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OS DOIS CASAMENTOS DE MEUS PAIS
Geraldo Affonso Pimentel Pereira de Araujo

OS DOIS CASAMENTOS DE MEUS PAIS
       O ano era de 1930 e meu pai, cirurgião dentista e pernambucano, aos vinte e nove anos bateu os costados em Campinas procurando vencer na profissão que escolhera. Alias, diga-se que a odontologia não fora bem uma escolha vocacionada, pois o sonho de Amaro Silvestre Pereira de Araújo era ser médico. No entanto, em Recife, no início dos anos vinte ainda não se estudava medicina e o curso universitário que mais se aproximava das ambições curativas do jovem Amaro era a odontologia. Daí, em 1923 recebia o canudo e anel que o habilitava na complicada arte de extrair, obturar e até moldar dentaduras, pois naqueles tempos os cirurgiões dentistas também exerciam a hoje rendosa profissão de protético.
       Depois de uns poucos anos de clínica dentária na Veneza Brasileira, profissão que acumulava com os portões do cais do porto onde era fiscal aduaneiro, instigado por seu irmão inseparável Luiz Máximo, delegado de polícia em Colatina, Espírito Santo, o jovem dentista abandona a fiscalização aduaneira, embala seus boticões e outros petrechos odontológicos e parte para a progressista cidade capixaba. Cumpre esclarecer que sua decisão de mudar os ares nordestinos por outros mais ao sul, além do apelo fraterno, teve também uma forte motivação ligada ao amor, ou seja, o rompimento de seu noivado com a linda morena Carmen, por quem era apaixonado, já quase às vésperas do casório. Não me perguntem o real motivo do rompimento, pois em minhas conversas com meu pai, esse ponto obscuro de seu passado nunca ficou bem esclarecido, mas que ele era apaixonado, isto era, tanto que sua primeira filha mulher recebeu na pia batismal de Ouro Fino, o nome de Carmen, uma homenagem tardia àquele amor perdido nos desvãos de sua memória pretérita.
     Em Colatina, além de montar consultório, teve uns encontros furtivos com uma fogosa carioca, em noites em que seu marido, nos fundos de sua farmácia entregava-se ao milenar jogo de cartas, enquanto meu pai entrega-se também ao sempre prazeroso jogo do amor. Esse deslize quase acabou em tragédia, inclusive com o infeliz boticário apontando-lhe uma arma e meu pai, desafiando-o para que atirasse. Não atirou, mas o jovem odontólogo, prudentemente, bandeou-se para Campinas, deixando a jovem carioca em complicado maus lençóis com o marido, além de uma outra jovem apaixonada e quase noiva de nome Odete.
      Em Campinas, novo consultório dentário, e nova paixão. Dessa vez com a jovem e bela Zuleika, minha mãe, filha do advogado paulista Antonio Pimentel Júnior que após ser prefeito das instâncias minerais de Lambari e Caxambu, abandonou as lides administrativas municipais para retornar às lides forenses que deixara para trás há vários anos. Vizinho do advogado e de sua grande família, mulher e dez filhos, meu pai ainda teve que enfrentar a concorrência de um jovem acadêmico de direito natural de Ouro Fino, Crisantho, também apaixonado pela bela e meiga Zuleika. Minha mãe era uma jovem quieta e reservada, não comentava nada sobre seus namoros do passado. No entanto, nas entrelinhas de alguns poemas e trovas de sua lavra, conclui-se que a escolha que fez não foi das mais tranqüilas. Deve ter custado muitas lágrimas e noites mal dormidas. Vale esclarecer que em 1930 Zuleika era uma jovem que impressionava por sua beleza, embora extremamente tímida, de poucas palavras, guardava suas emoções e sentimentos mais íntimos para si própria. Sobre sua beleza, no início da década de sessenta ouvi do pai de uma colega de faculdade, um advogado que conhecera meus pais recém casados na cidade de Muzambinho o seguinte comentário: “ Sua mãe foi a mulher mais bonita que eu vi em toda minha vida.”
    O ano de 1932 foi conturbado, tanto para São Paulo como para minha família. Com o prenúncio da eclosão da Revolução Constitucionalista, meu avô fecha sua casa em Campinas e aluga outra na pacata cidade de Itapira, também no estado de São Paulo, mas limítrofe com Minas Gerais e bem próxima de Ouro Fino, terra natal de sua esposa e para onde a família se deslocava constantemente. Assim, foi em Itapira que a meiga Zuleika, aos vinte e um anos de idade, casava-se com o seu escolhido pernambucano já com seus trinta anos, na data consagrada ao santo casamenteiro, ou seja, 13 de junho de 1932.
    Há um detalhe interessante que ouvi de minha mãe sobre seu casamento. Ela, católica praticante, convida seu padre confessor e amigo da família de Campinas para celebrar o casamento em Itapira. No entanto, uma surpresa aguardava o padre campineiro. Seu colega, pároco da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Penha, opõe-se, com o argumento de que “ Em minha igreja eu celebro os casamentos. Padre de fora aqui é convidado.” E o padre convidado, embrulhou novamente seus paramentos e assistiu tranquilamente a celebração. No entanto, após as bodas, já em casa dos meus avós,o padre amigo da família desembrulha seus paramentos e após vesti-los chama os noivos, familiares e demais presentes e anuncia que “aquele casamento na igreja não valeu. O que vale é este”. E nova cerimônia foi celebrada com direito, inclusive, a outra certidão de sua paróquia de Campinas. Foi assim que meus pais casaram-se duas vezes no mesmo dia.



Biografia:
Geraldo Affonso é professor,radialista, advogado e membro da Academia Ouro-finense de Letras e Artes. Apresenta aos sábados, a partir de meio-dia e meia na Rádio Difusora Ouro Fino um programa de entrevistas, voltado, principalmente, para a cultura, que pode ser ouvido pela Internet no site www.difusoraourofino.com.br
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