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A Vingança
Nasral Gomes


     A estampa dos azulejos do banheiro de Fabrício apresentava uma delicada guirlanda de ramos amarelos que lembrava uma coroa de louros dourados comemorativa de vitória. Sentado no vaso sanitário, ele refletia sobre o sucesso de sua vida ao completar mais uma etapa. Acabara de se formar em Engenharia Civil, pertencia a uma família famosa e de ótima condição financeira, tinha as garotas a seus pés e conseguira angariar também as simpatias dos pais delas. Era branco, tinha os cabelos castanho-claros, olhos azuis e estatura média. Enfim, era belo, mais do que a maioria dos rapazes da universidade, popular e sabia que merecia tudo o que tinha. Definitivamente, era um vencedor. Queria ver os rostos dos amigos naquele momento, pois eles já deveriam estar sabendo as últimas notícias.
     Era o início do ano de 1975 numa pacata e provinciana cidade do interior do estado de São Paulo e estava sendo organizado um grande baile para a comemoração da primeira formatura dos cursos da jovem universidade da cidade. Eram três cursos — Engenharia Civil, Direito e Pedagogia — e a população estava em polvorosa com a expectativa do baile, que seria o grande acontecimento de todos os tempos até então. Havia apenas a frustração de as obras de ampliação do clube, que sempre fora por excelência o ponto de encontro da juventude e local de relaxamento dos mais velhos, não terem podido ser concluídas até a data do baile. A festa aconteceria no antigo salão e as pessoas estavam determinadas a se divertir assim mesmo.
Naquela tarde, os amigos Pedro, Luiz e Jorge estavam sentados em uma mesa no clube, próxima à piscina, conversando tristemente sobre o baile, que aconteceria dentro de cinco dias. Cabisbaixos e revoltados, eles lamentavam o fato de terem recusados os seus convites de dançar a Valsa da Princesa com as garotas de quem gostavam. Suas situações eram semelhantes. Ambos tinham se formado em Engenharia Civil, vinham tentando havia anos construir um relacionamento com garotas da Pedagogia, e viam agora a confirmação da destruição de seus sonhos românticos, por uma mesma pessoa. A Valsa da Princesa no baile de formatura era uma invenção dos dirigentes do curso de Pedagogia e seria como a formalização do interesse especial que houvesse entre uma moça do curso e um rapaz escolhido por ela. Os três amigos sentiam agora que suas pretendidas decidiram não dar início a um relacionamento amoroso com eles.
Luiz não se conformava com o fato de Márcia ter aceitado o convite de Fabrício para a dança. Ele é que era o companheiro que estava sempre ouvindo-a, compreendendo-a e oferecendo seu ombro amigo. Enquanto Fabrício aparecia apenas eventualmente e com galanteios fajutos e forçados, demonstrando um nítido falso interesse. E o pior era a sua bajulação com a mãe dela, uma mulher alienada que parecia se preocupar apenas com a proibição ou liberação pela censura do capítulo da novela da noite.
Jorge também estava desolado com o fato de Luciana ter aceitado o convite de Fabrício. Já trocara até um beijo com a moça e vinha sutilmente tentando iniciar um namoro com ela. Mas sabia que não podia competir com o estilo de vida de Fabrício e sua casa enorme, com várias salas, cinco suítes, piscina e amplo jardim, onde aconteciam as melhores e mais badaladas festas do pessoal da universidade. Luciana nunca escondera o fascínio que sentia por aquela casa e aquelas festas, que não poderiam acontecer em outras casas por falta de espaço e estrutura. E Fabrício se aproveitava disso para seduzi-la também.
— Ele é que pensa que vai ser o “príncipe” da noite e passar por cima de todos nós ! — explodiu Pedro que, até então, estivera calado e pensativo. Quando soube que Rosana, por quem estava apaixonado havia anos e a quem dedicava seu futuro e seus mais doces sonhos, aceitara o convite de Fabrício, sentiu todo o sangue de seu corpo ferver de cólera. O pai da moça tinha uma admiração incondicional por Fabrício, que era filho de um fazendeiro bem-sucedido e de uma dama da sociedade, além de se dizer também favorável ao regime militar do governo. Estava claro que Fabrício sempre se aproveitara de sua imagem para cortejar Rosana também. Pedro, ao invés de seguir seu primeiro impulso e tentar dar uma surra em Fabrício, resolveu dar-lhe uma vingança mais emocionante e diferente.
— Ele não vai dançar com ninguém naquela noite. Vai passar o baile todo na privada! — completou.
