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A Volta
AMAURI CHICARELLI

Resumo:
Um dos contos do livro "Contos Insanos" Edição Kindle no Amazon.

A Volta
Quando seu casamento acabou, alguns amigos e a parentada, vendo seu estado de solidão, montaram uma espécie de complô para encoraja-lo a arrumar outra mulher. Parecia aquela coisa que se vê nos filmes americanos; os amigos arrumando encontros “inesperados” para salvar uma alma dos inevitáveis sentimentos de desolação que atacam quase todos que se divorciam pela primeira vez. Já o tinham empurrado para mais de uma dezena de mulheres que não lhe interessavam de jeito nenhum. Edu chegou até a marcar encontros com algumas, mas sempre saia decepcionado; faltava a cumplicidade que tinha com Elaine desde o tempo de infância na mesma escola. O que os juntou foi a pobreza, as roupas velhas e os lanches pobres dos quais tinham vergonha de comer na frente dos outros e por isso comiam escondidos atrás do prédio. Foi assim que se encontraram, se conheceram e dividiram a solidão. Eram tão pobres naquela época que mal existiam para o resto dos alunos . Era por isso que os encontros não funcionavam agora, faltava alguma coisa nas outras mulheres que só Elaine tinha dividido com ele.
Depois de várias tentativas fracassadas, os amigos e parentes, sabendo do seu interesse por coisas sobrenaturais e misteriosas, tentaram o último lance. Tudo aconteceu na festa de casamento de um primo, da qual não podia fugir, mesmo correndo o risco de encontrar Elaine com outro homem e piorar o estado depressivo que o perseguia nos últimos tempos. O salão de festas do clube Atlético do Vale era enorme, em cada mesa podia-se acomodar uma família inteira e a intenção era essa. Estavam num grupo de oito pessoas, as mesmas de sempre, com pequenas variações, que se reuniam em eventos ou em bares para beber e comemorar alguma coisa como desculpa para os encontros. De diferente mesmo havia apenas uma mulher que aparentava ter uns vinte e cinco anos. Ela usava um vestido azul, bem simples, com um decote discreto mas que não deixava de ressaltar o lindo busto. Edu notou também que era morena clara e tinha os olhos profundos e negros, com as pupilas quase invisíveis dentro da escuridão. Estava sentada do outro lado da mesa, bem a sua frente. E daquela vez ele não podia reclamar; ela era linda.
__Esta é a Suzy, Edu __Disse seu amigo João, apontando a moça. __Esse é o Eduardo, Suzy. __Repetiu o gesto.
   Ao se levantar para receber a mão estendida de Edu, Suzy esbarrou o braço na taça de espumante e o líquido se espalhou na toalha branca formando uma grande mancha cor de rosa quase circular. Com um sorriso sem graça ela olhou pra todos ao redor e em seguida para Edu e disse com um sorriso cativante.
__Sou muito desastrada, desculpa.
   Ele nunca fora um homem de desprezar um copo, mas naquela noite depois de conhecer Suzy, achou melhor não beber mais. Já tinha passado por algumas situações desastrosas com mulheres depois da separação devido à bebida e se contentou em permanecer sentado tranquilo, ouvindo as piadas de costume e tomando seu guaraná. Lá pelas onze da noite quase todos já estavam meio bêbados e saíram aos pares para dançar, de modo que só ficaram ele e Suzy na mesa. A noite foi uma sequencia de quedas de bolsa, celular, copos, talheres e tudo o que ficava próximo às suas mãos e braços. Mas conversaram muito e mesmo sem ter bebido quase nada, ele começou a acha-la além de bonita, muito interessante. Ela contou que fazia pós-graduação na faculdade de psicologia e era o segundo curso superior que fez depois de desistir da faculdade de engenharia no quarto ano. Ele sorriu sem querer pensando quanto tempo um edifício projetado por ela ficaria em pé sem desmoronar. Mas foi uma injustiça dos seus pensamentos. Quando falava sobre a atual profissão, todo aquele jeito atrapalhado que ela tinha desaparecia e então surgia uma mulher culta, inteligente e senhora de si. Trabalhava há seis meses numa clinica especializada em regressão hipnótica e este assunto o interessou de imediato.
