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Janos não conseguia sentir-se bem, apesar de seguro da decisão que acabara de tomar. Era chegada a hora de desenvolver o projeto acalentado desde a época de estudante e inspirado em contos fantásticos que ousou acreditar. Sempre procurou manter secreta a sua idéia, por justos receios de ser desacreditado como cientista, apesar do reconhecido e respeitado intelecto científico que o credenciava como um dos melhores do mundo. Mas já não conseguia concentrar-se em nada que não tivesse relação direta com os seus planos e era exatamente por isso que marcara a reunião com o general Bertoldo, Diretor-Geral do Centro de Pesquisas.
Sua obsessão era tal com a idéia da máquina que até em superfícies empoeiradas conseguia ver a lógica do seu raciocínio: "se fosse possível modular a poeira depositada sobre esta superfície e obter suas camadas tal como nas tomografias, os fatos ocorridos dentro desta sala seriam facilmente reconstruídos" — imaginou passando o dedo sobre o vidro da mesa sobre a qual acabava de sentar.
Virou-se depois para a janela e viu a calma natureza sendo alisada por uma brisa outonal e assustou-se ao entrever a possibilidade de vir a ter, a sua máquina, um uso inescrupuloso. Procurou então acalmar os augúrios como sempre o fazia: acendendo o seu cachimbo.
Momentos depois entra o general ajeitando a farda com a sua conhecida empáfia:
— Desculpe se o fiz esperar, Janos, mas você pode imaginar o que é fugir da maldita agenda — disse fechando a porta atrás de si.
Janos não pareceu dar conta daquela deferência espe¬cial. Passou as mãos nos cabelos lisos e negros, penteados para trás, e no grosso bigode, soltando depois calmamente a fumaça.
O general sentiu uma ponta de irritação ao perceber que o cientista nem se movera à sua entrada, acostumado às mesuras dos seus subalternos militares.
— Obrigado por ter vindo, general, mas vou precisar um pouco mais do que uma "simples fugida de agenda" — agradeceu meio agastado descendo da mesa e sentando-se numa cadeira em frente ao militar.
— Claro, claro... — tartamudeou. — Foi apenas uma força de expressão. Na verdade é sempre um prazer estarmos juntos, já que os nossos encontros tem sido... tão fugazes... tão profissionais que... — desculpou-se simulando um gesto amistoso e amável unicamente pelo receio em desagradar a sumidade à sua frente. — Mas do que se trata? — perguntou com um sorriso atoleimado.
— Quero desenvolver um projeto pessoal nimiamente incomum e dedicar-me inteiramente a ele — disparou cru¬zando donairosamente as pernas e dando mais uma baforada.
— E interromper todo o trabalho em andamento? — per¬guntou o general após um instante de perplexidade.
— Na verdade, general, o que fazemos aqui são meramente repetições de trabalhos realizados por outros laboratórios. Nenhum experimento aqui realizado teve, até agora, qualquer cunho de originalidade.
E, dando uma pausa como se lembrasse de algo e sem se importar com a sugestiva boca entreaberta do general, continuou num certo tom de cumplicidade:
— A não ser aquelas experiências inúteis e dispendiosas que não levam a coisa alguma — terminou olhando distraidamente para o círculo feito pela fumaça.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou o gene¬ral já visivelmente irritado com aquelas observações e sentindo-se atingido por aquelas palavras, já que era o responsável direto por todas as pesquisas realizadas.
— O projeto vermelho, por exemplo, já tem um desfe¬cho conhecido. E, no entanto, consome boa parte das nossas verbas. Sem falar no pessoal, equipamentos e outros encargos...
— Mas Janos... — interrompeu o general sentindo que o seu interlocutor fatalmente atacaria os projetos puramente políticos em andamento e levados a diante tão somente para satis¬fazer os desejos de alguns parlamentares influentes.
— Eu entendo a sua posição, general — retomou a palavra. — Eu apenas não estou mais disposto a orientar aqueles apadrinhados sem competência e descobrir, ao final de cada "projeto", que átomo não tem sexo. Preciso de algo mais produtivo para me ocupar.
— Ora, Janos. Francamente! — aborreceu-se o general batendo com as mãos em ambas as coxas e levantando-se em seguida. Adejou pela sala com pesadas passadas e, com irritada compunção, tornou a sentar-se.
— Vamos lá, Janos. O que você tem em mente? — perguntou afastando a fumaça da sua direção agitando nervosamente o ar com as mãos, pois detestava o cheiro achocolatado daquele fumo.
— Pretendo construir uma máquina capaz de reproduzir fatos passados — respondeu calmamente sem se preocupar com a reação do eloqüente olhar do militar.
— Uma o quê? — perguntou com um misto de estupefação e surpresa.
— Foi o que eu disse, general — respondeu batendo levemente o cachimbo no cinzeiro, o que deu certo alívio ao militar. — Tenho a firme convicção de que os eventos são capazes de penetrar nos corpos sólidos e neles permanecer gravados.
— O que eu entendi foi um enorme absurdo, Janos — desabafou o general com a testa franzida. — Mas em respeito ao seu nome, solicito uma melhor explicação.
Antes mesmo que Janos tomasse qualquer atitude, emendou coercitivamente:
— Se fosse qualquer outro que me dissesse isso certamente voaria pela janela.
— Então, na sua opinião — disse Janos levantando-se calmamente em direção à janela que o general apontara com o seu olhar maldoso —, o mais importante não é a idéia ou a competência do homem, mas a do seu porta-voz.
— Não seja ridículo, Janos. Você entendeu muito bem o que eu quis dizer.
— Prefiro que o senhor pense que não — respondeu voltando-se e olhando novamente para a superfície empoeirada do vidro.
— Esse diálogo está ficando muito áspero, Janos — tentou contornar a situação mais por receio de ver o seu principal cientista dar de ombros e abandonar o laboratório, conforme já o fizera antes em situação semelhante.
Janos era conhecido não só pela sua incrível capacidade científica, que o colocava no patamar junto aos melhores, mas também pela inflexibilidade com a qual costumava defender as suas idéias. Sabedor disso, o general optou estrategica¬mente por uma atitude mais conservadora e torceu para que o seu melhor cientista não estivesse ficando louco.
— Sente-se aqui e me explique com mais detalhes o que você pretende — convidou com a voz em falsete dando umas palmadinhas no assento da cadeira, identicamente quando se quer convencer uma criança malcriada a aceitar determinadas ponderações que o adulto julga ser a certa.
Sem demonstrar qualquer reação facial em razão dos diálogos anteriores e pela maneira quase pueril que estava sendo tratado, assentiu. Sentou-se novamente e tornou a expor o seu projeto:
— A idéia é simples, general — disse pegando o pesado cinzeiro metálico colocado ali quase que exclusivamente para o seu uso. — Qualquer objeto é capaz de registrar sons e imagens. A luz, como bem sabemos, possui uma natu¬reza dual: onda e partícula. Então, devido a essa incomum natureza, é capaz de interagir junto aos elementos dos corpos sólidos alterando as suas estruturas moleculares, num processo de modulação contínua de fora para dentro de forma a permitir que se calcule a quantidade de luz absorvida e a freqüência em nível subatômico.
E, ante à fisionomia do general que denotava um grande esforço em acompanhar-lhe o raciocínio, exemplificou:
— É como num filme fotográfico: a estrutura cristalina do sal de prata é alterada pelo fóton de luz emergente dando o que chamamos de imagem latente. Se tirarmos o filme da máquina fotográfica sem revelá-lo não poderemos ver nenhuma imagem; mas, ao contrário, se o tratarmos com os banhos químicos apropriados e em condições adequadas, os seus elementos, as moléculas de brometo de prata, serão transformadas em imagens apa¬rentes, coloridas e de alta definição.
Imagine, general, se tivéssemos um filme fotográfico dotado de memória e que fosse ainda capaz de gravar imagens sobre¬postas. Imagine também que para vê-las tivéssemos que re¬velá-las individualmente, em camadas. Na primeira reve¬lação veríamos a última foto tirada; na segunda revelação, a penúltima e assim sucessivamente.
— Uma espécie de revelação estratificada? — arriscou o general querendo demonstrar que realmente entendia o que lhe era explicado pelo gênio.
— É. — respondeu sem abandonar sua abstração.
O general passou as mãos no rosto magro e tornou a olhar de sobrolho para Janos que, com o cinzeiro ainda nas mãos, continuava a explanação:
— Aqui está o filme, general — disse sacudindo o ob¬jeto que portava. — O que pretendo desenvolver é tão-so¬mente o agente revelador.
— Isto é incongruente demais para os meus padrões, Janos — disse o militar limpando o suor que lhe brotava na testa. — De onde você tirou esta idéia? — perguntou guardando o lenço e abrindo a gola do pesado uniforme, tentando uma res¬piração mais livre.
— Quando eu era criança — ajeitou-se para iniciar a narrativa — li, casualmente, um artigo em uma re-vista no qual o autor tentava explicar os fenômenos de aparições em casas ditas mal-assombradas, na Inglaterra.
— Fantasmas? — perguntou decepcionando-se com a sua expectativa de alguma referência científica séria.
— Sim — confirmou sem se preocupar com a incrédula fisiono¬mia que o militar ostentava. — Fantasmas, correntes arrastando-se por corredores úmidos e escuros, gemidos e toda a sorte de manifestações comuns nesses fenômenos. Da reportagem, ficou somente a explicação: eram casas velhas e feitas de um tipo especial de madeira, que em dadas épocas e sob determinadas condições atmosféricas devolviam a energia interna acumulada sob a forma de ruídos e imagens. Afirmava ao fim, o autor, que aquele tipo especial de madeira era capaz de gravar sons e imagens.
E, dando uma pequena pausa para mudar a posição, continuou:
— Durante toda a minha vida pesquisei tudo referente a essa espécie de fenômeno. Nessa busca acabei por descobrir paralelos realmente interessantes como... por exemplo: todas as religiões possuem algum tipo de imagem ou cântico associados aos seus rituais; os cristais e os seus poderes, conforme muitos crêem; as formas geométricas defi¬nidas, como as pirâmides... São tantos os exemplos e tantas as informações catalogadas que eu ficaria horas relatando. Li de tudo: desde trabalhos sérios até livrecos de char¬latões oportunistas. Com esses, pelo menos, pude me diver¬tir — acrescentou num humor que não lhe era peculiar.
— Eu ainda não entendi bem o que você quis dizer com todo esse relato — interrompeu o general mal acredi¬tando estar envolvido em semelhante diálogo.
— Nossos computadores usam cristais sobre os quais podemos inserir uma infinidade de informações. Podemos até gravar instruções neles sem modificar-lhes a estrutura. Fazemos isso a toda hora — enfatizou com um gesto de mãos. — A luz faz isso naturalmente com os sólidos — tornou a enfatizar como se estivesse fazendo a mais óbvia das afir¬mações.
O general ia interromper quando Janos recomeçou, levantando-se num salto e falando como se estivesse numa sala de aulas:
— General, se um mosquito da era mesozóica é capaz de informar sobre a cadeia genética dos grandes répteis ou um simples pedaço de gelo extraído das profundezas dos pólos pode mostrar como eram o clima e a composição da atmosfera há milhares de anos, por que as imagens do passado também não podem ser recu¬peráveis? Por um acaso não são os simples reflexos de luz que tornam possível a nossa visão?
O militar molhou os lábios num gesto nervoso enquanto Janos continuava:
— Imagine, general, reconstruir toda a história sem a intervenção de cronistas tendenciosos. Ver realmente a mo¬tivação dos homens que mudaram o curso dos fatos, ressusci¬tando os verdadeiros heróis e sepultando os falsos, criados apenas pelas exigências da época. Isto sim é que seria fazer jus¬tiça aos nossos antepassados! Veja também o impacto psico¬lógico que causaria sobre os "grandes benfeitores da humanidade e estadistas," sabendo eles que jamais poderiam enganar a história. Não é fantástico? — perguntou trêmulo pela excitação.
Janos mostrava um entusiasmo nunca visto pelo general nesses anos de convivência em comum e falava do seu projeto tal como faziam os estudantes recém-graduados. E, diante de tal efusão, o militar sentiu-se inibido em negar-lhe o apoio naquela hora.
— E o que você tem de concreto? — perguntou num leve desa¬fio e com a velada pretensão em desestimulá-lo.
— Teorias — respondeu recompondo-se do estado ante¬rior e sentando-se novamente.
— Sim... Mas isso não é um argumento sólido para moti¬var uma manipulação de verbas. Gostaria de algo mais... convincente.
— Para convencer-se ou aos outros? — perguntou forçando-lhe o posicionamento.
— Preciso primeiro convencer-me de que você não está extrapolando para o fantástico — respondeu perce¬bendo que era inútil mentir perante a sua perspicácia.
— É razoável — concordou amassando calmamente o fumo no fornilho. Depois acendeu-o calmamente e continuou:
— Denis Gabor, em 1948, desenvolveu todo o algoritmo necessário para viabilizar a holografia. Mas, como naquela época não existiam ainda os raios lasers para comprovar-lhe a teoria, foi quase desacreditado. O mesmo deu-se com Eins¬tein em muitas das suas equações matemáticas que anteviram fenômenos físicos ainda hoje pesquisados.
— Onde você quer chegar com esta argumentação? — per¬guntou o general irritando-se com o que lhe pareceu uma simples demonstração de erudição.
— Muito simples! — respondeu dando a primeira baforada e provocando rugas no rosto do militar. — Preciso do supercomputador e de dois especialistas para os trabalhos preli¬minares. Por sorte o nosso laboratório não é tão mal equipado e, portanto, pouco terei que importar de equipamentos para construir o protótipo da máquina.
— Mas não posso ceder-lhe o supercomputador assim, Janos.
— Não precisará, general. Bastará usá-lo no seu tempo ocioso. Ele fica mais tempo em stand by do que efetivamente trabalhando; e mesmo assim, nunca é plenamente exigido.
O general apertou os lábios ante aquela constatação, pois sabia que o caríssimo computador não era manipulado por mãos hábeis. Mas ainda assim refutou:
— Não concordo com essa observação, Janos. Nossa equipe técnica está plenamente apta a iniciar esse projeto.