— Como assim? — indagou Jorge, seguido pela expressão de interrogação de Luiz.
— Nós vamos colocar laxante numa bebida dele, no início da festa.
— Poderíamos pôr óleo de rícino, que faz um efeito devastador! — comentou Luiz com os olhos brilhando.
— Esse óleo tem um sabor horrível e seria impossível disfarça-lo em alguma bebida... Vai ser o laxante líquido para cavalos, que também faz um efeito terrível em pessoas e, o melhor de tudo, é que é rápido! — concluiu Pedro.
— Isso é que é vingança! Só você para alegrar meu dia mesmo... — acrescentou Jorge, enquanto ria prazerosamente.
     Fabrício realmente sentira sempre um estranho prazer em conquistar as pretendidas dos amigos, mostrando-lhes sua superioridade, e apresentando para si mesmo a justificativa de que quem pode, deve aproveitar e viver tudo o que a vida possibilita. Naquela tarde, enquanto se limpava, se levantava do vaso sanitário e lavava as mãos em sua pia com bancada de mármore, relembrava que a universidade em peso frequentava suas maravilhosas festas e o reverenciava como um ídolo. Ao se olhar no espelho e fitar seus lindos olhos azuis, seu cabelo perfeito e sua cútis alva, dizia para si mesmo com a mesma altivez de sempre que, no baile de formatura, a primeira festa da universidade que não aconteceria em sua casa, ele seria simplesmente o Rei e a inatingível Mirian não conseguiria resistir mais.
* * *
     Mirian ajudava Rosana a escolher seu vestido para o baile. Ela acabara de se formar em Direito, era decidida, independente e sabia o que queria para sua vida. Esperta, ela nunca se deixara seduzir facilmente por aproveitadores e sempre mantivera uma barreira contra Fabrício.
— Olhe, Mirian, o que você acha deste vestido azul com paetês? — disse Rosana enquanto encostava o vestido no corpo e se olhava no grande espelho da loja.
— Bonito, porém um pouco provocante demais... Acho que um baile exige uma roupa mais sóbria.
— Imagina! Eu quero estar deslumbrante, radiante, esplendorosa... Eu preciso impressionar o Fabrício e ouvi rumores de que ele vai dançar com outras moças também. Tenho que fazer tudo para tentar ser a escolhida dele. Quem sabe ele não me pede em namoro depois do baile? Acho que ele sente alguma coisa por mim... E meu pai se dá tão bem com ele... Seria perfeito!
— Ai, Rosana! — tornou Mirian, visivelmente consternada.
— Ora, Mirian, não seja assim! Você tem que sonhar mais, voar... Só de me imaginar descendo aquela escadaria da casa dele de braço dado com ele, eu sinto uma explosão de alegria dentro de mim...
— Não se iluda tanto assim! Esse cara é um falso, arrogante e interesseiro. Ele seduz várias garotas ao mesmo tempo só para se divertir e se autoafirmar. E você acreditaria se eu te dissesse que ele me convidou para dançar também no baile, mesmo sem eu nunca lhe ter dado confiança? E pior: num salão reservado, só nós dois!
— E o que você respondeu? — Inquiriu Rosana de olhos arregalados, após um instante de choque.
— Que lhe daria a resposta durante a festa. Você deveria dar uma chance ao Pedro, pois ele parece ter uma afeição sincera por você. E eu também sonho sim... Na verdade, eu sempre quis saber quem é o Fabrício de verdade... Sem essa máscara, essa carapaça de aparências e futilidades... Queria vê-lo humilhado para que ele se expressasse estando no seu devido lugar!
     Mirian já planejara sua vingança pessoal: diria que dançaria com ele depois da Valsa da Princesa, iria embora antes e deixá-lo-ia esperando inutilmente.
* * *
     É chegada a noite do baile. O clube resplandece alegria e euforia, com o salão de festas decorado com profusões de flores delicadas e faixas de sedas reluzentes. O teto estava inteiramente revestido com tramas de peças de voal, que se uniam na laje do andar superior e formavam um dossel de cujo centro pendia um lustre de cristal decorado com mais faixas de seda; uma solução estética para disfarçar os balcões ainda em obras que se debruçavam para aquele salão. Algumas pessoas já estavam no clube, jogando cartas, saboreando drinks ou simplesmente confraternizando antes da festa. Pedro, Luiz e Jorge também. Haviam chegado cedo para dar início à vingança o quanto antes. Passado algum tempo, Fabrício enfim chega.
— Olá, amigos! — Disse Fabrício, com seu sorriso cativante e que, agora, os amigos sabiam mais do que nunca que era falso. — Vocês chegaram cedo. Esta noite será inesquecível!
