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Tédio
Crônica do livro ´´Apetite Famélico``
Alexandru Solomon

Resumo:
Filhos amorosos, na medida em que o tempo lhes permitia, voltavam de vez em quando, (...). Reviviam a lenda de Anteu temperado pela modernidade do carrossel cotidiano.

O relógio marcava a passagem de mais uma hora de vida. Era uma entre tantas que já se haviam afas­tado com rapidez, deixando atrás apenas um cres­cente sentimento de vazio. Não havia nada interes­sante para fazer, a não ser girar em torno do eixo da própria inutilidade. Quando essa percepção se tor­nava mais aguda, ela tratava logo de atenuar-lhe a contundência. Tinha um repertório variado de expe­dientes, cuja única finalidade era tornar mais opaca a imagem que um retrovisor, oportunamente embaçado, lhe proporcionava. Quanto ao futuro, já sabia que, de alguma forma, nada de extraordinário a esperaria. Restava conviver agradavelmente com o presente.
Torturava-a a idéia de já ter alcançado a chamada meia idade, sem que isso a tivesse atingido, a não ser de forma superficial. Os sulcos a marcar o rosto, que outrora havia feito sonhar um bando de garotos, hoje titios, eram devidos à vitória do tempo sobre os cos­méticos, mas sem representar um tributo, normal­mente pago a preocupações. Cru­zar uma vida com a síndrome de carro zero quilôme­tros, não era nada atraente, pensou ao acompanhar com olhar distraído o vôo pesado de uma mosca den­tro da sala. A ventura de não ter enfrentado grandes preocupações tornava-se um crescente incômodo. Havia nisso um certo exa­gero. Por sorte, mérito ou habilidade, soubera lidar com os problemas, deixando que muitas vezes o tempo se encarregasse de resolvê-los, poupando-a de sofrimentos desnecessários. Mas para tudo havia um preço a ser pago. Não era a falta de sofrimento in­tenso, e sim a monotonia que a dei­xava experimen­tando uma crescente sensação de frustração. Convi­ver com o banal e o repetitivo tor­nava-se, vez por outra, insuportável. Nem por isso lamentava a falta de traumas maiores.
O pesadelo da mãe-motorista havia ficado para trás. Não havia mais a necessidade de ter que abrir mão de qualquer coisa para atender, reclamando quase sempre, a programação dos filhos.
“Trate bem os filhos, pois eles escolherão seu asilo”. Onde ouvira isso? Não lembrava mais e não tinha muita importância.
As filhas, duas, e o caçula já haviam abandonado o ninho, que permanecia insuportavelmente vazio. E viva o lugar comum! Filhos amorosos, na medida em que o tempo lhes permitia, voltavam de vez em quando, para, no contato com o antigo lar, adquirir novas forças. Reviviam a lenda de Anteu temperado pela modernidade do carrossel cotidiano.
Mas esses encontros estavam tornando-se mais raros. Não havia mais as noitadas dedicadas aos de­safios intelectuais, que colocavam frente a frente pais e filhos, agora já com os respectivos apêndices. Ape­sar de todos morarem na mesma cidade, cada qual tinha seus problemas e seus impedimentos. O fato de os encontros escassearem decorria de uma verdade difícil de admitir. Na companhia do marido, havia passado, imperceptivelmente, do status de imprescin­dível, para o de dispensável, e para o de quase supér­flua, tendendo a se tornar um estorvo, dizia ela nos momentos de exercício de chantagem sentimental.
Era um processo natural, mas tudo nela se recu­sava a aceitar essa realidade. Tinha a seu favor a in­contestável “experiência”, mas qual era o valor real dessa vivência? Evidentemente, os filhos jamais ad­mitiriam que os problemas deles pouco ou nada tinham de diferente com situações similares, pelas quais ela já havia passado. “Os tempos são outros, mãe”. Sim, os tempos não eram os mesmos, o que não havia mudado eram os problemas. Como se angústia, ciúmes, ambições, frustrações tivessem selo de vali­dade. Sentimentos não são iogurtes.
Rapidamente, teve que se render a uma evidência. A experiência é dificilmente transmissível. Poucos têm a sabedoria que os leva a evitar erros repertoriados, e tudo por querer recomeçar, por conta própria, uma dispensável Via Crucis individual.
Insurgir-se contra esses fatos óbvios havia lhe tomado algum tempo, mas o processo levou o tempo necessário para descobrir que, por sua vez, enfrentava problemas parecidos com os de seus pais, e a menos de detalhes, idênticos aos que dentro de alguns anos seriam também os de seus filhos. Havia uma ligeira diferença. Ela pertencia à geração que jamais tivera razão. Quando jovem, não ousara contestar seus pais, dando-lhes automaticamente razão, mesmo a contra­gosto. Nesse momento da vida, a sua forma de pensar era desafiada a todo instante, a ponto de ter se per­guntado: “Será que algum dia tive razão?!”
