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Lucy curte as férias
Conversa (des)afinada.
Alexandru Solomon

Resumo:
Há algo pior que a sina de Robinson Crusoe sem radinho de pilha – onde será que tinha lido isso? O que era um radinho de pilha? Seria um precursor do iPod?

Merecidas por sinal, mesmo se forem as férias dos outros. Ocorre que Lucy, nosso adorável fóssil, foi afastada de maneira brutal da agitada pasmaceira, característica gregoriana ainda em vigor no berço esplêndido destinado a gigantes sonolentos. (A rigor, essa frase nada quer dizer). Na verdade, o CIL (Centro de integração de Lucy) interrompeu suas atividades, por assumir que nada ocorre na passagem do ano. A ONG responsável pela sua manutenção (do CIL, não do ano) mudou-se com armas e bagagens para aproveitar por algumas semanas as delícias do ClubMed de Itaparica.
E Lucy?
Naturalmente, ninguém em sã consciência poderia sequer pensar em abandoná-la. Arriscar transportar esse ser frágil num desconfortável voo comercial? Nunca! A tresloucada hipótese de viajar como bagagem desacompanhada beirava a irresponsabilidade – apesar da impecável infraestrutura dos nossos aeroportos, nos quais não há notícia recente de extravio de bagagem –, sem contar que, mesmo embarcando, a possibilidade de, uma vez no destino, Lucy resolver escolher a liberdade como vulgar pugilista cubano, colocaria a perder todos os esforços da comunidade científica, os investimentos de vulto, noites de vigília etc. e tal.
O que fazer? A pergunta formulada por Lênin causou noites de insônia, até que surgiu uma ideia brilhante. Lucy ficaria nas amplas dependências do CIL. O local haveria de ficar trancado, com todos os alarmes ligados. Ninguém entraria ou sairia do local, durante o afastamento dos gerentes (ir)responsáveis. Barreiras eletrônicas – a exemplo do que acontece nos presídios absurdistaneses impediriam qualquer contato com o mundo exterior. Nada de celular, TV, internet, ou qualquer produto da mídia golpista. Foram contratados nutricionistas para elaborarem um programa alimentar adequado para o período de confinamento. Um reluzente e sofisticado Food dispenser – made in China – iria garantir refeições balanceadas numa programação regida por um software sofisticado, e... Ciao, Lucy, até breve.
Engana-se quem pensa que essa situação insólita abateu Lucy. Desespero não fazia parte de seu vocabulário.
Mal se viu só, alterou os parâmetros do reluzente e sofisticado Food dispenser – made in China – aumentando a proporção de achocolatados na sua dieta. Para sermos francos, expressão que caiu em desuso com o advento do euro, uma sub-rotina introduzida adrede na programação do reluzente e sofisticado Food dispenser – made in China – franqueou-lhe livre acesso à reserva de Armagnac XO do CIL. Resolvido esse primeiro desafio, sem manifestar a menor disposição para cavar um túnel e evadir-se, Lucy conseguiu esse intento ao desativar sem muito esforço o sofisticado sistema de travas e alarmes e, em questão de minutos, teve a ventura de respirar ar poluído em substituição à puríssima mistura gasosa do CIL. Ah, doce sabor de Libertas quae sera tamen.
Enquanto bebericava seu Armagnac na imponente varanda, recém-reformada, com verbas provenientes de um generoso doador anônimo, Lucy sentiu o peso da solidão incidindo sobre suas vértebras lombares. Maldita lombalgia! De que serve a liberdade na solitude? – raciocinou. Há algo pior que a sina de Robinson Crusoe sem radinho de pilha – onde será que tinha lido isso? O que era um radinho de pilha? Seria um precursor do iPod? Felizmente, a torrente de perguntas era solúvel em Armagnac – dizem que até em chope.
Notou a aproximação de dois indivíduos. Pelo jeito nada tinham de hostil. Convidou-os a sentar nas espreguiçadeiras da imponente varanda, recém-reformada, com verbas provenientes de um generoso doador anônimo, não sem antes saber que estaria em companhia de Asdrubal dos Reis e Florisvaldo Mermão.
Asdrubal, descendente de portugueses, com doutorado em Administração pela universidade de Wharton, dono de padaria, já ouvira falar em Lucy e estava encantado, poich, por poder conversar com ela. Florisvaldo, portador de vistosas tatuagens, recém-graduado pela universidade da vida, óculos de grife, assim tipo intelectual de vanguarda partilhava do encantamento do amigo.
Para quebrar o gelo, na ausência de um quebra-gelo – que dificilmente caberia na imponente varanda, recém-reformada, com verbas provenientes de um generoso doador anônimo – o trio passou a trocar algumas ideias, algo embaçadas pela ressaca do réveillon.
