michael.







Ei, olá!





ele parecia sinceramente satisfeito.







Arnie est

á aí?







Lá em cima. Chegou em casa, vindo de algum lugar, e foi direto

para seu quarto. Parecia bastante carrancudo, mas isto não tem sido

incomum ultimamente. Quer que o chame?







Não





falei.





Está tudo bem. Era com você mesmo que eu

queria falar. Precis

o de um favor seu.







Muito bem, é só dizer.





Percebi que aquela voz algo mortiça

era... Bem, Michael Cunningham devia estar a meio caminho de um

pileque.





Você nos

prestou um favor dos diabos, enfiando um pouco de

juízo nele, sobre universidade.







Não ac

redito que ele tenha ouvido uma vírgula do que falei,

Michael.







Bem, a verdade é que algo aconteceu. Ele se candidatou a três

universidades, só este mês. Regina acha que você caminha sobre a água,

Dennis. E, só para nós, ela anda muito envergonhada sobre

a maneira

como o tratou, quando Arnie nos falou sobre seu carro a primeira vez.

Enfim, você conhece Regina. Ela jamais conseguiria dizer "sinto muito".



Eu sabia disso perfeitamente. Perguntei

-

me o que ela pensaria, se

soubesse que Arnie





ou o que quer que



controlasse Arnie





tinha tanto




interesse pela universidade quanto um avaro por fundos mútuos. Ou se

soubesse que ele apenas seguia as pegadas de Leigh, perseguia

-

a,

obcecado por ela. Era perversão sobre perversão





LeBay, Leigh e

Christine, em um hediond

o

ménage a trois.







Ouça, Michael





falei.





Eu gostaria que você me telefonasse,

caso Arnie decidir deixar a cidade por algum motivo. Especialmente

dentro destes primeiros dias ou durante a semana. De dia ou à noite.

Preciso saber se Arnie vai deixar Libe

rtyville. E tenho que saber antes dele

ir. É muito importante.







Por quê?







Prefiro não explicar por enquanto. É muito complicado e ia

parecer... bem, você acharia meio louco.



Houve um longo, demorado silêncio. Quando o pai de Arnie tornou

a falar, sua voz



era quase um sussurro.







É algo sobre esse maldito carro dele, não é?



Até onde ele suspeitaria? Quanto saberia? Se Michael fosse como a

maioria das pessoas que eu conhecia, talvez desconfiasse um pouco mais

quando bêbado, do que sóbrio. No momento, eu não



tinha certeza. No

entanto, achava que Michael

suspeitara,

mais do que ninguém exceto,

talvez, do que Will Darnell.







Certo





respondi.





É isso mesmo.







Eu sabia





disse, em voz opaca.





Eu sabia. O que está

acontecendo, Dennis? O que ele anda fazendo? Vo

cê sabe?







Não posso falar mais, Michael. Pode me telefonar se ele

programar alguma viagem para amanhã ou depois?







Está certo





disse ele.





Telefonarei.







Obrigado.







Dennis





disse Michael.





Acha que terei meu filho de volta?



Ele merecia a verdade. Aqu

ele pobre e angustiado homem merecia a

verdade.







Não sei





respondi, mordendo o lábio inferior até que doesse.










Acho que... bem, talvez já seja um pouco tarde para isso





concluí.







De que se trata, Dennis?





ele quase gemeu.





Drogas? Alguma

espécie de

drogas?







Direi quando puder





respondi.





É tudo o que posso prometer.

Sinto muito.





Não foi difícil convencer Johnny Pomberton.



Era um homem animado e falante, de modo que logo

desapareceram quaisquer temores de que ele não fizesse negócio com um

adolesc

ente. Tive a impressão de que Johnny Pomberton faria negócios

com o próprio Satã, acabado de subir dos infernos e ainda com cheiro de

enxofre, se a proposta fosse boa e dentro da lei.







Claro





repetia ele.





Claro, claro.



Mal se iniciava uma proposta, e J

ohnny Pomberton já estava

concordando, o que chegava a ser um pouco enervante. Eu tinha uma

história que serviria de bom pretexto, mas não acredito que ele chegasse a

ouvi

-

la. Limitou

-

se a dar

-

me um preço, aliás um preço bastante razoável.







Está bom para

mim





falei







Claro





concordou ele.





Quando é que virá?







Bem, o que me diz de amanhã, às nove e meia...







Claro





interrompeu ele.





Até lá, então.







Mais uma pergunta, Sr. Pomberton.







Claro. E me chame de Johnny.







Ok, Johnny. E sobre a mudança automá

tica?



Johnny Pomberton riu alegremente





com tal vivacidade que

mantive o fone um pouco afastado do ouvido, algo deprimido. Aquele

riso era resposta suficiente.







Em uma dessas coisinhas? Você deve estar brincando. Para quê?

Não pode dirigir com uma mudanç

a comum? De pedal?







Naturalmente. Foi como aprendi





falei.










Claro! Quer dizer que não haverá problemas, certo?







Acho que não





respondi, pensando em minha perna esquerda,

que estaria pressionando o pedal, ou tentando pressionar. Só de apertá

-

lo

um pouc

o essa noite, já a fizera doer como o diabo. Esperei que Arnie

demorasse alguns dias, antes de viajar para fora da cidade mas, de algum

modo, era difícil acreditar que aquilo estivesse nas cartas. Tinha de ser

amanhã, pelo fim de semana no máximo, e minha

perna esquerda teria

que se conformar com a situação.





Bem, boa noite, Sr. Pomberton. Eu o

verei amanhã.







Claro. Obrigado por ligar, garoto. Já pensei no que lhe serve. Vai

gostar dela, duvido que não goste. E se não começar a me chamar de

Johnny, vou do

brar o preço.







Claro





falei e desliguei com ele ainda rindo.

Vai gostar dela.

Duvido que não goste.



Ela novamente





eu estava me tornando morbidamente cônscio

daquela forma casual de tratamento... e infernalmente preocupado com

isso.



A seguir, fiz minha

última ligação para os preparativos. Havia

quatro Sykes no catálogo. Encontrei o que procurava, na segunda

tentativa: o próprio Jimmy atendeu. Apresentei

-

me como amigo de Arnie

Cunningham e a voz dele animou

-

se. Gostava de Arnie, que raramente

zombava dele



e jamais "o agredira", como Buddy Repperton tinha feito,

quando trabalhava para Will. Ele quis saber como ia Arnie e, mentindo

novamente, falei que Arnie estava ótimo.







Poxa, isso é bom





disse ele.





Arnie levou algum tempo com o

traseiro em apuros. Eu

sabia que aquela muamba, aqueles cigarros, não

iam dar em boa coisa para ele.







Estou telefonando por causa de Arnie





falei.





Você se lembra

de quando Will foi detido e eles fecharam a garagem, Jimmy?







Claro que me lembro





suspirou Jimmy.





Agora, o co

itado do

Will está morto e fiquei sem emprego. Minha mãe vive dizendo que tenho

que ir para a escola técnica vocacional, mas acho que não dou pra isso. Eu

me daria melhor como porteiro ou coisa assim. Meu tio Fred é porteiro lá

na universidade e disse que

talvez tenha uma vaga, porque o outro

porteiro, bem, ele sumiu, deu o fora e...










Arnie disse que ficou sem seu jogo completo de chaves

-

de

-

boca,

quando fecharam a garagem





interrompi.





Estava atrás de alguns

daqueles pneus velhos, nas prateleiras mais al

tas. Ele deixou o jogo lá,

para que ninguém roubasse.







E ainda está lá?





perguntou Jimmy.







Acho que sim.







Que azar!







Sabe, aquele conjunto de chaves vale uns cem dólares.







Caramba! Aposto como não está mais lá. Aposto como um

daqueles tiras ficou com



ele.







Arnie acha que o jogo continua lá. Só que ele não pode nem

chegar perto da garagem, por causa da enrascada em que se meteu.



Era mentira, mas achei que Jimmy não daria pela coisa e assim

aconteceu. De qualquer modo, meu amor

-

próprio não ficou muito

satisfeito ao aproveitar

-

me assim de um sujeito quase retardado.







Que merda! Bem, olha só, eu vou até lá e descolo as ferramentas.

Claro! Amanhã cedo, a primeira coisa que vou fazer. Ainda tenho minhas

chaves para entrar na garagem.



Deixei escapar um susp

iro de alívio. O que eu queria não era o

imaginário jogo de chaves

-

de

-

boca, mas as chaves de Jimmy.







Aí é que está, Jimmy, eu mesmo gostaria de ir pegar as chaves

para Arnie. Faria uma surpresa a ele, entende? E sei direitinho onde ele as

deixou. Você pod

eria revirar aquilo tudo o dia inteiro e talvez não as

encontrasse.







É mesmo, é verdade. Nunca fui muito bom para encontrar coisas,

era bem como Will dizia. Ele sempre repetia que eu nunca encontraria

meu traseiro, nem usando as duas mãos e uma lanterna.







Que nada, cara, ele falava assim por brincadeira. Bem, a verdade

é que eu gostaria de ir buscar o jogo de chaves de Arnie.







Bem, tá legal.







Pensei que se fosse aí, pegar suas chaves, amanhã... Bem, eu

pegaria o conjunto de Arnie e devolveria as chaves

pra você antes do

anoitecer.










Olhe, só que eu não posso. Will dizia para nunca emprestar

minhas chaves a ninguém e...







Está certo, mas a garagem agora está vazia. Lá só ficaram as

ferramentas de Arnie e aquele ferro

-

velho nos fundos. O Estado logo

estará



colocando a garagem à venda, com tudo que tiver dentro. Se eu for

pegar as ferramentas depois disso, seria como roubar, entende?







Oh! Bem, se for assim, acho que pode ser. Se você trouxer as

chaves de volta.





Então ele acrescentou algo absurdamente toca

nte:





Sabe? Elas são tudo que tenho para me lembrar de Will.







Você as terá de volta. Prometo.







Ok





disse ele.





Se for para Arnie, acho que está legal.





Pouco antes de ir para a cama, agora do andar de baixo, fiz uma

ligação final





para uma sonolenta

Leigh.







Estará tudo terminado, qualquer noite destas. Você topa?







Claro





disse ela.





Acho

que sim. O que planejou, Dennis?



Eu lhe contei, ponto por ponto, quase esperando que ela encontrasse

uma porção de falhas em minha idéia. No entanto, quando termi

nei, Leigh

apenas perguntou:







E se não funcionar?







Caberá a você fazer a lista de honra. Não creio que seja necessário

pintar

-

lhe o quadro.







Não





disse ela.





Acho que não.







Eu deixaria você fora disso, se pudesse





falei.





Acontece que

LeBay desconf

iaria de uma armadilha e, portanto, a isca tem que ser boa.







Eu não admitiria que você me deixasse de fora





disse ela.

Falava com firmeza.





Isto também tem a ver comigo. Eu amei o Arnie.

Amei de verdade. E quando a gente começa a amar alguém... acho que



nunca esquece inteiramente. Não é, Dennis?



Refleti em todos aqueles anos. Os verões de leitura, nadar e jogar

Monopólio,

scrabble,

xadrez chinês. As fazendas de formigas. As vezes em

que eu impedira que o humilhassem, de todos aqueles jeitos que as




crianç

as eliminam um estranho, o garoto que é um pouco esquisito, que

não se afina bem com o grupo. Houve vezes em que eu precisava me

esforçar muito, para impedir que o maltratassem, vezes em que me

perguntara se minha vida não seria mais fácil e melhor se eu a

penas

largasse Arnie de mão, deixando

-

o de lado. Entretanto, assim não seria

melhor. Eu precisava dele, a fim de fazer com que me sentisse bem

comigo





e ele o fizera. Tínhamos jogado limpo sempre e, oh, merda! O

que acontecia agora era muito amargo, sim,

realmente muito mais amargo.







Tem razão





respondi e, de repente, tive que pôr a mão sobre os

olhos.





Acho que não dá mesmo pra esquecer. Eu também amei o Arnie.

E talvez, mesmo a essa altura, ainda não seja também tarde demais para

ele.



Eu gostaria de r

ezar:

Bom Deus, permita que eu salve Arnie, só mais uma

vez. Apenas esta última vez.







Não é a ele que odeio





disse ela, em voz baixa.





Eu odeio

aquele homem, LeBay... nós vimos mesmo aquela coisa hoje à tarde,

Dennis? No carro?







Sim





respondi.





Creio



que vimos.







Odeio os dois: ele e essa maldita Christine. Será para logo?







Falta pouco. Acho que sim.







Está bem. Eu amo você, Dennis.







Também amo você.



E, como se viu, tudo terminou no dia seguinte





sexta

-

feira,

dezenove de janeiro.





A

RME



Eu rodava em



meu Stingray, tarde da noite,



Quando um XKE se aproximou pela direita,



Ele baixou a janela do reluzente e novo Jag,



E me desafiou ali para uma corrida.



Eu disse: "Topo, chapa, minha máquina é legal,



Partimos da esquina de Sunset com Vine,






Mas lhe faço uma



proposta (se você tem peito):



Vamos disputar todo o trajeto...



até a Curva do Morto. "







Jan e Dean





Iniciei aquele longo e terrível dia indo até a casa de Jimmy Sykes em

meu Duster. Eu imaginara poder ter algum problema com a mãe dele,

mas tudo correu be

m. Ela parecia um pouco mais retardada que o filho.

Convidou

-

me para comer

bacon

com ovos (que rejeitei, porque meu

estômago dava nós miseráveis) e ficou falando de minhas muletas,

enquanto Jimmy revirava seu quarto à procura do molho de chaves.

Fiquei de

conversa fiada com a Sra. Sykes, que era aproximadamente do

tamanho do Monte Etna, mas o tempo ia passando e uma angustiante

certeza se criava dentro de mim: Jimmy perdera suas chaves em algum

lugar, e tudo ia por água abaixo, antes mesmo de começar. Ele v

oltou,

abanando a cabeça.







Não consegui encontrar





disse.





Devo ter perdido em algum

lugar. Que droga!



A Sra. Sykes





quase cento e cinqüenta quilos, envolvidos por um

desbotado vestido caseiro, os cabelos presos em rolinhos cor

-

de

-

rosa,

disse então, co

m um jeito prático que achei formidável:







Já procurou em seus bolsos, Jim?



Uma expressão admirada passou pelo rosto de Jimmy. Ele enfiou a

mão no bolso de suas calças verdes de brim e depois, com um sorriso

envergonhado, puxou um molho de chaves. O chavei

ro era um daqueles

vendidos na loja de novidades do Monroeville Mall





um grande ovo

frito de borracha. O ovo estava sujo de graxa.







Oh, aí estão vocês, babaquinhas





disse.







Cuidado com sua linguagem, rapazinho





disse a Sra. Sykes.





Basta mostrar a De

nnis qual a chave que abre a porta, e guarde essa

linguagem suja em sua cabeça.



Jimmy terminou entregando

-

me três chaves, porque não estavam

etiquetadas e ele não podia distinguir qual a que servia. Uma delas abria a

grande porta de aço, de enrolar, da ent

rada, outra abria a porta dos




fundos, que dava para o comprido pátio de carros velhos, e a terceira era

do escritório de Will.







Obrigado





falei.





Devolvo assim que puder, Jimmy.







Tá legal





disse Jimmy.





Diga alô a Arnie por mim.







Eu digo.







Tem cert

eza de que não quer

bacon

com ovos, Dennis?





perguntou a Sra. Sykes.





Há de sobra.







Obrigado





respondi



, mas preciso ir andando.



Eram oito e quinze e as aulas começavam às nove. Arnie geralmente

chegava às oito e quarenta e cinco, segundo me dissera L

eigh. Eu tinha

apenas o tempo indispensável. Ajeitei

-

me nas muletas e fiquei em pé.







Ajude

-

o a sair





ordenou a Sra. Sykes.





Não fiquei aí parado!

Comecei a protestar e ela acenou para que me fosse.







Não vai querer cair em cima do traseiro, antes de che

gar a seu

carro, Dennis. Podia tornar a quebrar a perna.



Riu ruidosamente ao terminar de falar, e Jimmy, a encarnação viva

da obediência, praticamente me carregou até o Duster.





O céu daquele dia era de um gélido cinza pesado e o rádio previa

mais neve par

a o final da tarde. Dirigi através da cidade até o Ginásio de

Libertyville, tomei a via que conduzia ao pátio de estacionamento dos

alunos e estacionei na primeira fila. Não era preciso Leigh me dizer que

Arnie costumava estacionar na última. Eu necessitav

a vê

-

lo, tinha que

jogar a isca diante de seu nariz, mas o queria o mais longe possível de

Christine quando o fizesse. Com ele afastado do carro, o jugo de LeBay

parecia mais fraco.



Fiquei lá sentado dentro do carro, com a chave virada para

ACCESSORY, por

causa do rádio, e contemplei o campo de futebol.

Parecia impossível que já trocara sanduíches com Arnie naquelas

arquibancadas cobertas de neve. Era difícil acreditar que eu mesmo já

correra e suara naquele campo, com vestimentas acolchoadas, capacete e

ca

lças justas, estupidamente convicto de minha invulnerabili

dade física...

talvez até mesmo de minha imortalidade.






Não me sentia mais assim.



Os alunos iam chegando, estacionavam seus carros e

encaminhavam

-

se para o prédio, conversando, rindo e brincando.

Af

undei no assento, não querendo ser reconhecido. Um ônibus

aproximou

-

se da entrada principal e despejou um bando de garotos. Um

pequeno grupo de friorentos rapazes e garotas reuniu

-

se na área de fumar,

onde Buddy desafiara Arnie, naquele dia do outono passa

do. Um dia que,

agora, também parecia terrivelmente distante.



Meu coração disparava no peito e eu me sentia miseravelmente

tenso. Uma parte de mim desejava com ânsia que Arnie não aparecesse.

Então, avistei o familiar vulto vermelho

-

e

-

branco de Christine,

vindo da

School Street, a encaminhar

-

se para a entrada de veículos dos alunos,

rodando a uns uniformes trinta por hora, o cano de descarga expelindo

uma leve fumaça branca. Arnie estava ao volante, usando seu blusão do

colégio. Não olhou para mim; simplesm

ente, dirigiu

-

se até seu costumeiro

lugar, nos fundos do estacionamento, e lá parou o carro.



Fique encolhido e ele nem o verá,

sussurrou aquela traiçoeira e ansiosa

parte de minha mente.

Passará a seu lado, como os outros, e irá embora.



No entanto, em vez

disto eu abri a porta do Duster e passei as

muletas para o lado de fora. Apoiando o peso nelas, icei

-

me e fiquei em pé

sobre a neve compacta do pátio de estacionamento, sentindo

-

me um

pouco como naquele velho filme

Dupla Indenização,

com Fred MacMurray.

