FRAGMENTOS I
Era uma manhã de pés descalços e ouvidos moucos. Era uma manhã de luzes incertas vagando pelas avenidas. Um resto de noite calado na boca, o pesar dos sapatos comprimindo o assoalho de madeira, o som dos automóveis passando, a verborragia quieta dos passantes. No caminhar apressado um quê de dúvida entre os postes e árvores velhas traçando linhas imaginárias. Os fios, estes em quase retas, sustentam pombos e pardais gritantes onde nada pode ficar. Era uma manhã de sol esmaecido e nuvens. O latido dos cães ecoando no silêncio dos pensamentos, o perfume de flores incertas bailando entre as cigarras dormentes. O caminhar quieto, engolindo palavras que seriam logo esquecidas. O riso contido entre quimeras, o alarido dos bêbados encostados em balcões, o vai e vem de formigas inquietas no silêncio das calçadas. O quedar-se em pequenas poças de ilusão onde o tempo se afunda e dança sem música. O leve rumor da brisa tagarelando entre as ramagens, o estalido das folhas e pensamentos secos pisados fortuitamente, num lance de dados arremessados nas esquinas. Era uma manhã de inquietas chuvas desmanchando as certezas. Na sonolência desbotada dos gatos pisando entre vácuos. O lusco-fusco dos incubos entrelaçados nos bueiros, clamando às ratazanas um pouco de luz e sonho, quando a morte é tão somente a única certeza. As antenas eriçadas buscando sinais de vida inteligente, mendigos arrastando carcaças mal arrumadas, o pisar leve das colegiais despreocupadas com as aulas e vertendo desejos nos olhares. O passar do tempo ecoando no vagar, o zumbido dos alarmes vestindo o silêncio insano dos passantes num canto inexplicável aos verdugos amedrontados. Era uma manhã de luares finitos, esvaindo-se em sangue nos becos e favelas. O clamor dos mortos ensandecidos, o grito surdo e desesperado das mães enegrecidas vertendo dores translúcidas. As paredes revelando espinhos, o asfalto espelhando almas esquecidas, o resto de luz beirando as sombras avermelhadas dos ganidos vadios. Era uma manhã como todas as outras.
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