Em 24 de fevereiro de 1525, Francisco 1° rei da França, foi derrotado na batalha de Pavia. Aconselhado a desistir do cerco da cidade, preferiu seguir o conselho de Bonnivet: “um rei de França não recua diante dos inimigos e não altera seus projetos de acordo com o capricho deles”. Derrotado – o exército francês perdeu mais de 10.000 combatentes – ferido na mão, no rosto e na perna, Francisco 1º resolveu se entregar. Perguntado se estava ferido, respondeu orgulhosamente “Non... guère”. (Não, nem um pouco). A título de curiosidade, naquela batalha pereceu La Palisse, precursor do famoso conselheiro Acácio – fala-se em verdades acacianas ou lapalissadas, para designar truísmos.
Na noite da batalha, já prisioneiro, numa mensagem enviada à sua mãe, Luísa de Saboia, Francisco escreveu a famosa frase: Tout est perdu fors l´honneur” (tudo está perdido salvo a honra). Pano rápido. Vamos avançar algo como meio milênio.
O clamor das ruas agita o Brasil de norte a sul e de leste a oeste. Abundam interpretações. Aparentemente sem saber como agir, sem ter como jogar a culpa no governo do príncipe dos sociólogos – procedimento usual, mas ineficaz nesse momento, o governo reage como pode.
Após breve resistência: ...“não recua diante dos inimigos e não altera etc.”, cede. A tarifa dos transportes – estopim da revolta – é reduzida. Faz sentido, afinal se há serviço de saúde gratuito, por que não transporte mais barato... desde que se saiba de onde sairão os recursos.
Mas a pauta dos manifestantes, apesar de difusa, é muito mais extensa. O descontentamento gerador de queda da popularidade da presidenta possui inúmeros vetores. A corrupção, o desperdício de recursos públicos, a péssima qualidade do serviço de saúde, da educação, da segurança, a inflação e por aí vai. Não faltam vilões. Sobra indignação.
Num primeiro momento, a presidenta propõe cinco pactos, diante de uma plateia disposta a bater palmas ante qualquer fala, sem levar em consideração o fato de ser um pacto “um ajuste, contrato, convenção entre duas ou mais pessoas”, de acordo com o dicionário Houaiss.
O efeito é mínimo.
Segue-se uma série de propostas desde a convocação de uma assembleia constituinte para solucionar a reforma política, adormecida há décadas, e convergindo, após a descoberta de ser essa medida inconstitucional, para um referendo, ou seria plebiscito? Remédio discutível já que visa a resolver um problema importante, porém não o mais premente.
Criou-se uma diversão – discute-se a viabilidade de a medida já influir nas eleições de 2014. Será que num universo no qual uma percentagem avassaladora é incapaz de interpretar um texto simples poderá decidir se deve ou não haver financiamento público de campanha, ou se o voto deve ser distrital misto, bastando para tanto um pronunciamento oficial dirigido aos súditos? Isso melhorará a qualidade dos serviços em estado calamitoso, garantirá a segurança dos sitiados, não em Pavia mas em suas próprias residências?
Será que nossa balança comercial melhorará com isso? Será que isso nos levará a acumular um superávit nominal – ideia rudimentar já se disse – sem acrobacias contábeis?
O discurso oficial espalha otimismo. “Não há hipótese de sermos complacentes com a inflação” O diabo é que o teto já foi furado. Nunca antes estivemos em melhor situação, que só não é melhor devido a fatores externos, tão distantes do nosso adorável umbigo. Sua Excelência o Ministro da Fazenda esfalfa-se em discursos panglossianos (que, aparentemente, lhe foram ditados), nos quais possivelmente esteja acreditando – é dos poucos se não o único. Repudiamos o tsunami financeiro e agora, ante a escalada do dólar, queremos o tsunami de volta, desbaratando as barragens erguidas pouco tempo atrás.
Trocamos um tripé por uma matriz econômica. Só a imprensa golpista... e a opinião pública parecem não enxergar o mar de rosas que nos cerca.
Falamos em planos de mobilidade urbana e simultaneamente estimulamos a compra de veículos para entupir as artérias congestionadas das cidades. A frota demanda uma gasolina que não temos já que nossa autossuficiência é meramente retórica. Seguramos o preço dos combustíveis – não congelamos, Deus nos livre, e a Petrobras que se vire. Falamos em austeridade, enquanto fluem recursos para o BNDES, Caixa e programas do tipo minha geladeira nova minha vida. Recursos que não caem do céu é bom que se diga. Sacamos sobre o futuro, antecipando dividendos de estatais e recursos que Itaipu proporcionará até o fim do contrato. tentando melhorar o presente. Quanto ao futuro, como Scarlett O´hara, pensaremos amanhã.
E agora, chegamos ao politicamente incorreto.
A percepção da realidade motivou um movimento de força e extensão insuspeitável.
A revolta procede, mas é preciso discutir essas manifestações ditas pacíficas.
Decerto não se faz omelete sem quebrar ovos, mas o lojista cuja loja foi depredada há de perguntar: Mas logo os meus?
De fato, trata-se de algumas minorias, de aproveitadores que pegam carona nos movimentos legítimos, assim como deputados pegam carona em MPs para inserir pleitos de sua conveniência. São aqueles que atiram a primeira pedra, ou eventualmente a primeira bomba. De fato, a reação da Polícia foi exagerada, mas será que naqueles casos não houve também minorias irresponsáveis. Nem todos os integrantes da força policial leram Kant na sua versão original.
Vale, porém, questionar os procedimentos da imensa maioria pacífica. Seria absurdo qualificá-la de exército de Brancaleone. Tem-se um gigantesco ‘Cansei’ apartidário. Um ‘saco cheio’ geral. Um movimento legítimo.
Por mais legítimo que seja, é razoável paralisar por longas horas cidades inteiras? Faz sentido bloquear avenidas importantes acabando com o direito de ir e vir dos cidadãos?
Claro que não faz sentido que as manifestações ocorram no Sambódromo, mas deixar uma pista livre, permitindo passagem de ambulâncias, seria pedir demais?
Quando se trata de dezenas de milhares de manifestantes, apressadamente qualificados de ‘milhões’, ainda faz sentido, mas um grupo de algumas centenas bloquear o acesso ao aeroporto de Cumbica é razoável? Isso mais parece uma arbitrária penhora on-line das nossas estradas e avenidas.
Finalmente, esses movimentos, que serão ainda objeto de estudo, mobilizados através das redes sociais não possuem uma liderança definida que possa negociar com o governo uma solução para os inúmeros problemas que nos afligem. Quem irá sentar à mesa com um governo atônito e discutir algo mais concreto que frases e promessas bombásticas?
Voltamos ao ponto inicial desse comentário. O governo poderá afirmar, contrariamente ao que escreveu Francisco 1°: “Nem tudo está perdido”. Certo, mas a honra?
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