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Ababurtinogamerontes à espera de Voronca
Do livro ´´Mãos Outonais´´, Ed. Totalidade.
Alexandru Solomon

Resumo:
O lixo contemporâneo acumulado em latinhas vazias, abandonadas por transeuntes indiferentes, encobre a tragédia anunciada, aprisionando metáforas obsoletas.

Final de expediente. Ababurtinogamerontes arrumou cuidadosamente os objetos espalhados sobre a mesa. A operação permaneceu, a exemplo da sinfonia: inacabada. Faltavam poucos minutos para o tiro de arcabuz que marcaria a entrada em cena do esquadrão da limpeza. Ababurtinogamerontes releu rapidamente o seu manuscrito.
Nuvens distraídas seguravam a penumbra com os suspensórios de um sol raquítico. Os contornos da cidade, desprovidos do encanto fotográfico, assumiam, finalmente, seu dever: afugentar. Breve, ilhotas de escuridão permitiriam ao aprendiz de poeta, escondido nas entranhas do pedreiro que so-nhou um dia ser alfaiate, lustrar declarações de amor reféns de lugares comuns. Jorra o sentimento represado, encharca a areia da indiferença, na qual se perde, ridículo e inexpressivo. Some de vez diante da indecisão de beldades mal passadas. Colhe de surpresa sensibilidades fatiadas. O lixo contemporâneo acumulado em latinhas vazias, abandonadas por transeuntes indiferentes, encobre a tragédia anunciada, aprisionando metáforas obsoletas.
Nada como fazer desfilar as palavras e a distância contemplar o seu efeito. Mar desorientado tentando impressionar rochedos. Ao acariciá-los, torná-los-á aptos a enviar ecos de suspiros desbotados por excesso de uso. Breve, estrelas desnutridas tentarão roubar a atenção de pares românticos. Romantismo moderno tisnado pela saga dos motéis. A caneta Lumicolor faz as vezes de crítico literário: seleciona, agride, vaza. O que não foi colorido constitui a verdadeira natureza morta. Ignorar este fato é como mostrar a língua numa manhã de sol na esperança de vê-la adquirir um bronzeado.
Sem a cor amarelada retirada de velhos compêndios, os sons procuram o seu eu. Uma procura que jamais se esgota e jamais logra êxito. Como se encontrar, quando qualquer reportagem jornalística ofusca o encanto de um romance? O milagre da palavra espremendo lágrimas se dilui diante da secura do furo de reportagem. Tudo em nome da ferocidade oximoricamente sorridente que acolhe os sacrifícios rituais de um recomeço sempre adiado.
No automatismo das respostas triunfa a réplica hostil a uma realidade incapaz de ser constrangedora. O que mais esperar a não ser uma resposta? A resposta, pá! Aguardar pacientemente até que a última gota de lucidez ceda lugar ao misto de audácia e prudência abrigado num desvão da mente. As verdades rugosas triunfarão sempre quando confrontadas com a flacidez das ilusões.
Para as idéias, o consolo de permanecer presas com pregadores de roupa no purgatório da reflexão sem objetivo. Para a declaração de amor, o rompimento da ordem, na tentativa de encobrir o que a sensibilidade de um protozoário poderia entronizar por engano.
O caminhar na trilha tatuada na rocha que ameaça ruir não deixa rastro. Não há como saber se foram lágrimas inúteis ou falsas promessas que sulcaram o granito indiferente. A trilha se torna túnel com a indefectível luz no seu final. Lugar comum quase blasfemo, atadura de pensamentos, enchimento barato da conversa. A maior incógnita ainda permanece sem a equação que a enquadre.
Época de chuvas para as moitas desidratadas, os espelhos partidos, os bueiros constipados. Na janela, o nu. Na ONU, janelas. É a lei do menor es-forçado e por isso mesmo abandonado. As calçadas reluzem convidativas. Multidões se atropelam sem tempo para apresentações. Viscondes e datilógrafas apressam o passo. A bolsa poderia cair a qualquer momento. Correr era preciso, zarpar, nem tanto, navegar, muito menos. Sirenes de ambulâncias alucinadas entoavam a dissonância dos primeiros socorros. Dentro de cada ambulância, um sofrimento. Fora delas, outros sofrimentos. Para que ambulâncias, então? A sirene ensurdece o pedestre, pedestre surdo é candidato a atropelado. Com um pouco de sorte as ambulâncias viverão cheias. É a lei da selva mal iluminada. Seja como for, os últimos sempre chegarão atra¬sados." Assim falou o vendedor de aspiradores.
Ababurtinogamerontes interrompeu a leitura. Experimentara, durante a operação, o legítimo orgulho do soldador siberiano ao exibir seu cachecol.
Na sala deserta, a escuridão procurava avidamente refúgio, evitando cuidadosamente a atração exercida pelas lâmpadas acesas. Um corredor distraído se esgueirava, acompanhando docilmente o carpete manchado. Era só ousar. Alguns passos o levariam à ponte levadiça. De lá, a sonolenta escada rolante faria o resto. Ou quase. Para livrar-se da artrite, teria que encon-trar uma vestal adormecida à sombra da sua árvore genealógica. Qualquer réptil em busca de autopromoção poderia, então, oferecer-lhe a maçã, ou, então, uma Bula papal com a indefectível observação: “Vide bula, sem pisar na grama”.
