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A Outra Banda do Rock
AMAURI CHICARELLI

Resumo:
Conto que dá o título ao meu primeiro livro: A Outra Banda do Rock.

Trabalho com informática na manutenção de computadores, redes e principalmente recuperação de dados. Trabalho que consiste na tentativa de trazer de volta ao disco rígido do computador as informações perdidas ou apagadas. Os clientes que buscam os meus serviços querem resgatar arquivos de documentos, filmes e principalmente fotos. Mas quando faço esse trabalho, uso um software que faz uma varredura completa no disco apagado ou danificado e resgata tudo o que havia lá antes, não importa a data que foi gravado ou excluído, desde que nada tenha sido sobrescrito no local onde estavam os arquivos. Então eu gravo tudo num DVD ou Pendrive e entrego ao cliente e ele se vira na escolha do que tem importância e do que ele não quer guardar. Fiz um serviço desses para meu primo Edson. Ele tem um notebook não muito novo que usa ainda e que tinha sido do seu pai que morreu no ano passado e ele conserva por economia ou por lembrança do pai, não sei.

Quando eu era adolescente, meus tipos de filmes e livros preferidos eram aqueles de mistérios e segredos escondidos. Ficava fascinado quando um personagem encontrava algum mapa num sótão empoeirado ou num móvel antigo e saía pelo mundo em busca do tesouro, vivendo mil aventuras perigosas e coisas assim. Nunca imaginei que trabalhando com algo tão complexo e avançado como informática poderia descobrir um segredo antigo, escondido na superfície brilhante de um disco de computador e não numa gaveta secreta de uma escrivaninha de trezentos anos atrás. Mas foi o que aconteceu e não é fantasia. É verdade. . Meu primo me ligou dias depois e disse que havia me enviado um email com um dos arquivos que eu tinha recuperado e pediu que eu olhasse. Logo pensei que era alguma foto ou vídeo esquisito, pois ele adorava piadas e todo tipo de pegadinhas dessas que a gente cansa de ver na TV e na Internet, por isso nem dei muita importância. No outro dia ele me ligou perguntando agora se eu tinha lido. Disse que não e ele me pediu num tom sério que era importante e queria que eu visse. Assim que tive tempo, abri o arquivo e li o que parecia ser o rascunho de uma pequena biografia do meu tio.

...em minha família todos os homens começavam a trabalhar muito cedo, logo que pudessem tirar a carteira de trabalho. Como uma família com características patriarcais e com forte influência religiosa, os filhos e filhas deviam obediência irrestrita aos pais que decidiam quase tudo na vida deles, compra de roupas, sapatos e coisas do gênero. Inclusive quanto podiam receber de seu próprio salário ganho durante o mês. Assim, cada um deles era obrigado a entregar o envelope de pagamento com o dinheiro dentro, fechado. Depois desse ritual o pai ou a mãe entregava a cada um o valor que achava conveniente e guardava o resto para as despesas do mês e dinheiro para a condução diária do trabalhador. Mas isso não era exclusividade da minha família. Naquela rua e naquele tempo, todos os pais agiam da mesma maneira e os filhos aceitavam isso como uma norma natural e alguns até se orgulhavam quando ouviam as mães, contando umas para as outras sobre a honestidade, obediência e boa índole dos filhos. Era a lei.

Eu nunca tive orgulho disso. Muito antes de começar a trabalhar com a “carteira registrada “ estava sempre procurando alguma forma de ganhar uma graninha. Vendia sorvetes, catava ferro velho e garrafas para vender ou fazia pequenos serviços: ia ao mercado sempre que algum vizinho pedia, em troca de algumas moedas que gastava depois com doces, balas e até um maço de cigarros que fumava escondido no meio de umas bananeiras. Crime que seria duramente punido se fosse descoberto. Não havia vícios na família. E eu era essencialmente egoísta, nunca dividia o que ganhava com ninguém. Era meu.

