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O fato, a versão
A crônica do Alexandru Solomon
Alexandru Solomon

Resumo:
Do livro ´´Apetite Famélico``, melhor livro em português, Poesia Prosa e arti figurativi – Il Convivio – Itália.

A atmosfera modorrenta do escritório de Daniel Lima refletia a ausência de uma semana do titular. O feriado na quarta e os vários anos sem qualquer tipo de férias convenceram a direção do jornal ser interes­sante patrocinar uma “enforcada”. Redator responsá­vel por mais de dez anos, Daniel, o “Bombardeiro”, precisava urgentemente recarregar as baterias, ao menos por uma semana, longe da calma aparente da­quela pequena cidade.
Pois era dessa calma que era necessário extrair no­tícias capazes de manter o interesse dos leitores. A falta de eventos, a ausência de escândalos, a normali­dade conspiravam contra a tiragem. O jornal preci­sava da verve de Daniel. Um redator estressado signi­fica uma coluna desprovida de interesse. Para recu­perar o craque, nada como um pequeno des­canso. Naturalmente, antes de sair, teve de deixar algum material, a fim de evitar a observação: “o res­ponsável pela coluna encontra-se em férias”, aceitável num grande jornal, porém totalmente inviável aqui.
De volta, Daniel estava procurando no meio da ordem aparente, obra da secretária, restabelecer, em cima de sua mesa, a desordem com que estava habi­tuado a conviver. Em primeiro lugar espalhou os recortes dos principais jornais, preparados para serem deglutidos. Achou o bloco de anotações, curio­samente colocado bem à sua frente e não, como de hábito, embaixo da pilha de revistas e, ainda sem muita vontade, começou desenhar um quadrado. Tra­çou uma diagonal e sem perder de vista o computador ligado com a chuva impiedosa de e-mails, a ponto de reduzir a pó ao efeitos do descanso, começou enegre­cer uma das metades do quadrado.
Lá fora, um sol tímido insinuava alguns raios he­sitantes através da folhagem da figueira poupada, milagrosamente, quando da construção do prédio. Pediu um café a dona Laura, sem interromper sua tarefa. Ao lado do quadrado já desenhado, desenhou mais dois. Decididamente, estava virando um Mon­drian do preto e branco.
A porta se abriu, dando passagem ao patrão. O dono do jornal, um cinqüentão simpático, pertencia à segunda geração dos proprietários do “Novos tempos”. Empresário bem sucedido, mantinha o jornal apenas para honrar a memória do seu tio, fundador e mola-mestra da publicação. Herdeiro único, empenhara-se para manter vivo esse patrimônio familiar, sobretudo por uma questão de prestígio. Em hipótese alguma cogitaria em fechar. Nos últimos anos o problema a ser resolvido era apenas de quanto seria o prejuízo e como minimizá-lo. De qualquer maneira, uma simples operação de “engenharia fiscal” que consistia em incluir o “Novos tempos” na holding familiar, permitia o aproveitamento do pequeno e inevitável prejuízo, tornando menos cruel a mordida do Leão nos polpu­dos resultados dos demais empreendimentos.
– Olá, Daniel!
– Bom dia, senhor Aderbal, reprimindo, como sem­pre, um sorriso ao pronunciar o nome.
– Espero que tenha dado para espairecer. Sentou-se despreocupadamente na poltrona à frente da mesa, riscou um fósforo de tamanho avantajado, reacendeu o seu detestável charuto e, através da nuvem azulada, contemplou o interlocutor. Este, aparentemente ab­sorto em seu desenho, acompanhava com atenção a expressão do patrão. O ar tranqüilo lhe parecia bem enganador. Normalmente, a visita diária ocorria à tarde, para tomar conhecimento da “cara” do jornal do dia seguinte. Essa chegada matinal era esquisita. Tirar férias também o era. Quem sabe, ele só queria ser gentil, isso acontecia também. Era raro, não era impossível.
– Pois é, você me deixou meio sem jeito.                          Pausa. O que será que ele queria?
– Poderia ser um pouco mais claro?
– Não sabe mesmo?
– Nem desconfio.
– Então, leia isto. Foi você que escreveu. Aderbal procurou no bolso, retirou um recorte e o colocou em cima da mesa. Apesar de o recorte estar à frente do patrão, Daniel leu sem dificuldade: “Belizário, o esco­lhido do alcaide”. Era a sua matéria da véspera.
Ora, a construtora Belizário irá reformar a entrada de serviço da Prefeitura ããã... e irá construir uma ala nova, respeitando o estilo da construção... Não há novidade. Apenas escrevi um pouco a respeito da história do prédio que é de 1895, reproduzindo o pro­jeto...
– Não é isso, não pode ser isso...
... e disse que iríamos voltar ao assunto com mais detalhes. Não vejo problema algum. Houve uma licita­ção, o custo da Belizário foi o mais baixo, veja, até escrevi que ele foi 10% mais barato que o segundo colocado, tudo dentro da maior lisura...
– E o que quer dizer com “voltará com mais deta­lhes”?
– Um chamariz, iria falar sobre...