– Soube, disse Lucy, mostrando o quanto seus conhecimentos estavam progredindo, que o exemplo de Xerxes mandando açoitar o Mar Egeu depois da batalha de Salamina será seguido por aqui. Segundo Herodoto, o castigo teria sido devido à destruição de uma ponte sobre o mar, mas isso é uma discussão de lana caprina.
– Poich. – Inútil dizer de quem veio a resposta.
– Isso tem a ver com o cumprimento de meta do superávit primário. Houve uma série de mandracarias. “Plus ça change, plus c´est la même chose” afirmava o jornalista Jean-Batiste Alphonse Karr. Por mais que as coisas mudem, no fundo, permanecem iguais. Não há motivo para que suas palavras encontrem seu desmentido sob esses tristes trópicos. Mandracaria é mandracaria e vice-versa – completou o fóssil.
– Tipo assim.
– Sabe me dizer o que aconteceu, prezado Asdrubal?
– Sei, poich.
– E por que não fala, cara, a nível de explicar o que houve?
– Ora, nossa graciosa anfitriã perguntou se sabia e disse-lhe saber.
– Está disposto a éclairer ma lanterne ? Esclarecer, em suma.
– Estou, poich, poich.
– Precisa se fazer de rogado, cara? Assim, tipo a gente se ajoelhar, implorar?
– De m´neira alguma.
– Então, conte, por favor. Lucy intuíra a forma de extrair a resposta desejada do seu interlocutor descendente de portugueses, com doutorado em Administração pela universidade de Wharton, dono de padaria.
– Havia um compromisso de o superávit primário deste ano representar algo como 3.1% do nosso PIB. O fato de ser pibinho até ajuda, pois versados na Aritmética elementar, sabem que um denominador fraquinho aumenta o valor da fração ordinária...
– Êpa, mais respeito cara!
Lucy interveio explicando o que eram frações ordinárias. Seria pura perda de tempo reproduzir a explanação.
– Ah, saquei.
– Pode prosseguir?- indagou Lucy.
– Posso.
– Manda ver, cara!
– Esse superávit primário, a rigor, é uma bobagem, se me passam o termo algo rude, pois representa a economia que o País faz, para pagar os juros da dívida. O interessante seria um superávit nominal maior ou igual a zero, ou seja, o que sobeja após o pagamento dos juros. Em tempos bicudos nem é tão importante aferrar-se a um valor rígido de superávit primário. Quando as coisas melhorarem, será possível recuperar o terreno perdido.
– Então esse apego ao valor de 3,1% é apenas uma questão de prestígio?
– Bem, poderia ser 3% redondo, ou 2,9, ou 3,5%. Mas o 3,1% prometido virou uma questão de honra. Está na LDO.
– Saquei. Era para obter isso a qualquer custo.
– Poich. Na minha padaria, se não consigo pagar os juros da dívida, esses se acumulam e tenho de rolar.
– Falou. Dívida não se paga, se rola. Enrola-se o devedor.
– Poich, o devedor se enrola ao tentar enrolar o credor, melhor dizendo.
– Padaria é fogo.
– Estamos fugindo ao assunto, prezado Asdrubal. – Lucy estava visivelmente descontente. Um golinho de Armagnac XO foi o remédio encontrado-. Então, feitas as contas, viu-se que se chegaria a algo como 1,8% do pibinho. Imagine se fosse pibão!
- Ah, pibão é animal, cara!
- Como assim? Perdoe-me, não percebi a astúcia.
- Por favor, senhor Asdrubal, pode prosseguir?
– Posso.
– Cara, ela esta ficando nervosa. Manda ver.
– Então, já que havia esse impasse aritmético, surgiram alternativas criativas. Já lhes digo que desde os tempos em que meu avô fazia a contabilidade da padaria tirando aquele lápis de trás da orelha esses truques eram conhecidos, mas ele jamais os praticava e essa tradição se firmou.
– Na padaria, né?
– Poich. Padaria pode servir de benchmark, dantotsu.
– Estou boiando.
– Paradigma.
– Hã
– Modelo.
– Por que não disse logo?
– Não sei.
– Senhor Asdrubal, está perdendo o foco!
– Voltando ao assunto, inflaram-se receitas e diminuíram os gastos.
– Senhor Asdrubal, diminuir gastos parece-me uma prática salutar.
– E é. Mas houve criatividade. Algumas despesas foram consideradas tão virtuosas que foram colocadas de lado. Os investimentos do PAC não foram considerados despesas. É como se na minha padaria eu dissesse que o que gastei para comprar um novo forno não foi gasto.
– Mas saiu do seu caixa, ou não.
– Poich, saiu, mas faria de conta que não.