Morava num galpão de madeira no fundo da casa dos meus avós desde a morte de meu pai e a rotina dos meus tios, todos solteiros nessa época, era a mesma da maioria dos jovens da idade deles. Trabalhavam a semana toda em alguma fábrica como ajudantes ou aprendizes de alguma profissão e nos finais de semana vestiam suas melhores roupas, e procuravam ser convidados ou entravam de bico mesmo, em alguma festinha nas redondezas nas noites de sábado. No domingo a ida a igreja era uma obrigação que não precisava ser imposta. Todos eram fervorosos cristãos. Essa rotina incluía uma oração pela manhã de joelhos ao pé da cama Ritual indispensável para enfrentar o dia de trabalho. À noite, mesmo com a desaprovação de meu avô, todos se juntavam na frente de uma velha TV, conseguida não sei como, para ver novelas e filmes de bang bang, além de Tarzan, Jim das Selvas e outros heróis menos nobres. Quando a novela acabava e não tinha mais nada para ver, ficávamos sentados na cozinha de minha avó em volta de uma grande mesa, ouvindo histórias dos tios e tias ou as histórias de assombração que meu avô contava jurando que era verdade. As narrativas se misturavam com o som de um antigo rádio AM ligado baixo. Esse era o enredo imutável de ano após ano, quase nunca rompido por algum acontecimento inesperado. Tudo era esperado.

Eu não me preocupava com nada. Dos nove homens e sete mulheres que moravam no mesmo quintal, eu era o mais novo e era tratado com indulgência ou com desdém pelos mais velhos que sempre me traziam um sapato ou uma bota para engraxar, além de levar recados e coisas desse tipo. Nada que afetasse minha indiferença ainda não descoberta, pela mesmice daquela vida pacífica e ordeira que eu não compartilhava muito pois naquela época já afanava vinho do garrafão de meu avô sempre que tinha oportunidade.

Meu primeiro emprego de verdade foi uma decepção em termos de relações humanas, pois não era bem tratado pelos outros empregados, principalmente por uma moça do caixa, chamada Cláudia, por quem desenvolvi meu primeiro sentimento de ódio e continuei a desenvolver pelo resto da vida por todas as pessoas que se julgavam acima das outras e procuravam deixar isso claro, quando na verdade eram apenas arrogantes. Trabalhava como empacotador e entregador num supermercado. Que não era tão super assim, mas naquele tempo tudo parecia maior. Meu trabalho era empacotar as mercadorias passadas pelas moças do caixa e também fazer entregas na região com um carrinho pouca coisa menor que eu. O trabalho não era tão pesado. Mesmo com minha magreza eu era forte e dava conta do serviço além de sempre ganhar uns trocados nas entregas. Foi numa dessas entregas que segui a dona da compra até seu apartamento. Mesmo com a porta fechada eu podia ouvir um som que nunca tinha ouvido antes. Guitarras pareciam loucas como pipocas estourando na panela ou pingos de chuva endoidecidos que caiam sobre uma serra gigante cortando aço e fazendo o rompimento de algo maior ainda que ela própria. Quando entrei no apartamento o volume da música foi diminuído pela dona e eu pude ver um casal muito esquisito se beijando tranquilamente num enorme sofá, sem fazer qualquer questão de nossa presença. Já tinha ficado meio bobo com a música. Fiquei também confuso com a aparência deles. O cara era barbudo e tinha uma cabeleira que passava dos ombros. Estava com uma camiseta preta com um desenho na frente que não consegui saber o que era, vestia uma calça jeans muito apertada nas pernas e um tênis vermelho parecido com uma bota de tecido. Ela era linda, tinha os cabelos encaracolados e usava uma camiseta preta com a foto de uma mulher de óculos sorrindo e uma calça igualmente apertada e o mesmo tênis do namorado, mas sem o cano de bota. Saí de lá achando que tinha ouvido a música mais bonita do mundo e visto as pessoas mais bonitas também. Esse foi meu primeiro contato com o rock pesado. A partir daquele dia passei a prestar atenção nas pessoas que se vestiam daquele jeito e ouviam aquele tipo de música, de certo modo macabra

Estava na década de 70 e ainda havia remanescentes hippies andando por ali e eu ficava encantado com a maneira relaxada que eles se vestiam e como pareciam felizes sentados no chão vendendo seus artesanatos. E antes mesmo de ter contato com a música, tinha verdadeiro horror em dobrar cobertas de manhã, cortar o cabelo e todas as chatices que os outros faziam. Organização nunca foi meu forte. Lia as poucas revistas especializadas em música daquela época e o fascínio pelo rock só aumentava. Parei de cortar o cabelo definitivamente e me recusava a rezar de joelhos pela manhã, o que foi o motivo do primeiro confronto sério com os membros da família., seguido de muitos outros. Eu não gostava de regras e não obedecia nenhuma que não concordasse. Meu primeiro pagamento que não era grande coisa, foi consumido de uma vez só na compra de um violão. Em momento algum pensei em entregar meu hollerit fechado nas mãos de minha mãe. Nunca consegui entender aquela submissão do meu irmão, tios primos e amigos. O dinheiro era meu e eu ia dar o que pudesse ou o que achasse justo para ajudar nas compras. Estava pouco me lixando se iam falar que eu não era um bom menino., Eu nunca quis ser mesmo.