— Vamos tomar uma cerveja! — Convidou Pedro.
— Sim, pegue uma para mim que eu volto num instante. — Respondeu Fabrício.
     Oportunidade melhor não poderia haver. Na mesa, longe dos olhos de Fabrício, Pedro despejou um frasco inteiro de laxante para cavalos numa caneca de cerveja e deixou ali esperando por ele. Luiz e Jorge se entreolharam divertidamente e pensaram ao mesmo tempo numa resposta para Fabrício: “Sim, para você esta noite será realmente inesquecível!”.
     Ele fora subornar generosamente um funcionário para que deixasse destrancadas as portas das outras salas do clube. Pensava em levar para elas algumas garotas em quem tinha mais interesse e seduzi-las até deixa-las excitadas. Depois voltariam ao baile, com elas completamente hipnotizadas por seus encantos e implorando por sua companhia. Ah, como ele apreciava essas situações! E na sala contígua ao salão de festas, dançaria a sós com Mirian, derrubando de vez sua resistência. Sua imagem naquela noite, com o terno preto perfeito, que contrastava com sua pele clara e seus olhos azuis, apenas reforçava a sua autoconfiança que nunca se abalava.
     O tempo passou e o público começou a chegar em peso. Compareceram muito mais pessoas do que estava previsto e o salão chegou a ficar praticamente intransitável. Fabrício, que já havia jogado bastante charme para Rosana e conversado animadamente com o pai da moça, sentiu um desconforto, atribuído à visão desagradável do salão lotado. Repentinamente, Mirian o abordou:
— Boa noite, Fabrício.
— Mirian! Como você está linda hoje. Na verdade você é linda! — Afagou ternamente o rosto da moça, observando seu delicado vestido perolado com um gracioso laçarote de seda na altura do ombro direito. — Será que eu vou poder ter uma grande surpresa nesta noite?
Compreendendo imediatamente a insinuação, Mirian respondeu-lhe:
— A minha resposta é sim. Logo que terminar a Valsa da Princesa, vou me encontrar com você para dançarmos. Lembra-se de que as trinta moças de Pedagogia dançarão uma por uma e de acordo com a ordem alfabética de seus nomes? Bem, claro que você se lembra, pois vai dançar com várias delas, não é? — Fabrício sentiu o desdém na voz de Mirian e um descontentamento se somou ao desconforto generalizado que já estava sentindo. — Estarei esperando por você na entrada do salão.
     Mirian não podia negar que ele estava realmente um príncipe encantado naquela noite e que, como sempre, usava sua superioridade para se exibir e humilhar sutilmente as pessoas. Como detestava a arrogância e a frivolidade dele! Adoraria poder ver sua expressão de derrota ao ficar plantado na entrada daquele salão por horas a fio... Mentalmente ela imaginou Fabrício sem popularidade, sem bajuladores, sem festas, enfim sendo um rapaz comum. Quem seria o verdadeiro Fabrício afinal???
     O diálogo com Mirian não surtiu a alegria que deveria em Fabrício. Ele sentia uma estranha pressão estomacal e uma sensação incômoda de agonia que não estava passando. Parecia que tudo à sua volta perdia o brilho. O calor do salão o sufocava. As doces melodias que a orquestra tocava o irritavam. A visão de seu pai sendo fartamente bajulado por todo tipo de gente e de sua mãe despertando a atenção das mulheres com seu belíssimo vestido brilhante e seu penteado impecável causou-lhe uma estranha sensação de aperto no peito. Queria muito estar em casa, fechado em seu quarto e entregue a seus devaneios.
— Não! Esta é a noite da minha vida! Eu e meus pais somos os soberanos deste baile e eu vou fazer muitas garotas se apaixonarem por mim definitivamente. — Fabrício pensou, tentando se reanimar. Porém, não adiantou. Algumas pontadas em sua região abdominal desviaram a sua atenção e ele começou a se sentir deslocado naquele ambiente. Logo, decidiu se juntar aos amigos, numa tentativa de se confortar.
     Pedro e Luiz conversavam animadamente e ficaram estáticos com a aproximação de Fabrício. Ele nunca vira aqueles olhares inquisidores e maliciosos nos amigos, que geralmente o olhavam com um sutil brilho de reverência por reconhecerem sua superioridade. Eles também não o fizeram se sentir melhor. As pontadas não estavam passando e a pressão agora parecia estar no intestino. Após algum tempo, Jorge chegou à mesa e direcionou a Fabrício o mesmo olhar estranho.