Do



colégio, chegou o

rrrinnng

do primeiro sinal, fraco e sem importância

pela distância





Arnie estava mais atrasado do que nos velhos tempos.

Minha mãe costumava dizer que ele era irritantemente pontual. Talvez

LeBay não tivesse sido.



Ele veio em minha dire

ção, com os livros debaixo do braço, a cabeça

baixa, esgueirando

-

se por entre os carros. Passou por trás de um furgão,

saindo temporariamente de meu campo visual, depois tornou a aparecer.

Então ergueu a cabeça e seus olhos se fixaram diretamente nos meus.



Ao me ver, arregalou os olhos e fez uma automática meia

-

volta, em

direção a Christine.







Você se sente meio nu, quando não está ao volante não é?





perguntei.






Ele me encarou. Seus lábios se encurvaram ligeiramente para baixo,

como se houvesse provado algo



de sabor desagradável.







Como vai a sua cona, Dennis?





perguntou.



George LeBay não dissera, mas deixara entrever que seu irmão era

extraordinariamente bom para agredir os outros, através de seus pontos

fracos.



Dei dois passos arrastados para diante, apoi

ado nas muletas,

enquanto ele ficava parado, sorrindo com os cantos da boca para baixo.







Como se sentia você, quando Repperton o chamava de Cara de

Cona?





perguntei.





Gostou tanto que resolveu usar em mais alguém?



Parte dele pareceu ser atingida por aqu

ilo





algo que talvez

estivesse apenas em seus olhos



, mas o sorriso desdenhoso e vigilante

permaneceu nos lábios. Estava frio ali fora. Eu não pusera as luvas e

minhas mãos estavam ficando dormentes, nas barras cruzadas das

muletas. Nossa respiração form

ava pequenas nuvens.







Ou que tal no quinto ano, quando Tommy Deckinger costumava

chamar você de Hálito de Peido?





perguntei, alteando a voz. Ficar

irritado com ele não tinha sido parte do plano, mas agora a raiva estava ali,

sacudindo

-

me por dentro.





Vo

cê gostava? E lembra

-

se de quando Ladd

Smythe era aluno

-

patrulheiro e jogou você no chão? Lembra

-

se de como

tirei o chapéu dele e lhe enfiei dentro das calças? Onde é que você estava,

Arnie? Esse cara, LeBay, só apareceu há pouco tempo. E eu, eu sempre

est

ive presente!



Aquele recuo.novamente. Desta vez ele completou a volta, o sorriso

vacilando, os olhos em busca de Christine, da maneira como procuramos

um ente querido em um apinhado aeroporto ou rodoviária. Ou como um

drogado procuraria o seu fornecedor.







Precisa dela tanto assim?





perguntei.





Cara, você teve os

colhões fisgados direitinho, hein?







Não sei do que está falando





disse ele, em voz rouca.





Você

roubou minha garota. Nada vai modificar isso. Agiu pelas minhas costas...

me enganou... você não



passa de um

bosta,

como todos os outros.





Ele

agora me fitava, de olhos arregalados, doridos e brilhando de raiva.





Pensei que podia confiar em você, mas você é pior do que Repperton ou




qualquer um

deles!





Deu um passo para mim e gritou, com total fúri

a

pela perda:





Você a roubou, seu bosta!



Arrastei

-

me em outro passo para diante com as muletas. Uma delas

escorregou ligeiramente, sobre a neve dura do piso. Éramos como dois

relutantes adversários, aproximando

-

se um do outro.







Não se pode roubar o que f

oi jogado fora





falei.







De que está falando?







Estou talando da noite em que ela sufocou em seu carro. Da noite

em que Christine tentou matá

-

la. Você disse a Leigh que não precisava

dela. Você disse pra ela se foder.







Eu nunca disse isso! É mentira! É u

ma maldita mentira!







Com quem estou falando?





perguntei.







Não interessa!





Seus olhos cinzentos eram enormes, atrás dos

óculos.





Não interessa quem seja o cara com quem esteja falando! Isso

tudo não passa de uma mentira nojenta! Aliás, eu não esperava

outra coisa

daquela cadela asquerosa!



Outro passo para mais perto. O rosto pálido dele era marcado com

acentuadas manchas vermelhas.







Quando escreve seu nome, não parece mais a sua assinatura,

Arnie.







Cale a boca, Dennis!







Seu pai diz que é como ter um

estranho em casa.







Estou avisando, cara!







Por que se preocupa?





perguntei brutalmente.





Eu sei o que

vai acontecer. Leigh também sabe. A mesma coisa que aconteceu a Buddy

Repperton, Will Darnell e a todos os outros. Porque você não é mais Arnie.

Está a

í, não, LeBay? Vamos, mostre

-

se e me deixe vê

-

lo! Já o vi antes. Eu o

vi na véspera do Ano

-

Novo, tornei a vê

-

lo ontem, lá onde vendem frango

frito.

Sei que você está aí, por que não pára de se foder por aí e aparece?



E ele apareceu... mas agora no rosto de



Arnie, e era ainda mais

hediondo do que todas as caveiras e esqueletos jamais imaginados pelas

revistas de horror em quadrinhos. O rosto de Arnie

mudou.

Um rosnado

brotou em seus lábios, como uma rosa putrefata. Então o vi, como devia




ter sido quando jove

m, e quando um carro era tudo que um jovem

precisava ter; tudo o mais se seguiria automaticamente. Vi o irmão mais

velho de George LeBay.



Só recordo uma coisa sobre ele, mas lembro disso muito bem: sua raiva. Ele

estava sempre enraivecido.



Ele caminhou par

a mim, encurtando a distância entre onde estivera

e onde eu estava parado, apoiado nas muletas. Seus olhos eram enevoados,

além de todo alcance. Aquele sorriso de escárnio estava impresso em seu

rosto, como algo marcado a fogo.



Tive tempo de pensar na cica

triz no braço de George LeBay,

descendo do cotovelo ao pulso.

Ele me empurrou, depois voltou e me jogou ao

chão.

Eu podia ouvir aquele LeBay de quatorze anos gritando:

De agora em

diante, fique fora do meu caminho, seu maldito imbecil, fique fora do meu ca

minho,

ouviu?



Era LeBay que eu encarava agora





e LeBay não era dos que se

conformam facilmente em perder. Aliás, ele não aceitava a derrota, isso

nunca.







Lute com ele, Arnie





falei.





Ele já esteve no comando por

tempo demais. Lute com ele, mate

-

o, faça

-

o ficar lon...



Ele esticou o pé e chutou minha muleta direita, arrancando

-

a de

mim. Lutei para permanecer em pé, cambaleei, quase consegui... e então

ele chutou a muleta esquerda. Caí sobre a neve dura e compacta. Ele deu

outro passo e ficou acima de mim,



o rosto, duro e alienado.







Você queria, agora vai ter





disse vagamente.







Certo, certo





arquejei.





Lembra

-

se das fazendas de formigas,

Arnie? Você está aí, em algum lugar? Esse otário sujo nunca teve uma

fodida fazenda de formigas na vida. Nunca teve

um

amigo

em toda a vida!



De repente, aquela dureza se rompeu. O rosto





o rosto dele

se

turvou.

Não sei mais como descrever o que vi. LeBay estava ali, enfurecido

ao ser posto de lado por um motim interno. Então, surgiu Arnie abatido,

cansado, envergonhado



mas, acima de tudo, desesperadamente infeliz.

Em seguida, novamente LeBay, o pé se estirando para chutar

-

me,

enquanto eu jazia caído na neve, rastejando para pegar minhas muletas,

sentindo

-

me impotente, inútil e entorpecido. Depois foi novamente Arnie,




me

u amigo Arnie, jogando para trás o cabelo caído na testa, naquele gesto

familiar e aturdido. Era Arnie, dizendo:







Oh, Dennis... Dennis... me desculpe... sinto muito.







É tarde demais para se desculpar, cara





falei.



Peguei uma muleta, depois a outra. Ergu

i

-

me pouco a pouco,

escorregando duas vezes, antes de me suster novamente sobre elas.

Minhas m

ãos, agora, eram como peças de mobiliário. Arnie não fez

qualquer movimento para ajudar

-

me; ficou recostado contra o furgão, os

olhos arregalados e chocados.







De

nnis, eu não consigo entender





sussurrou.





Às vezes,

parece que nem estou mais aqui. Ajude

-

me, Dennis! Ajude

-

me!







LeBay está aí?





perguntei.







Ele sempre está aqui





grunhiu Arnie.





Oh, Deus, sempre!

Exceto...







O carro?







Quando Christine... quando e

la roda, então, ele está com ela. É a

única vez em que ele... ele...



Arnie silenciou. Sua cabe

ça descambou para um lado. O queixo

rolou sobre o peito, em um giro frouxo. Seu cabelo pendeu para a neve. A

saliva escorreu de sua boca e caiu sobre as botas. En

tão, ele começou a

chorar baixinho e esmurrou o furgão atrás, com as mãos enluvadas.







Vá embora! Vá embora? Vá embooooraaaa!



Por uns cinco segundos, nada aconteceu





nada, exceto o

estremecimento de seu corpo, como se uma cesta de serpentes houvesse

sido

despejada dentro de suas roupas; nada, exceto aquele lento, horrível

girar do queixo sobre o peito.



Pensei que Arnie talvez estivesse vencendo, que conseguia expulsar

o velho e nojento filho da puta. Entretanto, quando ergueu o rosto, Arnie

se fora. Era Le

Bay quem estava ali.







Tudo vai acontecer exatamente como ele disse





falou LeBay.





Não se meta, rapaz. Talvez eu não o atropele.










Vá à Garagem de Darnell esta noite





disse eu. Minha voz estava

rouca, tinha o peito seco como areia.





Nós brincaremos. Le

varei Leigh

comigo. Leve Christine.







Eu é que escolho hora e lugar





replicou LeBay, e sorriu com a

boca de Arnie, mostrando os dentes jovens e fortes de Arnie... uma boca

ainda a anos da indignidade das dentaduras.





Você ignora quando e

onde, mas saberá

... chegado o momento.







Pense bem





falei, como que por casualidade.





Vá à garagem

esta noite... ou eu e ela começaremos a contar tudo amanhã.



Ele riu, um som horrendo e insolente.







E aonde isso os levará? Ao hospício de Reed City?







Oh, claro que não n

os darão crédito de início





repliquei.





Eu

concordo com você nisso. De qualquer modo, essa história de mandarem

as pessoas para um asilo de loucos, assim que começam a falar sobre

fantasmas e demônios... Ha

-

ha, LeBay! Talvez isso acontecesse no seu

tempo

, antes dos discos voadores, de

O



Exorcista

e daquela casa em

Amityville. Só que, hoje, muita gente

acredita

nessa história.



Ele ainda sorria, mas seus olhos me fitaram com uma sombra de

suspeita. Era isso e algo mais. Pensei ter tamb

ém percebido uma prime

ira

fagulha de medo.







E o que você não parece perceber, é quantas pessoas sabem que

existe algo errado.



Seu sorriso vacilou. Claro, ele j

á deveria ter percebido e ficado

preocupado. Entretanto, matar talvez seja uma febre; após certo tempo,

talvez simples

mente seja impossível parar e contar a despesa.







Seja qual for a espécie de estranha e nojenta vida que ainda tenha,

está toda presa àquele carro





falei.





Você sabia disso e planejou usar

Arnie, desde o princípio... exceto que "planejou" é a palavra err

ada. Sim,

porque na verdade você nunca planejou nada, não é mesmo? Apenas

seguiu suas intuições.



Ele emitiu um som que parecia um rosnado e se virou para ir.







De fato, você quer refletir sobre isso





falei quando já se ia.





O

pai de Arnie sabe que há alg

o sujo por trás de tudo isto. O meu também. E

imagino que exista algum policial, em qualquer lugar, querendo ouvir,

o




que for,

sobre como seu amigo Junkins morreu. E tudo leva de volta a

Christine, Christine, Christine... Cedo ou tarde, alguém a levará par

a

aquele compactador nos fundos da garagem, apenas por uma questão de

princípios.



Ele se virou para tr

ás e me fitou, com uma viva mistura de ódio e

medo nos olhos.







Nós falaremos e muitos rirão da gente, não duvido. Entretanto,

tenho dois pedaços de molde

s de gesso com a assinatura de Arnie.

Somente uma não é dele. É sua. Eu vou levá

-

la aos tiras estaduais

e vou

ficar infernizando a vida deles at

é que consigam um especialista em

grafologia para confirmar o que afirmo. Todos vão começar a ficar de olho

em A

rnie. Começarão também a ficar de olho em Christine. Vê o quadro?







Filho, você não me perturba nem um pouquinho.



Seus olhos, contudo, diziam o contr

ário. Eu o atingia, sem dúvida

nenhuma.







Eu lhe digo que será assim





insisti.





As pessoas são racionais

apenas na superfície. Elas atiram sal sobre o ombro esquerdo, quando

derrubam o saleiro, não passam debaixo de escadas; acreditam na

sobrevivência após a morte. E, cedo ou tarde... provavelmente mais cedo,

comigo e Leigh gritando a plenos pulmões... alguém



irá transformar

aquele seu carro em sucata. Em uma lata de sardinhas. E estou quase

apostando que, quando isso acontecer, você irá embora com ele.







Não aposte nisso!





rosnou ele.







Estaremos na garagem esta noite





falei.





Se você for bom,

poderá acaba

r conosco. Bem, isso não significará exatamente o fim, mas

você terá uma certa pausa para respirar... tempo suficiente para dar o fora

da cidade. Entretanto, não creio que seja tão bom, meu chapa. Essa coisa já

foi longe demais. Vamos livrar

-

nos de você!



A

rrastei

-

me de volta para o Duster e entrei no carro. Usei as muletas

mais desajeitadamente que de costume, tentando dar

-

lhe a impress

ão de

estar com maior incapacidade física do que realmente estava. Já o tinha

abalado, mencionando as assinaturas; era temp

o de dar o fora, antes que a

situação piorasse para o meu lado. Havia, no entanto, mais uma coisa.

Algo que, sem a menor dúvida, deixaria LeBay frenético.






Puxei a perna esquerda com as m

ãos, bati a porta e inclinei

-

me para

fora. Fitei

-

o dentro dos olhos e

sorri.







Ela é grande na cama





falei.





Pena que você nunca vá

descobrir.



Com um furioso rugido, ele avan

çou contra mim. Subi o vidro da

janela e apertei o botão que trancava a maçaneta. Então, sem pressa, liguei

o motor, enquanto ele batia os punhos enlu

vados contra o vidro. Seu rosto

se contorcia em terrível rosnado. Nada havia de Arnie agora. Nem o

menor sinal de Arnie, naquele rosto. Meu amigo se fora. Senti uma

angústia sombria, mais profunda do que lágrimas ou medo, mas mantive

aquele lento, insultan

te e canalha sorriso em meu rosto. Depois,

vagarosamente, ergui meu dedo médio para o vidro.







Foda

-

se, LeBay





falei.



Arranquei, deixando

-

o parado no p

átio, sacudido por aquela fúria

incontrolável que seu irmão me contara. Aquilo era o principal com que

e

u contava, para atraí

-

lo à garagem essa noite. Ainda veríamos.





P

ETÚNIA



Algo quente escorria de meus olhos,



Mas encontrei meu bem assim mesmo, aquela noite,



Abracei

-

a com for

ça e demos nosso último beijo...







J. Frank Wilson and the Cavaliers





Dirigi por u

ns quatro quarteir

ões, antes que a reação começasse.

Então, fui obrigado a parar. Tremia horrivelmente. Nem mesmo o

aquecedor, ligado ao máximo, podia acabar com os tremores. Minha

respiração vinha em penosos e pequenos arquejos. Encolhi

-

me para ver se

me

aquecia, mas era

como se nunca mais me aquecesse, nunca mais. O

rosto, aquele rosto horr

ível, e Arnie sepultado em algum ponto do interior,

ele está sempre aqui,

dissera Arnie, sempre, exceto quando... o quê? Quando

Christine rodava por si mesma, é claro.

LeBay não podia estar em dois

lugares ao mesmo tempo. Isto ficava além, mesmo, de seus poderes.






Por fim, fui capaz de recome

çar a dirigir e nem mesmo tive

consciência de que estivera chorando, senão quando olhei para o

retrovisor e vi os círculos molhados

sob meus olhos.



Faltavam quinze para as dez, quando cheguei ao local de trabalho

de Johnny Pomberton. Ele era um homem alto, de ombros largos, usava

botas verdes de borracha e vestia um grosso blus

ão de caça, quadriculado

em preto e vermelho. Um velho chap

éu, com a copa suja de graxa, estava

meio de lado na cabeça calva, enquanto ele estudava o céu.







O rádio disse que vem mais neve por aí. Não tinha certeza de

quando você chegaria, rapaz, mas a trouxe para fora assim mesmo. O que

acha dela?



Firmei as mulet

as debaixo dos bra

ços e saí de meu carro. O sal para

estradas rangia debaixo das ponteiras de borracha das muletas, mas a

caminhada era segura. Estacionado à frente da pilha de lenha de Johnny

Pomberton estava um dos veículos de aparência mais estranha que



eu já

vira na vida. Um cheiro fraco e picante, não exatamente agradável,

emanava dele até onde nós estávamos.



Outrora, muito tempo atr

ás em sua carreira, aquele veículo havia

sido um produto GM





ou, pelo menos, assim anunciava o gigantesco

escudo em seu

nariz. Agora, tornara

-

se um pouco de tudo. Uma coisa,

sem a menor dúvida, continuava sendo: enorme. O topo da grade do

radiador ficaria ainda uma cabeça acima de um homem alto. Para trás e

acima, a boléia se amoldava como um imenso capacete quadrado. Mais

atrás, suportado por dois conjuntos de rodas duplas de cada lado, havia

um corpo longo e tubular, como o de um caminhão

-

tanque de gasolina.



Exceto que eu jamais vira um caminh

ão

-

tanque que, como aquele,

fosse pintado de rosa

-

vivo. A palavra PETUNIA havia s

ido escrita no

flanco, em letras góticas com meio metro de altura.







Não sei o

que

pensar disso





falei.





Para que é?



Pomberton enfiou um cigarro Camel na boca e o acendeu com um

r

ápido roçar da unha coriácea do polegar na ponta de um fósforo de

madeira.







Chupa

-

cocô





disse ele.







O quê?

Ele sorriu.










Vinte mil galões de capacidade





explicou.





Ela é uma piada, é

Petúnia.







Não saquei





respondi, mas começava a entender.