— Não está, general. Não é pelo fato de ter sido trei¬nada pelos construtores que a torna apta. Eu neces¬sito de pessoas inteligentes e não de diligentes apertadores de botões. Isso até um símio amestrado consegue fazer.
— Merda, Janos! Você é realmente muito difícil — desabafou finalmente.
Sem importar-se com aquela súbita e iracunda reação, Janos rabiscou dois nomes em uma folha de papel e disse:
— Esses são os dois homens que eu preciso para iniciar o projeto. Prometo que se ambos forem contratados continuarei a revisar os trabalhos de casa dos apadrinhados — disse fa¬zendo alusão à tarefa de orientar os "cientistas profissio¬nais" indicados pelos políticos da "casa".
Dois dias após a reunião Janos é chamado pelo general:
— Você enlouqueceu? — perguntou o militar ao vê-lo entrar em seu gabinete.
Sobre a sua mesa pairavam duas pastas abertas que Janos iden¬tificou pelos retratos colados à frente.
— Serviço secreto eficiente — observou sentando-se e pegando-as sem cerimônias.
— Então foram seus companheiros de universidade, não?
— Deve estar tudo aí — respondeu soltando as fichas sem se dar ao trabalho em folheá-las.
— Janos, isto é uma instituição governamental. Esses dois homens não seriam bem vindos pela nossa comunidade — ponderou o general.
— Comunidade Científica — ironizou pegando com menoscabo uma vez mais as pastas.
O general preferiu ignorar a observação e continuou:
— Ademais, não possuem os quesitos legais para ingressarem no quadro de pesquisadores.
— O senhor quer dizer... Títulos Acadêmicos, não é?
— Então você entende — disse entre sorrisos idiotas, acreditando-se falar o óbvio a um néscio.
— Claro que entendo, general. O que eu não entendo, na qualidade de cientista, é como papéis carimbados e assinados conseguem transformar estultos em doutores. Menos ainda, como a nossa sociedade aceita implicitamente essa química. General, esses homens estão qualificados por mim para trabalharem no meu projeto e isso me parece o mais sensato, o que torna também este assunto encerrado.
— Janos — retomou a palavra o general enfadado com aquelas constantes insubordinações. — Esses homens nem traba¬lham mais em pesquisas. Foram recusados nos principais la¬boratórios em suas especialidades. Não podem ser tão bons assim.
— Provavelmente — disse Janos retomando o diálogo —, devem estar nessas folhas fatos curiosos, como a falta de talento de Pedro que hoje insiste em sobreviver da pintura. Jaime, por sua vez, deve figurar como um excêntrico restau¬rador de aparelhos eletrônicos antigos, além de mulherengo e pirateador de programas de computador. Sem falar na sua inclinação para o álcool, é claro.
— Um réprobo — completou o general. — Fran¬camente, Janos, não consigo compreender como um cientista do seu porte pode relacionar-se com essa espécie de gente.
— E qual o tipo de gente que o senhor escolheria para mim, gene¬ral?
O militar engoliu em seco e olhou sério para Janos. Estava consciente de que dependia do seu nome para o financiamento de projetos que aca¬lentavam-lhe o ego e o mantinha em alto prestígio na cúpula do governo. Janos também não ignorava a sua importância dentro deste contexto e era esse o instrumento que manobrava para realizar o que mais queria. Sabia perfeitamente que se um dia pudesse ser descartado o general não hesitaria um minuto sequer em fazê-lo. Por isso, se impunha do alto do seu prestí¬gio.
Para o general essas palavras eram definitivas. Era sabido o pouco apego que Janos contemplava aos seus semelhantes, caracterizado por sua vida solitária, sem amigos ou mulheres. Era quase um asceta em razão de algum grave fato ocorrido durante a sua pós-graduação, mas isso não constava de nenhum relatório do serviço secreto. Sabia que ou atendia plena¬mente aos seus pedidos ou o veria sair para não mais voltar.
Decidiu assumir pessoalmente os riscos, pois tinha certeza de que o comitê jamais aprovaria tal pesquisa e, principalmente, aqueles nomes. O projeto, ainda que completa¬mente absurdo e abstrato para os seus padrões, teria que dar algum resultado prático, senão a sua própria situação estaria ameaçada. Mas, apesar de não concordar-lhe com a atual racionalidade, Janos nunca decepcionara; e era, além de tudo, um gênio.
Janos via a sua máquina como um instrumento de eluci¬dação histórica mas o general já alinhavava um destino bem diferente para a sua utilização... caso viesse um dia funcionar.
No dia seguinte, um sóbrio e elegante carro preto, com placa especial e conduzido por dois agentes, estacionava em uma tranqüila e esburacada rua de subúrbio.
— É aqui mesmo! — confirmou Borges comparando uma vez mais o endereço com aquele tugúrio, ante o ar céptico de Mattos estacionando o carro.
— Quem é esse cara? — perguntou Mattos saindo do veículo e olhando para o lugar nada compatível com a importância do homem procurado.
— Parece que é o "papa" da computação gráfica e da reconstrução matemática de imagens — respondeu Borges ajustando o nó da gravata.
— Morando aqui? — insistiu Mattos sem saber bem ao certo o que significavam aquelas palavras.
— É. Vai ver está desempregado. Esses caras muito especializados às vezes ficam sem campo de trabalho — justificou Borges.
— É verdade — concordou Mattos lembrando-se da forma que fora selecionado para o cargo de agente especial, através de influente indicação, e sentindo um certo alívio por estar empregado.
Bateram na mal pintada porta algumas vezes atraindo a atenção dos vizinhos, que não esconderam a admiração pelo contraste da situação e acotovelaram-se nos muros. Alguns seguravam crianças, que nada estavam entendendo e somente queriam olhar para o vistoso carro. Alguns cachorros latiam, pois um dos vizinhos insistia em segurar um gato assustado entre as mãos. Momentos depois um negro meio gordo e com as mãos sujas de tinta abriu a porta.
— Acho que vocês bateram em porta errada — disse o negro olhando para os dois e duvidando que se tratassem de algum comprador para os seus quadros.
— É aqui que mora o doutor Pedro Ernandez? — perguntou Borges confrontando uma vez mais com a agenda o desgastado número da parede.
— É aqui mesmo — confirmou o negro olhando para as próprias mãos.
— Então vá chamá-lo — ordenou Mattos mal dis¬farçando o asco que sentira ao ver aquelas unhas compridas e imundas.
— Sim senhor — assentiu o negro percebendo e colocando uma ponta de deboche na sua concordância.
Os dois agentes entreolharam-se enquanto o negro gri¬tava a plenos pulmões, entrando logo em seguir:
— "Dotô" Pedroooo.
Momentos depois voltou com uma cédula de identidade e um emoldurado diploma de engenheiro.
— Pois não, cavalheiros — disse com a voz empolada. — Eu sou o dou....
Não conseguiu terminar a frase. Uma ruidosa gargalhada interrompeu-o indignando os elegantes agentes.
— Entrem, senhores — convidou acentuando o deboche e plenamente acostumado àquelas manifestações de velado racismo.
— Obrigado — agradeceu Mattos procurando disfar¬çar uma olhadela no ombro sobre o qual Pedro, propositadamente, colocara a mão.
— Sentem-se ali — apontou para um amolgado sofá velho e forrado com um plástico ordinário e rafado.
— Não, obrigado — declinaram ambos. — A nossa visita é breve.
— Nem um cafezinho? — perguntou brincando com aquele constrangimento.
— Não. Obrigado — responderam com um sorriso forçado.
— Na verdade — interrompeu Mattos —, temos algo a tratar com o senhor — disse com certo desconforto aquele tratamento lembrando-se de como a ele se dirigira no primeiro contato.
— De que se trata então? — perguntou sem muita curio¬sidade sentando-se no velho sofá e afastando uma publicação cien¬tífica estrangeira recém-editada.
— Leia isso, doutor — disse Mattos passando-lhe às mãos uma carta lacrada, num formalismo cada vez mais respei¬toso temendo, talvez, alguma represália do então importante negro.
— Hum... agência governamental — leu em voz baixa examinando o remetente do envelope. — Qual será a merda desta vez? — resmungou ras¬gando o lacre e coçando o volumoso abdome sob a camiseta manchada.
"Pedro, vamos construir a maqver. Acompanhe essas adoráveis criaturas. Cordialmente, Janos."
— O filho da puta conseguiu! — disse rindo.
— Doutor, temos que levar alguma resposta — lembrou Mattos que entreolhara Borges sem entender aquela exclamação.
— Duas coisas, meu rapaz: primeiro, pare com essa baba¬quice de doutor; segundo, entre naquele quarto e separe as melhores roupas que achar e depois coloque na mala que está sobre o armário. Enquanto isso vou tomar uma chuveirada.
E, aproximando-se dele com um sorriso maroto, disse: mas antes, limpe esse amarelinho ridículo do ombro.
Meia hora mais tarde Pedro partia com os dois homens traçando mentalmente os planos para a construção da máquina, após tantos anos de espera.
Chegaram ao aeroporto militar e embarcaram em uma aeronave da força aérea que aguardava apenas a chegada do ilustre e desconhecido passageiro. Mais duas horas de carro, após o longo vôo, e chegaram ao laboratório.
Embora acostumado às rotinas de segurança nestas áreas, Pedro percebeu que esta, em particular, possuía um controle muito mais rígido que as demais. O carro fora minuciosamente revistado por homens atentos que utilizavam sofisticados rastreadores. Os três foram também submetidos a uma rigorosa revista.
— Podem passar — autorizou o lacônico chefe da guarda.
Antes de entrar no veículo Pedro olhou para o alto muro eletrificado que envolvia o complexo de pequenos prédios e avaliou a importância dos projetos ali desenvolvidos. Mattos deu a partida no veículo e adentrou uns poucos quilômetros, parando em frente a um simpático prédio envolto por um bem cuidado jardim.
— Vamos entrando, senhor — convidou Borges sal¬tando primeiro e abrindo a porta traseira.
E, antes que Pedro pudesse tocar em sua pesada mala, Mattos a segurou.
— Pode deixar que eu carrego, doutor.
"Puxa-saco!" — pensou ao ver aquele homem de terno todo retesado carregando a sua bagagem.
Caminharam por um silencioso corredor até atingirem um elevador que baixou pelo menos uns dez andares. Após a pa¬rada a porta se abriu silenciosamente e Pedro teve, pela primeira vez, a visão do laboratório que trabalharia. Deu dois passos para frente saindo do elevador e olhou à sua volta, reconhecendo imediatamente o humor da sala: apare¬lhos ligados com milhares de leds piscando, papéis jogados displicentemente ao chão e, num canto, profundamente concentrado, viu Janos.
Aproximou-se mansamente parando a cada detalhe que encontrava e lembrou-se da época em que trabalharam e estudaram juntos. Fazia algum tempo que não entrava em um grande laboratório e confessou-se espantado com a tecnologia presente.
Foi até o quadro azul-claro e alterou o sinal de uma das equações que Janos tinha desenvolvido e depois pilheriou:
— Assim você não vai chegar a parte alguma.
Janos saiu do seu transe e olhou instintivamente para o quadro, perce¬bendo rapidamente a modificação introduzida.
— Ora, seu cretino, eu não cometeria um erro tão primá¬rio.
Pedro riu. Conhecia suficientemente bem o seu amigo ao ponto de considerar essas poucas palavras como uma grande re¬cepção.
“As adoráveis criaturas me trouxeram...” — ia dizendo quando percebeu a ausência dos agentes.
— Ué. Onde estão?
— Ninguém, além do general e uns poucos pesquisadores, tem permissão de entrar neste laboratório — respondeu Janos desligando algumas chaves eletrônicas.
— Finalmente conseguiu convencer alguém para finan¬ciar seu projeto — certificou-se olhando novamente o laboratório.
— Não como eu gostaria — respondeu Janos. — Esta é uma instituição militar e por isso não acredito que tenhamos um controle absoluto sobre a máquina depois de pronta. Mas o que me importa no momento é construí-la. Quanto ao seu controle, isso será visto mais tarde.
— Um passo de cada vez. Não era assim que costumávamos dizer quando tínhamos um grande problema para resolver? — reforçou Pedro. — Foi difícil convencê-los?
— Na verdade não convenci ninguém. Acho mesmo que o comandante desta instalação está assumindo pessoalmente os riscos do projeto sem o aval dos demais.
— Por que você diz isso?
— Pura intuição — respondeu sem mencionar a conversa que tivera com o general dias antes.
— Então ele confia bastante em você — deduziu Pedro.
— Como cientista, sim. Mas como homem... O meu nome credencia o laboratório e o coloca na vanguarda entre os mais importantes do mundo. Recebemos estagiários dos cinco continentes que muito se orgulham de terem assistido as aulas que normalmente ministro. Os pobre coitados disputam bolsas só para virem até aqui e me terem em seus curriculum. E, no topo disso tudo, encontra-se o general, gozando do prestígio e auferindo os lucros políticos da sua posição. Por isso consegui impor o meu projeto.
— Uma simbiose perfeita — disse Pedro balançando a cabeça. — Onde está o Jaime? Não podemos iniciar sem ele — perguntou preocupado com aquele quem considerava o mais completo projetista de hardware.
— Já mandei chamá-lo. O problema é que ainda não o conseguiram localizar. Vive se mudando de cidade em cidade toda vez que completa um grande serviço. Depois gasta todo o dinheiro e recomeça então o círculo vicioso. — respondeu com a fisionomia um tanto pesada.
— Parece que nós dois realmente somos as ovelhas negras do grupo — lamentou Pedro referindo-se ao comportamento nada con¬vencional que, de certa forma, possuíam em relação ao de Janos.
— Acho que você está ficando velho, Pedro. Em nada so¬mos diferentes. Jamais acreditei em nobres objetivos ou em grandes almas. Sempre existe algo de escuso por detrás das realizações humana consideradas humanitárias ou altruísti¬cas. Prefiro lidar com o safado do Jaime — que pelo menos é autêntico — do que com os santos da nossa sociedade. Nele, pelo menos, posso prever-lhe o pensamento.
