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Então deus estava em tudo?
Gregórius Kooche

Resumo:
Se você acha que estar sem dinheiro não é um sentimento, é porque você nunca sentiu isso.

Então deus estava em tudo?

Acho que o pior sentimento que um homem pode ter depois de uma certa idade, não é o amor, nem o ódio, nem a raiva, nem a indiferença. É a falta de dinheiro. Nada é pior do que sentir que não se tem dinheiro. É frustrante, desanimador, assustador. Sempre ouvi dizer que um homem precisa ter pelo menos uma nota de qualquer valor que fosse na carteira, e as vezes que eu passei por isso, vi que era a mais pura verdade. Tudo gira em torno do dinheiro. Sem ele você não vai comer, beber, viajar, sair. Até para tentar comer alguém quando não se tem dinheiro é mais difícil, você se sente um fracasso, logo não passa confiança a mulher nenhuma, e meu amigo, mulheres não querem perdedores. As garotinhas mais novas talvez até caem na lábia de um bom conversador, mas as mulheres mesmo, essas definitivamente não querem os perdedores.
Eu iria passar um final de semana sem dinheiro. Não sabia a quantos anos não passava por isso. Era desolador. Desconsolador. Mas era o preço que eu deveria pagar após cometer alguns excessos com drogas, bebidas e farras. Nada na vida é eterno, principalmente o dinheiro de um assalariado.
Resolvi sair por ai, sem rumo, caminhando. Na noite você sempre encontra o mesmo lixo que insiste em rastejar pelas ruas imundas de qualquer cidade. Toda cidade tem esses bandos de vagabundos. Nele você encontra pessoas que te fazem ver que sempre é possível chegar mais no fundo do poço do que se acha em que está. Putas, viciados, bichas, bêbados. É um grupo seleto das piores espécies que existem na terra. Eu gostava de conversar com eles, ouvir suas historias, saber que algumas pessoas simplesmente estão nessas condições por desejarem isso. É o que elas querem, e como culpar, ou ter pena, até mesmo ódio de pessoas que decidiram sair do sistema, questionar as regras de que é preciso ter dinheiro, ter uma carreira, ter uma família para ser feliz? Ninguém é feliz. Eles apenas aceitaram isso e foram viver.
- Ei cara, tá afim de um gole? – Um bicha me disse.
- Claro, por que não? – Cheguei e me sentei junto ao grupo.
- Qual é a boa de hoje cara? – Algum deles me perguntou.
- Não faço ideia, to sem um puto no bolso. – Respondi.
- Então bebe aí com a gente cara.
- Demorou.
Sempre me encantou como à simplicidade dos que nada tem é, do ponto de vista da sociedade, tão maior do que as dos que tem muito, segunda a sociedade. Essas pessoas sabiam das coisas, elas sabiam que todos somos a mesma merda. Todos comemos, bebemos, amamos, cagamos, sofremos e no fim morremos. Tudo que acontece em torno disso é variação. Essas variações são o que dão um pouco de graça a esse sopro de existência que todos estamos fadados.
- Tu é de onde cara? – Me perguntaram.
- Sou nascido no sul, criado no centro oeste e de passagem agora pelo litoral.
- Legal cara. Daqui vai pra onde?
- Talvez Argentina, quem sabe Uruguai. O mundo é grande de mais pra viver em um só lugar.
- Porra, legal pra caralho. Eu já rodei o mundo cara, já rodei o mundo. Arábia, Europa, Africa, Brasil todo. – Disse um carioca. Eu sempre detestei os cariocas. Quer dizer, os cariocas que conheci, deve haver pessoas de bem por lá, mas todos os que eu conheci tem esse sotaque e o jeito de malandro, tentando te passar pra trás a todo momento, dizem que já fizeram tudo, em todos os lugares, com todas as pessoas. Não que eu duvidasse disso, mas porra, você não precisa ficar a todo momento falando tudo que fez/faz/fará, é chato pra cacete.
- Legal hein cara. – Respondi com minha habitual indiferença.
- Cara, tu tem umas mãos bem bonitas hein? – Ele disse.
- Valeu amigo, valeu.
- Olha só, tenho uns anéis aqui pra vender, coisa fina, eu mesmo faço, acho que vão ficar perfeitos nos teus dedos cara. – Não levou nem 10 minutos pro cara querer me vender algo. Eu não estava tão errado, cariocas, me desculpem, mas todos vocês que eu conheci até agora são uns bostas, quem sabe um dia eu mude de ideia.
- Valeu cara, mas to liso, sem um puto no bolso.
- Me paga depois, não tem problema.
- Valeu amigão, mas nem uso anel cara, obrigado mesmo.