Naquilo tudo havia uma absurda e sombria ironia que Arnie





o

antigo Arnie





teria a

preciado. Quando telefonara, eu havia perguntado a

Pomberton se ele dispunha de um caminhão grande e pesado para

alugar





e aquele era, no momento, o maior veículo em seu pátio. Seus

quatro caminhões basculantes estavam trabalhando, dois em Libertyville e

mais dois em Philly Hill. Pomberton explicara que tinha uma

motoniveladora, mas esta sofrera um colapso nervoso pouco depois do

Natal. Segundo ele, estava tendo um problema dos diabos para manter

seus veículos rodando, desde que a Garagem de Darnell havia

sido

fechada.



Pet

únia era essencialmente um carro

-

tanque, nem mais, nem menos.

Sua função era bombear sistemas de esgoto.







Quanto é que ela pesa?





perguntei a Pomberton. Ele atirou

longe o cigarro.







Vazia ou cheia de merda? Engoli em seco.







Como está a

gora?



Ele jogou a cabe

ça para trás e riu.







Acha que eu ia alugar um veículo carregado?





Ele pronunciou

veícu cargado.





Nada disso, ela está vazia, seca como um osso, e toda

lavada com mangueira. Pode apostar. Ainda um pouco cheirosa, não?



Eu funguei. Si

m, estava cheirosa, certamente.







Podia ser muito pior





falei.





Imagino.







Claro





disse Pomberton.





Fique certo disso.

O pedigree

original

da velha Petúnia se perdeu há muito, mas em seu registro atual diz que

pesa nove toneladas, PBV.







O que signific

a isso?







Peso bruto do veículo





disse ele.





Se eles param a gente na

divisa do Estado, e o veículo pesa mais de nove toneladas, a CCI





Comissão de Comércio Interestadual





fica preocupada. Vazia, ela

provavelmente pesa por aí, não sei bem, coisa de qua

tro a quatro e meia




toneladas. Tem cinco marchas, com um diferencial de duas velocidades, o

que dá a você dez marchas para diante... se puder afundar um pedal.



Ele analisou minhas muletas de alto a baixo, com expressão

duvidosa, e acendeu outro cigarro.







Você

pode

pisar um pedal?







Claro





falei, com ar sério.





Se não for muito duro. Muito bem,

mas por quanto tempo? Essa era a questão.







Bem, isso é lá com você e não quero me meter.





Ele me fitou

com interesse.





Vou lhe dar dez por cento de desconto, se



pagar em

dinheiro, porque em geral não explico as transações em dinheiro a meu tio

favorito.



Remexi minha carteira e encontrei quatro notas de vinte e quatro de

dez.







Quanto foi que disse sobre o aluguel de um dia?







Que tal acha noventa pratas?



Entregue

i noventa a ele. Viera preparado para pagar cento e vinte.







E o que vai fazer com aquele seu Duster? Aquilo nem me passara

ainda pela cabeça.







Será que não posso deixá

-

lo aqui? Só por hoje?







Claro





disse Pomberton.





Pode deixar a semana inteira, que

p

ara mim não faz diferença. De qualquer modo, é melhor botar o carro

nos fundos. Deixe também as chaves, para o caso de precisar manobrá

-

lo.



Manobrei o Duster e o levei para os fundos, onde havia uma selva

de canibalizadas peças de caminhão, apontando fora

da neve alta, como

ossos sob areia branca. Levei quase dez minutos para retornar,

caminhando de muletas. Podia ter vindo mais depressa, mas não queria

abusar da perna esquerda. Preferia poupá

-

la para a embreagem de

Petúnia.



Aproximei

-

me de Petúnia, sentind

o o medo enovelar

-

se em meu

estômago, como uma pequena nuvem negra. Não tinha dúvidas de que

ela conseguiria deter Christine





se esta realmente aparecesse à noite, na

Garagem de Darnell, e se eu conseguisse dirigir o maldito veículo. Nunca

dirigira nada t

ão grande em minha vida, embora no verão passado tivesse




passado algumas horas em um

bulldozer,

e Brad Jeffries me deixasse

experimentar o caminhão de carga umas duas vezes, terminado o trabalho

do dia.



Pomberton ficou parado, em seu blusão xadrez, as mãos



enfiadas

fundo nos bolsos das calças de trabalho, espiando

-

me com analisadores

olhos. Cheguei até o lado do motorista, agarrei a maçaneta e escorreguei

um pouco. Ele deu um ou dois passos em minha direção.







Pode deixar, eu me arranjo.







Certo





disse ele

.



Enfiei novamente a muleta debaixo do braço, a respiração

congelando

-

se em rápidos e pequenos haustos, e abri a porta. Segurando

-

me à maçaneta interna com a mão esquerda e equilibrando

-

me na perna

direita como uma cegonha, atirei as muletas dentro da cabi

ne e depois as

segui. As chaves estavam na ignição, o sistema de mudança impresso na

alavanca. Bati a porta, empurrei o pedal com a perna esquerda





sem

muita dor, até ali, tudo bem





e botei Petúnia em marcha. Seu motor

soava como um campo cheio de carros



de corrida, em Philly Plains.



Pomberton chegou mais perto.







É um pouco barulhenta, não?





gritou.







Se é!





gritei de volta.







Sabe de uma coisa?





berrou ele.





Duvido como o diabo que

você consiga um

I



em sua licença de motorista, rapaz!



Um

I

na licenç

a para dirigir significa que o Estado testou a gente em

grandes caminhões. Eu tive um

A

para motocicletas (para grande desgosto

de minha mãe), mas não um

I

.



Sorri para ele.







Você não checou, porque eu parecia de confiança.







Claro!





ele sorriu também.



Ac

elerei um pouco. Petúnia deu dois altíssimos estouros, que eram

quase tão barulhentos como morteiros.







Incomoda

-

se se eu perguntar para que quer o caminhão? Sei que

não é da minha conta, claro.










Preciso dele para fazer justamente o que é sua função.







Co

mo é? Não entendi.







Quero me livrar de um pouco de merda





respondi.





Fiquei um pouco assustado, na pequena ladeira que partia do local

de trabalho de Pomberton, mas, mesmo inteiramente vazio, aquele grande

veículo rodava bem. Eu me sentia incrivelmente a

lto





capaz de olhar de

cima para os tetos dos carros que passavam por mim. Dirigir pelo centro

comercial de Libertyville me deixava tão em evidência como um filhote de

baleia nadando em um tanque para peixinhos dourados. Não entendia

por que o bombeador d

e esgotos de Pomberton tinha sido pintado

naquele rosa tão vivo. Isso me valeu alguns olhares curiosos.



Minha perna esquerda começava a doer um pouco, mas manejar o

sistema de mudança de Petúnia





com o qual não estava familiarizado



,

naquele trânsito de

pare

-

e

-

siga, me manteve a mente alheia a isso. Uma

dor mais surpreendente se desenvolvia em meus ombros e pelo peito;

originava

-

se, simplesmente, de dirigir Petúnia através do trânsito. O

veículo não era equipado com direção hidráulica, de maneira que o

vo

lante pesava realmente.



Dobrei da Rua Principal para a Walnutt, e entrei no pátio de

estacionamento, atrás da Western Auto. Desci cautelosamente da cabine

de Petúnia, bati sua porta (a esta altura, meu nariz estava quase

acostumado ao fraco odor que ela de

sprendia), ajeitei as muletas sob as

axilas e caminhei para a entrada dos fundos.



Tirei as três chaves da garagem que estavam no chaveiro de Jimmy e

as entreguei na seção de confecção de chaves. Por um e oitenta, consegui

duas cópias de cada. Guardei as ch

aves novas em um bolso e o chaveiro

de Jimmy em outro, já com suas chaves originais. Saí pela porta da frente

para a Rua Principal e fui até o Libertyville Lunch, onde havia telefone

público. Lá no alto, o céu ficara mais cinzento e carregado do que nunca.



Pomberton estava certo. Haveria neve.



Depois que entrei, pedi um café com creme e consegui troco para a

cabine telefônica. Entrei na cabine, fechei a porta desajeitadamente e liguei

para Leigh. Ela respondeu ao primeiro toque.







Dennis! Onde está você?










No Libertyville Lunch. Está sozinha?







Estou. Papai foi trabalhar, e mamãe fazer compras na mercearia.

Dennis, eu... eu quase contei tudo a ela. Comecei a pensar em quando ela

fosse estacionar na A&P, depois atravessando o pátio de estacionamento

e... Sei

lá, o que você disse sobre Arnie ter que deixar a cidade parecia não

ter importância. Claro que faz sentido, mas parecia não importar. Sabe do

que estou falando, não?







Sei





respondi, pensando em como dera carona a Ellie na

véspera, quando ela fora ao Tom

's, embora minha perna estivesse doendo

como o diabo.





Sei exatamente o que quer dizer.







Não posso continuar assim, Dennis. Vou acabar biruta. Ainda

está querendo experimentar a sua idéia?







Ainda





falei.





Deixe um bilhete para sua mãe, Leigh. Diga a

e

la que precisou sair por algum tempo. Não explique mais nada. Se você

não chegar a tempo do jantar, seus pais certamente telefonarão para

minha casa. Talvez eles decidam que nós dois fugimos.







Até que não seria má idéia





disse ela, e riu de um jeito que

me

deixou arrepiado.





Vou até aí.







Ei, mais uma coisa. Existe algum analgésico em sua casa? Darvon?

Alguma coisa assim?







Sobrou um pouco de Darvon, da vez que papai distendeu um

músculo nas costas





disse ela.





É a sua perna, Dennis?







Está doendo um p

ouco.







Um pouco, como?







Está tudo bem.







Nada de muito grave?







Tudo legal. Aliás, depois desta noite, darei a ela um bom repouso,

certo?







Certo.







Venha para cá, o mais depressa que puder.








Ela chegou quando eu pedia uma segunda xícara de café. Usava

u

ma jaqueta de pele com franjas e

jeans

desbotados. Os

jeans

estavam

enfiados em botas surradas. Ela conseguia parecer

sexy

e prática ao

mesmo tempo. Várias cabeças se viraram quando entrou.







Está muito bonita





falei e beijei

-

lhe a têmpora.



Ela me entrego

u um frasco de cápsulas cinzentas e rosadas.







Pois você não me parece muito animado, Dennis. Tome.



A garçonete, uma mulher de seus cinqüenta anos, com cabelos

grisalhos, chegou com meu café. A xícara assentou placidamente, uma

ilha em uma pequena poça mar

rom no pires.







Por que não estão na escola, garotos?





perguntou ela.







Tivemos uma dispensa especial





respondi sério. Ela me encarou

com firmeza.







Café, por favor





pediu Leigh, tirando as luvas. Quando a

garçonete se afastou do balcão, com uma audível



fungadela, Leigh se

inclinou para mim e disse:





Não seria engraçado se fôssemos apanhados

em flagrante pelo inspetor de alunos?







Hilariante





falei.



Pensei que, apesar da radiância que o frio lhe emprestara, Leigh não

estava parecendo tão bem assim. Ali

ás, creio que nenhum de nós

ostentaria sua melhor aparência enquanto aquilo tudo não terminasse.

Havia pequenas linhas de tensão em torno de seus olhos, como se ela

houvesse dormido mal à noite.







Muito bem, o que faremos?







Logo sairemos daqui





falei.





Espere até ver sua carruagem,

madame.









Meu Deus!





exclamou Leigh, olhando para a magnificência rosa

viva de Petúnia. Seu vulto agigantava

-

se silenciosamente no pátio de

estacionamento da Western Auto, miniaturizando um furgão Chevrolet de

um lado e um V

olkswagen do outro.





O que é isto?







Um chupa

-

cocô





respondi impassível.






Ela olhou para mim, perplexa... mas então se dobrou em um acesso

de gargalhadas histéricas. Era bom vê

-

la rir assim. Quando lhe havia

contado meu encontro com Arnie, aquela manhã, n

o pátio de

estacionamento dos alunos, as linhas de tensão em seu rosto ficaram mais

e mais tensas e os lábios haviam perdido a cor, tanto os comprimira.







Bem, parece um tanto ridículo





falei olhando para Petúnia.







Um comentário bastante

suave



replicou e

la, ainda rindo e

soluçando



, mas fará o trabalho, se é que alguma coisa o fará. É, acredito

que dará conta do recado. Aliás... está até apropriada, não é?







Foi o que também pensei





concordei.







Bem, vamos entrar





disse ela.





Estou com frio. Entrou na



cabine à minha frente, franzindo o nariz.







Argh!





exclamou. Eu sorri.







Vai acabar se acostumando com o cheiro





falei.



Estendi

-

lhe minhas muletas e escalei penosamente a subida até o

volante. A dor em minha perna esquerda amenizara para o antigo lateja

r

monótono, substituindo as séries de agudas ferroadas de antes. Eu havia

tomado dois Darvon no restaurante.







Acha que sua perna vai agüentar, Dennis?







Terá que agüentar





respondi e bati a porta.





C

HRISTINE



Como falei pro



meu amigo, porque estou



sempre

falando: John, eu



disse, mas seu nome era



outro, que escuridão em



volta da gente, o que



podemos fazer contra






isso, ou melhor, a gente



precisa comprar um carro grande,



dirija, ele disse, pelo



amor de Deus, vê lá



por onde tu tá indo.







Robert Creeley





Eram m

ais ou menos onze e meia quando deixamos o pátio de

estacionamento da Western Auto. Os primeiros flocos de neve

começavam a cair. Dirigi pela cidade, rumo à casa dos Sykes, fazendo a

mudança com mais facilidade, agora que o Darvon começava a agir.



A casa e

stava às escuras e fechada. A Sra. Sykes devia estar no

trabalho, e Jimmy talvez recebendo sua pensão do fundo de desemprego,

ou coisa assim. Leigh encontrou um envelope amassado em sua bolsa,

riscou seu endereço sobrescritado e escreveu

Jimmy Sykes à

fren

te, em sua

bela e inclinada caligrafia. Colocou o chaveiro de Jimmy dentro do

envelope, dobrou a aba e o enfiou pela fenda para cartas, na porta da

frente. Enquanto fazia isso, deixei Petúnia em ponto morto, dando

descanso à minha perna.







E agora?





pergu

ntou ela, tornando a entrar na cabine.







Falta um telefonema





respondi.





Encontrei uma cabine telefônica perto do cruzamento da JFK Drive

com Crescent Avenue. Desci cautelosamente da boléia do caminhão,

segurando

-

me até que Leigh me passasse as muletas. E

ntão, caminhei com

cuidado para o telefone, através da neve que espessava. Vista pelo vidro

sujo da cabine telefônica, além da neve que caía em redemoinhos, Petúnia

parecia um estranho dinossauro cor

-

de

-

rosa.



Liguei para a Universidade Horlicks e a telefon

ista transmitiu a

ligação para o gabinete de Michael. Arnie me dissera, certa vez, que seu

pai tinha preguiça de deixar o gabinete para almoçar e que preferia comer

lá mesmo, levando o almoço em um saco de papel. Então, quando a

chamada foi atendida ao seg

undo toque, eu o abençoei pela informação.










Dennis! Tentei pegá

-

lo em casa! Sua mãe disse...







Para onde ele vai?



Senti um frio no estômago. Só então





naquele exato momento





é

que tudo começava a parecer inteiramente real para mim e fiquei

pensando que

a louca confrontação no pátio do colégio caminhava para

um desfecho.







Como soube que ele ia viajar? Tem que me contar e...







Agora não há tempo para perguntas e, de qualquer modo, eu não

saberia responder a nenhuma. Para onde ele vai?



A voz de Michael soo

u lentamente:







Ele e Regina irão à Penn State hoje à tarde, logo após as aulas.

Arnie telefonou para ela de manhã, perguntando se podia acompanhá

-

lo.

Disse que...





Michael fez uma pausa para pensar.





Disse que caíra em

si subitamente. Que pensou nisso h

oje cedo, quando ia para o colégio, foi

uma idéia repentina, de que poderia perder a universidade se não tomasse

providências definitivas sobre isso. Já decidira que a Penn State era a

melhor, e queria que Regina o acompanhasse, para falar com o deão da

Fa

culdade de Artes e Ciências, bem como com algumas pessoas dos

Departamentos de História e Filosofia.



A cabine estava fria. Minhas mãos começavam a entorpecer. Leigh

estava lá no alto, na casa de navegação de Petúnia, espiando ansiosamente

para mim.

Você sa

be como arranjar as coisas, Arnie,

pensei. É

bem um jogador

de xadrez.

Ele manipulava a mãe, puxando os cordões e fazendo

-

a dançar.

Senti certa pena dela, mas não tanta como deveria ter sentido. Quantas

vezes Regina havia sido a manipuladora, fazendo outro

s dançarem em

seu palco, como em um teatrinho de marionetes? Agora, enquanto ela

estava meio angustiada, com medo e vergonha, LeBay acenara diante de

seus olhos com uma coisa





a única





que, sem sombra de dúvida, a

faria sair correndo: a possibilidade de

que a situação pudesse voltar ao

normal.







E isto faz sentido para você?





perguntei a Michael.







É claro que não!





explodiu ele.





Também não faria sentido

para ela, se Regina estivesse com as idéias em ordem. Do jeito como são

hoje as admissões à faculd

ade, a Penn State só o matricularia em julho, se

ele tivesse dinheiro para a anuidade e os pontos suficientes exigidos para




sua entrada. Arnie tem as duas coisas. Ele falava como se estivéssemos

nos anos 50 e não nos 70.







Quando é que eles partem?







Ela i

rá encontrá

-

lo no colégio, após a sexta aula. Pelo menos, foi o

que disse, quando telefonou para mim. Arnie pedirá dispensa das outras

aulas.



Aquilo significava que eles estariam deixando Libertyville em

menos de uma hora e meia. Portanto, fiz a última per

gunta, embora já

soubesse a resposta:







E eles não irão em Christine, certo?







Certo. Irão na camioneta. Regina estava delirante de alegria,

Dennis.

Delirante.

Isso de Arnie querer ir com ela a Penn State... bem,

parece coisa inspirada. Nem cavalos selvage

ns impediriam Regina de

aproveitar semelhante chance. O que está acontecendo, Dennis?

Por favor!







Contarei tudo amanhã





respondi.





É uma promessa. Palavra.

Enquanto isso, faça uma coisa para mim. Pode ser um assunto de vida e

morte para minha família e

a família de Leigh Cabot. Você...







Oh, meu Deus!





exclamou ele, em voz rouca. Falava no tom do

homem que acaba de entrever a luz.





Ele esteve fora, todas as vezes...

exceto quando o rapaz Welch foi morto. Então, Arnie estava... Regina o

viu dormindo e t

enho certeza de que não mentia sobre isso... Dennis,

quem tem dirigido aquele carro?

Quem está usando Christine para matar

pessoas, quando Arnie não está aqui?



