GERALDO AFFONSO
“Amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito, dentro do coração”, como diz a linda canção, um dos grandes sucessos de Milton Nascimento. E, de fato, eu tenho alguns amigos que guardo de acordo com o dito musical, mesmo que nossos contatos sejam tênues e dos mais esporádicos, pois amigo não se esquece. Um desses amigos é o Guido de Souza Rocha, artista plástico de renome, conhecido por seus Cristos esculturais, inclusive um famoso que guarnece a sede da ONU em Genebra, na Suíça. São os Cristos torturados, inconformados e que lutam para sair da cruz. Cristos bem parecidos com a figura esquálida do meu amigo.
Nossa amizade vem de longe, dos tempos adolescentes de minhas temporadas belorizontinas, tempos azuis da mocidade descompromissada. Num segundo momento, dos tempos duros da ditadura militar, em que meu amigo, perseguido, procurou e encontrou abrigo em nossa velha amizade.
Veio-me o desejo de escrever sobre esse meu amigo ao tomar conhecimento da morte de Pinochet, sem dúvida, o ditador daqueles tristes tempos que, por ser o mais sanguinário e execrável, por paradoxal que pareça, prestou um grande serviço à democracia. Esse serviço pode ser definido como o horror que a grande maioria do povo das Américas passou e ter pelas ditaduras militares. O desaparecimento de mais de 3000 pessoas, as torturas, os assassinatos dos principais opositores, a chamada Operação Condor e outras mazelas dos tempos da ditadura de Pinochet, além da recente descoberta do assalto ao erário público, com o desvio de milhões de dólares para contas no exterior, desmoralizaram completamente a figura do velho militar. O argumento de que nos tempos da ditadura chilena houve um grande desenvolvimento econômico não sensibiliza quase ninguém, pois o preço que se pagou nem de longe compensa o trauma de se viver sem liberdade. A Alemanha de Hitler também teve o seu milagre econômico.
Mas o que tem a haver o meu amigo Guido de Souza Rocha com Pinochet, estarão perguntando os leitores. Quase nada, a não ser que na época da implantação da ditadura chilena, meu amigo estava vivendo como exilado em Santiago e foi um dos milhares de prisioneiros confinados no Estádio Nacional, por ordem de Pinochet. Após ser libertado, graças a intervenção da Cruz Vermelha, Guido viveu na Europa durante muitos anos, onde firmou sua reputação como artista plástico. Com a anistia, retornou ao Brasil, vivendo hoje em Belo Horizonte, cercado pelo respeito e admiração de seus alunos da Escola de Belas Artes e de seus amigos, entre os quais, este modesto escriba que há muito o colocou no lado esquerdo do peito.
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