Chico descobre um pouco a cabeça. Naquele endereço nunca necessitou de um despertador. Seu despertador diário são as vozes e passos das pessoas que andam quase rente ao seu “aposento”. E isso começa cedo.
Nem bem o sol principia a surgir e as pessoas começam a surgir, tipo do nada. Toc um passo; toc-toc dois passos; toc-toc-toc três passos; dez, cem, milhares deles.
Logo a rua está imersa em seu frenesi diário.
As pessoas, como diariamente fazem, estão ali, cruzando a via, ocupando a calçada. Alguns jogam ração aos pombos, outros enxotam os bichos. Um comerciante se aproxima da porta de seu comércio e o abre. Este é seu ofício. Aquele o seu endereço.
Chico está com fome. Boceja um pouco e se atormenta com o próprio hálito. Nada agradável. Com a desenvoltura de sempre recolhe sua básica cama, constituída apenas de um velho colchonete surrado, um papelão, um cobertor marrom e aboleta tudo num velho saco de estopa. Pronto! Aposento recolhido, senta-se sobre ele e se põe a observar os transeuntes.
Chico passa as mãos pela longa barba por fazer e ali mesmo da calçada fica o assistindo o vai-e-vem de pernas. Observa tanto as pessoas que se esquece da sorte de pessoa que é. Ele está ali, sem estresse, sem malícia, sem dívida, descompromissado. Sem emprego, sempre tem garantido seu almoço que diariamente alguém lhe brinda. O jantar garantido por pessoas que visitam-no com algo gostoso. Come bem! Chico já jantou de comida chinesa a caviar... acreditem! Caviar!
Mas agora bem que um pãozinho e café lhe cairiam redondinho.
De repente percebe alguém que passa apressado e de uma sacola deixa cair um pão na calçada. Parece fresquinho! Chico saliva.
À espreita, fica somente aguardando o momento certo, assim que aquele fluxo de gente diminua, para levantar-se, correr até lá, apanhar o pão e degustá-lo com todo direito que tem. Afinal, ele não está roubando! Caíra acidentalmente. Pão caído não é roubado. Chico pensa muito. De repente alguém mais rápido que ele se aproxima do pão e o abocanha. É um cão vira-lata que estava do outro lado da calçada que, tão esfomeado quanto Chico, não escolhera oportunidade; criara sua oportunidade. Ele apanha o pão no meio dos transeuntes e procura voltar para o outro lado da rua.
Chico apenas observa e se lamuria por não ter sido tão rápido. Mas antes de se voltar para seu canto, houve uma brusca freada de um carro e o cãozinho sendo atropelado.
Chico nem olha para o azarado cãozinho, pois seus olhos estão novamente voltados para o pão, que ainda intacto, rola para o meio da rua. Ele pensa em correr e apanhá-lo, mas novamente fica só na vontade: um carro passa sobre o pão e o esmaga, a ponto de quase desaparecer entre o piche e a borracha.
Enquanto as pessoas socorrem o cãozinho atropelado, Chico ajunta seus apetrechos e sai de cena.
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