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Poker pela alma
Gregórius Kooche

A espelunca em que eu acordei tinha a janela dentro do sol, talvez ao lado, ao menos era a sensação que eu tinha todo dia pela manha quando a merda do sol arrombava a janela do meu quarto, sem respeitar a pobre cortina ou então minha ressaca. Sete da manha. Isso era quase que imoral para mim. Nunca consegui entender como as pessoas acordavam felizes as cinco ou seis da manha para estudar ou trabalhar. Sempre achei que os turnos noturnos de escolas e empresas eram para pessoas normais, mas não, tinha percebido que eram para pessoas que queriam que seu dia fosse mais longo, ou para pessoas que odiavam o dia, assim como eu, e achavam que a noite era muito mais interessante.
Meu pai sempre me criticou, desde os onze, talvez doze anos por não conseguir ir dormir antes das duas ou três da manha, e ele, mesmo de ressaca sempre acordava as quatro para pegar o ônibus e ir ao trabalho. Em alguns momentos da minha vida me culpei por isso. Pedi a minha mãe os remédios que ela tomava para dormir, e ela sempre me dava a mesma resposta:
- Você é muito novo para tomar remédio para dormir meu filho. Vai contar carneirinho.
Eu contava os malditos carneirinhos até duzentos, quinhentos, mil, cansava de rolar de um lado pro outro da cama e gritava pra minha mãe que não conseguia dormir. E então meu pai falava:
- Bate uma punheta pra ver se cansa e dorme.
E às vezes nem mesmo com a punheta eu conseguia dormir. Depois de um tempo comecei a beber. E aos quinze já me destacava entre os meus amigos mais velhos como o que mais conseguia beber. Uma garrafa de vodka pra mim era uma boa diversão. Os outros garotos da minha idade correndo atrás de mulheres, jogando bola, soltando pipa e eu bebendo.
- Você é muito novo para beber. – Me diziam todos.
Mas depois de começar a beber eu não tive mais problemas para dormir. Apenas quando não tinha o que beber. Ai sim era um grande problema, Eu pensava de mais, onde ir, o que fazer, com quem ir, com quem fazer. Lembro até de uma vez em que depois de tanto me importunarem e colocarem merdas em minha cabeça decidi parar de beber. Tinha dezoito então. E fiquei uma semana sem beber. Parece que eu saltei dos dezoito aos vinte em uma semana, a julgar pela duração daquela semana infernal. As pessoas não entendiam que cada um de nos tem seu próprio ópio, seu próprio entorpecente, e o meu era o álcool. De alguns era a religião. Era Deus. Era o trabalho. Eu não, só queria beber e ler.
Aquele maldito quarto era horrível. Eu tinha visitado ele antes de alugar num fim de tarde e o por do sol era lindo do outro lado da casa, na beira do mar. Era meio obvio que se o sol se punha daquele lado, deveria nascer no outro. Nunca alugue um quarto bêbado. Nem no fim da tarde. Nem na beira da praia. Mas eu estava vindo de um jogo de pôquer que durou seis horas e enfim a sorte sorrira para mim e um full house havia me dado um dinheiro na ultima mão depois de algum tempo. Eu nem conseguia acreditar. A noite não tinha acabado comigo dormindo na rua sem dinheiro. Tinha o suficiente para pagar 3 meses do quarto, ou então beber durante trinta dias ininterruptos. Optei pelo quarto. Era inverno, e pela primeira vez ter onde dormir foi mais importante do que ter o que beber.
Mas mesmo com a sorte me sorrindo, era um sorriso amarelo, um sorriso falso. É brutal acordar as sete da manha com o sol na cara depois de uma noite de bebedeira até as quatro da manha. Não iria trabalhar aquele dia, nem ele nem os próximos. Já tinham me avisado no emprego que se mais uma vez fosse trabalhar bêbado ou de ressaca iriam me demitir.
- Não venha mais trabalhar bêbado, ou será a ultima vez!
- E quem disse que eu estou bêbado? – Questionei tremulo.
- Talvez tenha sido o litro de água que você tomou quando chegou, ou então a sua tremedeira que quebrou os pratos, ou então o fato de ter colocado o sal no café.
- Acho que foram apenas momentos de desatenção.