Sem resignar-se perante a eterna e indemonstrável falsa renovação de fatos antigos, passou a reivindicar para si, de forma explicita, a ocupação do centro de seu próprio universo. Na verdade, nada mais fazia do que admitir o que, de forma hipócrita, outros rejeita­vam com fingida indignação.
Teria de viver intensamente cada dia. Mas como?
Sabia perfeitamente que estava numa corrida con­tra o tempo, perdida de antemão. Diante da sensação da debandada das horas, decidiu que teria de dar o máximo de atenção à sua mente e ao seu corpo. Não que houvesse algo inédito na decisão. Simplesmente, mesmo admitindo estar reagindo com atraso, resolveu cumprir a missão de forma inteligente.
Um olhar constrangido à estante cheia de livros veio apenas confirmar que aqueles tesouros de conhe­cimento haviam sido explorados de forma superficial. Teria que, amaldiçoando o tempo perdido, voltar a ler como na época áurea de seus vinte anos. Essa plás­tica do espírito era muito mais urgente do que a pas­sagem pelo bisturi de um cirurgião que lhe escamote­aria algumas rugas e afastaria um pouco mais do chão algumas partes, submetidas de forma exagerada à lei da gravidade.
Teria que ler, acumular sabedoria, sem contentar-se em saber localizar as fontes de consultas. Deu um viva ao ditado latino. Levo tudo que é meu comigo, murmurou.
A observação merecia ser festejada, até com algu­mas balas de menta. Possuir o saber, não saber ape­nas onde encontrá-lo. Reviver a magia da leitura de um clássico. Ou, por acaso, saber que Tróia foi arra­sada a dispensaria de uma lida da Ilíada?
As idéias iam tornando-se mais claras, na medida em que conseguia traçar a linha demarcatória entre o conhecimento necessário e o conhecimento disponível. Claro que era necessário ter contato com a sabedoria, e claro estava que não havia valor nenhum em carre­gar inutilidades armazenadas numa lista telefônica ou numa tábua de logaritmos. Essas informações esta­riam lá, quando solicitadas, e tentar acumulá-las se­ria, além de impraticável, dar uma prova de estupidez.
“Às balas de menta!”, pensou toda faceira com a sistematização de seus achados.
A dificuldade com que abandonou a poltrona a fez estremecer.
A ainda jovem senhora havia adquirido ao longo dos anos uma série de camadas concêntricas de gor­dura que lhe assassinavam as linhas. Não era um achado propriamente dito, mas naquele momento, a constatação a fez tremer e quase a reconduziu à posi­ção de bovinamente sentada.
Por uns segundos ficou estupefata com o grau de deterioração de seu invólucro. Pensou em si como numa sequóia com a diferença de que a sua idade seria determinada pela contagem das camadas de gordura. Ora, ela não seria Miss Mundo, não teria nádegas de porcelana ou o busto insolente de uma adolescente, mas isso não era uma desculpa para ficar flutuando na própria banha, imersa numa insig­nificante poça de conhecimento. Estava lançado o desafio, do embelezamento interior e exterior. Em vez do encolhimento covarde e acomodado, havia esco­lhido o desabrochar.
A gratificação mentolada foi repelida com a energia típica de uma recém-conversa à sua própria causa. A recusa da gratificação era, paradoxalmente, ainda mais gratificante.
Estranho como durante aqueles minutos de deva­neio, pontuados por um único gesto – a tentativa de descolar-se da poltrona – , pensara intensamente ape­nas em si. Nem por um segundo deixaria de amar quem disso fosse digno. Continuaria ser mãe, esposa, dona de casa, mulher. Havia decidido, no entanto, tornar-se um ser de qualidade e não apenas de quali­dades.
Aqueles momentos haviam sido vividos intensa­mente, mesmo se alguém que a observasse na última meia hora nada pudesse ter reparado, a não ser o sor­riso do triunfo prometido a si mesma. Havia conse­guido encontrar-se por alguns instantes, e o encontro fora tão envolvente que decidiu marcar muitos outros nos horários cada vez mais exíguos que um novo, um novíssimo ritmo de atividades iria permitir. Não have­ria mais espaço para o tédio.


Biografia:
Alexandru Solomon, empresário, escritor. Formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus` (Ed. Totalidade), ´Bucareste`, ´Plataforma G` e ´A luta continua` (Ed. Letraviva). Livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Loyola (www.livrarialoyola.com.br), Letraviva (www.letraviva.com.br). | E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br http://blogdoalexandrusolomon.blog.terra.com.br

Este texto é administrado por: Celso Fernandes
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