— Você viu como a Luciana está linda nesta noite? — Perguntou Jorge a Fabrício. — Se você não puder dançar com ela, eu vou no seu lugar.
— Por que eu não poderia dançar com ela?? — Devolveu ele, sentindo-se mais desconfortável do que antes. De repente, dois roncos seguidos soaram de sua barriga, provocando nos amigos uma grande vontade de rir.
— Você está se sentido bem, Fabrício? — Inquiriu Pedro, visivelmente tentando prender uma gargalhada.
— Claro que estou! — Pela primeira vez na vida, ele se sentiu seriamente constrangido perante os amigos. — Apenas faz tempo que eu não como alguma coisa. Vou procurar um garçom.
* * *
     Definitivamente Fabrício não estava se sentindo bem naquela noite. Sua barriga “revirava” cada vez mais. Ele acreditou estar um pouco nervoso, apesar de não compreender a razão. Resolveu sair do salão e alcançar a área externa para respirar ar fresco. Infelizmente, a multidão o impossibilitou. Nem a entrada do salão era visível. Embrenhando-se no meio das pessoas, a todo momento ele encontrava conhecidos que o paravam para conversar. A maioria eram pessoas que ele bajulava para poder seduzir alguma garota, normalmente parentes delas. Outros eram conhecidos da universidade que frequentavam suas festas. As pontadas se transformaram em cólicas. Fabrício teve que reconhecer que estava realmente com dor de barriga. E não sabia o que fazer.
— Fabrício, meu querido! — Exclamou escandalosamente a mãe de Márcia, que surgiu não se sabia de onde num vestido roxo que apertava forte e deselegantemente todas as suas gorduras. Ela o tomou pelo braço e o arrastou para a mesa da família, apresentando-o e elogiando-o efusivamente. Para ele, aquilo parecia um pesadelo. Ao som de mais roncos provenientes de sua barriga, a inconveniente mulher afirmou que ele estava com fome, pegou um canapé com a mão e o fez comer.
     A orquestra parou de tocar. No microfone, foi anunciado o início da Valsa da Princesa. Uma vibrante salva de palmas ecoou pelo salão e a multidão começou a desocupar seu centro para dar espaço à dança. Em volta dessa área vazia, bem abaixo do lustre, as pessoas, sem espaço para se distribuírem melhor, formavam uma muralha compacta e praticamente intransponível. Fabrício sentia-se aprisionado e sem saída, como um animal encurralado numa armadilha. Parado em pé no meio da multidão, ele começava a se contorcer e os ruídos provenientes de seu abdômen às vezes despertavam atenções.
— Isto não pode estar acontecendo! Não pode ser uma dor de barriga, tem que ser um nervosismo ou sei lá o que. — Pensava ele, fechando os olhos e tentando desesperadamente esquecer que estava num salão lotado, ao mesmo tempo em que tentava manter seu olhar altivo de sempre e sua imagem poderosa e elegante.
     A primeira moça com quem Fabrício dançou chamava-se Denise e ele nem conseguiu olhar para ela direito. Uma contração no intestino acompanhou a primeira sensação da iminente diarreia. Sorrindo para Denise durante todo o tempo e deslizando graciosamente pelo salão, em meio a vários flashs dos fotógrafos, o único pensamento que ele tinha era de que precisava urgentemente de um banheiro. Nunca tivera uma dor de barriga como aquela e não sabia até quando poderia aguentar.
     Pedro, Luiz, Jorge e vários outros colegas que já estavam sabendo sobre a situação subiram nas cadeiras para observar a pista de dança e acompanhar as reações de Fabrício. As risadas, que já despontavam em seus rostos, se tornaram incontroláveis quando, após a dança, ele tentou um tanto desajeitadamente penetrar na multidão, certamente desesperado para ir ao banheiro.
     Fabrício estava em sérios apuros. Além de abominar sanitários públicos, ele sabia que a sua necessidade poderia ser bastante ruidosa e fedorenta, uma situação impossível de se disfarçar, o que seria uma grande humilhação perante os outros rapazes. Ir ao banheiro assim não combinava com um príncipe como ele, não com aquele terno perfeitamente alinhado, não naquela noite... Seus pais transbordavam de orgulho de seu principal herdeiro, o príncipe da cidade e o continuador da tradição e do prestígio da família. Eles nem desconfiavam do aperto que o filho vivia e este jamais lhes contaria, pois essa conservadora família não conversava sobre necessidades fisiológicas. Em sua portentosa residência, cada membro as realizava ocultamente em seu próprio banheiro.