– Não vai falar sobre coisa alguma! – interrompeu Aderbal, com uma rudeza fora do comum. Quer que percamos o nosso mais importante anunciante. Ele esteve aqui comigo. Acaba de sair furioso, dizendo que saberá como retaliar se necessário. Não sei o que é, não quero saber, tenho ódio de quem sabe. Uma coisa eu sei. Ele me disse que detesta gracinhas. Pense an­tes de escrever! Levantou-se e saiu, deixando atrás de si o rastro da fumaça do charuto.
Daniel continuou pensativo. De que maneira um assunto sem graça poderia ter causado tal comoção? Ficou contemplando a dança das sombras que a folhagem, animada por uma leve brisa, projetava sobre o carpete. A contemplação não lhe foi de grande ajuda. O toque estridente do telefone o arrancou das suas reflexões.
– O Doutor Belizário na 36 – anunciou Laura – Está furioso, prepare-se.
– Alô, é Daniel.
– Amigo, mal nos conhecemos, Belizário falava pausadamente, mas tenho a impressão de que pode­mos manter um relacionamento cordial. Pelo menos por enquanto. Depende de você.
– Naturalmente, seria uma grande honra.
– Pode me dizer com franqueza. Acha que você tem bala para me intimidar? Pensa que pode?
– Doutor Belizário, deve haver algum engano...
– Escute com atenção. Não tolero insinuações, ve­nham elas de onde vierem. Capito?
O que diabo queria dizer Belizário? Qual teria sido o motivo? Era simplesmente inacreditável que aquelas linhas pudessem ter causado tal transtorno.
– O senhor está se referindo à obra da Prefeitura?
– Não, estou me referindo à muralha da China.
– Assim fica difícil conversar.
– Eu não tenho tempo para comentar aleivosias.
– Mas... eu não estou entendendo...
– A jogada clássica! Não entende, coitadinho. Está claro aqui... Fornecer detalhes... inevitável destruição de uma gravação... ora acha que sou algum aprendiz. Quanto quer? Quanto? Diga logo! O Aderbal quer me­dir forças e usa o escriba? É isso? Pois veremos...
– Doutor Belizário, há um mal-entendido. A gra­vação...
– Eu a quero. Pago e acabou. Diga qual o seu preço, chantagista ordinário. Nem mais uma palavra. Um gesto meu e será esmagado.
– Mas... O outro desligara.
Alguns minutos mais tarde, Aderbal irrompia transtornado no escritório.
– Que gravação será destruída?
– Nos fundos do prédio há um friso de mármore com uma gravação em latim, nem me lembro o que diz. Ao fazerem a reforma, o friso será retirado e a gravação irá se perder a não ser que seja reconsti­tuída. No novo projeto não haverá mais o friso. Por­tanto, a gravação se perderá.
– Vejam só, Aderbal recuperara seu ar jovial, mal reprimindo uma gargalhada. Belizário acaba de desli­gar depois de me contar o drama. Abriu o jogo para mim. Ele mantém há alguns meses um caso com a nossa primeira dama. Quando viu “Belizário escolhido pelo alcaide” teve um primeiro ataque de nervos, pen­sando que houvesse alguma alusão a esse romance. Quando o jornal mencionou que pretendia voltar com detalhes, imagino que passou a suar frio, pois talvez não tenha ocorrido a você que a esposa dele detém 99% das ações da firma. Com o escândalo, adeus ca­samento, BMW e outras mordomias. A alusão à gra­vação o levou a pensar que alguma conversa mais picante houvesse sido grampeada, como andam fa­zendo por aí e que a destruição da gravação seria o assunto dos tais “detalhes”. Ele está apavorado. Pediu que eu o afastasse por um tempo da redação. Na ver­dade, pediu sua cabeça, ou que eu o silenciasse da forma que eu julgasse melhor, sem olhar para o custo dessa operação “abafa”.
– Bem, só que agora acabou a confusão. É só con­tar-lhe.
– Como é ingênuo! Meu Deus! Às vezes chego a ficar perplexo com tanta inocência. Vamos deixar o Belizário pensar que temos uma arma. Sempre poderá servir, no mínimo para aumentar a quantidade de anúncios.
– E eu? Ele vai querer acabar comigo.
– Que nada. Quantos meses de férias lhe devo?
– Quatro meses, menos uma semana. Essa, que acabo de tirar, aproveitando o feriado.
– Pois bem, que tal uma bela viagem de dois meses à Europa? Com isso, você abrirá mão do restante da­quela bagatela de um mês e pouco que a empresa lhe deve. Férias, hotel, tudo pago.
– E a minha esposa?
– Eu não disse que você é um inocente? Não sei quem o apelidou de “Bombardeiro”. Não passa de um planador. Claro que será um pacote completo para o casal. Fica acertado que enviará uma ou outra maté­ria interessante de onde estiver. Assim, não irá enfer­rujar de todo.
– Agradeço, senhor Aderbal, é muita generosidade sua.
– Criança, é o Belizário quem irá pagar. O nosso querido cliente. Ou será que não sabia que o cliente tem sempre razão?


Biografia:
Alexandru Solomon, empresário, escritor. Formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus` (Ed. Totalidade), ´Bucareste`, ´Plataforma G` e ´A luta continua` (Ed. Letraviva). Livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Loyola (www.livrarialoyola.com.br), Letraviva (www.letraviva.com.br). | E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br http://blogdoalexandrusolomon.blog.terra.com.br

Este texto é administrado por: Celso Fernandes
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