- A menina do caixa quase vomitou com seu bafo depois que você deu boa tarde a ela.
- Essa piranha deve estar dando para um monte de gente, engravidou e agora vem por a culpa no meu hálito, pelo seu enjoo.
- Você se acha engraçado não é?
- Me diga você, eu só faço as piadas, não posso julgá-las engraçadas ou não, isso tiraria todo o mérito.
- Seu merda!
- Calma chefe, calma e vai se foder seu filho da puta.
- Sai daqui agora.
- Ok, já vão acertar os dias trabalhados agora?
- Você só trabalhou aqui duas semanas!
- Sim, trabalhei duas semanas, estou sem grana e preciso de um gole de vodka.
- Então some pro escritório agora.
- Ok, mais alguma coisa?
- Vai se foder seu bêbado de merda!
- Tudo bem, manda um abraço pra esposa e fala pra ela que eu passo lá qualquer noite dessas.
Tiveram que segurar o coitado. Eu não tinha nada contra ele. Mas o fato de eu levar a vida apenas um dia após o outro, preocupado apenas com o que beber, o que comer, e onde dormir, parece que desencadeava uma série de reações diferentes nas pessoas que tinham uma carreira e uma vida perante a sociedade. Sempre era assim. Não importava o quão bom eu fosse em algo, se eu não pretendia seguir carreira e chegava bêbado todos os dias contando historias das noites anteriores, repletas de brigas e mulheres, virava heróis de uns e vilão para outros. Era uma pena que eu sempre era heróis aos iguais a mim, e vilão aos superiores.
Essa havia sido umas das minhas demissões mais memoráveis. Até pelo fato de ser um domingo, e era o dia mais movimentado do restaurante. Funcionava só para deliveries e à noite, e parecia sempre que o mundo estava de ressaca nos domingos, ressaca de mais para cozinhar. Aqueles filhos da puta iriam se foder até a madrugada para lavar a louça.
Cheguei no escritório, pedi meu dinheiro e o gerente me olhou com uma cara triste e disse:
- Você é um jovem tão inteligente, por que não aproveita essa inteligência? Seus pais teriam orgulho de você se você parasse de beber e tivesse uma carreira.
- Tenho uma carreira, sou um bêbado profissional, agora me pague por que eu preciso de uma bebida e estou sem dinheiro.
- Não posso lhe dar nada, preciso mandar sua carteira aos contadores para calcular quanto lhe devemos.
- Me adianta uma grana ai e desconta essa porra então. Eu preciso beber.
- Ok, vou te emprestar uma grana, mas é minha, não é da empresa, me devolve assim que tu receber.
- Claro velhote.
Peguei a grana e fui pro bar mais próximo. Cheguei, pedi uma cerveja, a mais barata, estava sem grana, e uma dose de vodka. Tomei o copo de cerveja num gole, e virei a vodka por cima. Era um jeito mais fácil de ficar bêbado logo. Um cara veio sorrindo pra mim e me perguntou se eu estava querendo afogar as magoas.
- Não, só acho que tudo é uma merda e preciso de um porre.
- Então deixa eu te pagar uma bebida.
- Claro.
- Dia difícil?
- Sim, não bebia nada há umas 12 horas.
- Um rapaz tão bonito como você não devia beber assim.
- Cara, já saquei, não curto homem, meu lance é mulher e álcool, mais álcool do que mulher ultimamente na verdade.
- Mas tu já ficou com homem, pra ter tanta certeza de que gosta só de mulher?
- Tu já foi espancado até a morte?
- Tá doido?
- Ué, tu não gosta de ser espancado até a morte?
- Eu não, nunca me bateram, não gosto de violência.
- Tu já espancou alguém até a morte?
- Tá doido? O álcool já subiu pra tua cabeça?
- Não, mas se tu nunca fez isso, como pode saber que não gosta?
- Eu não gosto, não é certo!
- Pra mim sair pagando bebida pra chupar uma rola em troca também não é certo, e eu não preciso fazer isso pra saber.
- Ai credo, seu estúpido!
- Vai se foder seu veado de merda!