— Meu Deus, ajude-me! — Pensou Fabrício, sentindo mais uma forte contração, acompanhada de uma pressão da diarreia querendo sair a qualquer custo. A multidão não o deixava avançar muito. Mais conhecidos o paravam para cumprimentá-lo e trocar algumas palavras. Pela primeira vez em sua vida, ele se sentia pagando caro pelo seu interesse e egoísmo, que foram as razões que sempre o levaram a se aproximar de tanta gente. Naquele momento, queria não conhecer ninguém naquele salão e simplesmente abrir caminho direto para o banheiro! Queria não ter que dançar com ninguém e ir aliviar imediatamente aquela dor de barriga. Mas ainda faltavam três danças, sem contar a dança particular com Mirian. — Aaaaai! — O pensamento se resumia à visão de um vaso sanitário e o sentimento era de uma saudade dolorosa de seu próprio banheiro, de forma que ele quase conseguia enxergar a estampa de seus azulejos.
     Quando estava quase se desvencilhando da barreira de pessoas, foram anunciados os nomes de Luciana e o seu no microfone. Então a multidão enfim abriu caminho para Fabrício passar e ele teve que seguir o caminho contrário ao que mais queria naquele momento. Dançando com Luciana, ele suava frio descontroladamente, apresentava os olhos arregalados e movimentos mecanizados, concentrado apenas em segurar a avassaladora diarreia que o acometia impiedosamente. Ela dançava hipnotizada pela magia do momento, com seu vestido de delicada musselina verde esvoaçando pelo ar e fotógrafos registrando aquele momento mágico, sentindo-se uma princesa com seu príncipe, o que era precisamente o objetivo daquela valsa.
     A dança com Márcia veio logo em seguida e a dor de barriga de Fabrício apenas piorava. Contrações lancinantes o faziam transpirar mais e a pressão que a diarreia exercia o obrigava a se contorcer cada vez mais visivelmente. Ela percebeu que ele estava diferente e, arfante, ele apenas respondeu que estava com muito calor naquele salão lotado e precisava de ar puro. A turma que incluía os rapazes que haviam engendrado a vingança agora notava claramente que Fabrício estava passando mal e todos se divertiam deliciosamente com o espetáculo. Concentrados na cena, eles torciam para que ele simplesmente se borrasse todo, pernas abaixo, ali no centro do salão.
     Isso quase aconteceu. Em um momento, Fabrício não conseguiu segurar um pequeno jato de fezes líquidas que fugiu do seu controle e sujou sua cueca. A sensação foi terrível, porém aliviou a dor de barriga. Márcia não percebeu e, ao terminar aquela dança, ele estava decidido a alcançar um banheiro a qualquer custo e enfrentar a possível humilhação. A noite definitivamente já tinha perdido todo o encanto. Nem a altivez ele conseguia manter mais e agora já havia até defecado nas calças.
— Com licença! Com licença! Com licença! — As pessoas observavam Fabrício, cuja popularidade não deixava passar despercebido, pronunciar essas palavras incansavelmente enquanto tentava atravessar a multidão em direção à entrada do salão. Aquela pequena borrada na cueca já exalava um cheiro que, pelo teor de azedo, demonstrava a quem o sentia que não se tratava apenas de gases. Muitos já percebiam que Fabrício morria de dor de barriga. No outro extremo do salão, seus amigos e muitas outras pessoas que já se haviam inteirado da vingança, formavam uma turba de espectadores em êxtase de divertimento.
* * *
À entrada, a multidão não diminuía muito. Os sanitários se localizavam próximos a ela e Fabrício se viu tentando penetrar, sem se dar conta, a imensa e desorganizada fila que se formara por pessoas querendo utilizá-los. Teve que se encaixar atrás do último homem da fila. Sentiu-se como um barco à deriva na iminência do naufrágio. E o terror recomeçou, com mais uma cólica lancinante que o obrigou a sair correndo dali em direção aos corredores do clube. Quanto mais se afastava da entrada do salão, menos pessoas ele via e se sentia, pelo menos, um pouco mais livre. Corria na velocidade que suas pernas, o mais juntas possível, permitiam. De sua majestade já nada restava; seus belos olhos azuis estavam lacrimejantes e arregalados, seu lindo terno estava empapado de suor, e sua aparência era a de um bandido apavorado fugindo da polícia. Mas suas pernas unidas e o fedor que ele exalava denotava claramente a terrível dor de barriga que sentia e as pessoas que o viam naquela situação não conseguiam deixar de segui-lo com o olhar.