Quase lhe contei, mas o frio era intenso na cabine telefônica e minha

perna começava a doer nova

mente. Por outro lado, minha resposta

suscitaria perguntas, dúzias de perguntas. No fim, talvez a única coisa que

eu conseguisse fosse sua recusa em acreditar.







Ouça, Michael





falei, com a maior circunspecção. Por um

estranho momento, senti

-

me como Miste

r Rogers, na TV.

Um grande carro

dos anos 50 irá liquidá

-

los, moças e rapazes... Pode soletrar Christine? Eu sabia

que poderia!





Você tem que ligar para meu pai e para o pai de Leigh. Faça

com que as duas famílias se reúnam na casa de Leigh.





Eu estava

p

ensando em tijolos, bons e sólidos tijolos.





Creio que você devia ir para

lá também, Michael. Fiquem todos juntos, até que eu e Leigh cheguemos

lá ou telefonemos. Tem que dizer a eles, de minha parte e de Leigh: não




devem sair de dentro de casa, depois de

...





Fiz os cálculos: se Arnie e

Regina deixassem o ginásio às duas, quanto tempo demoraria para que o

álibi dele fosse a toda prova? Depois de quatro horas desta tarde. Depois

das quatro, nenhum de vocês deve ir à rua. A qualquer rua.

Em hipótese

alguma.







Dennis, eu não posso, simplesmente...







Tem que poder





falei.





Faça tudo para convencer meu velho e

então os dois procurem convencer os Cabots. E fique longe de Christine,

Michael.







Eles partirão diretamente da escola





disse Michael.





Arnie

acha qu

e o carro poderá ficar no pátio de estacionamento dos alunos.



Eu podia sentir novamente em sua voz a certeza da mentira. Depois

do que acontecera no outono passado, Arnie seria tão capaz de abandonar

Christine em um estacionamento público, como aparecer nu



para a aula

de Cálculos.







Está bem





respondi



, mas se, por acaso, você olhar pela janela

e a vir na entrada para carros, fique longe. Entendeu?







Entendi, mas...







Telefone primeiro para meu pai. Prometa.







Está bem, eu prometo, Dennis, mas...







Obriga

do, Michael.



Desliguei. Minhas mãos e os pés estavam dormentes de frio, mas eu

tinha a testa pegajosa de suor. Empurrei a porta da cabine telefônica,

abrindo

-

a com a ponteira de uma muleta, e caminhei penosamente até

Petúnia.







O que disse ele?





perguntou



Leigh.





Prometeu?







Sim





respondi.





Prometeu, e meu pai fará com que fiquem

todos juntos. Tenho certeza absoluta disso. Se Christine for atrás de

alguém esta noite, irá atrás de nós.







Certo





disse ela.





Ainda bem.



Liguei o motor de Petúnia e saímos

dali. O palco estava montado





da melhor maneira que eu pudera, afinal





e agora nada mais podia fazer,

senão esperar e ver o que aconteceria.








Rodamos através da cidade em direção à Garagem de Darnell, por

entre uma neve ligeira que caía insistentemente.

Manobrei para o pátio de

estacionamento, pouco depois de uma hora daquela tarde. A edificação

comprida e desajeitada, com suas laterais de aço corrugado, estava

inteiramente deserta, e as rodas enormes de Petúnia afundaram

-

se na

neve que se amontoara, até

pararmos diante da porta principal. Os avisos

pregados àquela porta ainda eram os mesmos de muito antes, daquela

longínqua tarde de agosto, quando Arnie levou Christine para lá, pela

primeira vez: POUPE SEU DINHEIRO! SEU KNOW

-

HOW, NOSSAS

FERRAMENTAS!

Vaga

na Garagem, Alugada por Semana, Mês ou Ano

e

BUZINE PARA ENTRAR, mas o que realmente significava alguma coisa

era o novo aviso, contra a janela escura do escritório: FECHADO ATÉ

SEGUNDA ORDEM. A um canto da fachada nevada, havia um velho

Mustang amassado,

com aquelas portas adoradas pelos fanáticos dos anos

60. Agora, jazia silencioso e inútil, sob uma roupagem de neve.







Isso dá calafrios





disse Leigh, em voz baixa.







Também acho.





Entreguei

-

lhe as chaves que mandara fazer na

Western Auto, aquela manhã.







Uma delas deve dar.



Ela pegou as chaves, saiu e caminhou até a porta. Fiquei de olho nos

dois espelhos retrovisores, enquanto Leigh manipulava a fechadura, mas

nenhum de nós parecia estar chamando uma atenção indevida. Suponho

que haja certa psicologia e

nvolvida quando se vê um veículo tão grande e

evidente







isso torna difícil de engolir a idéia de algo clandestino ou ilegal.



Leigh deu um puxão súbito na porta, levantou

-

se, tornou a puxar e

então voltou ao caminhão.







Consegui girar a chave, mas não cons

igo levantar a porta





explicou.





Acho que ficou congelada no chão, grudada pela neve.



Era só o que faltava, pensei. Formidável. Nada daquilo seria

conseguido com facilidade.







Sinto muito, Dennis





disse ela, parecendo ler em meu rosto.







Ora, está tudo

bem





falei.






Abri a porta do motorista e executei outra de minhas cômicas saídas

deslizantes.







Tome cuidado





disse ela, ansiosa, caminhando a meu lado, com

o braço em minha cintura, enquanto eu caminhava cautelosamente sobre

as muletas, através da neve a

té a porta.





Lembre

-

se de sua perna.







Sim, mamãe





respondi, sorrindo um pouco.



Fiquei de lado, diante da porta, de maneira a abaixar

-

me para a

direita, mantendo o peso fora da perna em más condições. Inclinado para

a neve, com a perna esquerda no ar, a

mão esquerda aferrada às muletas, a

direita agarrando a maçaneta da porta de aço de enrolar, eu devia parecer

um contorcionista de circo. Puxei, e senti a porta ceder um pouco... mas

não o suficiente. Leigh tinha razão: ela congelara bastante na parte infe

rior.

Era possível ouvir

-

se o gelo estalando.







Agarre também e ajude

-

me





pedi.



Leigh colocou as duas mãos sobre a minha direita e puxamos juntos.

O som estalante ficou um pouco mais alto, porém o gelo ainda não cedera

de todo, na base da porta.







Quase c

onseguimos





falei. Minha perna direita latejava

dolorosamente e o suor me escorria pelo rosto.





Vou contar. Quando

disser três, dê tudo que puder. Certo?







Certo





disse ela.







Um... dois...

três!



Aconteceu que a porta ficou livre do gelo de repente, com



absurda,

incrível facilidade. Pareceu voar para cima em seus trilhos e cambaleei

para trás, minhas muletas escapando. A perna esquerda se dobrou sob

meu corpo e caí sobre ela. A neve alta amaciou um pouco a queda, mas

ainda assim senti a dor, uma espécie

de relâmpago prateado, que pareceu

disparar para cima, partindo da coxa e fazendo todo o trajeto até as

têmporas, antes de retornar ao ponto inicial. Trinquei os dentes para não

gritar e só a custo me contive. Então, Leigh ficou de joelhos na neve, a

meu l

ado, o braço em torno de meus ombros.







Dennis! Você está bem?







Ajude

-

me a ficar em pé.






Ela precisou fazer a maior parte do esforço e ambos estávamos

ofegando como corredores quando consegui novamente levantar

-

me e

ajeitar as muletas debaixo dos braços. A

gora, eu precisava realmente delas.

A perna esquerda me torturava.







Você não conseguirá pisar na embreagem daquele caminhão,

Dennis. Não agora...







Conseguirei. Ajude

-

me a voltar, Leigh.







Você está branco como um fantasma! Acho que devemos

procurar um mé

dico.







Negativo. Ajude

-

me a voltar.







Dennis...!







Leigh, ajude

-

me a voltar!



Fizemos a caminhada de volta até Petúnia, centímetro por

centímetro, deixando para trás pegadas arrastadas e desajeitadas sobre a

neve. Estendi os braços, aferrei

-

me ao volante e



icei o corpo, roçando de

leve no estribo com a perna direita... e ainda assim, no fim, Leigh teve que

ficar atrás, colocar as duas mãos em meus fundilhos e empurrar para cima.

Afinal me vi ao volante de Petúnia, acalorado e tremendo de dor. Minha

camisa e

stava molhada de neve derretida e suor. Até aquele dia de janeiro

de 1979, eu ignorava que dor em certo grau pode fazer

-

nos suar.



Tentei empurrar a embreagem com a perna esquerda e aquele raio

prateado de dor surgiu novamente, fazendo

-

me jogar a cabeça par

a trás e

trincar os dentes, até que diminuiu um pouco.







Vou até o fim da rua, encontrar um telefone e chamar um médico,

Dennis.





O rosto de Leigh estava pálido e assustado.





Você fraturou a

perna novamente, não foi? Quando caiu?







Não sei





respondi





m

as você não fará nada disso, Leigh. Serão

os seus pais ou os meus, se não terminarmos com isso agora. Você sabe

que é assim. LeBay não vai parar. Ele tem um desejo de vingança

superdesenvolvido. Não vamos parar agora!







Você não pode dirigir isso!





gemeu e

la.



Ergueu os olhos para a boléia, agora chorando. O capuz de sua

jaqueta havia caído para trás, em nosso esforço mútuo para colocar

-

me no




assento do motorista, onde agora me encontrava, em total inutilidade. Eu

podia ver um chuveiro de flocos de neve em s

eu cabelo louro

-

escuro.







Vá lá dentro





falei.





Veja se encontra uma vassoura ou um

cabo comprido de madeira.







De que vai adiantar?





perguntou ela, chorando ainda mais.







Consiga o que estou pedindo, e então veremos.



Ela penetrou na goela escura da por

ta aberta e desapareceu de vista.

Apalpei a perna e fiquei gelado de terror. Se realmente tornara a fraturá

-

la,

havia uma forte possibilidade de ficar usando um calcanhar artificial pelo

resto da vida. Entretanto, não sobraria tanta vida assim, caso não

pu

déssemos dar um fim em Christine. Bem, aquela idéia nada tinha de

animadora.



Leigh voltou, com uma vassoura de cerdas inclinadas.







Acha que serve?





perguntou.







Para nos levar até lá dentro, sim. Então, veremos se encontramos

coisa melhor.



O cabo era do

tipo de rosca. Segurei

-

o, torci

-

o e joguei para um lado

a extremidade com as cerdas. Mantendo

-

o na mão esquerda, ao longo do

lado do corpo





apenas mais uma maldita muleta



, empurrei a

embreagem com ele. Conseguiu firmar

-

se por um instante no pedal,

depoi

s escorregou.



A embreagem saltou de volta. O topo do cabo quase me bate na boca.

Vai indo bem, Guilder. Enfim, não havia outro jeito.







Vamos, entre





falei.







Dennis, você tem certeza?







Tanta quanto posso ter





respondi.



Ela me olhou por um momento, depo

is assentiu.







Está bem.



Deu a volta para o lado do passageiro e entrou. Bati minha porta,

apertei a embreagem de Petúnia com o cabo de vassoura e engrenei em

primeira. Eu tinha a embreagem pressionada pela metade, e Petúnia

começava a rodar para diante, q

uando o cabo de vassoura tornou a




escorregar. O tanque

-

séptico rodou para dentro da Garagem de Darnell

com uma série de corcoveios bruscos e, quando afundei o pé direito no

freio, o motor afogou. Estávamos com a maior parte do veículo no interior.







Precis

o de alguma coisa com uma base maior, Leigh





falei.





Este cabo de vassoura não funciona.







Vou ver o que encontro.



Ela saiu e começou a caminhar pelos cantos da garagem,

procurando. Olhei em torno.

Dava calafrios,

Leigh tinha dito, e estava com

razão. Os



únicos carros remanescentes eram quatro ou cinco velhos

soldados, feridos tão gravemente que ninguém se preocupou em reclamá

-

los. Todos os espaços em diagonal que restavam, com seus números em

tinta branca, estavam vazios. Olhei para o boxe vinte e depois



desviei os

olhos.



As altas prateleiras de pneus também estavam quase vazias.

Sobravam alguns, carecas, colocados uns sobre os outros, como

gigantescos biscoitos escurecidos pelo fogo, mas era tudo. Um dos dois

elevadores estava parcialmente erguido, com u

m aro de roda preso sob ele.

O diagrama para alinhamento das rodas dianteiras, na parede da direita,

reluzia fracamente em branco e vermelho, os dois alvos para os faróis

dianteiros assemelhando

-

se a olhos injetados. E sombras, sombras por

toda parte. Mais



acima, aquecedores em forma de enormes caixas

apontavam suas persianas para cá e para lá, como sinistros bastões

enferrujados.



Tudo ali dentro dava a impressão de um lugar morto.



Leigh usara outra das chaves de Jimmy para abrir o escritório de

Will. Eu po

dia vê

-

la andando de um lado para outro, através da janela que

Will usava para vigiar seus fregueses... aqueles "Zés" trabalhadores que

tinham de manter seus carros rodando





para que pudessem blablablá.

Ela apertou alguns interruptores e as luzes fluoresc

entes do teto se

acenderam em gélidas fileiras brancas. Isto significava que a companhia

de eletricidade não havia cortado o fornecimento. Eu precisava fazê

-

la

apagar as luzes novamente





não podíamos nos arriscar a chamar a

atenção





mas, pelo menos, terí

amos algum calor.



Ela abriu outra porta e desapareceu de vista temporariamente. Olhei

para meu relógio. Era uma e meia da tarde.






Leigh voltou, e a vi segurando um escovão de cabo, com uma

grande esponja amarela na extremidade inferior.







Acha que pode serv

ir?







Está perfeito





falei.





Entre, garota. Vamos trabalhar.



Ela tornou a subir para a boléia, e empurrei o pedal da embreagem,

usando o esfregão.







Muito melhor





falei.





Onde o encontrou?







No banheiro





disse ela, e franziu o nariz.







A coisa estava

ruim, lá dentro?







Imundo, fedendo a charuto e com uma pilha de livros bolorentos

a um canto. Do tipo vendido naquelas lojinhas ordinárias.



Então, era isso o que Darnell deixara para trás, pensei: uma garagem

vazia, uma pilha de livros pornográficos e um f

edor

-

fantasma de charutos.

Tornei a sentir frio e pensei que, por minha vontade, veria aquele lugar

nivelado por um

buildozer,

e depois aterrado. Não podia afastar a

impressão de que era uma espécie de sepultura sem marca





o local onde

LeBay e Christine h

aviam matado a mente de meu amigo e se apossado de

sua vida.







Mal posso esperar para me ver fora daqui





disse Leigh, olhando

nervosamente em torno.







É mesmo? Pois eu começo a gostar. Estava pensando em me

mudar para cá.





Acariciei

-

lhe o ombro e fitei s

eus olhos

profundamente.





Podemos iniciar uma família





sussurrei.



Ela ergueu o punho fechado.







Quer que eu comece com um nariz sangrando?







Não, de modo nenhum. Afinal, eu também mal posso esperar

para dar o fora daqui. Dirigi o resto que faltava de Pet

únia para dentro da

garagem. Podia manejar bastante bem a embreagem, usando o esfregão...

em primeira pelo menos. O cabo tinha uma tendência e envergar e eu teria

preferido algo mais grosso, mas aquilo tinha que servir, até podermos

encontrar qualquer cois

a melhor.







Precisamos apagar as luzes novamente





falei, desligando o

motor.





As pessoas erradas poderiam vê

-

las.






Leigh saiu e as apagou, enquanto eu manobrava Petúnia em um

amplo círculo, para então dar marcha à ré cautelosamente, até quase

encostar a t

raseira na janela entre a garagem e o escritório de Darnell.

Agora, o enorme focinho do veículo apontava diretamente para a porta

aberta da fachada, pela qual havíamos entrado.



Com as luzes apagadas, as sombras apoderaram

-

se de tudo

novamente. A claridade

que vinha pela porta aberta era fraca, amortecida

pela neve, alvacenta e sem força. Espalhava

-

se pelo concreto rachado e

sujo de graxa, como uma cunha, morrendo simplesmente a meio caminho

através do piso.







Estou com frio, Dennis





gritou Leigh, do escrit

ório de

Darnell.





Ele marcou os interruptores para o aquecimento. Posso ligar?







Vá em frente!





gritei para ela.



Pouco depois, a garagem sussurrava com o som dos aquecedores.

Recostei

-

me no assento, passando de leve as mãos sobre a perna esquerda.

O teci

do de meu

jeans

se estirava maciamente sobre a coxa, liso e sem uma

ruga. A filha da mãe estava inchando. E doía. Céus, como doía!



Leigh voltou e subiu para meu lado. Repetiu o quanto era terrível o

meu aspecto e, por algum motivo, minha mente se rebelou,

levando

-

me a

evocar a tarde em que Arnie levara Christine para a garagem, o marido da

rainha do

be

-

bop

gritando para ele tirar aquele lixo da frente de sua casa e

Arnie me dizendo que o cara era um fanático por Robert Deadford.

Recordei como havíamos rido

escondido. Fechei os olhos, contra a

ferroada das lágrimas.





Sem mais nada a fazer além de esperar, o tempo custou a passar. O

relógio marcou quinze para as duas, depois duas horas. Lá fora, a neve se

intensificara um pouco, mas não demasiado. Leigh desceu



da boléia e

apertou o botão que fazia descer a porta da entrada. Aquilo tornou o

interior ainda mais sombrio.



Ela voltou, tornou a subir e comentou:







Há um dispositivo engraçado, ao lado da porta, dá para ver?

Parece o dispositivo eletrônico de abrir gar

agem que nós tínhamos,

quando moramos em Weston.






Sentei

-

me ereto, repentinamente.







Oh!





gemi.





Meu Deus!







O que foi?







Então é isso! Um dispositivo para abrir a porta da garagem! E há

um transmissor, um dispositivo semelhante, em Christine. Arnie o

men

cionou para mim, na noite de Ação de Graças. Você tem que quebrá

-

lo, Leigh. Use o cabo do esfregão.



Assim, ela tornou a descer, ergueu o cabo do esfregão e ficou abaixo

do dispositivo da célula fotoelétrica, olhando para cima e batendo nele

com o cabo. Par

ecia uma mulher tentando matar um besouro quase no

teto. Afinal, foi recompensada com um estalido de plástico e trincar de

vidro.



Ela retornou lentamente, deixou o esfregão a um lado e subiu para a

boléia.







Não acha que era tempo de me contar o que tem em



mente,

Dennis?







O que quer dizer?







Você sabe





disse ela, e apontou para a porta fechada. Cinco

janelas quadradas, em uma fila de três quartos de sua altura, para cima,

permitiam a entrada de uma claridade mínima, através dos vidros

sujos.





Quando escu

recer, você pretende abrir a porta outra vez, não é?



