Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha Cadela!
Pobre puta Cinderela. Condenada a vagar pelo vilarejo, agora velha e enrugada vestida apenas por andrajos sujos, e mal-tratada. Louca, não ligava à mínima para isso. O que irritava Cinderela era aqueles meninos na sua cola! Eram muitos garotos a lhe seguir pelas ruelas, a não lhe deixar em paz. Sempre zombavam, cuspiam, jogavam alguma coisa... era humilhante para a puta velha este tratamento que julgava não merecer. Agora era ‘a louca’ – Pois sim, louca, então, - pensava ela – louca é? Mas quando jovem me achavam ‘bem normal’, aliás, mais normal que as ‘mulheres certinhas’, quando vinham comprar meus favores e realizar fantasias que só julgam possível com putas. Aí eu prestava!
Pobre Cinderela.
O apelido ‘Cinderela’ era justamente oriundo da formosura da prostituta, em seus anos vicejantes. Que ironia! Agora era só uma velha louca esquecida por tudo e por todos, menos pelo Tempo, este carrasco inexorável, e pelos garotos maldosos, claro. Nos seus tempos, tinha cabelos louros e finos que esvoaçavam feito trigo no campo, e suas formas generosas atraiam a simpatia e prontidão de todos, desde o figurão até o pobretão, que muitas vezes ela atendia por pura compaixão. Gente que chegava ao cabaré se esgueirando pelas ruas, afinal, tinham reputações a zelar. Eram ‘homens de bem’. Tudo isso ela compreendia. Facilitava as coisas, ajudava, e até oferecia o ombro para que marmanjos desmamados chorassem suas desventuras burguesas e desinteressantes. Tinha uma santa paciência, a puta Cinderela.
Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha cadela!
Agora isso... recebia como prêmio, como uma espécie de aposentadoria desabonadora, aquele coro em seus ouvidos. Condenada a vagar pelas ruazinhas de pedra com aqueles garotos horríveis às suas costas feito o rabo de um crocodilo. Como se já não bastasse ter de viver com ajutórios e esmolas. Revirava lixo atrás de restos de comida e às vezes parava e pensava que já fora linda, desejada, e então aquecia um pouco seu coração ferido com essas migalhas de lembranças... seus pensamentos sempre embalados pelo fundo musical do deboche...
Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha cadela!
Seus cabelos brancos, agora grudentos. Seus restos de dentes podres. Suas roupas rasgadas. Seu futuro... que agora tinha o nome de Morte. Seu corpo agora cansado e velho, que proporcionou, há muito, muito tempo, as delícias lascivas daqueles homens tão respeitados. Pois, agora todos lhes viraram as costas. Quem sabe não seria ela um cisco no olho do respeitado vilarejo... um cisco a ser varrido permanentemente pra lá e pra cá, até chagar o dia fatal em que seu corpo – há muito imprestável -fosse encontrado entre algumas latas de lixo - Ufa! – todos respirariam aliviados – Já foi tarde a puta louca! Puta Cinderela! – Mas o problema maior para a velha era realmente aqueles garotos e aquela estrofe repetida e repetida infinitamente. Era muita maldade com a louca! Louca, louca! Ma aí a velha teve um estalo! - Louca! Louca! Este é o problema! E se eu ficar ‘normal’ como eles! E se eu agir, como os normais, só uma vez? E se eu agir como os respeitáveis, só uma vez? Não falaria, finalmente, a sua linguagem? Não me faria entender? Sim, porque não? Se eles são normais só entenderão se eu falar como eles... acho que poderei livrar-me desses garotos!
Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha cadela!
A puta velha então parou e ficou em silêncio. Os garotos pararam também, um pegou uma pedra. A mulher sorriu com seus cacos de dentes e perguntou a um deles se era neto do doutor Angenor. – Sim – respondeu o menino surpreso. – Pois então pergunte à sua avó se ele ainda tem aquele cancro horrível no saco! – em seguida a mulher virou-se para outro – E você, menino. Não é neto do ex-delegado Valdir? – o garoto assentiu com a cabeça, meio sem jeito – Então pergunte para sua avó se ele continua gostando do ‘dedinho’ – e assim foi... com um por um. Até todos saírem, intrigados, a procurarem suas avós. A partir daquele dia, Cinderela pode ser louca à vontade, sem o coro desabonador atrás de si. Deixaram-na definitivamente em paz. Revirando lixo. Louca! Louca! Cinderela... a Rainha Cadela...
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