A negrinha dos olhos tristes
Tinha eu, na época, uns 15 anos quando a história que conto aconteceu. Lembro-me do dia como se fosse hoje. Era uma tarde de sábado, estava abafado e poucos carros haviam passado pela estrada de chão que cortava nossa fazenda. Eu e minha família arrumávamo-nos para irmos à missa, era habitual assistirmos à missa das 18h na Igreja Matriz da cidade. Foi aí que Chico, um empregado de meu pai, chamou-nos falando que algo de errado estava acontecendo nas terras do vizinho.
Nosso vizinho morava há uns 2 km de distância, numa bela chácara. Eram os Matos, Seu Honório, Dona Mariana, o filho Laerte e uma negrinha de adoção – Fabiana. Essa menina foi a dona do olhar mais triste que já vi. Ela tinha uns nove anos, mas aparentava menos devido à magreza e pequena estatura, foi adotada com o objetivo de que cuidasse do filho do casal – o menino Laerte – de três anos.
Sempre que tivemos a possibilidade de conviver com a família Matos presenciávamos a mesma cena. Quando Laerte caia, fazia alguma travessura ou chorava; a pequena menina era punida pela Dona Mariana. A mulher puxava as orelhas e os cabelos da coitada, quando não tirava o cinto e batia com força na pobre criança. Nunca entendi como nossa vizinha podia ser tão ruim com a indefesa negrinha. Todos viam a menina ser maltratada, mas ninguém falava nada. Minha mãe dizia que não deveríamos nos meter na forma que os pais educam os filhos, naquela época infelizmente era assim.
Voltando ao dia do acontecido, Chico informou-nos de que há pouco tempo tinha passado a cavalo pela propriedade vizinha e ouvira os gritos de Dona Mariana, não quis chegar com medo de ser recebido a tiro pela mulher. Dessa forma, achou melhor pedir ajuda ao meu pai. Papai pegou as chaves do carro, uma espingarda e saiu no seu carro deixando um rastro de poeira pela estrada. Horas após, ele retornou e contou-nos o acontecido.
Naquela tarde, Dona Mariana foi lavar roupas no córrego que passava por nossas propriedades e levou junto Fabiana e Laerte. Lavava roupas quando se lembrou do feijão que deixou cozinhando no fogão, mandou a menina cuidar do garoto e foi até a casa tirar a panela do fogo. Quando ela voltou ao local disse ter encontrado as duas crianças afogadas, seus corpinhos boiavam na água. Meu pai chegou às terras vizinhas no momento que Dona Fabiana voltava à casa da família carregando o corpo de Laerte. Foi meu pai que teve a missão de ir retirar a menina de dentro da água e levá-la a casa. Papai contou que a pobre negrinha tinha marcas de uma batida forte na cabeça, marcas que pude ver durante o velório das crianças.
Foi uma das cenas mais tristes que presenciei, o velório daqueles dois anjinho. Seu Honório repetia que avisara Dona Mariana para não deixar as crianças sozinhas no córrego, e a mulher, mesmo naquela hora, culpava a pobre menina pela morte do filho. Nunca tive tanta vontade de bater em alguém como naquele dia. Minha mãe, vendo minha indignação, acalmou-me falando que a menina descansaria perto da Virgem Maria, enquanto a má mulher passaria o resto da vida chorando a morte do filho e sendo acusada pelo marido.
Muitas noites após esse desastre, eu dormia imaginando a pobre negrinha vestida de branco, brincando e sorrindo, apresentando um olhar de uma criança feliz e amada. Já Dona Mariana enlouqueceu e foi internada em um hospício. Gosto de pensar que a vida encarregou-se de fazer justiça.
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