     Fabrício lembrou-se de que combinara que os demais recintos do clube ficariam destrancados e sentiu-se muito feliz com a perspectiva de usar o banheiro de algum deles. Naquelas circunstâncias, ele defecaria até em uma lata de lixo, qualquer coisa valia para acabar com aquele sofrimento intestinal. Mas lembrou-se de que os únicos outros banheiros que existiam no clube eram o dos funcionários, o da sala de jogos, o da lanchonete e o vestiário da área das piscinas. Esses dois últimos estavam muito longe e não faziam parte do combinado e o dos funcionários também estava inacessível. Completamente desesperado, Fabrício rumou para a sala de jogos, correndo pelo corredor com a mão direita na nádega correspondente, numa tentativa inconsciente de prender a diarreia que queria explodir a qualquer momento.
     Chegando lá, ele constatou que outras pessoas haviam descoberto que a porta não estava trancada e vários casais jaziam nas penumbras em atitudes despudoradas. Fabrício chocou-se com a porta do sanitário masculino, que, para aumentar ainda mais seu desespero, estava trancada, bem como a do feminino. Como uma criança desiludida, ele começou a chorar copiosamente. Realmente não se lembrara de incluir no combinado as portas dos sanitários. Agora era tarde, mais um jato de diarreia escapou de seu ânus e emporcalhou suas calças ainda mais. Com fedor, que se multiplicou, as pessoas, mesmo sem enxergarem direito o que estava acontecendo, interromperam suas atividades e voltaram as atenções para aquele intruso que entrara afobado na sala. Não havia dúvidas de que se tratava de um pobre coitado com dor de barriga que não conseguia mais se segurar.
     Mergulhado em sua derrota, Fabrício ainda se lembrou de que o único recanto possível para sua urgente defecação era agora o andar superior que estava em obras. Subiu as escadas chorando de agonia e vergonha, prendendo ainda mais as pernas, uma contra a outra, tentando evitar mais uma catástrofe na roupa. Esse andar estava atulhado de materiais de construção e entulhos de obra em todos os cantos e os sanitários ainda não estavam com as louças instaladas. Pensando em defecar em qualquer lugar no chão, já que estava completamente sozinho, Fabrício enxergou um latão posicionado bem no balcão que dava para o salão. Correu para lá, arrancando o paletó e largando-o pelo caminho e se desvencilhando desajeitadamente do cinto. Arrancou as calças e se jogou sentado no latão, ao mesmo tempo em que a diarreia, que o torturava havia tanto tempo, explodia como uma bomba atômica, espalhando o fedor por todas as direções acompanhado pelo estrondo característico. Fabrício nem mesmo percebia que estava exatamente encima do salão de bailes e nem sequer ouvia a doce música que a orquestra tocava. Oculto pelos fartos pedaços de voal, que disfarçavam aquele mezanino em obras, ele também não ouviu o anúncio de sua dança com Rosana. Naquele momento, Fabrício, que já desabotoara a camisa e tirara a gravata para refrescar o peito suado, se encontrava de olhos fechados, apreciando aquele alívio como um estado de nirvana.
* * *
No salão, a festa prosseguia animada, com muitos risos e muita confraternização entre os convidados. As canções de valsa embalavam os casais e despertavam calorosas emoções nos espectadores. Nessa altura, em todos os locais do salão já se sabia da dor de barriga de Fabrício, de forma que não houve espanto quando ele não apareceu ao ter seu nome anunciado juntamente com o de Rosana para a próxima dança. Ela permaneceu parada, com o pai ao seu lado, esperando por ele. Em seu vestido azul bordado com muitos paetês, ela se sentia constrangida, não sabia onde estava seu príncipe e não sabia o que pensar. Muitos convidados já imaginavam que Fabrício devia estar ilhado em algum banheiro e que, pelo desespero em que ele havia sido visto, iria demorar bastante.
O balcão onde realmente estava Fabrício era inteiramente de madeira e tivera algumas escoras retiradas de forma a liberar mais espaço no salão abaixo. Após um tempo, o piso não suportou seu peso e cedeu, precipitando Fabrício sentado no latão contra os tecidos que formavam o dossel do teto. Em apenas três segundos, houve um pequeno tumulto, com pessoas fugindo do piso que cedia acima delas, e Fabrício estava novamente no salão de bailes. Ninguém se feriu e o piso não desmoronou totalmente; mas o baile parou com o público estupefato após o estampido oriundo da queda do latão e com a visão mais assombrosa que aquelas pessoas já haviam visto em suas vidas. Fabrício estava caído de bruços, sobre camadas de voal, semidesnudo e banhado em fezes líquidas, bem no centro do salão.
