Sentia-se mais só do que nunca. O apartamento, grande demais para uma única pessoa, estava mais para sepultura do que para abrigo. Tinha “jogado a toalha”. A maníaca perfeccionista, insensivelmente, dera lugar a uma anciã resignada. Pouco importava se a cortina da sala apresentava franjas, mais por obra das traças do que pelo projeto de um decorador, de cujo nome nem se lembrava. Pouco importava se uma das janelas da sala apresentasse uma rachadura diagonal, como resultado de uma batida que estaria festejando seu quarto aniversário, se esse gênero de efemérides existisse. Os velhos móveis coletavam camadas de poeira a desafiar a visita semanal da faxineira incapaz de intimidá-las. Pelo tamanho do apartamento, teria sido necessário promover um verdadeiro rodízio dos cômodos a receberem algum trato. A tarefa de mantê-lo apresentavelmente limpo poderia ser considerada como substituta da limpeza dos estábulos do rei Augias, totalmente fora do alcance de uma empregada sem registro em carteira.
As paredes imploravam por uma pintura revigorante que pudesse esconder alguma finas rachaduras que o tom cinzento do descalabro ressaltava impiedosamente. Como a entrada da luz estava sendo parcialmente vetada pelas cortinas e a quantidade de lâmpadas queimadas dos velhos lustres superava o número das sobreviventes, reinava, a qualquer hora do dia, uma penumbra que, de certo modo, escondia os detalhes do naufrágio.
No seu velho robe, vagava, feito alma penada. Marcou uma pausa à frente dos quartos fechados dos filhos, há muito tempo fora do ninho. Suspirou. Atravessou a biblioteca, reduto empoeirado de traças e cupins. Olhou distraidamente para livros que não lhe despertavam mais interesse algum. Lera o suficiente para ter o que esquecer. Abriu a porta de correr que levava ao conjunto de sala acoplada a uma sala de jantar e à outra sala maior ainda, na qual, vez por outra, recebia visitas.
Visitas? Praticamente não saía de casa. Com o encolhimento do círculo de amizades, por obra do tempo e da ruína financeira, raramente recebia alguém.
A luz hesitante dos lustres não chegava a revelar totalmente os rostos fustigados pela idade, rejuvenescidos milagrosamente pelo tradicional licor de cacau. Algumas horas de conversa por mês. Era a rotina da fuga da rotina.
Aquele salão imenso abrigara outrora festas, cujos ecos permaneciam congelados nas colunas sociais de “priscas eras”. Uma falência inexplicável, para alguns, seguida de um suicídio, o assédio de credores e lá estava ela a se perguntar se ainda valia a pena viver.
De uma grande beleza num passado cada vez mais distante, de tudo permanecia a sensação de ter sido presa anos a fio a rituais aos quais a obrigavam posição social e casamento de conveniência. Vivera para as aparências, uma felicidade de fachada, um conto de fada ás avessas. “Casaram-se e nunca foram felizes”. Tudo fora um arranjo meticulosamente preparado pelos pais. Duas fortunas de família reunidas através do sagrado e oportuno vínculo do matrimônio sem amor, mais parecido com uma relação polida entre pessoas de condição social privilegiada. O luxo, triste compensação, jamais conseguira preencher o vazio criado contratualmente.
Com o tempo aprendeu a sempre se retirar quando o assunto era para os homens e seus havanas. Naqueles momentos, encontrava nas demais amigas o retrato fiel da sua relativa inutilidade. Uma bela matriz reprodutora, sem dúvida, mas nada, além de gravitar com graça e elegância em volta de um marido esnobe e infiel, lhe fora reservado. Fora esse o seu papel.
Claro, havia os filhos. Dignos herdeiros da arrogância paterna, sem terem sido contemplados pelo faro para negócios, mas dotados de uma incomensurável dose de superficialidade, que logo foi desaguar em sentimentos de educada indiferença em relação à mãe.
– A senhora não vai entender mesmo isso... parecia o bordão patenteado pela família. Durante tantos anos apenas um precioso bibelô. Não passara disso. Admirável dona de casa num palácio progressivamente transformado em caverna, sem a sabedoria de Platão. Desde o princípio, sem ilusões e sem perspectivas. Faltaram-lhe forças para reagir quando tudo ruíra. Restou-lhe ficar enclausurada no apartamento, salvo da sanha dos credores.
Poderia ter dado a volta por cima, mas não soube fazê-lo. Bastaria ter vendido o apartamento, comprado outro menor e desfrutado de uma inatividade menos patética.
Aparentemente resignada, durante algum tempo encontrou refúgio na leitura, trancada na biblioteca. Aos poucos, passou a se desinteressar por tudo, governada por crescente apatia.
Os dias passaram a ser apenas compromissos com o nada. Vazios.
O tempo borrou-lhe as lindas feições, apagou-lhe o brilho dos olhos e, aos poucos, transformou-a na velhinha abandonada a bebericar distraidamente um pouco da sua bebida favorita.
Foi quando lhe ocorreu voltar para o que antigamente chamava de quartinho da bagunça. Agora todos o eram.
No meio das velharias, encontrou com alguma dificuldade um caderno de capa dura dotado de um fecho, cuja chave teve que ser substituída, com pleno sucesso, por um grampo de cabelo. Voltou lentamente para a poltrona de couro cheio de pequenas rachaduras. Começou a folhear o caderno até chegar à página que procurava.
... uma bela festa. O Lê esteve olhando para mim a noite inteira. Se ele soubesse o quanto gosto dele. Não sei mais o que fazer. Papai me proibiu conversar com ele. Fala que sabe melhor o que me convém. Será que sabe? Duvido muito. Não falei com mais ninguém, ninguém mesmo, só você Horácio, meu querido diário...
Parou a leitura. O Lê, a grande paixão. Chegaram até a planejar uma fuga, mas na última hora ela fora covarde. Leonardo, posteriormente brilhante advogado, falecido na semana passada. O tal pé-rapado saído do nada até chegar a advogado de renome. Nunca mais...
Rasgou lentamente a folha, rasgou também uma folha em branco do fim do caderno e escreveu, pesando cada palavra, com uma letra igual à do diário. Pelo menos assim lhe pareceu:
“... Já decidi. Amanhã saio de casa e deixo apenas um bilhete: Fui ao encontro de minha felicidade...”
Colocou a folha, substituindo a que rasgara minutos atrás e esperou.
Foi encontrada na poltrona. Um sorriso enigmático estampado no rosto.
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