As discussões em casa eram freqüentes, mas não com minha mãe. Antigamente a gente levava uma surra dela por quase nada, mas depois que meu pai morreu quando eu tinha mais ou menos uns sete anos, ela nunca mais bateu em mim ou no meu irmão e agora também parecia não se incomodar muito com a minha rebeldia Eu já era assim antes. Nem quando ela me pegou fumando houve reclamação. Ela disse apenas: -Fumando né? E ficou nisso. Mas parece que a ala conservadora da família não gostou muito da coisa e eu fiquei sendo uma espécie de ovelha negra. Fumava, bebia, usava roupas diferentes, era cabeludo e ateu. Gostava de provocar discussões sobre religião só para ver a cara do meu avô e dos meus tios pegando fogo. Eu nem sei se era realmente ateu naquela época mas, como sempre gostei de ler e como sempre tinha uma bíblia em casa, devorei o Antigo Testamento. Li tantas vezes que podia discutir de igual para igual com qualquer um que viesse me falar sobre a bondade e misericórdia divina. Talvez no começo nem era ateu de verdade. Só mais tarde pude chegar a conclusões mais profundas sobre esse assunto. Na época, apesar de ter medo dele ainda, achava que o diabo devia ter motivos de sobra para ficar revoltado ir embora do céu. Não entendia porque o homem tinha que sofrer tanto, matar, saquear e escravizar tanto, enquanto Deus ficava lá cheirando fumaça dos churrascos em sua homenagem., como se fosse uma droga inebriante e “deplorando” ter feito a humanidade. Se o diabo era o problema, que acabasse com o ele de uma vez. E como eles diziam que o rock era a música do diabo, eu achava que o diabo não era tão mau sujeito assim, pelo menos tinha bom gosto. Muito melhor ouvir uma guitarra endoidecida entrando pelos ouvidos e se espalhando pelas veias do que agüentar aqueles hinos horrorosos e deprimentes que a gente tinha que ouvir.

Passei a conviver com outros roqueiros e descobri que eles não eram tão loucos como todos diziam. Na verdade não eram nem um pouco loucos. Os cabelos, as roupas, as gírias e até os vícios, escondiam pessoas que liam muito, conheciam música e história e se interessavam, mesmo que indiretamente, pelos problemas do mundo. Quem via aquelas figuras cabeludas e desleixadas, como dizia minha família, pensava que nós ficávamos o tempo todo falando de sexo drogas e rock. Até eu pensava isso antes de conviver com eles e foi por isso mesmo que procurei este tipo de convívio. Mas não era nada disso. Aprendi com eles e comigo mesmo muito mais do que aprenderia nas escolas e das lições de moral hipócritas que ouvira e ouviria de parentes, patrões, livros e toda espécie de gente fantasiada de santos durante a vida. É claro que entre nós havia os que preferiam o estereotipo tradicional que “as pessoas de bem” colocavam como características principais ao rock: a promiscuidade, os vícios e a violência. Mas os que agiam assim eram logo descartados do grupo pelo isolamento, tornavam-se figurinhas patéticas e deslocadas no meio dos outros e acabavam se afastando da turma por si mesmos. Tinha quase dezoito anos quando montamos uma banda de rock. Eu havia estudado música, conhecia teoria musical e conseguia tocar guitarra de maneira razoável, mas tinha um grande problema. Era excessivamente tímido e só conseguia tocar em público depois de beber muito e acabava não tocando nada. Por isso deixei a banda mas continuei acompanhando meus amigos nos acampamentos, praias e locais onde eles tocavam . Essa foi uma parte meio conturbada de minha vida. Parei de estudar, trabalhava uns meses até juntar algum dinheiro e saia por ai, sozinho ou acompanhado até ficar sem nada para voltar para casa, o que aconteceu nem sei quantas vezes. Mas devia ter cara de bom sujeito porque sempre alguém me ajudava, com comida, carona e até dinheiro mesmo, algumas vezes. Quando consegui comprar minha primeira moto as coisas mudaram um pouco. Agora andava pelo mundo de moto e não mais de ônibus ou trens. Fui para vários estados, sempre com pouco dinheiro mas a principal preocupação era comer, dormir e colocar gasolina . Não era muito difícil conseguir uma grana, lavei lanchonetes, entreguei encomendas em mercados em várias cidades e até fiz uns trabalhos na rede elétrica de uma igreja em Três Lagoas para um padre que antes de me dar o serviço perguntou se eu era Católico Apostólico Romano. Disse que era sem mesmo saber que existia mais de um tipo de católicos. Mas acho que ele fez isso por gozação, era um padre relativamente idoso com uma cara tranqüila e brincalhona, me daria o serviço mesmo que eu dissesse que não acreditava em nada.