– Entendo – murmurou Lucy.- Quando se usava o lápis atrás da orelha teria sido inaceitável. Agora como não pode usar um laptop atrás da orelha, nem uma HP 12C, fica difícil.
– Mas não impossível. Então ficou assim. Despesas virtuosas, fora!
– Legal! Vou explicar isso pro meu velho, que continua me pagando mesada, que o gasto na compra do meu tênis Nike não era despesa.
– Desejo-lhe sorte nessa iniciativa. Mesmo assim, não se chegou ao valor. Então foi preciso mexer nas receitas. Anteciparam-se dividendos de estatais, até dinheiro de depósitos judiciais entrou na dança.
– De que estatais? – quis saber Lucy.
– BNDES, Caixa... principalmente.
– Mas para distribuir dividendos tem de ter...
– ...lucros, ou antecipação de lucros. Mas dividendos é dinheiro e o lucro das instituições pode estar em Contas a receber...um dia. E para prover esse dinheiro, o Tesouro o injetou.
– Cara, me pelo de medo de injeção.
– Essa doeu apenas no bolso do contribuinte. O Tesouro não é aquele baú cheio de jóias e moedas de ouro da ilha de Monte Cristo. O Tesouro teve de emitir dívida e colocar o dinheiro assim obtido nas instituição. Com isso a dívida líquida não mudou, porque desde os tempos de Luca Pacioli e das partidas dobradas...
– Saquei, partidas com turno e returno...
– Não é bem isso, mas desde que se falou em ativo e passivo....
– Cara, tu é homofóbico?
– Não me interrompa, no ativo consta um valor a receber do BNDES, por exemplo, e no passivo um valor a pagar aos detentores de papeis de emissão do Tesouro. Logo ativo e passivo continuam iguais graças ao bom Deus e só algum encrenqueiro lembrará que esses valores evoluem diferentemente, pois pagam juros diferentes.
– Interessante. Então, meu caro hóspede, com esse artifício, chegou-se ao valor?
– Ainda não. Aí, entrou em cena o Fundo Soberano, fundo de 1001 utilidades.
– Assim tipo Bombril?
– Isso. Em 12 de maio de 2008, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, anunciou a criação do fundo soberano do Brasil. "O objetivo é apoiar a internacionalização das empresas brasileiras no exterior...”
– Ó, malandro, existe internacionalização no Interior, assim tipo, Orlândia, Passo Fundo, Duque de Caxias?
– Estimado amigo Florisvaldo, não é a mim que deves dirigir a pergunta.
– Estava zoando, cara!
– Então - interveio Lucy – esse fundo, deixando a oratória de lado, investiu em ativos fora do país.
– A maior parte foi investida em ações – repare que não disse acções – da Petrobrás e do BB. O FSB subscreveu ações da Petrobrás na famosa operação como nunca antes na história da humanidade se teve ciência.
– São ações sólidas com excelentes perspectivas. Foi uma boa ideia, mas se investiu nesses papéis, de onde dinheiro para pagar juros da dívida?
– Poich. O FSB participou da subscrição da Petrobrás pagando 29,85 por ações ON e 26,30 pelas PN. Como estava sem dinheiro, o BNDES as comprou. Com dinheiro do Tesouro. Aí esse dinheiro do FSB entrou na jogada. Sacaram? Ceuchhh, estou falando como nosso amigo Florisvaldo.
– Não era mais fácil o Tesouro comprar, cara?
– Estimado amigo Florisvaldo, há diversas maneiras de coçares tua orelha esquerda. Uma delas consiste em usar a mão direita, passando por cima da cabeça. Não me perguntem qual o preço que o BNDES pagou, pois no mercado ambos os tipos estavam cotados por volta de 20.
– Alguém ganhou – sentenciou Lucy.
– E alguém perdeu – retrucou Asdrubal. Isso me lembra uma canção vienense. O du lieber Augustin. Está no youtube.
– E tudo isso para poder dizer: Missão cumprida? – indagou Lucy, saboreando seu Armagnac XO.
– Ó dona Lucy, passe aí um pouco dessa birita, por favor, e vamos brindar.
– Amigo Florisvaldo, eis uma bela ideia.
– Só restou uma dúvida. Na falta do mar Egeu, açoitarão o quê?
Querida Lucy!


Biografia:
Alexandru Solomon, empresário, escritor. Formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus` (Ed. Totalidade), ´Bucareste`, ´Plataforma G` e ´A luta continua` (Ed. Letraviva). Livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Loyola (www.livrarialoyola.com.br), Letraviva (www.letraviva.com.br). | E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br
http://blogdoalexandrusolomon.blog.terra.com.br

Este texto é administrado por: Celso Fernandes
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