Eu admiti. Em si, a porta era de madeira, mas reforçada com tiras

articuladas de aço, como a porta interna de um elevador antigo. Permitiria

a entrada de Christine mas, uma vez fechada, o carro não conse

guiria

despedaçá

-

la, para sair novamente. Pelo menos, era o que eu esperava.

Senti um arrepio, ao pensar em como havíamos deixado passar o detalhe

do elevador eletrônico da porta.



Abrir a porta ao escurecer, sim. Deixar Christine entrar, sim. Fechar

a port

a novamente. Então, eu usaria Petúnia para destruí

-

la até a morte.







Está bem





disse Leigh.





Uma armadilha. No entanto, quando

ela... quando ele entrar, como fará para tornar a fechar a porta e manter o

carro preso aqui dentro? Talvez haja um botão no es

critório de Darnell,

mas eu não o vi.










Que me conste, lá não há nenhum





falei.





Portanto, você terá

que ficar junto à porta, para apertar o botão que a fecha.





Apontei. O

botão manual ficava ao lado direito da porta, meio metro abaixo da caixa

do dispo

sitivo elétrico.





Você se encostará à parede, fora de vista.

Quando Christine entrar... sempre se supondo que entre... você apertará o

botão que faz a porta descer e ficará de lado rapidamente. A porta desce. E,

bam! A ratoeira está fechada.



Leigh ficou s

éria.







Fechada para Christine, mas para você também. Nas palavras do

imortal Wordsworth, um erro.







Isso é de Coleridge, não de Wordsworth. Não há outro jeito,

Leigh. Se você ainda estiver lá, quando aquela porta descer, Christine irá

atropelá

-

la. Mesmo q

ue houvesse um botão no escritório de Darnell, bem...

Você viu no jornal o que aconteceu com a parede lateral da casa dele.



O rosto dela era obstinado.







Estacione perto do interruptor. Então, quando ela entrar, eu estico

o braço pela janela e aperto o bot

ão que baixa a porta.







Se estacionar lá, ficarei à vista. E se este tanque ficar à vista,

Christine não entrará.







Não estou gostando disso!





explodiu Leigh.





Não quero

deixá

-

lo sozinho! É como se você me enganasse!



De certa forma, era justamente o que

eu tinha feito e, por mais

válido que fosse, hoje não faria a mesma coisa. Naquela época, entretanto,

eu tinha dezoito anos, e não há maior porco

-

chauvinista do que um porco

-

chauvinista de dezoito anos. Passei um braço por seus ombros. Ela resistiu

por um

momento, rígida, mas depois amoleceu.







Não há outra maneira





falei.





Se não fosse por minha perna...

ou se você pudesse dirigir um veículo de mudança padronizada...



Dei de ombros.







Tenho medo por você, Dennis. Eu quero ajudar.







Já está ajudando de sob

ra. Você é quem ficará realmente em

perigo, Leigh... Estará fora da boléia, no chão, quando ela entrar. E eu vou

ficar sentado aqui dentro, para esfacelar a cadela, fazê

-

la em pedaços.










Só espero que seja mesmo assim





disse ela. Pousou a cabeça em

meu om

bro. Acariciei

-

lhe os cabelos. Esperamos.



Em imaginação, eu podia ver Arnie saindo do edifício principal do

Ginásio de Libertyville, com os livros debaixo do braço. Via Regina

esperando por ele, na camioneta dos Cunningham, radiante de felicidade.

Arnie so

rria remotamente e se submetia ao seu abraço. Arnie, você tomou

a decisão acertada... não sabe o quanto eu e seu pai estamos aliviados, o

quanto ficamos

felizes.

Sim, mamãe. Quer dirigir, querido? Não, dirija você,

mamãe. Está bem.



Eles dois partiriam para



a Penn State, através da neve ligeira, com

Regina dirigindo, Arnie no banco do passageiro, as mãos entrelaçadas

rigidamente sobre o colo, o rosto pálido e sério, livre das espinhas.



Enquanto isso, no pátio de estacionamento dos alunos, no Ginásio

de Liber

tyville, Christine esperava silenciosamente, na entrada para carros.

Esperava que a neve caísse mais intensamente. Esperava o escurecer.



Às três e meia mais ou menos, Leigh atravessou o escritório de

Darnell para usar o banheiro e, enquanto esteve ausente,



engoli em seco

mais duas cápsulas de Darvon. Minha perna era um pesado e firme

tormento.



Pouco depois disso, perdi a noção coerente do tempo. Acho que o

analgésico me entorpeceu. Tudo começou a parecer como um sonho: as

sombras que se adensavam, a clarida

de fria penetrando pelas janelas e

transformando

-

se lentamente para um cinza

-

sujo, o zumbido dos

aquecedores no alto.



Creio que eu e Leigh fizemos amor... não da maneira comum, não

com minha perna daquele jeito, mas por uma espécie de doce substitutivo.

Pa

rece

-

me recordar sua respiração aprofundando

-

se em meu ouvido, até

quase ofegar; parece

-

me recordar seu sussurro para que eu tomasse

cuidado, por favor, fosse cuidadoso, porque já perdera Arnie e não

suportaria perder

-

me também. Parece

-

me recordar uma expl

osão de

prazer, que fez a dor desaparecer brevemente, mas de modo tão total que

nem todo o Darvon do mundo conseguiria fazer... mas, brevemente, é a

palavra certa. Aliás, tudo havia sido muito breve. Então, acho que cochilei.



A coisa seguinte que recordo c

om certeza foi Leigh sacudindo

-

me

para que despertasse e cochichando meu nome insistentemente em meu

ouvido.










Hum? O que foi?



Eu me estirara, e a perna fora tomada por uma dor vitrificada,

apenas esperando para explodir. Minhas têmporas doíam, e os olhos

pareciam grandes demais para as órbitas. Pestanejei várias vezes para

Leigh, como uma grande e imbecil coruja.







Está escuro





disse ela.





Acho que ouvi alguma coisa.



Pestanejei de novo e vi que ela parecia tensa, amedrontada. Então,

olhei para a porta





e ela estava completamente aberta.







Diabo, como foi que...







Fui eu que abri





disse ela.







Bolas!





exclamei, estirando

-

me um pouco e piscando vivamente,

com a intensidade da dor na perna.





Não foi muito esperto, Leigh. Se ela

tivesse vindo...







Não vei

o





disse Leigh.





Começava a escurecer, aí está, e a

nevar mais forte. Então, saí, abri a porta e voltei para cá. Achei que você

acordaria logo... Ouvi como murmurava e... e fiquei pensando: "Vou

esperar até que fique bem escuro, vou esperar até que fique



bem escuro,"

mas vi que enganava a mim mesma, porque fez quase meia hora que

escureceu e eu apenas imaginava poder ver alguma claridade. Acho que

era porque desejava vê

-

la. Então... ainda agora... penso que ouvi algo.



Seus lábios começaram a tremer e ela

os comprimiu com força.



Olhei para meu relógio, e vi que faltavam quinze para as seis. Se

tudo tivesse corrido bem, meus pais e minha irmã agora estariam em

companhia de Michael e dos pais de Leigh. Pelo pára

-

brisa de Petúnia,

olhei para o quadrado escuro

de neve, onde ficava a porta da garagem.

Podia ouvir o vento zunindo. Uma fina camada de neve já fora soprada

para o cimento do interior.







Foi apenas o vento que ouviu





falei inquieto.





Está andando e

falando lá fora.







Pode ser, mas...



Assenti, relutan

te. Não queria que ela abandonasse a segurança da

alta boléia de Petúnia, mas se não fosse naquele momento, talvez nunca

saísse dali. Eu não a deixaria sair e ela se deixaria persuadir. E então,




quando e se Christine viesse, tudo que teria a fazer era dar

marcha à ré e

sair novamente da garagem.



E esperar por ocasião mais oportuna.







Está bem





falei



, mas lembre

-

se... fique recuada, naquele

pequeno nicho à direita da porta. Se Christine aparecer, talvez fique

parada lá fora por um instante.





Farejando o

ambiente como um animal,

pensei.





Não fique com medo, não se mova. Não a deixe percebê

-

la.

Fique calma e espere, até ela entrar. Então, aperte o botão e afaste

-

se

rapidamente. Você entendeu?







Entendi





sussurrou ela.





Acha que vai dar certo, Dennis?







D

ará, se ela chegar a aparecer.







Não estarei com você, até tudo terminar.







Acho que sim.



Ela se inclinou, pousou levemente a mão esquerda no lado de meu

pescoço e beijou

-

me na boca.







Tome cuidado, Dennis





pediu



, mas mate

-

a! Bem, afinal,

Christine nem

é mulher, mas uma coisa. Mate essa coisa, Dennis!







Matarei





respondi.



Ela me fitou nos olhos e aquiesceu.







Faça isso por Arnie





disse.





Liberte

-

o.



Acariciei

-

a com intensidade e ela retribuiu. Depois deslizou do

assento. Bateu em sua pequena bolsa de m

ão com o joelho, fazendo

-

a cair

no piso da boléia. Fez uma pausa, a cabeça de lado, uma expressão

pensativa e temerosa nos olhos. Então sorriu, abaixou

-

se, pegou a bolsa e

começou a remexer rapidamente em seu interior.







Lembra

-

se de

Morte d'Arthur,

Dennis

?





perguntou.







Mais ou menos.



Clássicos da Literatura Inglesa, de Fudgy Bowen, era uma das aulas

que eu, Leigh e Arnie havíamos tido juntos, antes de meu acidente no

futebol. Uma das primeiras coisas com que deparamos nas aulas tinha

sido

Morte d'Arthur,



de Malory. Não atinava por que Leigh me fizera a

pergunta, naquele momento.






Ela encontrou o que queria. Era uma fina echarpe de náilon, do tipo

que uma garota usa na cabeça, nos dias em que cai uma garoa.



Leigh a amarrou em torno do braço direito de minha



jaqueta.







Ora, o que é isso?





perguntei, sorrindo um pouco.







Seja meu cavaleiro





disse ela, e sorriu também, mas os olhos

estavam sérios.





Seja meu cavaleiro, Dennis.



Peguei o rolo do esfregão que ela encontrara no banheiro de Will,

meus olhos passar

am de leve sobre a marca impressa "O

-

Cedar" e fiz um

desajeitado cumprimento com ele.







Perfeitamente





respondi.





Chame

-

me apenas

Sir

O

-

Cedar!







Faça piadas com isso, se quiser





disse ela



, mas não brinque

realmente

a respeito. Certo?







Certo





falei.





Se é o que deseja, serei seu perfeito, maldito e

gentil cavaleiro. Ela riu um pouco e aquilo foi melhor.







Lembre

-

se daquele botão, menina. Aperte com força. Não

queremos que aquela porta apenas dê um arroto e pare nos trilhos. Sem

escapatória, ok?







Ok.



Ela saiu de Petúnia. Pude fechar os olhos e vê

-

la como era então,

naquele límpido e silencioso momento, pouco antes de tudo dar

terrivelmente errado





uma garota alta e bonita, de compridos cabelos

louros, cor de mel puro, ancas esguias, pernas compridas

e aquelas

surpreendentes maçãs do rosto nórdicas, agora usando uma jaqueta de

esquiar e calças

jeans

desbotadas, movendo

-

se com a graciosidade de uma

dançarina. Ainda posso ver o quadro e sonhar com ele porque,

naturalmente, enquanto nos ocupávamos em mont

ar o cenário para

Christine, ela se ocupava em montar o seu para nós





aquele velho e

infinitamente astuto monstro. Pensaríamos mesmo que éramos capazes de

superá

-

la em astúcia tão facilmente? Acho que sim.



Meus sonhos acontecem em terrível câmara lenta. P

osso ver o suave,

adorável movimento de seus quadris, enquanto ela caminha; posso ouvir

o som oco de suas botas sobre o cimento manchado de graxa; posso até

perceber o macio, seco

uish

-

uish

do interior acolchoado de sua jaqueta,

roçando contra a blusa. Ela



está caminhando lentamente, de cabeça




erguida





agora, ela

é

o animal, mas não predador; caminha com a graça

cautelosa de uma zebra, aproximando

-

se de uma fonte d'água, ao

escurecer. É o andar de um animal que pressente o perigo. Tento gritar

-

lhe,

através



do pára

-

brisa de Petúnia.

Volte, Leigh, volte depressa, você tinha razão,

ouvi alguma coisa, ela está lá fora agora, lá fora na neve, com os faróis apagados,

agachada, volte, Leighl



Ela parou de repente, as mãos enrijecendo

-

se em punhos, e foi então

que s

úbitos e selvagens círculos de luz brotaram para a vida, na escuridão

nevada do exterior. Eram como olhos brancos que se abriam.



Leigh ficou imóvel, hediondamente exposta em terreno aberto.

Estava a uns nove metros da porta, ligeiramente à direita do centr

o.

Virou

-

se na direção dos faróis e pude ver a expressão atordoada e incerta

de seu rosto.



Eu também ficara tão aturdido que aquele primeiro momento vital

passou em branco. A seguir, os faróis saltaram para diante e pude ver o

formato escuro e alongado de

Christine atrás deles; ouvi o crescente,

furioso urro de seu motor, quando ela partiu em nossa direção, cruzando

a rua onde estivera esperando o tempo todo





talvez mesmo desde antes

do escurecer. A neve caiu afunilada de seu teto e rodopiou à frente do



ra

-

brisa, em finíssimas redes que eram derretidas quase

instantaneamente pelo descongelador. Ela alcançou o concreto que levava

à entrada, ainda ganhando velocidade. Seu motor era um brado de fúria.







Leigh!





gritei, e aferrei a ignição de Petúnia.



Leigh d

obrou à direita e correu para o botão na parede. Christine

rugiu para o interior, quando Leigh já alcançava o botão e o apertava.

Ouvi o chocalhar da porta no alto, descendo pelos trilhos.



Christine entrou em ângulo para a direita, buscando Leigh.

Arrancou



uma grande nuvem de madeira seca e lascas da parede. Houve

um rangido metálico, quando parte do pára

-

choque direito se afrouxou





um som semelhante à gargalhada alta de um bêbado. Fagulhas

cascatearam pelo piso, quando ela descreveu uma longa curva torcid

a.

Perdera Leigh, mas não a perderia, ao atacar novamente; Leigh estava

encurralada naquele canto do lado direito, sem mais lugar algum onde

esconder

-

se. Poderia correr para fora, porém eu não tinha certeza, mas um

medo terrível de que a porta não descesse



com velocidade suficiente para




cortar o caminho de Christine. Enquanto descia, a porta poderia atingi

-

la

no teto, mas isso não a deteria e eu sabia.



O motor de Petúnia rugiu e apertei o botão dos faróis. Suas luzes

acenderam

-

se, banhando a porta que se fe

chava, e também Leigh, que se

encostara à parede, de olhos arregalados. Sua jaqueta ficou com uma

estranha cor azul, quase elétrica, à luz dos faróis. Minha mente informou,

com nauseante e precisa certeza, que seu sangue pareceria púrpura.



Vi quando ela er

gueu os olhos para cima, durante um momento,

voltando

-

os em seguida para Christine.



Os pneus do Fury chiaram violentamente, quando arremeteu para

Leigh. Subiram volutas de fumaça das novas marcas negras sobre o

concreto. Tive tempo apenas para registrar o

fato de que havia

gente

no

interior de Christine: um punhado de pessoas.



No mesmo instante em que Christine rugiu para ela, Leigh saltou,

com incrível elasticidade. Minha mente, parecendo funcionar à velocidade

aproximada da luz, perguntou

-

se por um instan

te se ela pretendia passar

por cima do Plymouth em um salto, como se calçasse botas de sete léguas,

e não o tipo comum.



Em vez disto, ela alcançou e agarrou os enferrujados suportes de

metal de uma prateleira no alto, quase dois metros e meio acima do solo

,

mais de noventa centímetros acima de sua cabeça. Era uma prateleira que

corria pelas quatro paredes. Na noite em que eu e Arnie havíamos levado

Christine para lá, toda a prateleira estava entulhada de pneus

recauchutados ou carecas, à espera da recauchut

agem





de certo modo

divertido, aquilo me recordara as prateleiras bem estocadas de uma

biblioteca. Agora, quase mais nada havia ali. Segurando

-

se naqueles

suportes angulosos, Leigh girou as pernas enfiadas nas calças jeans, como

um garoto que quisesse jog

á

-

las sobre os próprios ombros no que

costumávamos chamar de "pulo do gato", no primário. O nariz de

Christine amassou

-

se contra a parede diretamente abaixo dela. Se Leigh

houvesse sido mais lenta em suspender as pernas, agora as teria

esmagadas, à altura

dos joelhos. Um pedaço de cromado voou pelo ar.

Dois dos pneus remanescentes saltaram da prateleira e ricochetearam

loucamente no cimento, como gigantescos biscoitos de borracha.






A cabeça de Leigh bateu contra a parede, em um golpe de

atordoante força, qua

ndo Christine deu marcha à ré, com

todos os quatro

pneus soltando borracha e expelindo fumaça azul.



É de se perguntar o que fazia eu, durante todo este tempo. Minha

resposta é que não houve "todo esse tempo". Quando usei o esfregão para

afundar a embreagem



de Petúnia e engrenar em primeira, a porta da

entrada acabava de descer, batendo contra o solo. Tudo aconteceu no

espaço de segundos apenas.



Leigh ainda se suspendia nos suportes da prateleira dos pneus, mas

agora apenas pendia de lá, a cabeça baixa e atu

rdida.



Soltei a embreagem, e uma parte isolada de minha mente comandou:

Vá com calma, cara





se soltar a embreagem e o motor afogar, ela está morta.



Petúnia começou a rodar. Acelerei o motor até vê

-

lo roncar, e

comprimi a embreagem até o fundo. Christine r

ugiu novamente para

Leigh, o capô ondulado até quase metade, por causa do primeiro ataque, o

metal brilhante surgindo sob a tinta solta, nos pontos mais pronunciados

das curvaturas. Era como se o capô e a grade estivessem providos de

dentes de tubarão.



Ati

ngi Christine a uns três quartos para a parte fronteira e o

Plymouth girou, um dos pneus saltando fora do aro. O 58 bateu contra um

monturo de velhos pára

-

choques e peças de sucata a um canto. Ali houve

um estrondo terrível, quando o carro se chocou contra



a parede, e depois

o som quente de seu motor, diminuindo e acelerando, acelerando e

diminuindo. Toda a parte esquerda dianteira ficara amassada mas ela

continuava funcionando.



Pisei fundo no freio de Petúnia, com o pé direito, e mal consegui

evitar que eu



próprio esmagasse Leigh. O motor de Petúnia engasgou.

Agora, o único som na garagem, era a máquina uivante de Christine.