Dei mais um gole e continuamos a conversar. Porra, esses tipos conseguem falar sobre tudo. Isso é fascinante. Se um dia você quiser saber quem é deus, qual o sentido da vida, ou qualquer outra questão existencial, se junte a um bando desses. Eles tem todas as respostas. Não sei se estão certas ou erradas, só sei que eles tem todas as respostas.
- Já parou pra pensar que tudo está interligado cara? – Uma das bichas me disse.
- Como assim? – Perguntei.
- Olha só, se um dia você tá indo pra uma entrevista de emprego, e o ônibus quebra, você chega atrasado, perde a vaga, já pensou se aquele trampo ia ser o trampo da tua vida? Nele tua ia entrar como faxineiro, mas ia chegar a presidente da empresa, ia conhecer a mulher da tua vida lá, ia casar, ter filhos, ter uma família linda. Mas nada disso aconteceu por que a droga do ônibus quebrou e você perdeu aquela vaga.
- Poxa, faz sentido.
- Sacou qual é o lance? O lance é isso cara, o lance é isso.
- Faz muito sentido cara, muito mesmo. Poxa, agora eu vou pirar. Mas como tu sabe quando é o lugar, a hora certa?
- Não sei cara, não sei, eu só deixo rolar.
Isso tinha muito sentido, muita sabedoria. Detestava isso. Adorava isso. Era um daqueles momentos da vida semelhantes a uma epifania, um momento de iluminação. E se eu tivesse grana, não iria ter descoberto isso. Porra, isso fazia muito sentido. Tudo tava muito ligado. Não que eu acreditasse em destino, sinais, deuses e demônios, mas aquilo fazia muito sentido.
- E deus cara, onde você acha que deus tá? – Perguntei.
- Deus tá em tudo cara, deus tá em tudo, todo lugar, tá em mim, tá em você, tá nesse poste, nesse banco.
- Como assim? Não saquei.
- Cara, deus é vibração, os átomos vibram, tudo é composto de átomos, tudo vibra, tudo é deus.
Era muita informação. Tomei mais um gole e fiquei em silencio. Pensando. Achei que talvez devesse virar um mendigo. Eles sabiam das coisas.
- Quer uma chupada? – Uma das bichas perguntou.
- Valeu cara, mas nem curto.
- Ah, qual é, vai dizer que não curte um boquete?
- Curto sim cara, mas de mulher, homem não é meu lance.
- Ok, ok, mas se quiser experimentar, tiver curiosidade ou qualquer coisa do tipo, só me dizer.
- Beleza, pode deixar. – Respondi rindo.
Talvez a vida fosse isso. Essas pessoas viviam, não estavam nem ai para nada.
- Se quiser eu te chupo então querido. – Disse uma puta. Acho que era a única mulher no grupo. Quer dizer, tinha mais uma, mas eu não tinha certeza se era mulher ou não. Sempre que eu via esses tipos lembrava de um chefe meu que dizia: “Na dúvida come cara, na duvida come.” Mas essa não era minha filosofia de vida.
- Bem, de você eu até aceito. – Disse.
- 20 pratas e eu sugo até sua ultima gota de porra.
- Poxa gata, vai ter que ficar pra uma próxima. To sem grana mesmo.
- Ok, então, quando quiser, normalmente eu to por aqui.
- Legal, bom saber – Eu disse.
E seguimos bebendo noite a dentro. Porra, esse era daqueles papos em que tu meio que trava. Fica viajando, não tem mais certeza de muita coisa. É muito bom ver o mundo de um outro ângulo. As vezes você e qualquer outra pessoa estão vendo a mesma coisa, mas a percepção é diferente. Eu tava puto por estar sem grana, mas eles não estavam nem ai pra nada. Não fazia o menor sentido pra mim isso, mas era legal. E eles sabiam das coisas. A bebida acabou, fizeram um outro intera de grana, e foram comprar mais. Não me pediram um centavo. Aquilo me fez pensar. Quantos filhos da puta já haviam bebido nas minhas custas, e agora que eu estava na pior, onde eles estavam? Mas aqueles que eu encarava como lixo, estavam ali, sem ligar pra quem eu era, o que eu fazia, só queriam saber o que eu pensava. Perdi muito tempo da minha vida com gente escrota. Era isso, eu havia perdido muito tempo. Quando eles voltaram tomei mais alguns goles e fui embora. Nada mais já fazia sentido. O mundo estava maior. Quem sabe eu devesse virar mendigo.

Se você chegou até aqui, deixe um comentário, mesmo que falando mal, mesmo que tenha achado tudo isso uma merda. Deixe um comentário, você pode me ajudar a ser um aspirante a escritor menos pior.

Ah, e não leve a vida tão a sério.


Biografia:
Bêbado, viajante, egoísta, egocêntrico, sempre tentando ser a pior pessoa do mundo, mas nem sempre conseguindo.
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