O espanto foi geral, de forma que, por longos instantes, o salão permaneceu em completo silêncio, com todos procurando entender o que estava acontecendo. Após o choque, alguns tiveram impulsos de rir, outros tiveram ânsia de vômito, outros se sentiram penalizados por Fabrício, outros sentiram uma íntima satisfação com sua horrível humilhação... Os articuladores da vingança, no entanto, nada sentiam. Pedro, Luiz e Jorge permaneceram em estado de choque e verificaram que a vingança fugiu do controle. Rosana, diante daquela cena tão próxima a ela, desmaiou nos braços do pai, que tentava desesperadamente tampar o nariz. O pai de Fabrício, ao avistar a cena, sentiu como se uma facada atravessasse seu peito e a mãe, sentiu uma terrível falta de ar com a iminência de um desmaio. Porém ambos, que agora viviam plenamente a mesma humilhação do filho, levantaram-no no meio do salão, envolveram-no com um pedaço de voal e se apressaram a desaparecer dali o mais rápido possível. Fabrício não se ferira na queda e estava completamente atordoado, sem conseguir pensar nem sentir nada. Aquela situação era mais do que uma vergonha, era como a morte. Carregado pelos pais, totalmente defecado e insuportavelmente fedorento, ele atravessou todo o corredor do clube, sob os olhares fixos e espantados de pessoas que surgiam de todos os lugares para acompanhar aquele acontecimento. Próximo à saída, Mirian, que já estava pronta para ir embora, o viu naquele estado e compreendeu o motivo de todo o alvoroço.
Dentro do carro, durante o trajeto até a casa, Fabrício era constantemente interrogado e duramente censurado pelo enfurecido pai. Mas nada conseguia lhe responder e seus olhos azuis, outrora radiantes, agora estavam prostrados e sem vida. Ao chegar lá, mais uma explosão de diarreia, que sujou todo o tapete da escadaria deixando mais um fedorento rastro marrom, fez com que sua mãe quisesse espanca-lo, como um desabafo pelo desespero da desmoralização que a família enfrentaria a partir daquela noite.
Após o transcurso de quase uma hora, o baile continuou no clube. O salão foi higienizado, o piso do balcão, que oscilava no teto, recebeu escoras e a intensa discussão sobre o caso presenciado se acalmou. Pedro conseguiu dançar a valsa com Rosana. Luiz consolou carinhosamente Márcia e conseguiu iniciar um namoro com ela. Jorge trocou outro beijo com Luciana e conseguiu se tornar o “príncipe” da noite da moça. Apesar do tumulto, a cidade conseguiu terminar feliz aquela noite.
* * *
Quatro meses se passaram e a vida na cidade transcorria normalmente. O assunto do incidente da noite do baile estava definitivamente gravado na memória da população e já entrara para a história como a pérola da primeira formatura da universidade local. A família de Fabrício carregava essa vergonha como um fardo intransferível. O pai tentara de todas as formas e com generosas ofertas de subornos abafar o acontecimento e impedir as notícias no jornal. Mas as conversas das pessoas nos bares, no clube, nas praças e na própria universidade ele não podia conter. Especialmente depois da divulgação do negativo de uma das fotos que foram tiradas durante a dança de Fabrício com Márcia e que mostrava uma mancha escura na parte traseira da calça dele, o que indicava que o desarranjo tinha-o atacado antes do que se imaginava. De tudo isso, a cidade tirou uma lição bem-humorada que dizia que uma dor de barriga pode destruir qualquer um, seja rico ou pobre, famoso ou desconhecido.
Fabrício nunca compreendeu o que lhe acontecera naquela fatídica noite e permanecia trancado em seu quarto desde então, em depressão. Não saía para nada, não conseguia se alimentar muito bem e passava todo o tempo na cama envolvido em lençóis, como se pudesse se esconder do mundo à sua volta. Seu único desejo era o suicídio, mas não tinha coragem de causar mais um escândalo na sua tradicional família. A casa, outrora movimentada por festas da universidade ou da sociedade, agora vivia deserta e nem mesmo seus pais recebiam visitas mais.
Em uma linda tarde ensolarada, uma visita inusitada alterou a melancolia reinante naquela casa. Mirian decidiu ver Fabrício. Tocada pelo trauma que ele sofrera e curiosa por ver como ele se encontrava, ela criou coragem e foi até lá. Sabia que ele não estava bem, pois desde a noite do baile ninguém tivera notícias suas. A empregada a levou até a porta do quarto dele e anunciou seu nome. Lá dentro, Fabrício entrou em desespero, começou a chorar em dolorosos soluços, como fazia em todos os dias, e não queria vê-la. Mas ela insistiu tanto, que ele aceitou deixa-la entrar.