   A narrativa continua por mais oito páginas onde meu tio descreve o relativo sucesso da banda que ele deixou, a seqüência de acidentes quase fatais com a moto e com todo tipo de riscos de vida que o perseguia ano após ano desde que se lembrava de existir, e conta também como largou aquela vida errante depois que minha tia engravidou e ele teve que trabalhar mais para conseguir entrar na faculdade e cuidar do filho. Pude entender então o seu isolamento do resto da família – que continua fervorosamente cristã - e seu jeito tranqüilo de quem já teve sua cota de juventude e de loucura. Mas era difícil imaginar aquele homem sempre vestido com roupas sociais, que dava treinamento a equipes de vendedores de seguros, como um jovem cabeludo e relativamente desmiolado viajando sem dinheiro pelo país como um nômade da idade moderna.

Meu primo apareceu em casa logo que terminei a leitura do arquivo. Parece que adivinhou. Comentamos o texto e ele me disse da sua surpresa em saber que seu pai, aquele cara de óculos grossos tinha feito tanta coisa na vida que ele nem imaginava. Falou também sobre a mãe, advogada trabalhista que levava a vida muito a sério e exigia muito dele nos estudos. Disse que não podia imaginar nem a mãe e nem o pai roqueiros Lembrou com saudade o pai que conversava pouco, nunca falava do passado ou dava exemplos de vida e essas coisas tão naturais e comuns nos pais. Estava sempre com um livro na mão nas horas de folga, jamais interferia em sua vida mas estava lá o tempo todo. Meu primo sempre foi um cara alegre e descontraído. Acho que foi a primeira vez que vi nele algum sinal de tristeza e desconforto. Não podia entender porque o pai havia escrito esse resumo de sua vida e muito menos porque ele apagou o arquivo. A doença de meu tio já era conhecida há anos e ele sabia que o coração não ia aguentar muito tempo e talvez por isso quis deixar uma parte da sua vida guardada num lugar qualquer.. Mas o arquivo tinha sido apagado.

Sua tristeza me contagiou. Lembrei de seu pai e das raras vezes que apareceu em minha casa. Nunca tive qualquer conversa com ele além dos cumprimentos usuais e das coisas tolas que falamos quando é preciso quebrar o silêncio de uma sala. Mas gostava dele. Não era o cara para quem a gente fazia festa quando chegava mas sem saber acho que era isso mesmo que eu gostava nele. A presença de um lado que ele não mostrava.


Biografia:
Tenho um livro publicado: "A Outra Banda do Rock" - Editora Protexto Coletâneas: Sonhos & Pesadelos: "A Moça da Praia" - Editora Aped. Pequenos Demônios e Assassinos Mirins - Editora Navras. "Nivaldo" Coletânea: A Coroação. " O Imperador, o Chucrute e o Frango". Coletânea Minha vida é Uma Comédia ~Editora Aped. O Queixo Quadrado. A Roupa Nova do Imperador Editora |Eber. O Homem que Citava Nietzsche Editora do Incomum. A Árvore - Editora Incógnita de Portugal. As Flores da Discórdia Editora Aped. O Abrigo - Editora Darda
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Outros títulos do mesmo autor

Contos O Queixo Quadrado AMAURI CHICARELLI
Contos A Volta AMAURI CHICARELLI
Contos A Outra Banda do Rock AMAURI CHICARELLI
Contos O Imperador, o Chucrute e o Frango. AMAURI CHICARELLI
Contos A Moça da Praia AMAURI CHICARELLI


Publicações de número 1 até 5 de um total de 5.


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