Leigh!





gritei, acima do barulho.





Corra, Leigh!



Ela ergueu os olhos, estonteada, e então pude ver tranças pegajosas

de sangue em

seu cabelo





era tão púrpura como eu imaginara. Ela

largou os suportes, caiu de pé, cambaleou e se dobrou sobre um joelho.



Christine foi em sua procura. Leigh levantou

-

se, deu dois passos

vacilantes e isso a tirou de campo aberto, colocando

-

a atrás de Petú

nia.

Christine deu uma guinada e atingiu a dianteira do caminhão

-

tanque. Fui




atirado brutalmente para a direita. A dor rugiu através de minha perna

esquerda.







Suba!





gritei para Leigh, tentando esticar

-

me ainda mais e abrir

a porta.





Suba!

Christine rec

uou e, quando tornou a arremeter, cortou

pela direita, escapando de meu campo visual, por trás da traseira de

Petúnia. Pude vê

-

la somente de relance, no espelho retrovisor do lado de

fora da janela do motorista. Então, ouvi apenas o chiado de seus pneus.



M

al tendo consciência do que fazia, Leigh simplesmente vagou,

segurando a cabeça com as mãos entrelaçadas na nuca. O sangue escorria

por entre seus dedos. Passou pela frente do radiador de Petúnia e então

parou.



Eu não precisava ver, para adivinhar o que ac

onteceria em seguida.

Christine tornaria a acelerar, voltaria contra o flanco do caminhão e

esmagaria Leigh na parede.



Desesperado, apertei a embreagem com o esfregão e liguei o motor

novamente. Ele pegou, tossiu, engasgou. Senti o cheiro de gasolina no ar

,

intenso e pesado. Eu tinha afogado o motor.



Christine reapareceu no espelho retrovisor. Investia para Leigh, que

recuou aos tropeções, escapando de ser alcançada por pouco. Christine

afocinhou a parede, com força incrível. A porta do passageiro se abriu,



e o

horror foi completo; a mão que não segurava o cabo do esfregão foi até

minha boca e gritei através dela.



Sentado no lado do passageiro, como um grotesco boneco em

tamanho natural, estava Michael Cunningham. Sua cabeça, pendendo

flacidamente do talo do



pescoço, caiu para um lado quando Christine

acelerou, a fim de investir de novo contra Leigh. Então vi que seu rosto

mostrava um corado acentuado, próprio do envenenamento por

monóxido de carbono. Ele não seguira meu conselho. Christine se dirigira

primei

ro à residência dos Cunningham, como eu mais ou menos

suspeitara. Michael voltara da escola para casa, e lá estava ela, parada na

entrada da garagem





o restaurado Plymouth 58 de seu filho. Michael

caminhara para o carro e, de alguma forma, Christine o tin

ha... o tinha

apanhado. Teria Michael talvez entrado naquele carro e se sentara ao

volante por um momento, como eu havia feito naquele dia, na garagem de

LeBay? Era possível. Apenas para ver que vibrações conseguiria captar.

Então, devia ter captado alguma

s terríveis vibrações, durante seus últimos




minutos na Terra. Teria Christine ligado o motor sozinha? Rodado para

dentro da garagem? Talvez. Talvez. E, lá, Michael descobrira que era

impossível desligar o maldito motor em aceleração ou sair do carro?

Poder

ia ter virado a cabeça e visto o verdadeiro espírito que movia o Fury

58 de Arnie? Teria, então, se recostado no assento do passageiro e

desmaiado de terror?



Não importava agora. Leigh era mais importante do que tudo.



Ela também o vira. Seus gritos agudos,



desesperados e estridentes,

flutuavam na atmosfera impregnada da fedorenta fumaça do

escapamento, como balões histericamente brilhantes. De qualquer modo,

pelo menos aquilo interrompera seu atordoamento.



Virando

-

se, ela correu para o escritório de Will Da

rnell, o sangue

espalhando

-

se mais atrás, em gotas como moedas, enquanto corria.

Sangue que já encharcava a gola de sua jaqueta





demasiado sangue.



Christine recuou, raspando borracha no chão e deixando vidro

espalhado para trás. Quando ela guinou em um ap

ertado círculo para

perseguir Leigh, a força centrífuga tornou a escancarar a porta do

passageiro





mas não antes de eu ver a cabeça de Michael dobrar

-

se para

o lado contrário.



Christine ficou quieta por um instante, o nariz apontado em direção

a Leigh, o

motor acelerando. Talvez LeBay saboreasse o momento antes de

matar. Se foi isso, fico satisfeito, porque se Christine tivesse arrancado

imediatamente, teria liquidado Leigh. Do jeito como foi, tive alguns

segundos de tempo. Girei a chave de novo, gaguejand

o algo em voz

alta





uma oração, talvez, e então o motor de Petúnia tossiu para a vida.

Afrouxei a embreagem e pisei no acelerador, quando Christine investiu de

novo. Desta vez, atingi seu lado direito. Houve um grito agudo de metal

dilacerado, quando o pá

ra

-

choque de Petúnia colidiu contra seu pára

-

lama. Christine girou sobre si mesma e bateu na parede. Vidro quebrado.

Seu motor acelerou, enfurecido. Ao volante, LeBay se virou para mim,

sorrindo com ódio.



Petúnia afogou de novo.



Desfiei uma série de todos

os palavrões conhecidos, quando torci

novamente a chave na ignição. Se não fosse pela maldita perna, se não

fosse pela queda na neve, aquilo tudo já teria terminado; seria apenas uma




questão de encurralar Christine e fazê

-

la em pedaços, contra os blocos de



concreto das paredes.



Ainda quando eu tentava o motor de Petúnia, mantendo o pé fora

do acelerador para não tornar a afogá

-

la, Christine começou a recuar, com

um ensurdecedor rangido de metais. Deu marcha à ré entre o radiador de

Petúnia e a parede, deixa

ndo para trás um bom e retorcido pedaço de sua

lataria vermelha, despojando o pneu dianteiro da direita.



Consegui ligar Petúnia e encontrei a marcha à ré. Christine havia

recuado até o ponto mais distante da garagem. Todos os seus faróis

estavam apagados.

O pára

-

brisa se avariara em uma galáxia de trincados.

O capô encolhido parecia rosnar.



Seu rádio estava a todo volume. Pude ouvir Ricky Nelson cantando

"Waitin in School".



Olhei em torno, à procura de Leigh, e a vi no escritório de Will,

espiando para a ga

ragem. Seu cabelo louro se misturava ao sangue. Mais

sangue lhe escorria pelo lado esquerdo do rosto, encharcando a jaqueta.

Ela está sangrando demais,

pensei, incoerentemente.

Sangrando demais,

mesmo para um ferimento na cabeça.



De olhos arregalados, ela

apontava para um ponto além de mim, os

lábios se movendo silenciosamente, atrás do vidro.



Christine chegou rugindo em disparada pelo piso vazio, ganhando

velocidade.



E o capô perdia as ondulações, alisava

-

se, para tornar a cobrir a

cavidade do motor. Dois

faróis piscaram, depois firmaram a luz. O pára

-

lama e o lado direito da lataria





vi apenas de relance, mas juro que é

verdade





eles estavam...

se refazendo,

o metal vermelho surgindo do nada

e deslizando em uniformes curvas automotivas, que cobriam o pne

u

direito dianteiro e o lado direito do compartimento do motor. As

rachaduras no pára

-

brisa corriam em direção oposta e desapareciam. E o

pneu que saíra do aro estava novo em folha.



Tudo parece novo em folha,

pensei.

Que Deus nos ajude!



Ela corria diretame

nte para a parede entre a garagem e o escritório.

Retirei apressadamente o esfregão da embreagem, esperando interpor o

corpo do caminhão

-

tanque, mas Christine passou por mim. Petúnia

recuou para nada mais senão puro ar. Oh, eu estava me saindo muito bem!




R

ecuei todo o espaço que pude e bati nos amassados armários de guardar

ferramentas, alinhados mais atrás. Eles caíram ao chão, com desarmônicos

sons metálicos. Pelo pára

-

brisa, vi Christine bater na parede entre a

garagem e o escritório de Will. Ela nem dim

inuiu a velocidade; arremeteu

com a potência máxima.



Jamais esquecerei os momentos seguintes





eles permanecem

hipnoticamente claros em minha memória, como se vistos através de uma

lente. Leigh percebeu a vinda de Christine e recuou aos tropeções. Seu

cabe

lo ensangüentado estava colado à cabeça. Caiu sobre a cadeira

giratória de Will e dali para o chão, ficando fora de vista, atrás da

escrivaninha. Um instante mais tarde





e quero dizer uma fração de

segundo





Christine se chocou contra a parede. O janelão

que Will usava

para manter sob observação as idas e vindas dentro de sua garagem,

explodiu para o interior. O vidro voou como uma nuvem de lanças

mortíferas. A dianteira de Christine entortou

-

se com o impacto. O capô

subiu e depois se soltou, voando sobre

o teto do carro, para aterrar no

concreto com um som metálico, muito semelhante ao produzido pelos

armários de ferramentas.



Com o pára

-

brisa estilhaçado, o corpo de Michael Cunningham

voou através da enorme abertura, as pernas sacolejando, sua cabeça

parec

endo uma achatada e grotesca bola de futebol. Foi lançado através

da janela de Will, bateu na escrivaninha com um baque surdo de saco

pesado de cereal e deslizou para o chão. Seus sapatos foram projetados à

distância.



Leigh começou a gritar.



Sua queda prov

avelmente a salvara de ser terrivelmente retalhada

ou morta pelos estilhaços de vidro que voavam, mas quando se ergueu de

trás da mesa, tinha o rosto contorcido de horror e fora tomada da mais

pura histeria. Michael havia deslizado sobre a escrivaninha, e

seus braços

tinham caído sobre os ombros dela. Quando Leigh lutou para levantar

-

se,

parecia estar valsando com o cadáver. Seus gritos eram histéricos. O

sangue, ainda fluindo, cintilava com um brilho fatal. Ela empurrou

Michael e correu para a porta.







Não

, Leigh

!





gritei, enquanto tornava a apertar a embreagem

com o esfregão. O cabo se partiu irremediavelmente em dois, deixando

-

me com um toco de quinze centímetros de comprimento.





Ohhhh..

MERDA!






Christine recuou da janela quebrada, deixando água, anticon

gelante

e óleo empoçados no chão.



Pisei na embreagem com o pé esquerdo, agora mal sentindo a dor,

segurando o joelho esquerdo com a mão esquerda, enquanto manejava a

alavanca de mudança.



Leigh escancarou a porta do escritório e correu para fora.



Christine

se virou contra ela, o nariz esmagado e rosnante

mantendo

-

a em mira.



Acelerei o motor de Petúnia e parti rugindo para Christine. Quando

o amaldiçoado carro dos infernos cresceu no pára

-

brisa, vi o rosto

purpúreo e inchado de uma criança, pressionado à jane

la traseira, olhando

para mim, como a pedir

-

me que parasse.



Colidi com força. O capô do caminhão subiu e ficou arreganhado

como uma boca. Sua traseira rabeou, e Christine saiu deslizando de banda,

passando por Leigh, que correu em fuga, os olhos parecendo

engolir seu

rosto. Lembro

-

me do sangue pulverizado ao longo das franjas de pele do

capuz de sua jaqueta em gotículas, como um orvalho maligno.



Eu estava na minha agora. Estava por cima. Mesmo se, terminando

aquele trabalho, me cortassem a perna na virilha,



ia dirigir Petúnia.



Christine bateu na parede e ricocheteou de volta. Pisei na

embreagem, manobrei a mudança para marcha a ré, recuei uns três metros,

pisei de novo na embreagem, e fiz a mudança para primeira. Christine

acelerou o motor e tentou esgueirar

-

se ao longo da parede. Cortei para a

esquerda e atingi

-

a novamente, achatando

-

lhe o meio, como se fosse uma

vespa. As portas saltaram das molduras, em cima e embaixo. LeBay estava

ao volante, agora uma caveira, então um apodrecido e fedorento camafeu

huma

no, depois um homem, saudável e vigoroso na casa dos cinqüenta,

com cabelos que embranqueciam, cortados rente. Olhou para mim com

seu sorriso demoníaco, uma das mãos no volante, a outra em um punho

crispado, que sacudiu em minha direção.



Mesmo assim, o mot

or de Christine não morria.



Dei marcha à ré de novo. Agora, minha perna estava como ferro em

brasa e a dor subia todo o trajeto até a axila esquerda. Era um inferno. A

dor estava em

toda parte.

Eu podia senti

-

la






(Meu Deus, Michael, por que não ficou em cas

a)

no pescoço, nos

maxilares, nas



(Arnie? Cara, sinto tanto, por desejar o que desejo)



têmporas. O Plymouth





o que sobrara dele





dava bêbadas

estocadas mais abaixo, no lado da garagem, espalhando ferramentas e

sucata, arrancando suportes e derrubando as

prateleiras suspensas. As

prateleiras batiam no concreto, em pancadas que pareciam bofetadas, sons

que ecoavam como aplausos do demônio.



Tornei a calcar a embreagem e pisei no acelerador. O motor de

Petúnia trovejou e eu me firmei no volante, como um homem



tentando

permanecer montado em um mustangue selvagem. Atingi Christine no

lado direito, e esmaguei toda a lataria perto do eixo traseiro, empurrando

-

a contra a porta, que estremeceu e sacolejou. Debrucei

-

me sobre o volante,

que me batia no estômago, me co

rtava a respiração e me jogava contra o

assento, ofegante.



Agora eu via Leigh, encolhida no canto mais distante, as mãos

apertando o rosto, puxando

-

o para baixo, transformando

-

o em uma

máscara de feiticeira.



O motor de Christine ainda funcionava.



Ela raste

jou lentamente para Leigh, como um animal cujas patas

traseiras foram fraturadas em uma armadilha. E, enquanto rodava, pude

ver sua regeneração, a maneira como revivia: um pneu que se inflava

repentinamente, redondo e cheio, a antena de rádio que se rearti

culava

com um prateado tuingggg, o metal que se formava em torno da traseira

arruinada.







Morra!





gritei para o carro.



Eu berrava, meu peito doía. A perna não funcionava mais. Abracei

-

a

com as duas mãos e a

empurrei

contra a embreagem. Minha visão ficou

d

esfocada e cinzenta, com aquela agonia de metal incandescente. Eu quase

podia sentir os ossos esfacelando

-

se.



Acelerei, mudei para primeira novamente e investi. Enquanto fazia

isto, ouvi a voz de LeBay, pela primeira e única vez, aguda e frustrada,

impregn

ada de uma terrível, interminável fúria.







Seu BOSTA! Foda

-

se, seu miserável BOSTA! DEIXE

-

ME EM PAZ!










Você devia ter deixado meu amigo em paz





tentei gritar, mas

tudo que saiu foi um ofegar ferido, dilacerado.



Atingi Christine em cheio, na traseira. O ta

nque de gasolina se

rompeu, quando a traseira do carro se encolheu para dentro e para cima,

em uma espécie de cogumelo metálico. Houve uma lambida amarela de

fogo. Protegi o rosto com as mãos





mas então desapareceu. Christine

ficou ali, um refugiado de um

a pista de corridas destruída. Seu motor

funcionava entrecortadamente, falhava, pegava de novo





e então

morreu.



O lugar ficou silencioso, exceto pelo ronco grave do motor de

Petúnia.



Depois, Leigh corria pelo piso, gritando e gritando meu nome,

gritando e



chorando. De repente, fiquei estupidamente cônscio de que

usava sua echarpe rosa em torno de minha manga.



Baixei os olhos para ela, e então o mundo ficou cinzento de novo.



Pude sentir suas mãos em mim, mas depois nada além da escuridão,

quando perdi os se

ntidos.





Voltei a mim uns quinze minutos mais tarde, com o rosto molhado e

misericordiosamente fresco. Leigh estava em pé no estribo de Petúnia, o

estribo do motorista, passando em meu rosto um trapo molhado. Agarrei

-

o em uma das mãos, tentei chupá

-

lo e de

pois cuspi. O trapo tinha um

sabor intenso de óleo.







Não se preocupe, Dennis





disse ela.





Corri para a rua... parei

um removedor de neve... assustei o homem como o diabo, pelo que

parece... com todo esse sangue... ele disse... uma ambulância,., ele diss

e

que ia providenciar... Dennis, você está bem?







Pareço

bem?





sussurrei.







Não





disse ela, e prorrompeu em lágrimas.







Então, não





engoli em seco, havia um doloroso bloco seco na

garganta



, não faça perguntas bobas. Eu amo você.



Ela me afagou desajeit

adamente.







Ele disse que também ia chamar a polícia.






Eu mal a ouvi. Meus olhos tinham encontrado a torcida e silenciosa

sucata





o que sobrara de Christine. Sucata era a palavra correta; ela mal

parecia um carro. Entretanto, por que não se queimara? Uma c

alota jazia

caída a um lado, como uma ficha de prata amassada.







Há quanto tempo você parou o limpa

-

neve?





perguntei, em voz

rouca.







Talvez há uns cinco minutos. Depois peguei o pedaço de pano e o

molhei naquele balde lá. Dennis... graças a Deus terminou

!



Punk! Punk! Punk!

Eu continuava olhando para a calota. As

amassaduras começavam a desfazer

-

se.



De repente, ela se ergueu sobre a borda e rolou para o carro, como

uma moeda. Leigh também viu aquilo. Seu rosto ficou tenso. Os olhos

arregalaram

-

se, começara

m a esbugalhar

-

se. Seus lábios formaram a

palavra

Não,

mas não emitiram som algum.







Entre aqui comigo





falei, em voz baixa, como se aquela coisa

pudesse ouvir

-

nos. Quem sabe? Talvez ouvisse mesmo.





Entre no lado

do passageiro. Você vai pisar o acelerado

r, enquanto eu piso a embreagem

com o pé direito.







Não...





Desta vez, era um sussurro sibilante. Sua respiração saiu

assobiando, em pequenos arquejos.





Não... não...



Os destroços do carro estremeciam de alto a baixo. Era a coisa mais

terrível, mais fant

asmagórica que eu já vira, em toda a minha vida.

Estremeciam inteiramente, estremeciam como um animal que ainda não...

está inteiramente... morto. Metal batia nervosamente contra metal.

Conexões de peças crepitavam ritmos de jazz contra suas ligaduras.

Enq

uanto eu espiava, um contrapino torto que jazia no chão ficou reto e

executou meia dúzia de cabriolas, indo aterrar nos destroços.







Entre





falei.







Não posso, Dennis.





Seus lábios tremeram

descontroladamente.





Não posso... mais... aquele corpo... era o



pai de

Arnie. Não posso, não agüento mais, por favor...