__Você já ouviu falar de regressão hipnótica? __Ela perguntou.
__Sim já. Tenho muito interesse por coisas sobrenaturais.
__Bom, isso não é exatamente o que se chama de sobrenatural.
__Mas faz parte da parapsicologia, não faz?
__Talvez na parte de regressão profunda, onde o paciente retorna às vidas passadas, mas não é com isso que trabalho. O que fazemos na clínica é uma regressão controlada que só atinge o período de vida atual do paciente. A regressão profunda às vidas anteriores é muito contestada no meio acadêmico e profissional. __Disse ela derrubando um garfo. __O que fazemos são tentativas de anular fobias adquiridas na infância. __Ela era realmente desastrada mas não demonstrava qualquer constrangimento por isso.
__ Você tem alguma fobia? Queria mudar alguma coisa. __Perguntou interessada.
   Ele achou um tanto repentina a pergunta, mas já tinha percebido que se a nova amiga era meio brusca nos gestos, devia ser no resto também. Pensou em confessar que tinha um medo terrível da pobreza e que tinha pesadelos constantes com o barraco que morava na infância, além de querer voltar no tempo e se libertar do fantasma de Elaine. Mas ficou sem jeito de falar sobre isso, ela poderia interpretar que ele tinha ressentimentos contra a ex-mulher ou não gostava de pobres e não era o caso, o que Edu temia era a pobreza, a sua pobreza que queria esquecer se fosse possível, mudar o passado. Assim, falou do seu medo de altura, para disfarçar.
__Morro de medo de altura, tenho muitos pesadelos com isso. __Em parte era verdade. __Gostaria de voltar ao passado e resolver esse problema.
__Bom, eu tô de férias, só volto a trabalhar o mês que vem, mas se você quiser pode falar com o Doutor Oto, ele é muito bom. __Disse isso e entregou-lhe um cartão.
__Eu preferia fazer a regressão com você por perto, não poderíamos fazer uma sessão na sua casa ou na minha? __Ficou surpreso com sua ousadia, ele não era de maneira nenhuma um conquistador e sabia disso. Tinha certa admiração misturada com repulsa pelos seus amigos caras-de-pau. Mas não era seu caso. Por sorte a luz do clube era muito fraca e não daria para perceber o rosto corado. Esperava um fora daqueles, mas para sua surpresa ela sorriu e disse.
__Olha, eu ainda estou aprendendo a técnica, tenho medo de fazer alguma bobagem e causar algum dano psicológico em alguém, pode ser perigoso. Mas isso não impede que você me convide pra sair quando tiver tempo.
Aquele sorriso o desmoronou. Foi a primeira cantada da sua vida que deu certo. Marcaram um encontro para o final de semana seguinte, e foi assim que começara um relacionamento que o fazia esquecer a ex-mulher enquanto estava com Suzy. Tudo ia bem entre eles até que na véspera do ano novo ela recusou um convite para que passassem o réveillon na praia e insistiu que assaria um pernil em sua casa; uma receita que pegou no Google, como explicou. Edu ficou de sobreaviso, pois já havia experimentado os dotes culinários da namorada entre bifes queimados, batatas cruas e arroz pastoso, mas apesar de tudo não quis contrariá-la. E foi ai que seus problemas começaram.
   Foi para casa dela na véspera do ano novo depois de recusar vários convites de amigos e parentes. Seria melhor mesmo. Não estava com ânimo para aguentar as bebedeiras e todo o resto que acontecia a cada ano que passava. Quando chegou na casa de Suzy ela o esperava com uma garrafa de champanhe e depois de colocar o pernil no forno, ficaram namorando e bebendo, até que surgiu a conversa da regressão. Edu já havia insistido várias vezes para que ela fizesse uma sessão com ele, mas Suzy sempre recusava alegando ser muito arriscado, poderia perder o controle. Mas dessa vez, ou pela bebida ou pela chantagem dele dizendo que seria seu presente de ano novo, ela acabou cedendo. Já estavam na terceira ou quarta garrafa quando finalmente ela concordou.