Janos, dando meia volta e olhando a aparente desorganização em que se encontrava o laboratório, continuou:
Imagine poder surpreender o diálogo secreto entre os imaculados cavalheiros de vermelho, penetrar nos pensamentos dos turbantados ou ver a intimidade dos alvos mantos. Ver-lhes a diferença entre os atos e discursos ético-morais. Sabe, Pedro, já es¬tou cansado de tanto falso pudor. É hora de aprendermos a viver com apenas uma cara. Olhe para uma criança. Ela não tem a menor cerimônia em desagradar quem quer que seja, se isso lhe convier.
— E é onde a maqver entra — concluiu Pedro corrobo¬rando-lhe o pensamento.
— Talvez — respondeu com um gesto. — Mas com certeza, a simples possibilidade da comprovação irrefutável de um fato, inibirá qualquer mentira. Quem quiser ser santo terá realmente que sê-lo ou viver como tal.
E, colocando a mão no ombro do negro e encerrando o diá¬logo, asseverou:
Creio que existem muito mais ovelhas negras do que brancas. Aliás, acho até que as brancas são mais uma ficção cromática do que uma realidade...
Os dois agentes do general chegaram a mais um endereço.
— Dessa vez eles garantem que este é o correto — disse Borges tocando a campainha.
— Tomara — respondeu Mattos expirando com certo de¬sânimo após tantas investidas infrutíferas.
Uma mulher de aspecto vulgar, porém bastante atraente, veio atender.
— O que desejam? — perguntou mantendo a metade do corpo atrás da porta.
— Somos agentes federais — respondeu Mattos exi¬bindo suas credenciais e disfarçando uma olhada na sua coxa desnuda e grossa.
— Policiais? — ironizou a mulher percebendo o inte¬resse do agente pelo seu corpo e achando-o servil e corruptí¬vel.
— Pergunte se eles têm mandado de busca ou ordem de prisão — gritou uma voz irada de um dos cômodos do pequeno apartamento — senão, mande-os para o inferno.
— Você ouviu isso, garotão? — perguntou a mulher ao agente que ruborizou ao perceber que ela notara o seu olhar.
— Diga-lhe que queremos apenas conversar. Não há nada de errado entre ele e a lei — interveio Borges mostrando-se mais comedido.
— Qual é o problema? — perguntou o homem magro e calvo chegando à porta.
— Queremos falar com o doutor Jaime — respondeu Borges tomando à frente do seu colega.
A mulher, ao ouvir do agente o tratamento carregado de respeito, olhou para o calvo com um sorriso malicioso.
— Só se for em sacanagens — disse entre risos e beijando-o sem cerimônia.
Mattos sentiu uma ponta de inveja mas fingiu contrariedade ao olhar para o companheiro; este, visivelmente perturbado.
Borges, com uma foto na mão, identificou o homem.
— Podemos entrar? — solicitou ao comprovar que era realmente quem procuravam.
— Parece que não vou mesmo poder impedir que vocês falem, não é? — disse aos dois agentes demonstrando toda a sua contrariedade numa longa expiração.
— O senhor não é obrigado a nos receber se não o qui¬ser. Só gostaríamos de lhe entregar uma carta e transmitir-lhe a resposta por escrito.
— Se é assim, entrem — autorizou com mau humor pegando o envelope lacrado das mãos de Borges. Depois virou-se para a mulher e comentou em voz alta:
— Rapazes educados. Não acha?
A mulher riu maliciosamente olhando para Mattos que, mesmo assim, fez-lhe mais uma incursão visual, desta vez no corpo inteiro.
Jaime sentou-se e abriu a carta.
— Merda — praguejou ao rasgar uma parte da carta firme¬mente colada ao envelope.
— Pelo menos sentem-se — disse a mulher dirigindo-se aos ho¬mens que permaneciam de pé.
— Obrigado — agradeceram quase em uníssono desper¬tando mais um sorriso nela, que agora já não parecia tão vulgar.
Jaime leu a mensagem e ficou alguns minutos com a carta tocando de leve em seus lábios... pensativo. Foi despertado pela voz da mulher que insistia em oferecer uma bebida aos agentes.
— É aquele velho jargão idiota de não beberem em ser¬viço? — perguntou meio irritado e pegando também o seu copo.
— O senhor entende... É que...
— Não entendo porra nenhuma — respondeu desabrido. — Recebi vocês em minha casa e acho uma desfeita irreparável recusar uma oferta de Dulce. Peguem a merda dos copos e bebam. Estão em minha casa — enfatizou novamente.
Os dois agentes entreolharam-se e, como não viram outro remédio, aceitaram.
— Obrigado — agradeceram novamente.
Dulce olhou para Jaime com certo orgulho. Conhecia-lhe o passado mais recente mas não sua verdadeira identidade. Sabia que estivera envolvido em contrabando de "coisas de computadores" e outros delitos leves e que até ficara preso por determinado tempo, daí a sua admiração ao vê-lo falar daquela forma com aqueles policiais.
Jaime continuava pensativo. Sorveu de uma só vez o conteúdo do copo e Dulce tornou a enchê-lo. Sen¬tou-se depois ao seu lado tentando adivinhar o conteúdo daquela carta e perguntou baixinho:
— É alguma coisa grave?
Jaime nada respondeu.
— Tá certo — conformou-se com o seu mutismo. — Mas se tiver que voltar avisa que eu fico esperando — disse docemente levantando-se em direção ao quarto.
Jaime tornou a olhar para a carta e depois para os agentes, que permaneciam em silêncio. Observou-lhes os copos quase cheios e disse entre os dentes:
— Se não beberem logo nunca terão a minha resposta.
Depois, levantou-se e foi em direção ao pequeno quarto onde en¬controu Dulce na janela. Olhou à sua volta e viu a cama e a mesinha de cabeceira. Sentiu a harmonia daquele cômodo que representava o que de melhor havia no mundo e tornou a olhar em direção a Dulce. Aproximou-se devagar mas deteve-se antes de tocá-la, ao ver-lhes os olhos úmidos. Ficou assim parado observando-a e lembrando-se de como se conheceram. Era uma relação que tinha tudo para sair errada, pelo tipo de vida que ambos levavam. Mas a falta de um compromisso for¬mal entre ambos foi o fator fundamental para aproximá-los. Jaime, aos poucos, foi se apegando àquela mulher que nunca lhe exigira nada e conseguiu-lhe tudo, inclusive a dúvida se deveria ou não ir para o laboratório e seguir a sua verdadeira vocação.
Dulce percebeu-lhe a presença e virou-se.
— Você vai partir, não vai?
Jaime não respondeu de imediato. Ficou apenas vendo os seus cabelos castanhos movendo-se com a brisa leve da janela. A cortina, de um pano branco e leve acompanhava também aqueles movimentos. Nessa hora percebeu o quanto era atraente.
Mas novamente foi Dulce que tomou a iniciativa:
— Não deixe que uma mulher o faça arrepender-se de algo que tanto quis fazer e não fez. Eu, pelo menos, não gos¬taria de ser esta mulher.
Jaime atirou-se em seus braços e chorou feito criança.
Em menos de uma hora os três saíram do apartamento. Jaime ainda arriscou um último olhar para a janela, mas não a viu. Talvez jamais tornasse a vê-la novamente...
Durante a viagem ao laboratório a dúvida e a saudade prematura castigou duramente a sua mente. Tentou dormir mas o nó em sua garganta doía. Pegou então a garrafa que sempre trazia e sorveu todo o seu conteúdo de uma só vez, embriagando-se ao ponto de ter de ser carregado do avião para o carro que o levaria finalmente ao laboratório.
Ao chegar, foi recebido pelo general.
— Boa noite — cumprimentou o militar com a fisionomia fe¬chada e verçuda.
— Olá — respondeu Jaime olhando de cima para baixo aquele homem que tentava impressioná-lo com o olhar.
— Boa noite, general — despediram-se os agentes após cumprirem a missão.
O general apenas balançou a cabeça como despedida.
— Então o senhor foi colega de Janos nos tempos de universidade? — perguntou o general sentando-se próximo a Jaime que se acomodara sem cerimônia.
— Colei muito dele. Por isso consegui me graduar — respondeu rindo e sentindo que o militar não iria gostar da res¬posta.
O general — para deleite do seu ladino interlocutor — não gostou.
— O senhor foi convidado para participar de um projeto de alta relevância e eu gostaria que estivesse à altura — disse secamente percebendo uma ponta de embriaguez.
— E quem vai me julgar? — perguntou Jaime colocando as mãos na cabeça e apoiando-a nelas.
— A comissão — respondeu de pronto.
— Ora, general! — riu-se Jaime. — Não há nenhuma comissão envolvida nisso. Ninguém me selecionaria. Eu sequer me candidatei... Sou o que sou e se estou aqui, por certo, foi pelas mãos de Janos.
— Sim — endossou o general —, mas com a aprovação da Comissão.
— General, por que insiste em tentar me convencer que a responsabilidade da minha presença aqui não se deve unica¬mente a Janos? Seria mais fácil para nós dois se convivês¬semos com esta realidade. Não concorda?
— Bem, se é assim que o senhor prefere, saiba que a sua presença e a daquele negro não são bem-vindas. Por isso não gozarão de nenhum privilégio especial destinado aos pesquisadores da casa. Janos é o responsável pelo projeto, mas não se esqueçam de que eu sou o diretor do laboratório e será a mim que deverão se reportar. Eu sou a autoridade máxima dentro deste complexo. Ficou bem claro?
— Claríssimo, general — respondeu com uma destemida irreverência e levantando-se em seguir. — Mas se o senhor não se importa, fiz uma longa viagem até aqui e gostaria de descansar um pouco. Espero que dormir depois de dar uma boa mijada não es¬teja entre aqueles privilégios citados no nosso agradável encontro — Ironizou irritando ainda mais o militar.
O general aproximou-se de Jaime e disse com a boca quase no seu nariz:
— Vou aturá-lo o mínimo necessário.
— Saiba que eu também não gostei do senhor, general.
Pela manhã, Jaime acordou e preparou-se para deixar os seus aposentos. Caminhou pelos corredores à procura do laboratório mas não o achou. Como esquecera do crachá, por absoluta falta de hábito em usá-lo, um guarda resolveu-lo interpelar e conduzir até a sala da segurança. Pacientemente, tentou explicar a situação mas somente com a chegada de Janos foi que, finalmente, conseguiu a liberação.
— Não se esqueça mais do crachá, doutor — instruiu o segurança acreditando estar cumprindo fielmente as ordens recebidas.
— Sim senhor — respondeu com uma desleixada continência.
E, virando-se para Janos, resmungou:
— Lugarzinho chato esse: primeiro, aquele velho babaca metido a chefe querendo me aporrinhar logo à minha chegada; depois, esses guardas enchendo o saco por causa da merda do crachá. Não sei como você atura.
— Quando você começar a pensar em coisas sérias vai esquecer esses problemas comezinhos — confortou-lhe abrindo a porta do laboratório.
— O general falou de um negro mal visto. Só pode estar se referindo ao Pedro. Estou certo?
— Sim.
— Barbaridade! Que máquina! — disse acionando alguns comandos logo ao ver o computador. — Só precisa de uns retoques — sentou-se ao console não resistindo ao colorido da tela.
— Nada de alterações — admoestou Janos entendendo perfeitamente o significado daquelas palavras. — Vamos trabalhar neste computador com os seus circuitos e programas originais. Isto foi uma promessa que eu fiz ao general.
— Certo, chefe — resignou-se. — Mas onde está o Pe¬dro? Faz muito tempo que não nos vemos.
— Talvez tomando o desjejum — respondeu consultando o relógio.
— Ah! Ótimo. Também estou com fome.
— Vamos até o refeitório. Assim você aprende o cami¬nho.
Ao deparar-se com Pedro, Jaime disparou abrindo os braços:
— Eis-me próximo ao Cézanne dos trópicos.
— Ora, seu pirata de merda. Ladrão de patentes sem-vergonha. Então finalmente te soltaram.
— Pela maneira que o general me recebeu pareceu até que tencionam prender-me novamente — disse Jaime sentando-se e aboca¬nhando um pedaço de pão.
— Eu também tive uma recepção muito acalorada. Ele me disse que adora os pretos. Principalmente cortando cana e com a bunda bem suada. — completou com uma gargalhada provocando uma chuvarada de açúcar e pedaços do pão que co¬mia.
— Senhores — interrompeu Janos em voz baixa —, o nosso trabalho não será fácil. Não posso contar com a colaboração dos demais departamentos e, principalmente, com a do gene¬ral.
— Mas por que não colaboraria? Não é ele o chefão por aqui? — perguntou Jaime sem entender.
— Fiz um acordo com ele — explicou referindo-se à promessa de continuar dando apoio aos demais projetos e aulas para os es¬tagiários do laboratório.
— Tarefa sacal essa! — comentou Jaime ao tomar conheci¬mento do trabalho.
— Parece que ele te pegou direitinho — observou Pedro, conhecedor profundo do caráter de Janos, sabendo-lhe que cumpriria irrestritamente a promessa.
— Esse mamão veio a calhar — aprazeirou-se Jaime saboreando um pedaço da fruta. — Toda vez que faço uma viagem é batata: fico todo constipado — complementou falando das propriedades digesti¬vas que acreditava possuir tal fruto.
— Acabem e depois venham até a minha mesa. Preciso da opinião de ambos quanto ao roteiro que tracei para iniciar os trabalhos — interrompeu Janos mais uma vez e levantando-se de volta ao laboratório.
— Certo, chefe — brincou Pedro enquanto pegava outro pedaço de pão.
Pedro e Jaime ficaram conversando mais algum tempo, recordando o tempo em que estiveram juntos e das situações embaraçosas que constantemente estavam envolvidos. As gargalhadas que se seguiam a cada recordação provocaram um mal estar nos “cientistas” presentes, que decidiram afastar-se daquelas “grotescas” criaturas.
