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O Queixo Quadrado
AMAURI CHICARELLI

Resumo:
Conto do livro "Contos Insanos" Edição Kindle pela Amazon. Premiado na Antologia
"Minha Vida é Uma Comédia" Editora Aped.

O QUEIXO QUADRADO
Amauri Chicarelli

   Ficar apaixonado pela minha prima sempre me pareceu uma piada do destino. A gente era muito diferente em quase tudo apesar dos nossos nascimentos com intervalo de poucos dias. Ela tinha sido uma filha planejada desde o começo do namoro entre seus pais responsáveis e meticulosos em tudo, enquanto eu não sabia exatamente em qual concerto de rock, acampamento ou festinha psicodélica fui gerado, embora não tenha nenhuma queixa ou duvide do amor pós-hippie, de meus pais malucos por mim. Acho que o meu caso com Cintia, foi quase amor à primeira vista, que começou no seu terceiro aniversário, quando me tornei seu guarda costas, criado e confidente eterno. Mas os fatos principais começaram bem mais tarde...

   Ela tinha só doze anos e se chamava Cíntia. Era uma menina muito bonita e tinha toda a jovialidade e a alegria próprias daquela idade, mas todas as complicações também. Sofria com as espinhas que à sua vista eram erupções vulcânicas. Sofria com o descobrimento das funções do corpo de uma mulher e principalmente com as paixonites e pequenas desilusões. A primeira história romântica que ela leu marcaria sua vida pra sempre, e a minha também. Os pais dia e noite atentos, controlavam suas leituras tentando manter os livros inconvenientes e as más influências afastadas da filha quase adolescente. O incentivo à leitura começou muito cedo, antes dela começar a estudar. Selma e Diogo, muito cultos e politicamente corretos costumavam ler pra filha desde a infância. Liam contos de fadas e fábulas. Davam-lhe revistas coloridas, além de livros com ilustrações onde se misturavam o texto e as figuras, pra que ela se acostumasse também com o visual das letras ali impressas.

Cíntia era muito esforçada na escola e enquanto eu, com muita dificuldade, apenas soletrava os gibis do Pato Donald e da Turma da Mônica, único gênero literário que não faltava na “biblioteca” dos meus pais. O incentivo à leitura desde a infância fez com que ela misturasse já, aos doze anos, os prazeres normais das amizades, esportes, festinhas e outros divertimentos; sempre alguns livros juvenis. Já tinha se interessado por alguns meninos muito antes disso, se apaixonado algumas vezes e se desiludido também. Mas eram pequenas dores que logo passavam e eram substituídas por outras sem grandes problemas, afinal, quem não começa a malhar o coração desde cedo? Eu que o diga... Seguia sua rotina normal de leituras quando um fato fora do comum aconteceu.

Entre muitas amigas da mesma idade, havia uma colega de classe chamada Sandra. Era uma espécie de líder da turma, pois tinha um comportamento meio rebelde pra época e era admirada pelas outras por ser chamada de assanhada pelas professoras, e estava sempre metida em alguma confusão. Um dia Sandra levou pra escola um desses romances amorosos em formato de pequenas revistas. Na capa via-se um homem muito “másculo”, com a barba por fazer, enlaçando por trás uma linda moça que, de olhos cerrados parecia se derreter naquele aconchego todo. A revistinha causou alvoroço, e antes de ser apreendida pela diretora, dona Odete, já tinha circulado de mãos em mãos por quase todas as meninas da classe. A apreensão ditatorial só excitou a curiosidade da meninada frustrada por aquela censura antidemocrática, como discursava Sandra no auge de sua revolta. Mas ela garantiu que a mãe tinha dezenas de revistinhas e que no dia seguinte emprestaria uma pra cada uma das amigas, era só pedir. E foi assim que Cíntia leu seu primeiro texto adulto.

   A coisa que mais chamou a atenção de Cíntia no romance, superando o enredo dramático onde uma donzela sofre todos os tipos de provações, desilusões e maldades de alguma jararaca desalmada ou coisa assim, foi a descrição do herói. Chamava-se Jack e era o protótipo do homem perfeito, tanto nos aspectos físicos quanto nas qualidades morais. Além de ser alto, de ombros largos, mãos grandes, olhos penetrantes e andar decidido, tinha o queixo quadrado. Cíntia releu o livro várias vezes, e naquele momento não entendia muito bem por que as mulheres ficavam com as pernas bambas e trêmulas apenas por chegar a cinco metros de Jack e muito menos como conseguiam daquela distância sentir seu irresistível aroma de loção pós-barba. Mas não deu atenção a esses detalhes secundários. As características de masculinidade de Jack eram o que contava. Elas permaneceram durante anos em sua vida, mas nada marcou tanto quanto o fato do lindo herói ter o queixo quadrado. Assim, a primeira coisa que fez depois da excitante sessão de leitura, foi procurar em suas lembranças, entre todos os meninos e homens que conhecia, qual deles tinha queixo quadrado.