O hipnotismo não foi nada do que ele pensou, Imaginava que ela balançaria um relógio de bolso em sua frente e diria algumas palavras cabalísticas mas não foi assim. Suzy o fez relaxar e foi conversando calmamente com ele até deixa-lo num estado intermediário entre o sono e a consciência. Explicou que ele voltaria lentamente ao passado e só retornaria ao seu comando. Edu podia perceber vagamente o que acontecia ao redor mas seus membros estavam paralisados. Com muito tato ela foi induzindo-o a voltar no tempo e ele se via em várias fases da vida, sempre regredindo até atingir a infância, o barraco e a pobreza. Apesar de estar conversando com ela, não se lembraria depois de nada do que disse. Tudo ia bem até que a sala começou a ser invadida por uma espessa fumaça que vinha da cozinha. Suzy gritou alguma coisa parecida com um palavrão e saiu correndo.
Ele tentou se erguer para ajuda-la mas estava como que acorrentado ao sofá que servia de divã, enquanto ia perdendo a consciência à medida que a regressão progredia em sentido inverso até tudo se apagar. Um tempo depois uma leve claridade surgiu pouco a pouco e ele viu uma velha mendiga deitada num beco, cercada pela neve, num lugar que ele nunca esteve, mas que reconhecia. Em seguida uma sucessão de flashes cinematográficos mostrava uma linda moça dançando num palco junto com outras bailarinas ao som de uma música alegre, enquanto os gritos de homens bêbados se misturavam à densa fumaça de cigarros. Foi finalmente acordado por Suzy que parecia preocupada perguntando-lhe se estava tudo bem.
__Sim, sem problemas, o que aconteceu?
__Nada, só o pernil que queimou um pouco, mas acho que dá pra comer.
O resto da noite foi tranquilo. Eles comeram o pernil que não estava tão ruim quanto ele pensou e ficaram conversando sobre sua volta ao passado. Mas no outro dia de manhã Edu se sentia estranho, embora pela primeira vez em meses não sonhara nem com a pobreza e nem com Elaine. Lembrou que Suzy só acompanhou a regressão até certo ponto, não reparou que ele tinha voltado além da própria vida e ele não contou por vergonha. Encabulado por aquela estranha sensação, buscou na internet um “teste de vidas passadas” e o resultado foi surpreendente. Edu que se considerava um macho alfa, tinha sido uma famosa dançarina de cabaré do século dezenove, que morrera na abandonada e na pobreza, segundo o site. Apesar da surpresa isso não o incomodou muito. Foi fazer a barba e sentiu uma repentina vontade de passar batom nos lábios, então sorriu para a própria imagem diante daquele pensamento absurdo, mas não gostou dos pés de galinha em torno dos olhos que nunca havia reparado. Balançou a cabeça para afastar aquelas ideias cômicas, e só começou a ficar preocupado mesmo foi quando descobriu que só conseguia urinar sentado.



Biografia:
Tenho um livro publicado: "A Outra Banda do Rock" - Editora Protexto Coletâneas: Sonhos & Pesadelos: "A Moça da Praia" - Editora Aped. Pequenos Demônios e Assassinos Mirins - Editora Navras. "Nivaldo" Coletânea: A Coroação. " O Imperador, o Chucrute e o Frango". Coletânea Minha vida é Uma Comédia ~Editora Aped. O Queixo Quadrado. A Roupa Nova do Imperador Editora |Eber. O Homem que Citava Nietzsche Editora do Incomum. A Árvore - Editora Incógnita de Portugal. As Flores da Discórdia Editora Aped. O Abrigo - Editora Darda
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Contos O Queixo Quadrado AMAURI CHICARELLI
Contos A Volta AMAURI CHICARELLI
Contos A Outra Banda do Rock AMAURI CHICARELLI
Contos O Imperador, o Chucrute e o Frango. AMAURI CHICARELLI
Contos A Moça da Praia AMAURI CHICARELLI


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