— Acho que vou até o banheiro — disse Jaime passando levemente a mão sobre o abdome estimulado pelas contrações dos risos.
— Não se esqueça de lavar o bumbum depois — riu-se Pedro novamente.
Jaime não respondeu preferindo, ao invés, fazer um gesto obsceno.
— Esse computador não vai suportar a carga de trabalho do jeito que está configurado — sentenciou Jaime horas mais tarde após examinar-lhe os arquivos.
— Você precisa perder esse maldito hábito de querer modificar as coisas, Jaime. — reclamou Pedro sentindo-lhe a disposição em alterar alguns programas instalados.
— Parece-me que já conversamos também a esse res¬peito — enfatizou Janos.
— Vocês não entendem. Não vou poder desenvolver nenhum projeto baseado na lógica que eles programaram. Nosso trabalho é especial! — observou voltando o olhar para o computador com certo desdém.
— Seja criativo — pilheriou o negro afastando-se.
Janos também foi para o seu canto, mergulhando em pro¬funda concentração.
— Pelo menos abrir esta merda e ver a cara das placas eu posso. Não?
— Isso me parece fora do trato — respondeu Pedro perce¬bendo que seria inútil mantê-lo longe daqueles circuitos.
2
A onda de violência espalhava-se rapidamente por todo o País atrelada à corrupção cada vez maior daqueles que deveriam manter-se como espelhos da decência.
O povo, cansado de promessas e vendo a ineficácia das leis em punir os criminosos que assaltavam os cofres públicos, resolvia, de quando em vez, promover ondas de assalto às lojas. Os baixos salários não cobriam os custos cada vez maiores da manutenção de uma família e era comum ver um trabalhador de baixa renda envolvido em crimes desta natureza, unicamente visando à manutenção da sua família.
O atual presidente havia prometido, em campanha, que resgataria a moralidade pública e que todos os criminosos seriam punidos. Porém vinha encontrando muita resistência de alguns parlamentares influentes en¬volvidos em esquemas de liberação de verbas para fins pura¬mente eleitoreiros e pessoais. A situação ainda era mais grave, pois muitos eram grandes latifundiários e viam nas intenções presidenciais de reforma agrária uma ameaça às suas terras improdutivas, fontes de inesgotáveis incentivos fiscais que tan¬tas fortunas ilícitas fizeram.
— Você hoje me parece mais abatido — observou a mulher do presidente ao vê-lo desembarcar do carro.
O motorista, velho companheiro de longas jornadas, ar¬riscou um olhar de concordância com a primeira-dama.
— Só estou um pouco cansado — tergiversou respirando fundo e com o olhar perdido. — Só cansado... — repetiu mal disfarçando os momentos difíceis pelos quais passava.
O motorista entregou-lhe a pasta e afastou-se com o carro enquanto a primeira-dama sinalizava ao mordomo autorizando o jantar.
— Acho que vou me deitar — comunicou ao sentir que o forte aroma da comida provocara-lhe uma pequena náusea.
— Nada disso! Ontem foi a mesma coisa — contestou a mulher sentindo que algo de grave estava acontecendo e que o marido insistia em poupar-lhe do dissabor. — Não vai me contar? — perguntou baixinho aproximando-se e reparando-lhe a face lívida e úmida.
Subiram então ambos para o quarto deixando os emprega¬dos sem saber o que fazer.
— Muito bem — iniciou o desabafo ao sentir-se protegido pelas paredes do aposento. — Estou cercado por homens preocupados meramente com os seus problemas pessoais. Não consigo ver grandeza em nenhum deles..., nada que seja do interesse do povo. São políticos que levam multidões para os palanques nas épocas das eleições e as comovem com discursos inflamados e aparentemente sinceros prometendo reparar-lhes as injustiças mais pungentes... E depois, aqui... já instalados e com as mordomias... esquecem-se até das origens e logo são contaminados pelo vírus da corrupção. Aliam-se aos lobistas e passam a ostentar-lhes as bandeiras quase sempre em detrimento dos que os elegeram.
E, expressando profunda tristeza, continuou:
— Como as pessoas encolhem a moral ao ver a cor do di¬nheiro... Quanta diferença entre o que dizem e o que real¬mente são!
— Mas você sempre soube disso — rebateu a mulher.
— É verdade. Mas uma coisa é saber e outra, bem dife¬rente, vivenciar uma verdade. Sempre soube dos conchavos, das composições duvidosas, das alianças impossíveis, dessa vergonhosa aposentadoria aos oito anos de mandato, dos partidos de aluguel... Mas nunca imaginei que essas práticas levassem esses homens tão ao fundo do poço. O País não significa nada para eles. Não sentem nada pelas leis. A ordem simplesmente....
E, com a voz meio embargada pela emoção perguntou à mulher:
— Você já ouviu os noticiários?
— Ouvi várias coisas, mas nada de importante. Por que?
— Então ainda não estourou — respondeu com olhar grave.
O que está acontecendo? — perguntou a mulher preocu¬pada.
— Acho que desta vez o congresso cai de podre. É o maior escândalo de todos os tempos.
— Mais um... — desabafou a mulher deixando-se cair sobre a cadeira numa longa expiração. — Os banqueiros de bicho e os contraventores dos morros gozam de muito maior prestígio junto à população do que esse congresso. Aquilo é um grande circo que nos faz chorar. — O que foi desta vez?
— Não diga isso. — admoestou o presidente. — Foi a Comissão de Distribuição Orçamentária. — respondeu meio acanhado.
— Não me causa nenhuma surpresa — desdenhou a mulher.
E, ante o olhar de surpresa do presidente, a primeira-dama emendou:
— Nunca confiei em sistema que os maiores interes¬sados pelas verbas manipulam a sua distribuição. É lógico que essa comissão só poderia ser um antro de corrupção. O velho adágio popular que diz ser impossível confiar à cabra a tarefa de cuidar da horta deveria ser aplicado ao con¬gresso. Será que é tão impossível fazer a dotação orçamen¬tária aos diversos interessados através do percentual do PIB conforme fazemos quando trabalhamos e recebemos por comissão?
— Isso já é feito — respondeu com desânimo.
— Então por que a redistribuição?
— É muito complicado explicar este mecanismo.
— Acho que é muito mais complicado torná-lo transpa¬rente — devolveu a mulher em tom de reprovação. — Todos nós trabalhamos com um orçamento definido. Se atribuirmos a cada encargo um determinado valor percentual será perfeitamente previsível o valor que cada credor desses encargos terá para receber. E isso me parece bastante lógico.
E, com um sorriso irônico, encerrou:
— É lógico mas não é político, pois não sobra muito para barganhar.
— Estou muito envergonhado... — lamentou o presidente abrigando-se no travesseiro colocado atrás das suas costas. — Tragédias, massacres coletivos, assaltos que afas¬tam os turistas das grandes metrópoles. Meu Deus!... Até quando poderemos suportar tudo isso sem explodir?
E, virando-se para a mulher perguntou:
— Você sabia que estamos à beira de uma guerra civil?
A mulher respondeu com um desluzido sorriso:
— Ah! Isso eu não acredito. Não temos esta tradição! Somos um povo pacífico por excelência e amantes do bom futebol. Somos o País do São Carnaval, santo inibidor das tragédias e das revoluções.
E, acalmando o marido, arrematou:
— Não dê ouvidos aquele tolo ministro que só pensa em valorizar suas previsões pessimistas.
— Seria bom se você estivesse certa, mas infelizmente é verdade. Estamos caminhando para uma grande convulsão so¬cial. Nosso povo torna-se cada vez mais pobre e faminto enquanto os seus representantes legais assaltam descaradamente. A imunidade parlamentar tornou-os impermeáveis às leis.
E, olhando firmemente para a mulher, decidiu:
— Acho que vou renunciar.
— NUNCA! — gritou a mulher levantando-se tomada por uma súbita cólera, tal a surpresa daquela confissão. — Você não deve nem pensar nisso. Estou por acaso diante de um co¬varde? Você não acha que está sendo pior do que eles enganando os que te elegeram?
E, chegando à porta, disse com firmeza:
— Vou descer e te esperar para jantar enquanto procuro esquecer tudo que conversamos. — disse com firmeza e com o dedo em riste. — Tenhas a certeza de que jamais irei me orgulhar de ter sido a mulher de um presidente que renunciou. Prefiro ser a mulher do deposto presidente que teve a veleidade de lutar contra forças impossíveis de vencer mas que, pelo menos, tentou.
Acabou de dizer a última palavra e trancou a porta atrás de si, descendo a passos fortes e deixando o presidente pensativo e arrependido de ter sido tão fraco perante a mulher que sempre o apoiara nas mais difíceis empreitadas.
Minutos depois, já com outra disposição, desceu e jan¬tou fartamente com humor inclusive para fazer algumas brin¬cadeiras com os empregados mais íntimos. A mulher, orgu¬lhosa pela batalha doméstica vencida, pediu o vinho predileto do casal, que era bebido somente em situações especiais.
Após a garrafa ser aberta e os copos servidos, brindou:
— AO PRESIDENTE.
3
Essa primeira fase do projeto fora extremamente traba¬lhosa para Jaime, principalmente porque as lembranças de Dulce ainda lhe queimavam a mente. Durante os meses que se seguiram teve de projetar praticamente tudo que Janos havia idealizado na prancheta, já que não havia equipamento preparado para aquele fim. Pedro, especialista em reconstrução de imagens, também sentia as limitações do laboratório, se bem que concordasse também que era bem aparelhado.
O general, a exemplo do que aprendera nos tempos de caserna, resolveu fazer uma visita ao laboratório, muito embora a sua mente a tivesse classificando mais como uma inspeção. Entrou num rompante pela porta e ficou a poucos centímetros da entrada aguardando algum olhar subserviente que o saudasse. Olhou para os três, que permaneceram imóveis e fixou-se instintivamente em Pedro.
Por vezes irritava-se em lidar com os civis, pois não tinham a obrigação de levantar à sua presença.
Em rápida lembrança viu o aspirante de décadas atrás enfatuado no uniforme verde e ostentando a estrela prateada que lhe deu o súbito poder de ser tratado como “senhor” por homens mais velhos e de ter, voltadas para si, as atenções dos praças, agora sob o seu primeiro comando. Gostava de mandar, de ser respeitado e, principalmente, de ser obedecido. Admirava Janos e, talvez, no fundo da sua alma, o respeitava mais pela sua coragem em desafiá-lo, não se rendendo nunca às suas ordens. Mas já lhe conhecia os pontos fracos e, através deles, exercia o seu domínio.
Jaime era o seu novo desafeto. Tinha um padrão de comportamento desconhecido demonstrando ser independente e perigoso, já que não conseguira intimidá-lo conforme o pretendido. Não parecia ter qualquer ponto fraco, pois seu apego aos valores social ou moral era praticamente nulo, conforme os relatórios que dele mandara levantar. “Homens assim ou tornam-se grandes líderes espirituais ou grandes cafajestes. Depende do destino em que tropeçam.” Essa era a conclusão do perfil psicológico que finalizava o relatório. Este, sem dúvida, é um belo exemplo de patife melcatrefe que se encaixa perfeitamente bem na segunda opção.” — concluiu pensando em Jaime num misto de admiração e ódio.
Pedro, embora tentasse dissimular, necessitava desesperadamente das convenções e posição sociais que conquistara às custas do seu talento para então fingir desprezá-las, como se realmente delas nada quisesse.
Com esse também não encontraria nenhum problema, já que conhecia bem o tipo, fruto da experiência adquirida durante a ditadura na qual fora carcereiro de diversos pseudo intelectuais de esquerda que acenaram positivamente às benesses e privilégios oferecidos em troca de informações. E foi exatamente através desses que ajudou a enfraquecer os movimentos contrários ao regime de então. Sabia que Pedro não era exatamente assim, mas a cor da sua pele o obrigava a mais encargos que outro de cor diferente e nas mesmas condições.
Por vezes acreditava ter superado o racismo, mas a herança social que lhe foi imposta era ainda bastante forte. Aproximou-se arrastando os pés propositadamente nos papéis sobre o chão procurando algo para falar e disparou:
— Pode ser até que funcione, mas isso parece um amon¬toado de sucata — disse aproximando-se de Janos ao ver o lastimável estado de ordem que Jaime dera às peças que montavam o protótipo.
— Acabamento não é realmente o forte dele — concordou Janos olhando rapidamente em direção ao protótipo que expunha as placas eletrônicas montadas umas sobre as outras, deixando à mostra fios e terminais.
— Cuidado, general! — alertou Pedro ao ver o militar passando próximo aos feixes de laser projetados na parede.
O general afastou-se dos três e ficou a observar o que estava considerando uma verdadeira loucura coletiva. Não podia acreditar que daquele caos nasceria uma máquina com as características descritas por Janos. Olhou para cima como se estivesse implorando por uma bênção e saiu.
Semanas depois algo começava a incomodar o irrequieto Jaime.
Na reunião que faziam sempre ao final de cada dia, ge¬ralmente ao ar livre como nos velhos tempos, ele foi taxativo:
— Ninguém me tira da cabeça que estamos sendo es¬pionados.
— Isso é bobagem — contestou Janos. — Você diz isso porque está sempre aprontando alguma coisa — emendou referindo-se às vezes que o viu trapacear e alterar pro¬gramas originais.
— Pode até ser — concordou. — Mas eu tenho um sexto sentido muito apurado.
— É como o Janos disse — interferiu Pedro —, você está sempre desconfiado por causa das muitas trapalhadas que já andou aprontando. Daí essa eterna mania de perseguição. Não há ninguém espio¬nando o laboratório — completou.
— Olha aqui, seu crioulo burro. Você pensa que eles confiam cegamente em nós? Por um acaso eles não sabem quem somos e de onde viemos?
— Racismo é crime inafiançável e você bem o sabe — falou Pedro rindo-se.
— Senhores — interferiu Janos —, deixem de bobagens e vamos ao que interessa.
— Eu não consigo me concentrar sentindo que alguém me espia — insistiu Jaime.
— Mas por que tanta certeza? — perguntou Janos preocupado com uma possível queda do seu rendimento num momento tão delicado do projeto.
