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Folhas soltas
Crônica do livro Apetite Famélico
Alexandru Solomon

Resumo:
Com o en­colhimento do círculo de amizades, por obra do tempo e da ruína financeira, raramente recebia alguém.

Sentia-se mais só do que nunca. O apartamento, grande demais para uma única pessoa, estava mais para sepultura do que para abrigo. Tinha “jogado a toalha”. A maníaca perfeccionista, insensi­velmente, dera lugar a uma anciã resignada. Pouco importava se a cortina da sala apresentava franjas, mais por obra das traças do que pelo projeto de um decorador, de cujo nome nem se lembrava. Pouco im­portava se uma das janelas da sala apresentasse uma rachadura dia­gonal, como resultado de uma batida que estaria fes­tejando seu quarto aniversário, se esse gênero de efemérides existisse. Os velhos móveis coletavam camadas de poeira a desafiar a visita semanal da faxineira incapaz de intimidá-las. Pelo tamanho do apartamento, teria sido necessário pro­mover um ver­dadeiro rodízio dos cômodos a recebe­rem algum trato. A tarefa de mantê-lo apresentavel­mente limpo poderia ser considerada como substituta da limpeza dos está­bulos do rei Augias, totalmente fora do alcance de uma empregada sem registro em carteira.
As paredes imploravam por uma pintura revigo­rante que pudesse esconder alguma finas rachaduras que o tom cinzento do descalabro ressaltava impiedo­samente. Como a entrada da luz estava sendo par­cialmente vetada pelas cortinas e a quantidade de lâmpadas queimadas dos velhos lustres superava o número das sobreviventes, reinava, a qualquer hora do dia, uma penumbra que, de certo modo, escondia os detalhes do naufrágio.
No seu velho robe, vagava, feito alma penada. Mar­cou uma pausa à frente dos quartos fechados dos filhos, há muito tempo fora do ninho. Suspirou. Atra­vessou a biblioteca, reduto empoeirado de traças e cupins. Olhou distraidamente para livros que não lhe despertavam mais interesse algum. Lera o suficiente para ter o que esquecer. Abriu a porta de correr que levava ao conjunto de sala acoplada a uma sala de jantar e à outra sala maior ainda, na qual, vez por outra, recebia visitas.
Visitas? Praticamente não saía de casa. Com o en­colhimento do círculo de amizades, por obra do tempo e da ruína financeira, raramente recebia alguém.
A luz hesitante dos lustres não chegava a revelar totalmente os rostos fustigados pela idade, rejuvenes­cidos milagrosamente pelo tradicional licor de cacau. Algumas horas de conversa por mês. Era a rotina da fuga da rotina.
Aquele salão imenso abrigara outrora festas, cujos ecos permaneciam congelados nas colunas sociais de “priscas eras”. Uma falência inexplicável, para alguns, seguida de um suicídio, o assédio de credores e lá estava ela a se perguntar se ainda valia a pena viver.
De uma grande beleza num passado cada vez mais distante, de tudo permanecia a sensação de ter sido presa anos a fio a rituais aos quais a obrigavam posi­ção social e casamento de conveniência. Vivera para as aparências, uma felicidade de fachada, um conto de fada ás avessas. “Casaram-se e nunca foram feli­zes”. Tudo fora um arranjo meticulosamente prepa­rado pelos pais. Duas fortunas de família reunidas através do sagrado e oportuno vínculo do matrimônio sem amor, mais parecido com uma relação polida en­tre pessoas de condição social privilegiada. O luxo, triste compensação, jamais conseguira preencher o vazio criado contratualmente.
Com o tempo aprendeu a sempre se retirar quando o assunto era para os homens e seus havanas. Na­queles momentos, encontrava nas demais amigas o retrato fiel da sua relativa inutilidade. Uma bela ma­triz reprodutora, sem dúvida, mas nada, além de gra­vitar com graça e elegância em volta de um marido esnobe e infiel, lhe fora reservado. Fora esse o seu papel.
Claro, havia os filhos. Dignos herdeiros da arrogân­cia paterna, sem terem sido contemplados pelo faro para negócios, mas dotados de uma incomensurável dose de superficialidade, que logo foi desaguar em sentimentos de educada indiferença em relação à mãe.
– A senhora não vai entender mesmo isso... parecia o bordão patenteado pela família. Durante tantos anos apenas um precioso bibelô. Não passara disso. Admirável dona de casa num palácio progressiva­mente transformado em caverna, sem a sabedoria de Platão. Desde o princípio, sem ilusões e sem perspec­tivas. Faltaram-lhe forças para reagir quando tudo ruíra. Restou-lhe ficar enclausurada no apartamento, salvo da sanha dos credores.
Poderia ter dado a volta por cima, mas não soube fazê-lo. Bastaria ter vendido o apartamento, comprado outro menor e desfrutado de uma inatividade menos patética.
Aparentemente resignada, durante algum tempo encontrou refúgio na leitura, trancada na biblioteca. Aos poucos, passou a se desinteressar por tudo, governada por crescente apatia.
Os dias passaram a ser apenas compromissos com o nada. Vazios.
O tempo borrou-lhe as lindas feições, apagou-lhe o brilho dos olhos e, aos poucos, transformou-a na velhinha abandonada a bebericar distraidamente um pouco da sua bebida favorita.
Foi quando lhe ocorreu voltar para o que antiga­mente chamava de quartinho da bagunça. Agora todos o eram.
No meio das velharias, encontrou com alguma difi­culdade um caderno de capa dura dotado de um fecho, cuja chave teve que ser substituída, com pleno sucesso, por um grampo de cabelo. Voltou lentamente para a poltrona de couro cheio de pequenas rachadu­ras. Começou a folhear o caderno até chegar à página que procurava.
... uma bela festa. O Lê esteve olhando para mim a noite inteira. Se ele soubesse o quanto gosto dele. Não sei mais o que fazer. Papai me proibiu conversar com ele. Fala que sabe melhor o que me convém. Será que sabe? Duvido muito. Não falei com mais ninguém, ninguém mesmo, só você Horácio, meu querido diário...
Parou a leitura. O Lê, a grande paixão. Chegaram até a planejar uma fuga, mas na última hora ela fora covarde. Leonardo, posteriormente brilhante advo­gado, falecido na semana passada. O tal pé-rapado saído do nada até chegar a advogado de renome. Nunca mais...
Rasgou lentamente a folha, rasgou também uma folha em branco do fim do caderno e escreveu, pesando cada palavra, com uma letra igual à do diá­rio. Pelo menos assim lhe pareceu:
“... Já decidi. Amanhã saio de casa e deixo apenas um bilhete: Fui ao encontro de minha felicidade...”
Colocou a folha, substituindo a que rasgara minu­tos atrás e esperou.
Foi encontrada na poltrona. Um sorriso enigmático estampado no rosto.


Biografia:
Alexandru Solomon, empresário, escritor. Formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus` (Ed. Totalidade), ´Bucareste`, ´Plataforma G` e ´A luta continua` (Ed. Letraviva). Livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Loyola (www.livrarialoyola.com.br), Letraviva (www.letraviva.com.br). | E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br http://blogdoalexandrusolomon.blog.terra.com.br

Este texto é administrado por: Celso Fernandes
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