Uma vez já de decisão tomada, Ababurtinogamerontes percebeu ter esquecido quais eram os pecados e as suas capitais. Lembrava vagamente ser Gulag a capital de Karl Marx e que a patinação no gelo no Sahara estava suspensa por ordem médica. Não era o suficiente para bater em retirada ou em qualquer desconhecida. Qualquer embalsamador de iceberg com alguma ex-periência em cargo de chefia poderia confirmar-lhe a legítima suspeita. A experiência dizia-lhe ser inútil perder seu tempo com divagações estereofônicas.
Era tão grande o seu apego à vida que, por razões óbvias, precisava dobrá-lo cuidadosamente, evitando, sempre que possível, misturá-lo com leite de girafa. Alguns passos decididos no corredor levaram Ababurtinogamerontes à frente do hidrante em estilo barroco, orgulho da repartição. O hidrante fornecia a hora certa uma vez por dia a qualquer interessado que soubesse responder a pergunta: O que é a virtude e para que serve? Uma guarda de honra munida de archotes vendia chicletes aos interessados, durante o horário de expediente.
Cumprimentando os guardas com a familiaridade com a qual o lobo encara a cegonha, Ababurtinogamerontes propôs trocar sua coleção de estrelas cadentes por um punhado de anticorpos. É sabido que a procura por estrelas cadentes manchadas com pedaços de horizonte se mantém constante, independentemente da temperatura do Mar Morto, de sorte que o negócio foi fechado a sete chaves, uma para cada pecado capital sem espaço para qualquer pecado interior. Falar com os guardas, não era fácil. Apesar de terem estudado piano por pelo menos cinco anos, nenhum deles conseguia articular frases de efeito.
De posse dos anticorpos, Ababurtinogamerontes decidiu domesticá-los. Repugnava-lhe a idéia de mantê-los no seu estado selvagem. Para tanto separou-os por grau de parentesco para que não houvesse nenhum pensamento incestuoso andando à solta em volta do lago Titicaca. A fraca iluminação do corredor favoreceu algumas burlas, apesar de a ética dos anticorpos dispen-sar elogios fúnebres.
Apesar de a luz ser tão fraca quanto a carne, Ababurtinogamerontes percebeu a aproximação de uma secretária ondulante com o cabelo preso por um fêmur de dromedário. Nenhuma ruga no rosto altivo. As rugas estavam guardadas numa estante.
Ante um assobio de aprovação, ela se deteve e lançou com desprezo im-pregnado de sensualidade:
– O senhor não passa de um rupázio!
– Rupézio, em primeiro lugar, minha senhora, corrigiu Ababurtinogamerontes, embora ignorando o significado de ambas as palavras. A rotina,como sempre, corrói os sentimentos.
Se ao menos Napoleão usasse bigode, o confronto poderia ter sido evitado.
A secretária já estava levando suas ondulações para a sala do grande chefe, da qual estava separada apenas por um precipício de sensibilidade. Como de hábito ele deveria estar esperando na sua nova poltrona póstuma, mordendo um lenço embebido em lembranças. Nem era preciso ser adivinho. Era o momento escolhido para colocar tinta muda na sua caneta, a fim de não perturbar o sono da sogra. Com a passagem da moça, que devia tentar relembrar o código do seu cinto de castidade, a procela silenciosa perdeu força.
Mais alguns passos e Ababurtinogamerontes já estava ao lado da sala do caixa. A titular, Pandora, já não estava lá. Quase sempre, naquele horário, ela saía para fazer terapia de casal com seu violoncelo, muito bem conservado segundo um consultor da companhia. Opinião insuspeita, já que, sendo tocador de balalaica, era reputado por ser um exímio roedor. Qualquer terapeuta que tenha tentado jogar um piano pela janela, passa a se dedicar à balalaica, de olho no divã.
À medida que progredia, o corredor o provocava, aumentando de comprimento. O búfalo responsável pelo departamento de compras vinha em sua direção, soturno como um advogado arrependido por ter deixado derreter seu sorvete sentimental.
– Olá, Aba. Tenho que abrir meu coração com alguém. Você me parece um cirurgião competente. Não sei mais o que fazer com o meu filho. Ele é preguiçoso, tão preguiçoso, que mais parece um bicho-preguiça.
– Macho ou fêmea?
– Nunca olhei com atenção.
– Quem tem uma passagem, vai a Roma. Pelo menos, penso assim. O seu filho talvez nem seja seu. Não basta recolher os impostos para ter certeza. Procure saber se é seu. Leia jornais, documente-se. Seus chifres podem não ser obra do acaso. Eles são naturais? Conhece aquela piada da escada?
– Não...
– Nem eu. Mas é bem sem graça.


Biografia:
Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´´Almanaque Anacrônico´´, ´´Versos Anacrônicos´´, ´´Apetite Famélico´´, ´´Mãos Outonais´´, ´´Sessão da Tarde´´, ´´Desespero Provisório´´, ´´Não basta sonhar´´, ´´Um Triângulo de Bermudas´´, ´´O Desmonte de Vênus´´ , ´´Plataforma G´´ (Ed. Totalidade), “Bucareste” e ´´A luta continua´´ (Ed. Letraviva). Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.

Este texto é administrado por: Celso Fernandes
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