— Eu não sei como explicar, mas amanhã eu vou fazer uma checagem completa e tentar descobrir alguma escuta ou câmera clandestina. Enquanto isso não comentem nada por lá, pois se eu estiver certo eles retirarão o grampo e saberão que estamos desconfiados.
— Estamos? É você quem está e não nós — devolveu Janos.
— Está bem — concordou meio irritado e afastando-se para a sua costumeira e solitária cami¬nhada.
Ficando a sós, Pedro e Janos manifestaram suas preocupações quanto ao estado de Jaime:
— Acho que ele está muito sobrecarregado — observou Pe¬dro. — Nunca o vi trabalhar tanto como agora.
— Ele está exigindo de si mais do que pode realmente dar — concordou também Janos virando-se na direção do caminho que Jaime tomara.
— Será que ele está tentando se redimir do passado e agarrando esta chance como se fosse a última oportunidade de uma vida honesta e produtiva? — perguntou Pedro caminhando devagar em direção à porta do laboratório.
— Talvez sim talvez não, embora não lhe seja essa uma reação típica. Eu, pessoalmente, não acredito que ele esteja preocupado em ser honesto ou produtivo — respondeu Janos sem nenhuma convicção e parando a caminhada. — Mas essa desconfiança é muito sintomática.
— Então você também crê que estejamos sob vigília? — perguntou Pedro passando a mão na nuca e olhando instintivamente para os lados.
— Não da forma que ele imagina — respondeu Janos. — Mas deve ser o reflexo do impacto psicológico que ele está prevendo se a máquina funcionar como planejamos. Ninguém mais estará a salvo em sua privacidade, a não ser que esteja no meio de uma floresta ou no deserto — completou com ar pesado.
— Por vezes me dá um certo medo deste projeto — disse Pedro demonstrando pela primeira vez uma ponta de preocupação quanto ao uso da maqver.
— Um objeto pode ser completamente inócuo ou extrema¬mente perigoso. Depende de quem o manipula — acalmou Janos. — Não se pode culpar um fabricante de armas pelas mortes por elas provocadas — completou tocando no ombro do companheiro e iniciando a caminhada em direção ao laboratório.
Pedro concordou com uma expressão facial e seguiu os passos de Janos, não deixando de dar uma derradeira olhada para trás na tentativa de encontrar Jaime.
Passaram no laboratório e desligaram alguns equipamentos seguindo depois para o refeitório. Como sempre, escolheram a mesa mais afastada dos demais sem, contudo, evitarem os inconve¬nientes encontros.
Apesar de Janos dedicar parte do seu tempo em ativida¬des didáticas, conforme prometera, os estagiários e demais cientistas não o poupavam de emitir pareceres e opiniões mesmo na hora das refeições. Pedro, por ser negro, mal era cumpri¬mentado, embora fosse reconhecida as suas aptidões matemáti¬cas.
Por vezes isso o incomodava.
Quase ao final do jantar viram Jaime entrando e decidiram espera¬r por ele. Um estudante, observando que o mestre acabara a refeição, sentou-se à sua mesa e, em alemão, formulou algumas dúvidas certo de que o negro ao lado nada compreenderia, pelo idioma e pela complexidade do questionamento. Pedro soltou um muxoxo ante a primariedade da dúvida e sentiu-se irritar pela lembrança do tempo em que amargou aprender aquela língua para cursar os créditos necessários à sua pós-graduação.
O pobre coitado do estudante passara o dia inteiro pesquisando sobre o assunto somente para formular aquelas perguntas, procurando assim demonstrar ao gênio alguma competência e impressioná-lo.
— Por que não falam o nosso maldito idioma? — perguntou indignado após o estudante se afastar.
— Parece que eles não têm a nossa capacidade de aprender algo em língua estrangeira — respondeu Janos complacentemente.
Jaime aproximou-se olhando para todos os lados, como que se quisesse surpreender um possível espião em atividade.
— Vocês acham realmente que eu estou ficando maluco? — perguntou sentando-se e com um leve ar de gracejo.
— Acho que sim — respondeu Pedro vendo naquela pergunta um sintoma positivo.
— Você não está somatizando uma probabilidade futura de uma possível má utilização da máquina? — perguntou Janos abrindo a janela e preparando calmamente o seu cachimbo.
Jaime não respondeu. Preferiu, ao invés, sinalizar com os olhos alertando que poderiam estar sendo ouvidos através de microfones direcionais. Janos fez uma leve careta e acendeu o fornilho en¬quanto Pedro saboreava a suculenta sobremesa.
No dia seguinte, bem cedo, Jaime já se encontrava no laboratório.
— Passou a noite aqui? — perguntou Pedro ao ver totalmente modificada a arrumação do ambiente.
— Quase — respondeu com a fisionomia cansada. — Onde está Janos?
— Dando aulas. Mais tarde terá uma reunião com o general.
— Ah! Deve ser um saco ter que dividir-se em ativida¬des desta forma — disse Jaime em tom de reprovação. — Se fosse comigo já teria mandado esse general tomar no rabo há muito tempo — completou ligando um estranho instrumento ao computador.
— Que diabo é isso? — perguntou Pedro examinando mais de perto o aparelho que lhe aguçou a curiosidade.
— É um analisador espectral.
— De fundo de quintal! — observou Pedro jocosamente comparando o que via com os que costumava trabalhar. Depois voltou ao computador e começou a elaborar os algoritmos de reconstrução que estava desenvolvendo, enquanto Jaime apontava o estranho aparelho em todas as direções do laboratório.
Trabalharam com afinco durante horas.
— Vamos almoçar? — convidou Pedro sentindo o vazio do estômago.
— Daqui a pouco — respondeu quase sem mover-se. — Pode ir andando que eu encontro você lá.
Pedro levantou-se e ainda deu mais uma olhada em di¬reção à Jaime, que mantinha a mão no queixo enquanto obser¬vava a tela do seu terminal. Sabia que ele havia mentido quanto ao estranho aparelho que montara mas, devido às apreensões demonstradas na noite anterior, absteve-se de questionar-lhe a verdade.
Horas mais tarde retornou ao laboratório após sair da biblioteca de onde consultara algumas obras, e encontrou Jaime ainda em franca atividade.
— Você ainda não comeu? — perguntou sem entender como alguém podia prescindir do prazer que mais cultivava.
— Ainda não — respondeu com a voz arrastada e cansada.
Pedro virou-se e saiu voltando minutos depois com um pequeno embrulho e uma garrafa de refrigerante.
— Toma — disse colocando-os sobre um exíguo espaço entre as centenas de chips espalhados sobre sua mesa. — Mas vê se não acostuma e cuidado para não engolir uma dessas centopéias.
Jaime tartamudeou um agradecimento ininteligível e, quase sem interromper o trabalho, comeu o sanduíche trazido por Pedro.
Enquanto isso numa sala secreta...
— Como está o trabalho? — perguntou o general ao grupo de militares de sua confiança encarregado de espionar o laboratório.
— Tudo bem, general — respondeu o major responsável pelo serviço. — Até aqui posso dizer que eles estão bem comportados. Só não sei o que falam naquelas reuniões lá fora. Se pelo menos ficassem num só lugar... — lamentou.
— Minha preocupação maior é com este — disse o gene¬ral apontando para a tela e mostrando Jaime em segundo plano. — Logo que consigam construir a tal máquina deveremos estar aptos a manejá-la sem o auxílio deles; por isso, cada palavra, instrução ou qualquer coisa relevante deverá ser levada em consideração.
— O gênio não é da sua confiança? — perguntou o major referindo-se a Janos.
— Até um determinado ponto, sim. Mas se eu me colocar entre o que ele quer ficará, naturalmente, contra mim. E disso eu não tenho a menor dúvida.
— E quanto aos outros dois?
— O negro é decente e pode ser até manobrável, mas o careca é um verdadeiro demônio. Sua ficha daria inveja a muitos vilões da ficção-científica. Se não fosse um niilista mau caráter poderia, com a sua genialidade e inteligência, ocupar um posto de alta relevância na indústria da construção de placas para computadores em qualquer multinacional. Disso o miserável entende.
O major ficou a observar aquelas últimas palavras e sentiu uma admiração velada do superior por aquele a quem pro¬curava demonstrar maior preocupação, lamentando não ter também seus talentos para despertar no chefe as mesmas atenções.
— Fique de olhos abertos — orientou o general afastando-se.
Janos somente conseguiu ser liberado à noite.
— Como foi o dia? — perguntou após unir-se ao grupo na costumeira reunião.
— Consegui algum progresso no simulador — respondeu Pedro abrindo um caderno de notas pleno de fórmulas matemá¬ticas e gráficos.
— Deixa-me ver — pediu Janos tomando o caderno das suas mãos.
Sentaram-se num banco e Janos posicionou-se entre os dois, absorvendo o conteúdo do caderno.
— De onde você tirou estas fórmulas? — perguntou apontando para um grupo de equações que lhe pareceu fami¬liar.
— Dos trabalhos que tratam das interações fotônicas com a matéria. Mas creio que não posso aplicá-las diretamente, pois nossas experiências não têm precedentes similares — respondeu Pedro afastando um mosquito que lhe importunava o ouvido.
— Na biblioteca há um trabalho interessante de um russo sobre a luz. Acho que podemos tirar algo de proveitoso para as nossas pesquisas — sugeriu Janos devolvendo o caderno.
— Estive lá hoje — respondeu Pedro meio decepcionado. — Infelizmente não há nada que possamos aproveitar, embora seja um artigo extremamente técnico.
— O que você acha Jaime? — perguntou Janos vendo-o olhar para cima como se estivesse contando as estrelas.
— Fórmulas e rabiscos não são o meu forte — respondeu passando rapidamente os olhos naquelas anotações —, mas acho que as experiências com bombardeios de nêutrons deram algumas respostas no campo espectral que talvez possamos utilizar.
— Radioatividade? — perguntou Pedro arregalando os olhos. — É incompatível esse casamento, Jaime. Vamos lidar somente com incidências de baixíssima energia.
— Eu sei — respondeu com seu ar cansado. — Mas posso criar um simulador comparativo e inserir nele tabelas proporcionais.
— Talvez numa primeira fase isso funcione — observou pensativamente Janos pegando nova¬mente o caderno das mão de Pedro. — Depois podemos criar tabelas de atenuação cromática com valores reais — completou o raciocínio examinando algumas fórmulas sob a forte luz do re¬fletor.
Pedro conseguiu finalmente esmagar o mosquito e agora comprazia-se com o sangue na palma branca da mão.
— Vamos descer e recalcular... — ia dizendo Janos olhando para aquela mão mas sem nada ver.
— Agora não — interrompeu Jaime.
— Mas que diabo há com você? — perguntou Pedro esfregando a mão na calça. — Não foi sua a idéia?
— Não é sobre isso que estou falando, mas com o que descobri lá — disse com a voz baixa e quase sem mover os lábios.
Pedro ajeitou-se provocando um balançando no banco e praguejou coçando a meia.
— O que foi dessa vez, Jaime? — perguntou Janos co¬fiando o bigode enquanto a outra mão descia para pegar o cachimbo.
— Vamos andar um pouco — propôs então Jaime sentindo que lhe prestariam atenção.
— Um momentinho — interrompeu Pedro avistando um homem ao longe. — Vamos naquela direção — indicou outro caminho que os levou ao centro do parque florestal.
— E então? — perguntou Janos após chegarem a um lugar que considerou seguro.
. — Hoje passei o dia inteiro examinando a nossa segurança e vi todas as plantas e instalações prediais relativas ao laboratório. Depois fiz diversos scans das paredes e do teto usando ultra-som de alta energia acoplado a um detetor eletromagnético.
Deu uma pausa meio nervosa e olhou para os lados. Só então, após assegurar-se de algo que não soube bem ao certo precisar, foi que recomeçou:
— E o que descobri foram algumas descontinuidades nas paredes e também no teto, preenchidas com um material diferente... como se fossem remendos. Nesses pontos usei o detetor e, sem a menor surpresa, li atividades magnéticas incompatíveis com as instalações elétricas originais.
— E qual foi a sua conclusão? — perguntou Janos entre a surpresa e o ceticismo.
— Fiz um mapa das falhas no computador. Se realmente são câmeras e microfones, conforme penso que são...
— Que filhos da puta! — revoltou-se Pedro.
— Ainda não temos nenhuma certeza disso — ponderou Janos.
Agora é a minha vez, Janos — interrompeu Jaime visivelmente irritado com aquela ataraxia. — Você é que não tem certeza.
— Eu concordo com ele — disse Pedro virando-se para Janos lembrando-se do estranho aparelho que Jaime esfregara o dia inteiro nas paredes.
— Com que finalidade alguém nos espionaria? — pergun¬tou Janos mais para si colocando calmamente o fumo no cachimbo.
— Alguém muito interessado em nós ou em nossas expe¬riências — respondeu Pedro tirando do bolso uma barra de chocolate.
— Qual o seu grau de certeza? — insistiu Janos sol¬tando levemente a fumaça sobre o fósforo apagado.
— Eu não tenho a menor dúvida do que descobri — interveio Jaime passando as mãos nos parcos cabelos da nuca.
— E isso vai te incomodar? — perguntou Janos preocupado.
— Não — respondeu Jaime com um sorriso malicioso. — Agora é que eu vou me divertir...
— Como assim? — perguntou curioso.
— Você conhece a história do gato e o rato? — pergun¬tou com um olhar matreiro.
— Acho que você está querendo brincar com fogo — in¬terferiu Pedro com a boca cheia.
— Negativo! — devolveu com autoconfiança e dando de ombros. — Se eles pretendem nos espionar...
— E o que você tem em mente? — perguntou Janos com o ar grave.
— Aposto que é mais uma daquelas... — respondeu Pedro ao ver que Jaime não responderia àquela pergunta.
— Não vá querer provocar inutilmente quem quer que seja baseado unicamente numa suspeita, Jaime — ponderou Janos em nova intervenção. — Afinal, não temos nada a esconder. Ademais, conforme você mesmo disse, eles são uns dinossauros em computação; logo, não vão entender nada do que se passa lá dentro.