Você tem que entrar





insisti.



Ela me fitou, depois olhou temerosa para os obscenamente trêmulos

restos daquela velha prostituta que LeBay e Arnie haviam partilhado.




Então, deu a volta pela diantei

ra de Petúnia. Uma peça de cromado se

deslocou e arranhou

-

lhe profundamente a perna. Leigh gritou e correu.

Subiu rapidamente para a boléia e apertou

-

se contra mim.







O q

-

que tenho que fazer?



Fiquei meio pendurado para fora da boléia, seguro ao teto, e

emp

urrei a embreagem com o pé direito. O motor de Petúnia ainda

funcionava.







Pise no acelerador e mantenha o pé aí





falei.





Não importa o

que acontecer. Movendo o volante com a direita e segurando

-

me com a

mão esquerda, manobrei a embreagem e rodamos para

diante.

Esmagamos e tornamos a esmagar a sucata, desintegrando

-

a. Em minha

cabeça, eu tinha a impressão de ouvir outro grito de fúria. Leigh agarrou a

cabeça com as mãos.







Não posso, Dennis! Não posso fazer isso! Essa... essa coisa...

está

gritando!







Tem



que fazer





falei. Ela retirara o pé do acelerador e agora eu

ouvia sirenes cortando a noite, aumentando e diminuindo. Agarrei

-

a pelo

ombro e uma explosão de dor me subiu pela perna.





Nada mudou,

Leigh. Você tem que fazer!







Aquilo

gritou

para mim!







Nos

so tempo está se esgotando e ainda não terminamos. Só mais

um pouquinho!







Tentarei





sussurrou ela, tornando a apertar o pedal.



Engatei a mudança para marcha à ré. Petúnia recuou uns seis metros.

Embreei de novo, passei para primeira... e Leigh gritou, de



repente:







Não, Dennis! Não! Olhe!



A mãe e a menininha, Verônica e Rita, estavam em pé diante da

sucata amassada e destroçada de Christine, de mãos dadas, os rostos

solenes e angustiados.







Elas não estão lá





falei.





E, se estiverem, é tempo de voltarem



para...





Mais dor em minha perna e o mundo ficou cinzento....





voltarem para o lugar a que pertencem. Fique com o pé no pedal!






Soltei a embreagem, e Petúnia tornou a rodar para diante, ganhando

velocidade. As duas figuras não desapareceram, como fazem o

s fantasmas

nos filmes de TV; pareceram gritar para todos os lados, cores brilhantes

que se desbotavam para esmaecidos rosas e azuis... e então desapareceram

por completo.



Batemos novamente contra Christine, espalhando para longe o que

sobrara dela. O meta

l rangeu e se dilacerou.







Não estão lá





sussurrou Leigh.





Não estão realmente lá. Está

bem. Está bem, Dennis. Sua voz vinha de muito longe, percorrendo um

sombrio corredor. Passei para marcha à ré e



fomos para trás. Depois para a frente. Esmagamos os me

tais;

tornamos a esmagá

-

los. Quantas vezes? Não sei. Batíamos violenta e

estrondosamente no que restava de Christine e, a cada vez que o fazíamos,

outra onda de dor me subia pela perna e as coisas ficavam um pouco mais

escuras.



Por fim, ergui os olhos turv

os e vi que o ar, fora da porta, parecia

cheio de sangue. Só que não era sangue, mas uma luz vermelha pulsante,

refletindo

-

se na neve que caía. Pessoas batiam na porta, lá fora.







Acha que chega?





perguntou Leigh.



Olhei para Christine





apenas, aquilo dei

xara de ser Christine. Era

um monte disperso de metal partido e torcido, pedaços de recheio do

estofamento e cintilante vidro quebrado.







Tem que chegar





falei.





Deixe

-

os entrar, Leigh. E, enquanto

ela se foi, tornei a perder os sentidos.





Depois, houve

uma série de imagens confusas; coisas que entravam

em foco por um instante, para então se esfumarem ou desaparecerem de

todo. Posso me lembrar de uma padiola, sendo rodada para fora da

traseira de uma ambulância. Posso recordar suas alças laterais sendo

er

guidas e como as luzes fluorescentes do teto arrancaram frios reflexos

de seu cromado; posso recordar alguém dizendo:







Corte isso, tem que cortar, para ao menos darmos uma

espiada

nisso! Também recordo mais alguém





creio que Leigh





dizendo:







Não o mach

uquem, por favor, se for possível, não o machuquem!






Recordo ainda o teto de uma ambulância... tinha que ser uma

ambulância, porque havia dois recipientes de intravenosos, suspensos na

periferia de minha visão. Recordo a fria fricção de anti

-

séptico e, em

s

eguida, a picada de uma agulha.



Depois disso, as coisas se tornaram extremamente estranhas. Em

algum ponto, bem dentro de mim, eu sabia que não estava sonhando se

nada mais o provava, a dor pelo menos fazia isso





mas tudo aquilo

parecia

um sonho. Eu estav

a bastante dopado e isso era parte da situação...

mas o choque também fazia parte. Não é brincadeira. Minha mãe estava lá,

chorando, em um quarto desgostosamente semelhante àquele quarto de

hospital onde eu passara todo o outono. Então, meu pai estava lá,

e o pai

de Leigh estava com ele, os dois parecendo possuir um e o mesmo rosto,

ambos tão tensos e severos, que bem poderiam ter sido personagens de

Franz Kafka. Papai se inclinava sobre mim e perguntava, em uma voz de

trovão, reverberando através de camada

s de algodão:







Como é que Michael foi parar lá, Dennis?



Era o que eles realmente queriam saber: como Michael tinha ido

parar lá.

Oh,

pensei,

oh, meus amigos, eu poderia contar

-

lhes cada história...

Então, o Sr. Cabot perguntava:







Em que foi que meteu min

ha filha, rapaz?





E eu recordo ter

respondido:







Não é bem em que foi que eu a meti, mas de que foi que ela o

tirou.



Até hoje, ainda acho que foi uma resposta bastante inteligente,

consideradas as circunstâncias e dopado como me encontrava. Elaine

aparece

u lá, brevemente, e tenho a impressão de que segurava,

zombeteiramente fora de meu alcance, uma barra de chocolate ou coisa

assim. Também vi Leigh, oferecendo sua fina echarpe de náilon e pedindo

que eu levantasse o braço, a fim de que ela a amarrasse. Só

que eu não

podia, meu braço era um pedaço de chumbo.



Arnie também estava lá mas, claro,

tinha

que ser um sonho.



Obrigado, cara,

ele disse e, horrorizado, percebi que a lente esquerda

de seus óculos estava estilhaçada. O rosto me parecia legal, mas aquela

l

ente estilhaçada... aquilo me assustou.

Obrigado. Você fez bem. Sinto

-

me

melhor agora. Daqui em diante, acho que tudo vai ficar legal.






Não enche, Arnie,

falei





ou tentei falar





mas ele tinha sumido.



Foi no dia seguinte





não o dia vinte, mas no domingo,

vinte e um

de janeiro





que comecei a recuperar

-

me um pouco. Minha perna

esquerda estava de novo no gesso, em sua velha e familiar posição, entre

todas aquelas roldanas e pesos. À esquerda de minha cama, havia um

homem que eu nunca vira antes, lendo um liv

ro de bolso com uma

história de John D. MacDonald. Ao me ver olhando para ele, baixou o

livro.







Bem

-

vindo à terra dos vivos, Dennis





disse brandamente.



Em gestos deliberados, marcou com uma caixa de fósforos de

papelão a folha onde interrompera a leitura

, deixou o livro sobre o colo e

dobrou as mãos em cima dele.







Você é médico?





perguntei.



Evidentemente, não era o Dr. Arroway, o médico que cuidara de

mim da última vez; ele seria uns vinte anos mais novo e teria, no mínimo,

uns oito quilos a menos. Pare

cia um sujeito duro.







Inspetor da Polícia Estadual





disse ele.





Meu nome é Richard

Mercer. Rick, se preferir. Estendeu a mão e, estirando a minha, desajeitada

e cautelosamente, eu a toquei. A verdade é que não poderia apertá

-

la.

Minha cabeça doía e me s

entia sedento.







Escute





falei.





Não me incomodo nem um pouco de falar com

você e responderei a todas as suas perguntas, mas gostaria de ver um

médico.





Engoli em seco, ele me fitou com preocupação, e então

soltei:





Preciso saber se vou tornar a andar

de novo.







Se for verdade o que disse aquele Dr. Arroway





falou Mercer





você estará em forma dentro de quatro a seis semanas. Não tornou a

fraturar a perna, Dennis. Apenas a distendeu seriamente, foi o que ele

disse. Sua perna inchou como uma salsicha, r

apaz. Ele também disse que

teve muita sorte, em sair desta com tão pouco.







E quanto a Arnie?





perguntei.





Arnie Cunningham? Sabe se...

Os olhos dele cintilaram, vacilantes.







O que foi?





perguntei.





O que houve com Arnie?







Escute, Dennis





ele disse,



depois hesitou.





Não sei se é este o

momento.










Por favor,

Arnie está... morto? Mercer suspirou.







Sim, está morto. Ele e a mãe sofreram um acidente na auto

-

estrada Pensilvânia, devido à neve. Se é que

foi

um acidente.



Tentei falar, e não pude. Fiz um mo

vimento para o jarro de água na

mesa de cabeceira, pensando o quanto era melancólico estar em um

quarto de hospital e saber exatamente onde tudo se encontrava. Mercer

me encheu um copo e colocou nele o canudinho dobrado. Bebi, e me senti

um pouquinho melho

r. Melhor na garganta, quero dizer. Nada mais

parecia melhor, de maneira nenhuma.







O que quis dizer com

se

foi um acidente?







Bem





disse Mercer



, era a noite de sexta

-

feira e a neve não

estava tão forte assim. A classificação da estrada foi a dois: dese

rta e

molhada, visibilidade reduzida, dirija com cautela. A julgar pela força do

impacto, supomos que eles não iam a mais de setenta. O carro deu uma

guinada através da linha divisória da estrada e bateu em um caminhão.

Era a camioneta Volvo da Sra. Cunnin

gham. Explodiu.



Fechei os olhos.







Regina... ?







Também morta no local. Se vale alguma coisa, eles

provavelmente não...





... sofreram





completei.





Tolice. Eles sofreram demais.





As

lágrimas me ameaçavam, mas consegui sufocá

-

las. Mercer nada disse.





Tod

os os três





murmurei.





Oh, Deus, todos os três!







O motorista do caminhão fraturou um braço. Foi o pior para ele,

no acidente. Disse que havia três pessoas no carro, Dennis.







Três?







Exatamente. E ele disse que pareciam lutar.





Mercer me

encarou.





Est

amos seguindo a teoria de que recolheram um carona de

maus instintos, que fugiu depois do acidente e antes da chegada da Polícia

Rodoviária.



Era uma hipótese ridícula, para quem conhecesse Regina

Cunningham. Ela seria mais capaz de usar calças compridas em



um chá

da universidade do que dar carona a um desconhecido. Na mente de




Regina Cunningham, estava firmemente impresso aquilo que se pode ou

não fazer. Como que em cimento, poder

-

se

-

ia dizer.



Havia sido LeBay. A questão é que ele não podia estar em dois

lu

gares ao mesmo tempo. Por fim, ao ver que rumo tomavam as coisas na

Garagem de Darnell, ele abandonara Christine e tentara voltar para Arnie.

O que aconteceu depois, fica no terreno das suposições. Entretanto,

concluí no momento





e ainda penso o mesmo





q

ue Arnie lutou com

ele... e venceu uma jogada, pelo menos.







Morto





falei, e agora as lágrimas vieram.



Eu estava demasiado fraco e deprimido para contê

-

las. Afinal, fora

impotente para impedir que ele morresse. Para impedir daquela última

vez, quando real

mente importava. Outros, talvez, poderiam morrer, mas

não Arnie.







Conte

-

me o que aconteceu





disse Mercer. Deixou seu livro na

mesa de cabeceira e inclinou

-

se para diante.





Conte

-

me tudo o que sabe,

Dennis, do começo ao fim.







O que foi que Leigh disse?





perguntei.





E como está ela?







Passou aqui a noite de sexta

-

feira, sob observação





informou

Mercer.





Teve uma concussão e um corte no couro cabeludo, que

precisou de doze pontos. Não houve marcas no rosto. Uma sorte. É uma

garota muito bonita.







Ela é



mais do que isso





falei.





É linda.







Não quis dizer nada





comentou Mercer, e um sorriso relutante,

creio que de admiração, repuxou seu rosto para a esquerda.





Nem para

mim e nem para seu pai. Ele está, poderíamos dizer assim, de saco cheio

com tudo is

so. Ela disse que você decidirá o que falar e quando.





Ele me

fitou pensativo.





Porque, segundo ela, foi você que acabou com isso.







Não fiz nada tão importante





murmurei.



Eu ainda tentava admitir a idéia de que Arnie possivelmente

estivesse morto. Era

impossível, não? Quando tínhamos doze anos,

havíamos ido juntos para o Acampamento Winnesko, em Vermont. Então,

fiquei com saudades de casa e disse a ele que ia telefonar, pedir a meus

pais que fossem lá me buscar. Arnie respondeu que se eu fizesse isso

co

ntaria para todo mundo na escola que eu voltara cedo para casa porque

eles me tinham apanhado comendo meleca em meu beliche, depois das




luzes apagadas, e me expulsado do acampamento. Nós dois tínhamos

subido na árvore do meu quintal, até o último galho, e

nele gravamos

nossas iniciais. Ele costumava dormir na minha casa e ficávamos

acordados até tarde, vendo

Filme de Terror,

encolhidos no sofá, debaixo de

um velho edredom. Tínhamos comido juntos todos aqueles sanduíches

clandestinos com Pão Maravilha. Aos q

uatorze anos, Arnie me procurara,

assustado e envergonhado, porque estava tendo aqueles sonhos sexuais e

pensava que eles o faziam molhar a cama. No entanto, eram as fazendas

de formigas que minha mente continuava repisando. Como ele poderia

estar morto, s

e havíamos feito aquelas fazendas de formigas? Santo Deus,

aquelas fazendas de formigas pareciam ter acontecido apenas uma ou

duas semanas antes! Então, como é que ele podia estar morto? Abri a boca

para dizer a Mercer que era impossível Arnie ter morrido





aquelas

fazendas de formigas tornavam absurda a própria idéia. Então, tornei a

fechá

-

la. Não podia contar

-

lhe aquilo. Ele era apenas um cara qualquer.



Arnie,

pensei.

Ei, cara





não é verdade, certo? Meu Deus do céu, nós

ainda temos muita coisa para fazer

. Ainda nem mesmo fomos juntos ao drive

-

in,

levando nossas garotas!







O que aconteceu?





tornou a perguntar Mercer.





Conte

-

me,

Dennis.







Você não ia acreditar





respondi, em voz empastada.







Talvez se surpreenda com o que eu acreditaria





disse ele.





E

t

ambém você pode ficar surpreso, com o que sabemos. Um sujeito

chamado Junkins era o investigador principal deste caso. Foi morto não

muito longe daqui. Era meu amigo. Um bom amigo. Uma semana antes

de morrer, contou

-

me acreditar que, em Libertyville, estav

a acontecendo

algo em que ninguém acreditaria. Então, foi morto. Isto torna o assunto

uma questão pessoal para mim.



Mudei cautelosamente de posição.







Ele não lhe contou mais nada?







Junkins me disse que julgava ter descoberto um antigo

assassino





prosseg

uiu Mercer, sem tirar os olhos dos meus.





Entretanto, segundo ele, isso não fazia muita diferença, porque o

criminoso estava morto.







LeBay





murmurei.






Pensei que, se Junkins descobrira isso, não era de espantar que

Christine o tivesse matado. Porque, se

Junkins chegara até aí, estivera bem

perto de toda a verdade.







LeBay foi o nome que ele mencionou





disse Mercer. Inclinou

-

se

um pouco mais para mim.





E vou lhe dizer uma coisa, Dennis: Junkins

era um motorista dos diabos. Quando mais jovem, antes do cas

amento,

costumava correr com

stocker

*



em Philly Plains, e obteve algumas vitórias.

Ele saiu da estrada fazendo uns cento e noventa, em um carro

-

patrulha

Dodge, de motor ajustado. Quem quer que o estivesse perseguindo... e nós

sabemos quem era... tinha de

ser um demônio no volante.







Sim





falei.





Ele era.







Vim aqui por minha conta. Levei duas horas esperando que você

acordasse. À noite passada, fiquei aqui até me chutarem para fora. Não há

nenhum taquígrafo comigo, não tenho um gravador e lhe garanto que



não

estou usando um microfone. Quando tiver que prestar depoimento, se

chegar a isso, a jogada será diferente. Agora, no entanto, somos apenas

nós, eu e você. Preciso saber, Dennis. Porque costumo visitar a esposa de

Junkins e seus filhos de vez em quando

. Sacou?



Refleti naquilo. Refleti durante um longo tempo





quase cinco

minutos. Ele ficou sentado e quieto, esperando que me decidisse. Assenti

finalmente.







Está bem, mas repito que não vai acreditar.







Isso ainda veremos





disse ele.



Abri a boca, ainda s

em idéia de como começar.







Ele era um perdedor, compreenda. Todo ginásio tem dois, pelo

menos, é como uma lei nacional. Sacos de pancadas de todos. Só que às

vezes... às vezes eles encontram algo a que agarrar

-

se e sobrevivem. Arnie

tinha a mim. Depois te

ve Christine.



Olhei para ele e, se tivesse visto o menor brilho indevido naqueles

olhos cinzentos, tão perturbados como os de Arnie... bem, se eu tivesse

visto isso, creio que fecharia a boca ali mesmo. Diria a ele que registrasse

                                        

             



*



Carro antigo, com o motor original recuperado com peças de outro

s carros, usado em

provas de velocidade, onde são permitidas colisões (N.T.)






em seus livros o que lhe

parecesse mais plausível, e dissesse aos filhos de

Junkins o que, diabo, lhe parecesse mais agradável.



No entanto, ele apenas assentiu, fitando

-

me atentamente.







Eu só queria que compreendesse isso





falei, e então senti um nó

na garganta, que me impediu d

e dizer o que talvez devesse ter dito em

seguida:

Leigh Cabot apareceu mais tarde.



Bebi mais um pouco d'água e engoli com força. Falei durante as

duas horas seguintes.





Finalmente, terminei. Não houve nenhum grande clímax; eu estava

simplesmente seco, com

a garganta dolorida por falar tanto. Não

perguntei se ele acreditava em mim. Não perguntei se ia trancar

-

me em

um asilo de loucos ou dar

-

me uma medalha de mentiroso. Sei que

acreditou em boa parte de tudo, pois o que eu sabia se ligava

perfeitamente ao que



era do seu conhecimento. Ignoro o que pensou do

restante





Christine e LeBay, o passado estendendo as mãos para o

presente. Como ignoro até hoje.