Mirian entrou no quarto e viu Fabrício como ela nunca vira antes, encolhido na cama e enrolado no lençol como um casulo. Ele ainda chorava e não olhava para ela. Uma calorosa ternura contagiou a moça.
— Você veio tripudiar encima da minha derrota??! Mas eu não vou discutir com você... Eu não sou mais nada... — Balbuciou Fabrício, transbordando de tristeza e desilusão.
— Não. Eu vim conhecer você. — Mirian afagou carinhosamente o braço e o ombro dele. — Olhe para mim, por favor. — Os olhos azuis do rapaz lembravam o mar de uma praia paradisíaca e sua expressão triste e assustada aquecia docemente o coração dela. Não havia mais dúvidas de que o “príncipe” da cidade, arrogante, galanteador e irresistível havia falecido e, em seu lugar, nasceu um rapaz comum, um ser humano com problemas e sofrimentos, como qualquer outro. Agora, Mirian afagava o rosto dele. — Você é um rapaz muito bonito e vai viver ainda muitas alegrias e realizações.
Fabrício apenas fechou os olhos e meneou a cabeça, diante daquelas meigas palavras.
— Levante-se, por favor. — Mirian puxava sua mão delicadamente e, como ele resistisse um pouco, ela ajudava a remover o lençol.
Fabrício ficou em pé em frente a ela, relutante e olhando para baixo, como que sem coragem de encará-la. Ele tinha os cabelos, de um belo tom de castanho claro, desgrenhados, uma barba mal feita e o pijama amarrotado e desajeitado. Ela segurava as mãos dele absorvendo o terno calor que elas exalavam. A visão daquele frágil e belo rapaz fazia o coração de Mirian se acelerar e suas pernas se enfraquecerem, numa emoção deliciosa que ela nunca se permitira experimentar antes.
— Por que você faz isso comigo? O que está pretendendo com isso? — Disse Fabrício, com o olhar ainda assustado. — Você sabe que eu já morri... Nunca mais vou conseguir viver como antes.
— Dançar com você. Já que, naquela noite, não foi possível, vamos dançar nossa valsa agora. — Mirian se aproximou ainda mais de Fabrício e o cingiu carinhosamente. — Quem morreu foi o seu personagem, uma figura mantida à custa de muita vaidade e leviandade. Agora, uma nova vida se abre para você e o seu futuro lhe reserva experiências sinceras e verdadeiras, que você não poderia viver sendo como era antes. Pense que tudo será melhor daqui para a frente!
Ela sorria para ele, rendia-se a ele. Os dois deslizavam pelo quarto e Fabrício recuperava uma pequena fração de sua alegria.
— Você vai se lembrar para sempre daquela noite, não vai? Eu vou ser sempre o verme humilhado na frente de toda a cidade!
— Por que eu me lembraria daquela noite, se a tarde de hoje está muito melhor? Não sei o que a cidade vai guardar na memória, mas eu vou guardar a dança que estamos vivendo agora. A sós, como você mesmo queria...
Um sorriso se esboçou no semblante de Fabrício, pela primeira vez em quatro meses. Mirian, que já não conseguia mais resistir à paixão que a dominava, encostou seus lábios nos dele, provocando um suave e delicado beijo. A porta do banheiro estava entreaberta e a guirlanda de ramos amarelos representada na estampa dos azulejos lembrava uma linda grinalda simbolizadora do início de uma vida de amor.

     


Biografia:
Olá a todos ! É com muito prazer e muito frio na barriga que eu passo a fazer parte deste maravilhoso site de literatura. Frio na barriga por duas razões. A primeira é por eu ser um escritor amador no meio de vários grandes talentos literários. A segunda é por eu trazer aqui um tema ainda pouco explorado na literatura: a escatologia. Essa é a maior paixão da minha vida e é muito gratificante para mim poder compartilhar com o mundo as emoções e inspirações que povoam minha alma desde sempre. Há anos eu recolho escritos escatológicos pela Internet. São textos pungentes que apresentam mesclas de diferentes sentimentos humanos, especialmente o humor e o desespero. Agora, eu passo a dar a minha contribuição pessoal a esse universo. A todos os que apreciam o tema de alguma forma ou têm apenas curiosidade, desejo uma ótima viagem pelo meu mundo ! Abraços. Nasral Gomes
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Contos Desabafo de uma Escatófila Nasral Gomes
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