— Isso é verdade — concordou. — Realmente, continuo achando que eles não têm competência para gerenciar um projeto dessa envergadura, mas acompanhando passo a passo os nossos mo¬vimentos poderão perfeitamente bem operar a maqver sem o nosso auxílio. E acho que é exatamente isso o que pretendem.
— E por que nos descartariam? — perguntou Pedro procurando um lugar para jogar o papel e sem entender as razões daquele argumento.
— Muito simples — respondeu Jaime gesticulando nervosamente como se estivesse explicando o óbvio. — Janos tem um objetivo científico para o projeto maqver. Mas será que o general estará também inte¬ressado em resgatar o passado com os mesmos objetivos?
E, ante o silêncio dos dois que apenas entreolharam-se, respondeu:
— Claro que não.
— Vá devagar, Jaime. Acho que você está alucinando — disse Janos fechado em sua razão.
— Não seja inocente, Janos — retrucou novamente. — Já percebeu que a nossa máquina pode ser usada como instrumento de chantagem?
— Eu simplesmente não posso acreditar que o general baixe a esse nível — respondeu Janos num tom que colocava um ponto final naquele assunto.
Jaime não mais insistiu. Olhou na direção de Pedro que lhe devolveu o olhar, mas percebeu que ele também não endossava irrestritamente os seu argumentos. Porém, mesmo a contragosto, sabia que o general Bertold era um homem brilhante e não era sem motivo que lhe foi dada a chefia daquele importante laboratório.
Terminada a reunião voltaram ao prédio.
— Jaime — chamou Janos antes de entrarem em definitivo. — Quero te pedir um favor.
— Pode pedir — disse expirando com um leve estalido de língua inferindo o que lhe seria pedido.
— Esqueça essas coisas. Não gostaria de vê-lo empregar inutilmente o seu cérebro em algo desta natureza. Você é um cientista e deve agir como tal. Deixe as coisas de política com os políticos. São seres da mesma natureza. Eles tem razões que não compreendemos.
Jaime fez um gesto desabonando esta última frase.
Fez-se um momento de silêncio. Pedro passou levemente a mão no volumoso abdome, gesto acompanhado pelo atento olhar de Jaime.
— Hora de jantar, não é? — brincou Jaime fingindo uma contrariedade.
Os três entraram no prédio e jantaram. Para alívio de Pedro nenhum estagiário aproximou-se da mesa, talvez por causa da presença de Jaime cuja fama espalhara-se rapidamente pelo centro de pesquisas. Depois Janos foi para uma reunião acadêmica e Pedro à biblioteca deixando Jaime bem à vontade no laboratório com o falso pretexto de terminar a montagem de "alguns circuitos pendentes".
“Esses filhos da puta não me conhecem” — disse Jaime baixinho para si referindo-se principalmente ao general e olhando disfarçadamente em direção às falhas que ocultavam as escutas. Depois sentou-se em frente ao console do seu computador, exatamente na direção de um dos falsos revestimentos e ligou sua aparelhagem. Aguardou alguns segundos tentando concentrar-se enquanto aguardava o prompt do computador e, quase que intuitivamente, olhou novamente para a parede à sua frente.
“Merda” — praguejou por não conseguir a concentração necessária ao que se propunha fazer.
Andou pelo laboratório e examinou distraidamente algumas folhas desleixadamente espalhadas sobre a mesa de trabalho de Janos, detendo-se numa delas em especial.
“Ele já tem tudo pronto!” — admirou-se ao perceber a conclusão escrita em linguagem matemática cifrada, artifício que costumavam empregar quando necessitavam manter oculto determinado trabalho.
Sentou-se novamente em seu console e, de posse de algumas idéias, iniciou uma série de combinações de circuitos. Foi depois para o computador de Pedro, ainda quase no esqueleto, e fez alguns ajustes. Voltou para o seu e ficou aguardando um resultado na tela, que não veio.
“Merda” — praguejou irritado socando a mesa.
Alguns integrados caíram ao chão. Olhou novamente em volta e engoliu em seco. Levantou-se resoluto após uma longa expiração e finalmente decidiu:
“Vai ser do meu jeito ou não conseguiremos nada” — disse para si vendo que os bloqueios impostos ao uso pleno do computador central não iriam permitir processar os imen¬sos dados requeridos pelas fórmulas de Janos.
“Mas primeiro vou ter de cuidar desses intrometidos que, por certo, estão me observando” — disse novamente para si com os olhos cerrados. Manteve-se assim por uns instantes ouvindo o ruído do seu cérebro pedindo descanso e resolveu ceder.
Colocou para rodar um programa utilitário para as ta¬refas noturnas e saiu para dormir.
4
A situação do país estava ficando insustentável. Até a presente data nenhum corrupto fora colocado na cadeia ou, sequer, seus bens tocados. A opinião pública, açodada pelos partidos de oposição, exigia a renúncia do presidente, acusado de cumplicidade em razão da imobilidade do judiciá¬rio, bombardeado por intermináveis habeas-corpus e mandados de segurança.
Alguns acusados, acostumados à impunidade, ainda usavam os meios de comunicação para defenderem-se com argumentos estapafúrdios mesmo tendo contra si insofismáveis provas.
Diante de tal quadro, desolado e sem saber exatamente o que fazer, o presidente decidiu reunir-se com os seus principais colaboradores, todos de sua estrita confiança.
— Senhores, eu realmente não sei o que fazer para con¬ter esta onda de descontentamento. Não há plano econômico que funcione neste clima. Não há confiança nas insti¬tuições principalmente no judiciário, que deveria ser o ponto de referência da nossa justiça. São bilhões de dóla¬res roubados dos cofres públicos e quanto mais se investiga mais podridão surge. Parece que nunca vai ter fim. Mas o pior é que todos estão por aí desfilando em carros importados e morando em verdadeiros palácios, enquanto o povo morre de fome e vive em favelas sem nenhuma expectativa de melhora. É natural que eles me vejam como o maior culpado, embora eu não possa interferir no curso dos fatos.
— Presidente — chamou um dos assessores após breve silêncio.
— Isso não é hora de formalismos, Vicente — reclamou o presidente no intuito de colocar todos à vontade para as idéias e opiniões fluírem mais livremente.
— Desculpe, Daniel, é o hábito das reuniões coletivas — justificou-se o assessor aproximando o cinzeiro para perto de si. — Mas o que eu sugiro numa hora dessa é uma reunião com a imprensa.
— Uma espécie de desabafo? — perguntou Joaquim, pare¬cendo discordar da idéia.
— Mais ou menos — respondeu Vicente olhando para o presidente procurando ler em sua fisionomia a receptividade da idéia.
— Isso enfraqueceria mais ainda a sua posição — ponderou Joaquim balançando a cabeça. — Imagine ter que depender da imprensa para se sustentar numa presidência.
— Não se esqueça — interferiu Vicente — que ela é capaz de derrubar e eleger presidentes.
— Mas a nossa está dividida — lamentou Joaquim. — Numa coletiva desta natureza compareceriam também aqueles empregados nas emissoras e jornais pertencentes aos acusados, o que seria suficiente para complicar ainda mais a situação. Ideal seria se tivéssemos uma notícia bombástica, algo que calasse a opinião pública e nos devolvesse a confiança perdida.
— Você que é advogado — disse o presidente virando-se para Lucio que até o momento somente se limitara a ouvir —, qual a solução jurídica indicada nesses ca¬sos? O que você faria se fosse o presidente da república?
— Não é uma pergunta com resposta segura, Daniel — respondeu o assessor olhando para os demais. — Não podemos modificar as leis para puni-los. Se quisermos agir dentro da legalidade teremos que fazê-lo dentro da mais rigorosa observância das normas vigentes, e não transgredi-las. É óbvio que eles são culpados, mas também é inegável que têm o direito de usar os remédios legais que estão usando para manterem-se soltos. Costuma-se dizer que só os pobres vão para a cadeia, mas isso é uma verdade relativa. Os pobres, quando cometem um crime, não têm a chance de esgotar todas as possibilidades que as leis permitem para defenderem-se. Não têm dinheiro para custear o pagamento de perícia ou quaisquer outros encargos adicionais.
E, ajeitando-se mais na cadeira, continuou:
— É bem verdade que quando o pobre comete um crime, o faz sem medir as conseqüências, daí serem condenados com mais facilidade. Não é o caso desses homens. Eles já sabiam que um dia tudo isso iria acontecer e antecipadamente tomaram as precauções. Co¬nhecem as partes frágeis das nossas leis e até onde vai o direito da sociedade em puni-los. A nossa lei exige provas irrefutáveis e não evidências, por mais convincentes que possam parecer.
E, finalizando com algum pesar, disse:
— Daniel, se eu tivesse que agir, agiria fora do campo jurídico. Na minha opinião eles vão continuar soltos e ri¬cos. E pior... rindo da nossa cara.
— Você está sugerindo que tomemos decisões fora da le¬galidade? — perguntou Joaquim espantado com aquelas pala¬vras.
— De certa forma, estou — respondeu o advogado. — E não seremos os primeiros mortais a fazê-lo — emendou.
— Expurgos no judiciário, fechamento do congresso, al¬guns corruptos fuzilados em praça pública. O povo adoraria — disse Vicente com seu ar bonachão reprovando aquele ar¬gumento. — E depois? E a opinião pública internacional? Quem investiria numa nação que não segue sequer suas próprias leis? Não, meus amigos, fomos convocados para ajudar o presidente e não para enterrá-lo no abismo da história.
— Que tal uma solução mista? — perguntou o advogado.
— Como assim? — perguntou Joaquim.
— Simples. Nosso serviço secreto é capaz de muitas tarefas, e...
— Ainda assim, para serem punidos, precisariam do referendo judiciário — voltou a interferir Vicente.
— Que tipo de provas irrefutáveis poderíamos levantar com a ajuda do serviço secreto? — perguntou o presidente sentindo que Lucio tinha algo a informar.
— Nenhuma, presidente — respondeu Joaquim antes que ele pudesse responder.
— Você ia falar alguma coisa? — insistiu Daniel virando-se para o advogado.
— Não, presidente — respondeu com certo alívio quase agradecendo à Joaquim pela sua intromissão.
O que ele sabia não poderia dizer, a não ser para o presidente. A sós e no momento oportuno...
5
— Como andam os trabalhos? — perguntou o general nas costumeiras visitas que fazia.
— Estamos progredindo — respondeu Pedro ao sentir que nem Janos ou Jaime lhe dariam atenção, concentrados que es¬tavam em suas tarefas.
— Sei... — disse o general olhando para Pedro e depois para os outros dois. — E isso já funciona? — perguntou novamente apontando para seu computador ainda no esqueleto.
— Faltam apenas alguns ajustes — respondeu Pedro passando a mão por sobre uma das placas.
— Alguns ajustes.... — repetiu baixinho o general com a fisionomia céptica.
Jaime interrompeu sua concentração e olhou por cima dos olhos, mantendo a cabeça baixa e não permitindo que o gene¬ral percebesse. Aquelas constantes visitas o irritava enormemente. Piscou para Pedro e acionou um botão em¬baixo do seu console sem deixar o militar perceber. Segundos depois, um clarão seguido de estranhos sons é visto do computador de Pedro.
— Mas que diabo foi isso? — perguntou o general assustado e olhando a fumaça branca que saía pela parte inferior do módulo.
Pedro, assustado com a surpresa preparada, tam¬bém não soube explicar.
— Acho que a memória cromática foi-se — disse Jaime simulando uma preocupação e aproximando-se rapidamente do computa¬dor.
— Isso é muito mal? — perguntou o general examinando também mas sem entender o que via.
— Nada que Jaime não possa reparar, general — disse Janos aproximando-se para avaliar o incidente.
— Ainda bem que você "acordou" — disse o general com um sorriso ao falar com o seu cientista predileto. — Precisa¬mos muito conversar.
— Hoje à noite está bom? — perguntou Janos voltando para sua mesa após rápida análise no módulo e sendo seguido pelo militar.
— Sim, está ótimo — respondeu esfregando as mãos pelo frio polar do laboratório. — Bom, rapazes, já estou indo — despediu-se olhando para o computador de Pedro que ainda fumegava.
Mal a porta se fechou Jaime gargalhou ruidosamente. Janos, pela sua reação, calculou que ele apenas ria pelo susto do general, embora Pedro fosse de opinião diferente.
Na reunião noturna, após discutirem o dia de trabalho, Pedro, lembrando-se do episódio com o seu computador, perguntou:
— Que merda foi aquela?
Jaime não sustentou o riso e explicou:
— Apenas reciclei algumas placas inúteis. Um fim honroso para uma velha cpu defeituosa que nunca mais seria instalada em nenhum circuito.
— Pedro acompanhou seu sorriso, pois confirmara as suas suspeitas; Janos, porém, apenas balançou a cabeça negativamente e sem nenhum humor.
— Você não achou o general esquisito hoje pela manhã? — perguntou Pedro restabelecendo a seriedade da reunião.
— É verdade — respondeu Jaime. — Parecia meio ba¬baca. Nem de longe era o circunspecto milico que tentou me dar uma ordem unida. Vai ver que está querendo alguma coisa que dependa da nossa boa vontade.
— O que você acha, Janos? — perguntou Pedro com aquele olhar característico que tanto Janos conhecia.
— Não sei — respondeu lacônico. — Talvez tenha algo a ver com a reunião que ele quer ter comigo hoje. Seja o que for não se preocupem com especulações inúteis, pois de qualquer forma vocês ficarão sabendo.
Horas depois, em seus aposentos, Janos convocou Pedro e Jaime para mais uma reunião, desta vez para esclarecer os motivos que levaram o general a convocá-lo naquela noite.
— E então? — perguntou Pedro sobre o ocorrido no gabinete do general.
— Não deu para saber exatamente o que ele queria — disse Janos tirando penosamente o guarda-pó e atirando-o displicente¬mente sobre a mesa.
— Como assim? — interveio Jaime. — Ele não falou nada?