Uma pequena pausa de silêncio surgiu entre nós. Por fim, ele bateu

com as mãos nas coxas, fazendo um som vivo

, e levantou

-

se.







Bem!





exclamou.





Imagino que seus pais estejam esperando

para visitá

-

lo.







Sim, é provável.



Ele pegou sua carteira e tirou um pequeno cartão comercial, com seu

nome e número de telefone.







Em geral, posso ser encontrado aqui. Caso cont

rário, alguém me

dará o recado. Quando estiver com Leigh Cabot novamente, poderia

dizer

-

lhe o que me contou e pedir a ela que entre em contato comigo?







Está bem, se é o que deseja. Direi a ela.







Ela confirmará sua história?







Sim.



Ele me olhou fixamente.










Vou lhe dizer uma coisa, Dennis





falou.





Se está mentindo,

não sabe que mente.



Saiu do quarto. Só tornei a vê

-

lo mais uma vez, e foi durante o triplo

funeral de Arnie e seus pais. Os jornais publicaram um trágico e bizarro

conto de fadas; o pai morto

em um acidente de carro, na entrada da

garagem de sua casa, enquanto a mãe e o filho são mortos na auto

-

estrada

Pensilvânia. Paul Harvey o usou em seu programa.



Não houve qualquer menção à presença de Christine na Garagem de

Darnell.





Minha família foi vis

itar

-

me aquela noite e, a essa altura, eu já me

sentia muito melhor mentalmente





em parte por haver desabafado com

Mercer, imagino (ele foi o que um de meus professores de psicologia na

universidade chamou de "um estranho interessado", o tipo de pessoa co

m

quem temos facilidade de falar), porém, principalmente devido a uma

visita

-

relâmpago do Dr. Arroway, no final da tarde. Ele estava furioso e

irritado comigo. Sugeriu que, da próxima vez, enfiasse a maldita perna em

uma serra elétrica, o que nos pouparia

um bocado de tempo e

preocupações... mas também me informou (acho que com má vontade)

que não houvera nenhuma lesão permanente. Era a sua opinião. Avisou

que eu não havia melhorado minhas chances de, um dia, participar da

Maratona de Boston, e saiu.



Portan

to, foi alegre a visita da família





devido principalmente a

Ellie, que tagarelou sem cessar sobre aquele iminente cataclismo, seu

Primeiro Encontro. Um cabeça

-

dura, careta e com espinhas, chamado

Brandon Hurling, a convidara para patinarem juntos. Papai o

s levaria de

carro. Muito atraente.



Papai e mamãe se juntaram à conversa, mas ela ficava enviando

ansiosos olhares de "não

-

se

-

es

queça" para o velho. Ele ainda permaneceu

um pouco no quarto, depois que ela saiu com Elaine.







O que aconteceu?





perguntou.





Leigh contou ao pai uma

história maluca, sobre carros que se dirigem sozinhos, garotinhas que já

morreram e não sei mais o quê. Ele ficou fora de si.



Assenti. Estava cansado, mas não queria que Leigh passasse maus

bocados com os pais





ou que os deixasse

pensando que a filha mentia ou




ficara biruta. Se ela me protegera com Mercer, eu teria de protegê

-

la com

seus pais.







Está certo





falei.





É uma história e tanto. Pode mandar mamãe

e Ellie tomarem um malte ou qualquer coisa? Bem, acho que seria melhor

sug

erir que as duas fossem a um cinema.







É tão comprida assim?







Hum

-

hum. Tão comprida assim



Ele olhou para mim, com ar preocupado.







Está bem





disse.



Pouco depois, eu contava minha história uma segunda vez. Agora a

estou contando pela terceira. E, segundo

dizem, a terceira vez é a

definitiva. Descanse em paz, Arnie. Amo você, cara.





E

PÍLOGO





Se esta fosse uma história de ficção, suponho que a terminaria

contando como o cavaleiro de perna quebrada da Garagem de Darnell

cortejou e conquistou a dama loura... a

quela do cachecol rosa de náilon e

de arrogantes malares nórdicos. Entretanto, isso jamais aconteceu. Leigh

Cabot agora é Leigh Ackerman; mora em Taos, no Novo México, e está

casada com um representante das máquinas IBM. Vende produtos de

beleza, em suas h

oras de folga. Tem duas garotinhas, gêmeas idênticas,

motivo por que talvez não tenha muitas horas de folga. Continuo

mantendo contato com ela, pois minha afeição pela dama nunca chegou a

terminar. Trocamos cartões de Natal e também lhe envio um cartão de

aniversário, já que ela tampouco esquece o meu. Coisas assim. Em certas

ocasiões, parece que tudo aconteceu há mais tempo do que somente

quatro anos.







O que houve conosco? Sinceramente, não sei. Saímos juntos

durante dois anos, dormimos juntos (extremamen

te satisfatório), fomos

juntos para a mesma universidade (Drew) e nos tornamos amigos. Seu pai

se calou sobre nossa louca história, depois que o meu conversou com ele,




embora depois disso sempre me considerasse uma pessoa um tanto ou

quanto estranha. Creio



que ele e a Sra. Cabot ficaram aliviados quando eu

e Leigh tomamos caminhos diferentes.



Pude sentir isso quando começamos a afastar

-

nos, e me doeu





doeu um bocado. Eu ansiava por ela, da maneira como continuamos a

ansiar por alguma substância da qual não



mais sentimos nenhuma

dependência física... balas, fumo, Coca

-

Cola. Fiquei com dor

-

de

-

cotovelo

por ela, mas penso que de forma consciente, algo que desapareceu com

rapidez quase indecorosa.



Talvez eu entenda o que aconteceu. O sucedido naquela noite, na

G

aragem de Darnell, era um segredo nosso e, naturalmente, apaixonados

precisam ter seus segredos... mas aquele não era dos melhores. Foi algo

frio e antinatural, algo que beirava a loucura, e pior ainda do que loucura,

já que chegava à borda da sepultura. H

ouve noites, após o amor, em que

ficávamos juntos na cama, nus, corpo contra corpo, e aquela coisa estava

entre nós: o rosto de Roland D. LeBay. Eu lhe beijava a boca, os seios ou o

ventre, cálido pela crescente paixão, mas de súbito ouvia a voz dele:

Esse



é

o melhor cheiro do mundo... exceto o de cona.

E eu gelava, minha paixão se

tornava fumaça e cinzas.



Sabe Deus que houve vezes em que eu podia também ver isso no

rosto dela. Os amantes nem sempre vivem felizes para sempre, mesmo

quando agiram da maneira

que parecia correta e da melhor forma que

puderam. Aí está algo mais que levamos quatro anos para aprender.



Então, nos afastamos. Um segredo precisa de dois rostos onde

ricochetear; um segredo precisa ver

-

se refletido em outro par de olhos. E,

embora eu a

amasse, todos os beijos, todas as carícias, todos os passeios de

braços dados, através das folhas que caíam em outubro... nada disso

poderia comparar

-

se ao fantástico simples ato de ela atar sua echarpe em

torno de meu braço.



Leigh deixou a universidade pa

ra casar





e então foi adeus, Drew e

olá, Taos. Assisti a seu casamento, sem qualquer peso na consciência. Um

grande sujeito. Tinha uma Honda Civic. Nenhum problema com ele.





Nem mesmo precisei me preocupar quanto a jogar futebol. Drew

nem ao menos tem uma



equipe. Em vez disto, a cada semestre matriculei

-

me em uma matéria extra e freqüentei o curso de verão por dois anos,




época em que estaria suando ao sol de agosto, dando em cima dos

adversários, se as coisas houvessem acontecido de modo diverso. Como

resu

ltado, graduei

-

me mais cedo





de fato, três semestres mais cedo.



Quem me vê na rua, não nota o menor defeito, mas se caminhar

comigo por uns sete ou oito quilômetros (na verdade, faço quatro

quilômetros diários; isso de fisioterapia é algo que vicia), perc

eberá que

começo a puxar ligeiramente para a direita.



Minha perna dói em dias chuvosos. E também em noites nevadas.



Em certas ocasiões, quando tenho pesadelos





agora não são mais

tão constantes



, desperto suando e agarrado àquela perna, onde ainda

existe



uma saliência dura de carne, acima do joelho. Felizmente, todas as

minhas inquietações sobre cadeiras de roda, aparelhos ortopédicos e

calcanhares artificiais foram em vão. Por outro lado, deixei de gostar tanto

de futebol.



Michael, Regina e Arnie Cunning

ham foram sepultados no jazigo da

família, no cemitério de Libertyville Heights





ninguém compareceu ao

enterro, além de membros da família: os parentes que Regina possuía em

Ligonier, alguns de Michael, residentes em New Hampshire e Nova

Iorque, e uns pou

cos outros.



O funeral teve lugar cinco dias após aquela infernal cena na

garagem. Os ataúdes estavam fechados. O próprio fato daqueles três

caixões de madeira, alinhados em um estrado tríplice, como soldados,

atingiu meu coração como uma pá de terra fria.

A lembrança das fazendas

de formigas não pôde resistir ao mudo testemunho daqueles ataúdes.

Chorei um pouco.



Depois, rodei minha cadeira pelo corredor até eles e pousei a mão,

instintivamente, sobre o ataúde do centro, sem saber se era ou não o de

Arnie, m

as isso não fazia diferença. Fiquei assim por bastante tempo, a

cabeça baixa, até quando uma voz soou atrás de mim.







Quer que o empurre até a sacristia, Dennis?



Girei o pescoço. Era Mercer, parecendo muito correto e

representativo da lei, em um terno de l

ã escura.







Certo





respondi.







-

me apenas um minuto, ok.







Está bem. Vacilei, depois disse:










Os jornais disseram que Michael foi morto em casa. Que o carro

passou por seu corpo, depois que ele escorregou no gelo, ou coisa assim.







Exato





respondeu ele

.







Obra sua? Mercer hesitou.







Torna as coisas mais simples.





Seu olhar desviou

-

se, até onde

Leigh estava sentada com meus pais. Ela falava com mamãe, mas olhava

ansiosamente para mim.





Uma garota muito bonita





disse.



Mercer já fizera o mesmo comentári

o antes, no hospital.







Um dia vou casar com ela





falei.







Não seria surpresa para mim





replicou Mercer.





Alguém já

lhe disse que você tem a coragem de um tigre?







Acho que o treinador Puffer disse isso. Uma vez





falei. Ele riu.







Está pronto para aque

le empurrão, Dennis? Já ficou aqui por

tempo demais. Esqueça isso.







É mais fácil falar do que fazer. Ele concordou.







Sim, acho que sim.







Pode me dizer uma coisa?





perguntei.





Eu preciso saber.







Responderei, se puder.







O que você fez...





Precisei pa

rar e pigarrear.





O que fez com...

as peças soltas?







Eu mesmo cuidei disso





respondeu Mercer. Sua voz era jovial e

quase alegre, mas o rosto estava sério, muito sério.





Fiz com que dois

sujeitos da polícia local juntassem tudo e colocassem no compresso

r,

aquele nos fundos da Garagem de Darnell. Ficou um cubinho deste

tamanho.





Ele afastou as mãos, a uns cinqüenta centímetros uma da

outra.





Um dos sujeitos sofreu um ferimento sério. Precisou levar pontos.



Mercer sorriu subitamente





e foi o sorriso mai

s amargo e mais frio

que já vi.







Ele disse que aquilo o mordeu.



Em seguida, empurrou

-

me corredor abaixo, até onde minha família

e minha namorada esperavam por mim.








Bem, aí está a minha história. Exceto pelos sonhos.



Estou quatro anos mais velho, e o rost

o de Arnie começa a ficar

indistinto para mim, uma fotografia acastanhada, em um antigo anuário

escolar. Parece incrível que tenha acontecido, mas assim foi. De algum

modo, atravessei este período, a transição de adolescente para adulto





seja lá o que for

; possuo um diploma universitário, onde a tinta está quase

seca, e leciono História no ginásio intermediário. Comecei o ano passado,

e dois de meus alunos originais





ambos tipo Buddy Repperton





eram

mais velhos do que eu. Estou solteiro mas existem algum

as damas

interessantes em minha vida, e dificilmente penso em Arnie.



Exceto nos sonhos.



Esse sonhos não são a única razão pela qual escrevi tudo isso. Existe

outra, que explicarei em um momento, mas mentiria se afirmasse que os

sonhos não constituem uma bo

a parte da razão. Talvez isto seja um

esforço para lancetar a ferida e limpá

-

la. Também é possível que eu

apenas não seja rico o suficiente para me dar o luxo de um analista.



Em um dos sonhos, vejo

-

me de volta à cerimônia do funeral. Os três

ataúdes estão

em seu estrado tríplice, mas não há ninguém na igreja, além

de mim. No sonho, estou novamente de muletas, em pé no início do

corredor central, com a porta às minhas costas. Não quero seguir em

frente, ir até lá, mas as muletas me puxam, movendo

-

se sozinhas

. Toco no

ataúde do meio. Ele se abre repentinamente ao contato e, jazendo no

interior acetinado, não está Arnie, mas Roland D. LeBay, um cadáver

putrefato, em uniforme do Exército. Quando o cheiro nauseante de podre...

me atinge, o cadáver abre os olhos;

suas mãos pútridas, enegrecidas e

pegajosas por alguma excrescência fungóide, tateiam para cima e

encontram minha camisa, antes que eu possa recuar. Então, elas me

puxam, até que seu rosto feroz e fedorento fica apenas a centímetros do

meu. Ele começa a cr

ocitar, mais e mais:

Não suporta o cheiro, hein? Nada

cheira tão bem... exceto uma cona... exceto uma cona... exceto uma cona...

Tento

gritar, mas não posso, porque as mãos de LeBay se fecharam em um

pernicioso, apertado anel em torno de minha garganta.



No



outro sonho





e este, de certa forma, ainda é pior





eu termino

de dar uma aula ou estou atuando como inspetor em uma sala de estudos

do Ginásio Norton, onde leciono. Recoloco meus livros em minha pasta,




guardo nela as minhas provas e deixo a sala, dirigi

ndo

-

me à aula seguinte.

E lá, no corredor, apertada entre os armários cinza

-

industrial dos alunos,

está Christine





nova em folha e cintilante, repousando sobre quatro

pneus novos de banda branca, um enfeite cromado da Vitória Alada no

capô, empinado em mi

nha direção. Christine está vazia, mas seu motor

acelera e diminui... acelera e diminui... acelera e diminui. Em certos

sonhos, a voz que vem do rádio é a de Richie Valens, morto há muito

tempo em um desastre de avião, com Buddy Holly e J. P. Richardson,

T

he

Big Bopper.

Richie está gritando "La Bamba" em ritmo latino. Quando

Christine arremete subitamente para mim, deixando marcas de borracha

no piso do corredor e arrancando portas abertas dos armários a cada lado,

com suas maçanetas, vejo que em sua diante

ira há uma placa

exibicionista





um sorridente crânio branco, sobre campo inteiramente

negro. Acima da caveira estão impressas as palavras O ROCK AND ROLL

JAMAIS MORRERÁ.



Então acordo





algumas vezes gritando, mas sempre agarrando

minha perna.





Os sonhos,

contudo, agora têm sido menos regulares. Em uma de

minha aulas de Psicologia





tive muitas delas, talvez ansiando

compreender coisas que não podem ser compreendidas





li que as

pessoas sonham menos à medida que ficam mais velhas. Acredito que,

agora, tudo

irá bem comigo. No último Natal, quando enviei a Leigh meu

cartão anual, acrescentei uma linha à nota costumeira no verso. Abaixo da

assinatura, movido por um impulso, garatujei:

Como tem manejado aquilo?

Então, selei o cartão e o remeti, antes que me arre

pendesse. Um mês mais

tarde, recebi um cartão

-

postal, mostrando o novo Centro de Artes de Taos.

Nas costas, havia o meu endereço e apenas uma linha seca:

Manejando o

quê? L.



De um jeito ou de outro, creio termos descoberto coisas que temos

de saber.



Mais o

u menos pela mesma época





parece que meus pensamentos

se concentram nisso, com mais freqüência, justamente por volta do

Natal





escrevi uma nota para Rick Mercer, porque a questão

permanecera em minha mente, atormentando

-

me cada vez mais. Eu lhe

perguntav

a o que tinha sido feito do bloco de sucata de metal que, uma

vez, fora Christine.






Não recebi resposta.



O tempo, entretanto, tem

-

me ensinado a lidar também com isso.

Venho pensando menos em tais assuntos. Realmente.





Assim, aqui estou eu, no finalzinho de

tudo, velhas lembranças e

velhos pesadelos, amontoados em um ordenado punhado de páginas. Em

breve, tais páginas serão postas em uma pasta, essa pasta irá para meu

arquivo, a gaveta será trancada





e isso significará o fim.



Bem, eu disse que havia algo mai

s, não? Uma outra razão para

anotar tudo.



Seu egoístico objetivo. Sua fúria interminável.



Foi algo que li no jornal, algumas semanas atrás





apenas um item

fornecido pela AP, creio que por ser bizarro.

Seja franco, Guilder,

posso

ouvir Arnie dizendo





port

anto, serei franco. Pois foi esse item que me

impeliu a prosseguir, mais do que todos os sonhos e antigas lembranças.



A notícia dizia respeito a um indivíduo chamado Sander Galton,

cujo apelido





podemos supor logicamente





deve ter sido Sandy.



Este Sander



Galton foi morto na Califórnia, onde trabalhava em um

cinema

drive

-

in,

em Los Angeles. Estava aparentemente sozinho, fechando

tudo por aquela noite, após terminado o filme. Encontrava

-

se no bar. Um

carro derrubou uma parede, derrubou o balcão, amassou a m

áquina de

pipocas e o pegou, quando ele tentava abrir a porta para a cabine de

projeção. Os tiras deduziram que era o que fazia, no momento em que o

carro o atropelou, porque encontraram a chave em sua mão. Li a notícia,

intitulada ESTRANHO ASSASSINATO POR



AUTOMÓVEL EM LOS

ANGELES





e pensei no que Mercer me tinha dito, aquela última coisa:

Ele disse que aquilo o mordeu.



Claro que é impossível mas, de início, tudo era impossível.



Fico pensando em George LeBay, no Ohio.



Na irmã dele, no Colorado



Em Leigh, no



Novo México.



E se a coisa começar outra vez?



E se a coisa estiver vindo para leste, terminar o serviço?






Deixando

-

me para o fim?





Seu egoístico objetivo.



Sua fúria interminável





F I M










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