   Depois de vasculhar a memória chegou à triste conclusão que nenhum de seus conhecidos possuía tal atributo, nem mesmo o pai que foi meticulosamente analisado com olhos cirúrgicos durante o jantar. Sandra emprestou novas revistinhas para Cíntia e ela notou que naqueles contos, onde quase todos os heróis, independentemente do nome das autoras, chamavam-se Jack, cheiravam à loção pós-barba e tinham, com pequenas variáveis descritivas, todos. Todos eles, sem exceção, tinham o queixo quadrado e exalavam um irresistível aroma de loção pós-barba. Estimulada pela leitura de mais de uma dezena de livros e deslumbrada ante a possibilidade de encontrar um homem que lhe deixasse as pernas bambas e ter um lindo caso de amor com ele, tomou uma decisão que naquele momento julgou definitiva: só se casaria com um homem com aquela qualidade geométrica e olfativa.

   Ela nunca contou a ninguém aquela obsessão. Somente pra mim, que, desesperado, passei a esfregar na cara, o álcool com folhas de eucalipto e outras ervas fedorentas que meu pai usava como loção natural, segundo ele. Mas desisti depois que ela disse que eu cheirava à bosta de vaca.

   Aquela fixação que ela tinha era um segredo íntimo que não queria compartilhar com outras pessoas, por mais amigas que fossem. Nem mesmo com a mãe. Mas compartilhou comigo que a ouvia como um cachorro molhado abanando o rabo pra entrar em casa. Enquanto isso eu pensava num jeito de remodelar o queixo, nem que precisasse ganhar na loteria ou sequestrar um cirurgião plástico em último caso.

   Para meu desespero, Cíntia teve alguns namorados durante a vida e chegou a gostar de alguns de verdade, mas nunca deixou de procurar um sujeito de queixo quadrado. Nem mesmo quando me convidava carinhosamente pra carregar suas sacolas de compras nas idas ao shopping. E é claro que eu também já tinha lido tudo a respeito dos Jacks e tentava me comportar como eles. Nessa época comecei a comprar todas as revistinhas que podia, cheias daquelas histórias melosas, repetitivas e improváveis. Mas o fracasso ao tentar me parecer com aqueles heróis e as consequentes situações constrangedoras e humilhantes com as mulheres que tentava impressionar como treinamento, me levou a pegar um ódio animalesco por aquele nome e com certeza assassinaria qualquer fulano que se chamasse Jack e aparecesse no meu caminho, bem como seria capaz de esfolar, empalar ou arrancar as unhas de um infeliz que tivesse ângulos retos no queixo, sem contar minha alergia inexplicável à água de colônia.
.

   Mas meu esforço foi inútil, Cintia nem ligava. Ela procurava nos ônibus, restaurantes, nos empregos e nas escolas por onde passava, até mesmo nos mendigos, e eu até surpreendi seu olhar analisando o queixo do velhinho do realejo na praça do mercado. Mesmo com um desespero crescente, nunca encontrou aquela figura que pra ela já se tornara mitológica. Finalmente, depois de se formar com certa facilidade e ficar muito chateada com a cansativa e decepcionante procura, se deu conta que no Brasil não existem homens de queixo quadrado. Muito menos existem homens chamados Jack. Mesmo assim pensou em juntar um dinheiro com o único objetivo de passar uns tempos nos States em busca de seu sonho de infância: encontrar aquele cara maravilhoso que por onde passava fazia os hormônios femininos entrarem em estado de ebulição em seu caminho; com suas mãos grandes, seus ombros largos, aquele cheiro de loção pós-barba e o mais importante...

    Mas com a idade adulta os ideais românticos do passado foram pouco a pouco se apagando e as responsabilidades transformaram Cintia numa mulher prática e de pé no chão. E como éramos apenas primos de terceiro ou quarto grau, ela resolveu casar comigo mesmo, depois de uma longa crise depressiva. Afinal não tinha nenhum Jack pelas redondezas mesmo. Com o tempo esqueceu suas bobagens de adolescente. A viagem e o homem de suas fantasias foram aparentemente deixados de lado. Mesmo assim eu vivo com a impressão que tem uma espada suspensa por um fio balançando acima da minha cabeça ou quem sabe um queixo.. Quando saímos a passeio agora, sou eu que ando inquieto como um tonto olhando pros lados e morrendo de medo de encontrar meu inimigo mortal. Parece que a mania dela foi transferida pra mim de outro jeito. Mas não tenho culpa disso e nem se trata de paranoia ou coisa do tipo. Apenas morro de medo de ser trocado por uma figura geométrica a qualquer momento, pois mesmo depois de casada comigo e levarmos uma vida tranquila, ela tem um comportamento estranho. Ao contrário das outras mulheres que começam a avaliação olhando os sapatos e as barras das calças dos homens que encontram pela primeira vez, Cíntia olha o queixo.













Biografia:
Tenho um livro publicado: "A Outra Banda do Rock" - Editora Protexto Coletâneas: Sonhos & Pesadelos: "A Moça da Praia" - Editora Aped. Pequenos Demônios e Assassinos Mirins - Editora Navras. "Nivaldo" Coletânea: A Coroação. " O Imperador, o Chucrute e o Frango". Coletânea Minha vida é Uma Comédia ~Editora Aped. O Queixo Quadrado. A Roupa Nova do Imperador Editora |Eber. O Homem que Citava Nietzsche Editora do Incomum. A Árvore - Editora Incógnita de Portugal. As Flores da Discórdia Editora Aped. O Abrigo - Editora Darda
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Contos A Volta AMAURI CHICARELLI
Contos A Outra Banda do Rock AMAURI CHICARELLI
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Contos A Moça da Praia AMAURI CHICARELLI


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