— Acho que ele queria me sondar para saber exatamente como estou em relação a vocês ou até onde poderíamos confiar no nosso projeto — disse Janos sentando-se na cama e afrouxando o nó da gravata.
— Como assim? — insistiu Jaime.
— Eu não sou bom nisso mas acho que ele quer me con¬fiar algo e teme que eu repasse as informações para vocês.
— Então ele ainda não confia em nós depois de tanto tempo? — perguntou Pedro com certo pesar.
— Creio que é mais ou menos isso — confirmou Janos.
— Eu quero que ele se foda — disse Jaime balançando os ombros. — Também não confio nele.
E, emendando rapidamente, disse:
— Se ele confiasse plenamente em nós não colocaria essas merdas de escuta para espionar-nos. Ele não confia em ninguém e isso inclui você também, Janos.
— Receio que você esteja certo, Jaime. Mas na posição dele é muito difícil confiar em alguém sem correr riscos. Ele tem muito a perder se errar no seu julgamento.
— E nós? Também não temos? — perguntou Pedro abrindo a geladeira e pegando algo para comer.
— Sim — respondeu Janos. — Mas temos o nosso intelecto para subsistir. Ele, só a posição. Convenhamos, amigos, estamos em vantagem.
Semanas depois Jaime decidiu agir.
As poucas opções que tinha no uso do supercomputador para agilizar os trabalhos passaram a ser um fator impedi¬tivo para os primeiros testes. Tudo que deveria criar em termos de hardware tinha sido feito e reprogramar todas as suas necessidades estava fora dos seus planos. Já havia consultado, sem que Janos viesse a saber, os arquivos secretos da máquina e sabia como copiá-los para uso nas unidades que criara. Não tencionava tornar pública as suas intenções e, por isso, deveria ser o mais discreto possível quando resolvesse realmente copiar os programas que necessitava e adaptá-los aos circuitos que projetara. Além de tudo os instintos que tanto colaboraram para o descrédito do seu caráter começavam a falar mais alto. Era o gosto pela aventura, pelo perigo e, por que não dizer, pelo desafio às regras.
Primeiro, era preciso ludibriar as escutas, e, para isso, já tinha um plano definido. Depois, e o pior, era justificar seu ato perante a Ja¬nos, já que prometera não transgredir nenhuma norma do laboratório. Demorou-se um pouco mais nesse último pensamento e, num muxoxo, disse para si: “Que se danem todos. Vou fazer aquilo que julgo ser o correto queiram eles ou não”.
Dias depois o general é chamado na sala de escuta.
— Qual é a novidade, major?
— O senhor tinha razão quando disse que o careca era ardiloso.
— O que ele fez? — perguntou o general olhando para a tela que mostrava a figura impassível de Jaime frente à sua tela.
— Estive repassando o vídeo que mostra a fase de montagem da unidade que eles chamam de maqver e percebi que fora enxertada com placas inutilizadas e curtocircuitadas proposita¬damente para incendiar. Vi depois na gravação que ele mentiu ao dizer a causa daquele incidente.
— Então ele quis me pregar uma peça — concluiu o ge¬neral olhando para o major e para a tela.
— Não foi só isso, general. Ele efetuou diversas conexões no computador central, como se quisesse sugá-lo.
— Como assim?
— Ele está precisando aumentar a capacidade de proces¬samento das suas unidades. Estamos monitorando os terminais do computador central e houve uma pequena sobrecarga, significando que algo foi pendurando em algum circuito.
— Não poderia ser aquelas ligações a que você se refe¬riu? — perguntou o general sem entender onde seu auxiliar queria chegar.
— Não, general. As ligações que ele fez, até certo ponto, são lícitas, são acoplagens necessárias. O que estou estranhando é a exatidão dos somatórios de carga.
— Merda, major! — irritou-se o general com tantos detalhes técnicos. — Por que você não fala logo o que está pensando ao invés de tentar me demonstrar competência?
— Desculpe, general — disse o major sentindo-se ruborizar pela admoestação perante os demais subalternos. — Mas temo dar alguma informação errada que...
— Então vamos fazer um acordo — disse o general afastando-se da mesa do auxiliar. — Você me chama quando tiver realmente algo de concreto, algo que eu possa realmente ver e entender.
— Sim senhor — assentiu o major levantando-se sentindo o suor no corpo, apesar da baixa temperatura da sala.
Ao ver-se novamente só, diante da tela, olhou para Jaime e disse para si: “Sei que está tramando algo. É da sua personalidade. Mas eu vou te pegar...” — prometeu já imaginando-se vitorioso numa reunião de trabalho e sendo elogiado pelo general perante os outros comandantes.
Jaime continuava em frente ao monitor quando Janos e Pedro entraram, cada um dirigindo-se para seus postos de trabalho. Apenas acompanhou-os com o olhar mexendo distraidamente num pequeno pedaço de fio cortado sobre a mesa. Pedro quase ia ligando a sua unidade mas deteve-se.
— Posso ligar isso? — perguntou com o dedo sobre o botão mas sem pressioná-lo.
Da sua sala, através da tela do seu monitor, o major respondeu em voz alta atraindo para si os olhares curiosos dos seus subalternos:
— Claro que pode, seu babaca.
— Já está funcionando — respondeu Jaime olhando para a parte inferior da maqver levemente maculada pela fumaça.
Pedro ligou então a unidade e iniciou seu trabalho, lamentando fisionomicamente a lentidão do processamento.
Jaime depreendeu daquela impaciência a necessidade urgente de otimizar o sistema. Virou-se depois em direção a Ja¬nos, que praticamente não precisava de nenhum auxílio do computador na sua tarefa, já que o seu cérebro privilegiado permitia-lhe processar mentalmente o resultado das suas complexas equações.
O major, enquanto isso, continuava as suas observações.
— Vamos almoçar, senhor? — perguntou um oficial da in¬teligência ao major que não abandonava a frente da tela.
— Não, tenente, obrigado. Ordene trazer o meu almoço, pois pretendo ficar por aqui.
— Sim senhor — respondeu o oficial olhando para os de¬mais e chamando-os com o olhar.
Vendo-se finalmente a sós, disse em voz alta:
— Vamos, seu filho da puta, eu sei o que você está que¬rendo. Comece logo.
Pedro sentiu a fome incomodar e resolveu almoçar, incentivado pela súbita interrupção que sofreu para autorizar o pessoal da engenharia entregar o periférico que encomendara.
— Gente, vou almoçar — comunicou após fazer um exame superficial na unidade entregue e liberar os homens. Depois, aproximando-se de Janos, comunicou-lhe que o periférico da maqver ficara pronto e que logo teriam condições de implementar os aplicativos preparados por Jaime. — Vamos instalá-lo naquele canto — apontou com certo orgulho. Assim, psicologicamente, o nosso trabalho fica quase concluído — disse com um leve sorriso bem humorado e passando a mão sobre o abdome.
— Preparei uma interface gráfica, Janos — disse Jaime levantando-se e atirando ao chão o pedaço de fio que teve a sua trajetória acompanhada por um reprovativo olhar de Pedro. — Fica o trabalho um pouco mais lento, mas facilita.
— Vai precisar de ajuda para instalar o periférico? — perguntou Janos levantando-se e também exami¬nando unidade.
— Não — respondeu com certo desdém tanto pela facilidade que o trabalho apresentava como pelo desejo de ficar só. — Posso desmon¬tar isso em segundos e montá-lo em seguida. Não se preo¬cupe.
— Ótimo! Então vamos almoçar — insistiu Pedro tocando levemente no braço de Janos. Como Jaime não esboçara nenhuma reação ante o convite, Pedro enfatizou com um gesto.
— Talvez mais tarde. Estou sem fome agora. — justificou soltando algumas conexões do periférico e demonstrando alguma impaciência.
— Está certo — concordou Pedro desconfiado por aquela excessiva dedicação. — Então eu trago um sanduíche. Vamos, Janos, estou faminto.
Ambos saíram.
Quase que imediatamente Jaime entrou na pequena sala destinada ao depósito de materiais e dela retirou uma montagem artesanal. O major esfregou as mãos, pois era a oportunidade que esperava para vê-lo a sós, já que terminara a montagem do principal processador da maqver.
— Que merda será essa? — perguntou-se o ao vê-lo conectar na tomada o estranho aparelho.
A última cena que viu antes da intensa interferência provocada nas imagens foi um cínico olhar, seguido de uma demoníaca gargalhada.
— Mas que filho da puta! — esbravejou o major pegando o telefone e chamando imediatamente o general, que chegou em segundos.
— Então ele sabia que estávamos espionando. É realmente muito es¬perto... —justificou o major mostrando a gravação das últimas cenas.
— Quando poderemos restaurar as imagens? — perguntou o general estalando os dedos nervosamente e tentando, de alguma forma, descobrir uma possível falha do major.
— Não sei — respondeu o subalterno sem muita esperança. — Não tenho a menor idéia de como ele desco¬briu as câmeras e os microfones... Mas creio que, enquanto aquele aparelho estiver ligado, a interferência continuará. Porém, certamente irá desligá-lo tão logo os outros dois regressem e aí então ela será restaurada.
O major deu uma pausa e o general então perguntou:
— Será que ele está aproveitando e copiando os programas que você comentou?
— Não acredito, general. A cópia dos programas é demo¬rada. Provavelmente ele destruirá o nosso grampo antes de tentar fazê-la.
— Por que é tão importante essa cópia para ele se esses programas já estão disponíveis? — perguntou o general sem entender o objetivo de tão arriscada manobra.
— Ele pretende utilizá-los nos hardwares que projetou e para isso precisa ter acesso total aos arquivos que compõem os programas para então modificá-los, de acordo com as suas necessidades. Mas quer apenas aqueles secretos que somente podem ser utilizados sob licença especial do fabri¬cante e previstos no acordo de transferência de tecnologia.
— Ele pretende violar um tratado internacional? — perguntou o general num bugalho mal acreditando naquela ousadia.
— Creio que sim — respondeu o major com uma longa expiração, temendo estar errado em sua conclusão.
— Mas não são programas selados e à prova de violações?
— Sim, general. Mas parece que para ele não existe este tipo de problema. Há em sua ficha procedimentos desta natureza com bastante freqüência. Parece que é um especialista em pirataria. Já foi inclusive preso por isso.
— Estou me lembrando de algo assim nos relatórios, major. Mas esses programas não estão ao nível de micreiros. São de altíssima categoria e à prova de qualquer violação.
— General, o simples fato de alguém tentar copiar ou penetrar nesses arquivos será interpretado como uma vio¬lação. Há uma vigilância constante sobre esses programas e qualquer tentativa nesse sentido provocará um alarme que será transmitido imediatamente ao fabricante — advertiu o major.
— Estou bem ao par disso, major. Eu mesmo assinei os protocolos de utilização da super-máquina. Só que eu não acredito que ele seja tão capaz e ousado para copiá-los e adaptá-los para uso próprio. A capacidade humana tem limites — concluiu o general colocando a mão sobre o ombro do major e saindo da sala.
— Quer que eu o chame quando for restaurada a imagem, general?
— Só se houver alguma novidade significativa — respondeu fechando a porta sem dar-se ao trabalho de olhar para trás.
Porém a imagem jamais seria restaurada. Jaime apro¬veitou-se da interferência e destruiu, com finíssimos e potentes disparos lasers, os terminais das câmeras e microfones que havia rastreado. Depois desmontou rapidamente o circuito de interferência e guardou as peças na sala, tendo o cuidado de espalhá-las pelas prateleiras. Quando Janos e Pedro chegaram encontraram um Jaime sorridente e com cara de menino traquinas que acabara de fazer alguma grande arte.
— Você não está com cara de fome — observou Pedro deixando o sanduíche e a garrafa de refrigerante sobre a sua mesa.
— É verdade — confirmou ocultando-se das vistas de Janos com aquela piscada que Pedro tanto conhecia e comuni¬cando, com gestos obscenos típicos, que destruíra as escutas e câmeras do laboratório.
Pedro disfarçou uma dúvida para dele se aproximar e perguntou baixinho:
— Que merda você andou aprontando?
Jaime lançou um olhar para onde estava Janos e, vendo-o concentrado sobre suas fórmulas, respondeu sussurrando:
— Fudí os grampos deles.
— Isso vai dar merda, Jaime — disse Pedro receoso.
— Não vai não. Só se eles admitirem que realmente es¬tavam nos espionando. Mas isso eles não farão nunca. “Né”? — disse rindo baixinho.
Pedro afastou-se de Jaime maneando a cabeça e ativou um circuito sonoro na maqver.
— Qual será seu próximo passo? — perguntou baixinho reaproximando-se.
— Se eu contar, você, provavelmente, vai mandar me internar.
— Merda, Jaime! Trabalhar com você só movido a lexotan — disse afastando-se e desligando o barulhento circuito do seu console.
À noite, após jantarem e antes de despedirem-se, Janos comentou:
Algo deve estar acontecendo. O general parecia tenso e aborrecido durante nossa entrevista.
— Vai ver é com a política. Dizem que o presidente vai renunciar por estar envolvido nas negociatas do congresso — disse Pedro olhando para Jaime com um olhar bastante sugestivo.
— Não creio — discordou Janos. — A situação dele é relativamente estável.
— Então está de amante nova e a jararaca da mulher está desconfiada — arriscou Jaime rindo e entrando em seu quarto.
Janos, antes de despedir-se de Pedro, olhou-o nos olhos e em direção ao quarto que Jaime acabara de entrar. Tornou a penetrar-lhe os olhos e depois entrou. Pedro fez um movimento de despedida com a mão e, quando Janos trancou-se no seu quarto disse para si: “Esse sacana deve estar desconfiado de alguma coisa, se já não sabe da merda que Jaime fez e não quer admitir para não ter que tomar nenhuma atitude. Duplinha filha da puta essa!”
No dia seguinte o general entrou ansioso na sala do major.
— Conseguiu restaurar as imagens?
— Não conseguiremos, general — respondeu desolado o major com um pedaço de fio na mão. — O miserável deve ter usado laser para destruir os circuitos.