Falei isso bem no intervalo entre as musicas. O bar estava em silencio e todos ouviram. O mundo estava muito chato. As bichas não podiam ser chamadas de bichas, os pretos não podiam ser chamados de pretos, nem as loiras mais podiam ser chamadas de loiras, os brancos sim, eles podiam ser chamados de branquelos azedos, brancos de merda, isso não era errado, todo o resto era.
O dono do bar se virou pra mim e disse:
- Por favor, saia, esse não é um bar nazista, nem homofóbico.
- Tudo bem, vai chupar o pau dessa bicha seu filho da puta.
Paguei a cerveja e a vodka e sai.
Eu não tenho nada contra os gays, ou os pretos, ou os brancos, ou os ETs, só acho errado alguém se esconder atrás do gênero sexual ou da cor para justificar os atos. Eu não tinha mais direito de recusar um cara querendo chupar meu pau. Talvez a resposta certa fosse:
- Por favor, chupa ai meu pau cara.
Então ele iria cair de joelhos, abaixar minha calça e meter a boca no meu pau, e todos em volta iriam me aplaudir, e eu seria o cidadão do ano. Não sabia mais se tinha nascido no país errado ou no século errado.
Saindo do bar passei por um parque, e lá estava um louco falando sozinho com a bíblia aberta.
Algo me disse que isso não era um bom sinal.
- Irmão, Jesus te ama, ele tem um propósito para a sua vida!
Definitivamente não era meu dia de sorte.
- Valeu cara, mas eu e Deus não nos damos muito bem.
- Mas irmão, eu senti, eu vi! Deus me disse que tem um propósito para você.
- É mesmo?
- Claro, a bíblia nos diz...
- Deixa eu falar com ele ai então. – Interrompi.
- Irmão, Deus está em toda parte!
- Me da um endereço pra cobrança então, to meio ruim de grana e sem emprego, tenho cartão de crédito e pensão pra pagar, queria levar um papo com ele pra ver se ele me emprestava uma grana, se não acho que vou penhorar minha alma com o diabo.
- Meu Deus, você está possuído!
E o filho da puta veio pra cima de mim, colocou a mão na minha cabeça e começou a rezar. Eu olhei sem entender nada e dei um cruzado de direita bem no meio do seu nariz.
- Você vai pro inferno, Deus vai te castigar por bater num servo dele!
- Tudo bem, eu vou pro inferno mesmo, e não vai ser por isso. Não por bater num merda como você. E tu, vai pra onde?
- Eu vou pro céu reinar com meu senhor!
- Quer que eu providencie sua passagem de ida?
- Como assim?
- Quer ir pro céu, eu dou um jeito nisso agora mesmo. – E puxei o canivete que sempre carregava comigo. Não por que eu gostasse de facas ou coisas do tipo, mas ele tinha um abridor em uma ponta e um saca rolhas no meio, era útil para um bêbado, afinal de contas no fim da noite nem sempre se acha um vinho barato sem rolha.
Ele saiu capengando, tropeçando e gritando que o diabo queria acabar com a palavra do senhor ou qualquer coisa do tipo. Eu não tinha nada contra Deus, só achava que se ele me amasse ou tivesse um plano para minha vida, podia me avisar isso pessoalmente, e não através de um doido de terno, gritando com uma bíblia na mão.
Um cara observava tudo isso de canto, e chegou em mim.
- É serio aquele lance de penhorar a alma?
- Pronto, agora vem o capeta negociar comigo,
- Se quiser te levo a um lugar para jogar um pôquer, se tu ganhar, te pago mil reais, se tu perder, sua alma é minha.
- Texas Holden ou 5 Cards??
- Você escolhe!
Eu parei, olhei para o sujeito. Barba branca, cabelos brancos, chapéu preto e os dentes da frente de ouro. Lindos olhos azuis, me chamaram a atenção, brilhavam. Mas estava vestido como um mendigo. Não parecia o diabo que precisava de um advogado, parecia apenas um velho bêbado com olhos azuis.
- Cadê a grana?
Ele puxou a carteira e me mostrou, tinha bem mais de mil reais, fiquei contente, nem sabia que tinha uma alma, saber que ela valia mil reais numa mesa de pôquer foi bom.
- Ok, assino alguma coisa em uma encruzilhada ou coisa do tipo?
- Não é assim que funciona, esses merdinhas de Hollywood nos desmerecem.
