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Nota do editor
Wellington Melo

Resumo:
Do livro "... e deus criou a dor" (inédito)

Em letras garrafais, leu:
“Matou a mulher com dez facadas”
Costumava começar o jornal pela parte policial e naquele dia não fora diferente. Na verdade, a notícia não era nem sequer das mais atrativas; já as havia visto melhores.
A começar pelo tema: crimes passionais de certo não eram os seus preferidos, dado o previsíveis que costumavam ser. Uma traição, um desgosto, anos ouvindo a mesma voz irritante eram justificativas mais ou menos comuns e enchiam-no de tédio. A pessoalidade dos crimes e o uso recorrente de armas brancas tampouco faziam-no gostar do tema, ao contrário do que pensariam os mais próximos ou os amigos de botequim.
As chacinas. Essas sim eram dignas de dedicar-se os efêmeros e doces momentos entre um cafezinho e outro naquelas noites solitárias e insones. A última sentença torna necessário um aparte para lembrar as origens desse adorável costume de nosso personagem.
Adquiriu-o nos anos de vigilante. Na época dizia que tinha estar informado sobre a violência para proteger-se e proteger a propriedade alheia. O argumento raramente convencia aos seus, que aparetemnte já notavam um quê de mórbido no seu comportamento; mas ele insistia ao ponto de chegar efetivamente a acreditar que essa era a verdadeira natureza dos seus sentimentos. Quando perdeu o emprego anos depois – não conseguira uma nova colocação no ramo de segurança privada que não fosse como leão de chácara em zonas do baixo meretrício - foi vender cachorro quente na praia, mas continuou começando o jornal pela página policial, embora agora já não pudesse associar sua secreta paixão com os ossos do ofício. Doeu-lhe no começo, mas logo superou.
Voltando às chacinas, aprazia-lhe o mistério que vez por outra cercava estes nefastos incidentes; o que motivara a matança, que parcela de culpa tinham as vítimas, se é que podia chamá-las assim, quem seriam os quase sempre anônimos executores. Era essa atmosfera obscura que lhe comovia sobremaneira, a ponto de suscitar não raras e exarcebadas exclamações entre os soturnos colegas de trabalho e até em casa. “Aonde vamos parar?”, esbravejava, fingindo uma real indignação com o completo desrespeito para com a vida humana. Exortava a seus ouvintes, ou assim pretendia, de que era uma pessoa de bem e que lhe enojava tais atos brutais, coisa que, sejamos francos, bem lá no fundo ignorava por completo.
Havia também o colorido. Isto, claro, depois dos avanços na imprensa, que trouxeram as cores da vida real para o até então cinza mundo do papel jornal. Lembra-se com carinho da primeira matéria colorida que vira – um seqüestro seguido de assassinato lá pelas bandas da Zona Norte – e de sua reação de sublime satisfação, de arroubo quase adolescente com o realismo proporciado pela inovadora tecnologia. Logo, outros jornais introduziriam as novas técnicas às suas edições e as cores nos jornais seriam banalizadas, desde a capa até os classificados. Mas para ele, o ápice da cor só se alcançava numa singela foto, de preferência em close, de uma boa meia dúzia de corpos empilhados num verdejante matagal de agosto.
Pois bem, quando havia chacina, tingia-se de rubro a primeira página e conseqüentemente o caderno policial. Via com um orgulho que quase não ocultava seu belo caderno policial ascender à primeira página, desfrutava a maneira como saía da marginalidade e podia deleitar-se, pelo menos das fotos, sem o menor risco de uma censura descabida de alguma senhora no ônibus.
Mas falávamos dos crimes passionais. Na matéria daquele dia que anunciamos no início de nossa narrativa, a foto, que limitava-se ao marido algemado, com a cabeça baixa e dois sisudos agentes de cada lado levando-o pelos ombros, efetivamente carecia do impacto enebriantemente sanguinolento dos eventuais cadáveres que povoavam duas ou três vezes por semana as páginas do diário. Sequer teve a curiosidade de aprofundar-se no drama pessoal de Tobias da Cunha Lima, zelador de vinte e nove anos, que esfaqueara a mulher porque esta ameaçara abandoná-lo levando os dois pequenos. Com dissemos antes, era-lhe por demais trivial este tipo de notícia para que perdesse seus preciosos minutos entre um cachorro quente e outro – sim ainda os vendia na praia.
De modo que neste dia, curiosamente, foi direto à última página do caderno policial e viu a notícia que mudaria a sua vida para sempre. Depois daquele dia nunca mais leria a sessão policial dos jornais. Morreu de um infarto fulminante pelo susto que teve ao chegar à terceira linha daquele nefasto texto.


Este texto é administrado por: Wellington de Melo
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