- Olha, to sem grana, e já que minha alma vale tanto, vamos então de 5 Cards, mas eu tenho uma exigência.
- Me diga e vamos ver o que posso fazer.
- Vou poder beber de graça.
- Se é só isso não é problema, me acompanhe.
Fomos caminhando até uma ruazinha no meio da praça em que eu nunca tinha percebido que existia, andamos uns duzentos metros e ele parou. Fiquei apenas olhando, ele bateu em uma portinha. Dois toques leves, um pesado, três leves, e alguém abriu a porta.
Por um momento fiquei pensando se era algum tipo de pegadinha, ou coisa do tipo. Mas não parecia ser. Na mesa três caras. Um gordo de jaqueta de couro, bandana e luvas, com aquela cara de caminhoneiro de filme americano, um negro de cabelo Black Power e pra minha surpresa o bicha que eu tinha quase batido no bar.
Não sabia mais se tinha sido uma boa ideia penhorar minha alma por uma partida de pôquer.
O velho grisalho me trouxe as fixas e uma dose dupla de Jhonny Walker sem gelo. Nesse momento vi que talvez tivesse sido uma boa ideia.
Fomos apostando. O croupie sempre dando as 5 cartas viradas. E cada um fazendo suas pedidas.
- Duas por favor – disse a bicha.
- Uma – pediu o caminhoneiro.
- Duas – pediu o negro.
Chegando minha vez, olhei as cartas, sorri, e disse:
- Nenhuma.
Cartas distribuídas e era hora da aposta.
- Eu passo – disse a bicha.
- Aumento em 100 – disse o caminhoneiro.
- Eu pago – disse o negro.
- Eu pago e aposto tudo. – respondi com um sorriso no rosto.
Iria blefar, não tinha nada a perder, não acreditava nessa baboseira de alma. Tinha um par de noves e mais nada.
Todos desistiram. E assim seguiu a noite, eu blefando, e sorrindo, ganhando e perdendo, e assim saiu da mesa o negro. Devia ter perdido sua alma, mas eu não me importava com isso. Depois o caminhoneiro. Ele ficou com uma cara de desespero ao ver uma trinca de ases em minhas mãos quando apostou tudo com dois pares blefando. Só restou a bicha de merda e eu. Um contra um. Três horas de jogo.
- Se eu ganhar, vou trocar minha alma pelo seu cu, seu filho da puta!
- Você não vai ganhar seu bicha de merda.
Veio a mão. Ele sorriu.
Pedi três cartas, tinhas um par na mão e mais nada. Ele pediu uma carta, com um sorriso no rosto e apostou tudo.
Veio uma trinca de reis na minha mão.Eu tinha um maldito full house. Um full house bem gay, com um par de valetes e uma trinca de reis, mas foda-se, ele não ganharia dessa mão.
Eu paguei a aposta dele, e levei tudo. Mil reais, pra uma noite em que tinha sido demitido, e ainda continuava com minha alma para futuras apostas,
O velho grisalho veio me dar o dinheiro e disse:
- Que tal o dobro ou nada?
- Deixa por isso mesmo, a sorte e eu não costumamos andar juntos, talvez tenha sido Deus que quis provar que existe.
- Quem sabe, quem sabe?
Peguei o dinheiro e liguei para o senhorio as 3 da manha de um domingo. Ele me perguntou se eu estava louco, disse que não, apenas tinha tido uma noite de sorte e queria ficar com o quarto visto na tarde de sexta. Ele mandou eu me foder, e então eu disse que iria pagar três meses antecipados. Ele chegou em cinco minutos. Paguei o aluguel e peguei a chave. Estava frio, por sorte o quarto tinha algumas cobertas, no outro dia iria pegar minhas coisas na outra casa. Quando acordei no outro dia com o sol chutando a janela só pude pensar em uma coisa, quem sabe Deus realmente existisse, e tivesse salvado minha alma naquela mesa de pôquer, e quando o sol nasceu, ele queria me lembrar de que era um sádico, que ajuda com uma mão já sabendo como te sacanear com a outra. Quem sabe eu tivesse que jogar pôquer com ele qualquer hora dessas.


Biografia:
Bêbado, viajante, egoísta, egocêntrico, sempre tentando ser a pior pessoa do mundo, mas nem sempre conseguindo.
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