E, pegando uma lupa e aproximando o pedaço de fio do general, mostrou:
— Veja, general — disse passando-lhe às mãos os objetos.
— As pontas foram queimadas — concluiu o superior voltando-se para o major e devolvendo-lhe a lupa. Guardou o pedaço de fio no bolso e disse: — Deixe este pedaço comigo.
— Sim senhor — concordou sem entender.
— Há alguma forma de continuarmos a monitorar os seus passos? — perguntou o general olhando para a tela apagada.
— Talvez sim. Pelo menos se quisermos impedir-lhe o acesso aos programas secretos do computador central.
— Você realmente acredita que ele vai tentar?
— Sim, general. Solicitei uma análise do perfil psico¬lógico dele. Todos os especialistas concordam com a sua personalidade psicótica.
— Ele está doente ou ficando demente?
— Não mais do que qualquer um de nós, general. Só que os seus limites estão além dos nossos.
E, dando uma pequena pausa, concluiu:
— É exatamente aí que está a diferença.
— Merda! — praguejou baixinho o general estalando nervosamente os dedos. — Como se eu não ti-vesse mais nada para me preocupar. O que você sugere, major?
— Podemos instalar picoamperímetros de alta precisão em alguns circuitos do computador central. Se ele tentar acessar os programas secretos ou tentar copiá-los, saberemos.
— Mas alguns projetos em andamento usam esses arquivos — disse o general achando um pouco remota a possibilidade de sucesso deste rastreamento.
— Sim, general. Mas estes possuem um cronograma defi¬nido de utilização. Basta fazermos um programa que nos alerte de qualquer acesso fora do horário e pronto.
— Simples assim?.
— Sim, meu general. E melhor. Podemos travar-lhe o console se ele estiver tentando acessar esses arquivos. Não haverá nenhuma possibilidade dele conseguir safar-se deste flagrante — afirmou o major empertigado e confiante.
— Muito bem, major. Instale então os picoamperímetros — autorizou o general dando-lhe um tapinha nas costas, redimindo-o perante os subalternos da admoestação anterior.
— Sim senhor — prontificou-se de imediato olhando sobranceiro para os demais.
6
— E então, velho amigo, como vão os trabalhos? — perguntou Lucio à chegada de Janos ao restaurante onde ti¬nham combinado o encontro.
Em teoria parece que vai bem — respondeu tirando o paletó e colocando-o nas costas da cadeira.
— Vamos almoçar primeiro e conversar depois algumas coisas im¬portantes, Janos. Mas vamos lá, fale da sua equipe. Pelo que sei são capazes de atear fogo à água mais pura — disse rindo e colocando o guardanapo sobre as coxas sem sequer olhar-lhe a cor.
— Isso é quase verdade — respondeu Janos vendo aquele gesto que nunca adotara por achá-lo totalmente idiota, já que se achava fora da idade de deixar cair a comida sobre a mesa preferindo, simplesmente, desmanchar a artística dobra e ver melhor o logotipo do restaurante.
— Parece que o general andou colocando alguns obstáculos aos nomes que você escolheu — disse o advogado após chamar o garçom num gesto sutil.
— É verdade. Mas fizemos alguns acordos e tudo ficou resolvido.
— Não precisava, Janos. Você sabe que atualmente estou muito ligado ao presidente. Bastaria que eu pedisse em seu nome para ele imediatamente atender.
— Bondade sua, Lucio.
— É verdade, Janos. O presidente é um grande admirador dos seus trabalhos. Já o vi referir-se a você como uma das maiores glórias da nossa ciência. Ele nunca lhe negaria um favor, seja qual fosse.
— E a família? — perguntou Janos desviando o assunto, avesso que era a esse tipo de assunto.
— Tudo na mesma — respondeu nostálgico. — Somente as crianças cresceram e com isso ficamos mais velhos — sorriu conformado passando as mão nos cabelos meio grisalhos. — Vamos almoçar aqui e depois passar para o outro salão a fim de conversar melhor longe deste barulho. — disse reclamando um pouco da música, alta demais para o seu refinado gosto.
— Está bem — concordou com um desvio de cabeça faci¬litando o trabalho do garçom que lhe oferecia o cardápio.
Janos e Lucio eram velhos companheiros. Suas famílias foram vizinhas e ambos cresceram juntos, separando-se mais tarde em razão das carreiras diferentes que seguiram. Mesmo durante o longo período em que morou fora, Janos correspondera-se normalmente com o companheiro deixando de fazê-lo ao entrar para o laboratório, já de volta ao país.
Almoçaram conversando trivialidades e depois foram ao lugar reservado por Lucio.
— Muito bem, senhor advogado, o que de tão importante tem para me dizer?
— O assunto é sério, Janos — respondeu com ar grave. — Estamos à beira de uma guerra civil.
— Sabe, Lucio, eu não leio muito os jornais e tampouco dou atenção aos acontecimentos político. Mas, mesmo vindo de você, custo a acredito nisso.
— Mas pode acreditar, Janos. Estamos à meio caminho de uma convulsão social sem precedentes. Nossas instituições não vão poder resistir por muito tempo este clima.
— Mas o que está acontecendo realmente? Tudo o que sei é que está havendo uma grande roubalheira. Mas você bem sabe que político para mim é sinônimo de corrupção — disse Janos tentando aceitar tal absurdo com natu¬ralidade.
Lucio abanou negativamente a cabeça discordando, como sempre fazia, quando Janos se referia aos homens públicos desta forma.
— Mas desta vez há um presidente disposto a acabar com tudo isso. Só que ele vai ter que brigar contra forças po¬derosíssimas, Janos. — disse o advogado segurando-lhe o braço.
— E os outros não o tentaram também antes?
— Qual nada! — respondeu com ênfase, bebendo de uma só vez o conteúdo do copo. — Esse homem é honesto e bem intencionado, mas está praticamente sozinho. Talvez ele represente a única oportunidade de salvarmos realmente este país, Janos.
— Você está com um discurso de candidato — observou Ja¬nos.
Lucio respirou fundo sem responder.
— Eu sou apenas um cientista, Lucio. O que eu poderia fazer para ajudá-lo?
— Queremos o seu apoio, Janos. Sua ajuda nos meios in¬telectuais seria de valor inestimável. Suas idéias atravessam fronteiras e divulgam o que de melhor há neste país. São os seus artigos que ajudam a aplacar a ira internacional quando episódios de linchamentos coletivos, incêndios criminosos em nossas florestas, assaltos e tantos outros males sem punição mancham a imagem da nossa pátria.
— Então, dentro desta óptica, já estou dando minha contribuição — disse sem entender onde ele queria chegar com tantos rodeios.
— Gostaríamos de marcar um encontro entre você e o presidente. Nada de importante vocês iriam discutir, já que, como você mesmo disse, não entende nada de política.
— Então o que faria eu lá com o presidente?
— Agendaríamos você por uma hora, o que representa um tempo extraordinariamente longo em um encontro presidencial. Na saída haveria diversos jornalistas interessados em saber do que trataram de tão importante, já que este tempo desperta¬ria, naturalmente, a curiosidade deles e as especulações dos analistas.
— E eu responderia que passamos o tempo inteiro conversando sobre física nuclear?
— Não, Janos! Porra! Você diria que conversaram sobre... sei lá... Os destinos do país e as metas que este governo oferece para o florescimento da ciência como um todo e que a sua pre¬sença em nosso meio era a prova de que confiava na atual polí¬tica em prática. Isso seria suficiente para calar a boca de uns idiotas intelectóides que estão prestando um grande desserviço num momento tão delicado da nossa história.
E, olhando para o gênio, implorou:
— Janos. Você sempre confiou em mim e sabe que sou um nacionalista, embora eu saiba que essa não seja a sua teoria. Sei que você é um partidário da internacionalização do mundo, mas isso não é para já. É só olhar para as dificuldades da unificação européia e constatar que estamos ainda muito longe daquilo que conversávamos na nossa adolescência. No momento, se su¬cumbirmos, ninguém virá em nosso socorro. Muito pelo contrá¬rio...
— Você sabe que mentir é totalmente fora do meu comportamento — ponderou Janos.
Lucio passou as mãos nos cabelos conformado com este último argumento que sempre respeitou e admirou. Por isso não mais insistiu.
— Está certo, Janos. Desculpe.
Após um certo silêncio Janos retomou o diálogo.
— Você realmente confia neste homem? — perguntou olhando nos seus olhos.
— Confio nas suas intenções, mas não sei até que ponto poderá se agüentar no governo. Se ele cair cairá uma grande oportunidade, talvez a única em tantos anos, de me¬lhorarmos realmente esta nação.
— Eu confio em você, Lucio. Pode marcar o encontro.
Dias após, à noite, Jaime sentia-se absoluto. Pedro viajara com Janos para a capital e não voltariam antes do dia se¬guinte. O feriado dava uma atmosfera de liberdade que há muito não via. Quase ninguém estava no laboratório. Poderia arriscar algumas incursões pelas chamadas "zonas proibidas", o que lhe dava plena emoção.
Munido de um cartão magnético, totalmente adulterado, foi direto para a sala onde estava instalado o colossal computador central. Entrou sem nenhuma dificuldade e parou em frente ao complexo, próximo à casa de força responsável pela sua alimentação elétrica, e ficou por alguns instantes observando... maravilhado.
“Caramba!” — disse para si. — Isso deve ter mais ar¬madilhas que zona de caça.
Olhou para cima e para os lados tentando identi¬ficar alguma câmera escondida que viesse a denunciar a sua presença e tirou algumas pequenas peças dos bolsos. Rapidamente montou um rastreador e, com um grande alívio, verificou que não havia nenhuma. Tirou o jocoso disfarce que lhe cobria o rosto e saiu novamente, voltando para o laboratório e pegando outros instrumentos. Voltou à sala do colosso e abriu algumas tampas, examinando e anotando a posição de diversas placas. Depois fotografou-as minuciosamente. Em seguida, entrou na casa de força e provocou uma pane no sistema elétrico aproveitando este tempo para aco¬plar minúsculos chips em algumas unidades que escolhera. Satisfeito, saiu e voltou para o laboratório, vangloriando-se do feito.
— Eles não sabem com quem se meteram — disse rindo e ouvindo a turma de manutenção teorizando sobre o ocorrido, após recolocar os circuitos para funcionar.
— Mande-me um minucioso relatório — exigiu o major ao chefe da manutenção. Depois foi até o responsável pela segurança e perguntou:
— Alguém pode ter penetrado na sala do computador?
— Não, major. Se alguma porta fosse aberta sem a utilização das chaves magnéticas o nosso alarme soaria.
— Qual a possibilidade de falha neste sistema? — in¬sistiu.
— É um sistema à prova de falhas, major. Veio com o equipamento.
— Então, se alguém conseguir violar este sistema será capaz de fazer o mesmo com o computador. Estou certo?
— Teoricamente sim, major. Mas ninguém até hoje foi capaz disso.
— E quantas vezes tentaram?
— Não sei. Mas no treinamento que tivemos houve várias simulações e nenhuma delas obteve sucesso.
— Quem tentou?
— Major — disse por fim, irritado, o chefe da segu¬rança —, se alguém penetrou na zona proibida a responsabi¬lidade só poderá ser-nos imputada em casos de negligência, o que efetivamente não ocorreu. Dentro de algumas horas vou enviar-lhe uma cópia do relatório que devo preparar para a sede narrando que um dos sistemas de acoplagem de rede en¬trou em pane durante alguns minutos. Direi também que não foi constatada nenhuma invasão em área proibida, tudo de acordo com as leituras do sistema de segurança fornecido com o equipamento. E isso é tudo.
— Dispensado — disse o major ao chefe da segurança e afastando-se com rancor.
Este, virando-se para o auxiliar ao seu lado, disse:
— O idiota deve pensar que eu sou algum subor¬dinado. Dispensado... — repetiu com desdém imitando o mi¬litar.
O auxiliar riu-se, sabendo da aversão que o chefe tinha pelos militares.
— Deixe-o delirar um pouco, chefe. Ele até que se esforça...
— Vamos preparar o maldito do relatório, Paulo. Vá até a oficina e pegue o ferramental, pois vamos ter que retirar as bobinas para análise. Enquanto isso vou até o escritório e pegar a documentação para entrarmos no sistema e ver se esta pane danificou algum arquivo.
Encontraram-se depois na sala do colosso e sequer desconfiaram que os lacres tinham sido violados. Abriram as tampas dos circuitos e inseriram os terminais para acoplagem do console de provas, iniciando os testes. Iniciados os protocolos, Paulo notou certas discrepâncias em alguns valores, não valorizados pelo Chefe.
— Não vá você querer que esses números sejam exatamente coincidentes, Paulo. Procure levar em consideração a resistência adquirida em função do tempo de instalação, da umidade e de outros transientes não presentes nas pranchetas dos engenheiros à época do projeto...
Paulo confrontou os dados obtidos na última manutenção e viu que apenas alguns valores estavam alterados, enquanto outros — exatamente onde Jaime não violara — permaneceram exatamente os mesmos.
— Veja bem, chefe — mostrou os números que ainda não conseguira compreender.
— Merda, Paulo! — resmungou mal olhando as tabelas mostradas pelo auxiliar. — Verifique se estão ainda dentro dos limites de tolerância; se estiverem, não há com que se preocupar. Você está se parecendo com o neurótico do major. — observou ao fim.
Recebida esta instrução, Paulo comparou os dados da tabela que montara com os valores originais e concluiu que as suas preocupações realmente não procediam. Fechou os documentos e guardou-os cuidadosamente nas suas embalagens protetoras e foi ajudar o chefe na finalização do trabalho não mais voltando a falar sobre o assunto.
O encontro com o presidente teve o efeito desejado. Janos tinha sido extremamente cortês com o chefe do governo e bastante conciso na coletiva com os jornalistas.
— Fico te devendo essa — disse Lucio agradecido. — Mas o que mais impressionou o presidente foram os gráficos que Pedro preparou para ilustrar... como é mesmo o nome daquilo? — perguntou virando-se para Pedro que já pensava no almoço prometido.
— Análise tridimensional de um ponto — respondeu ao advogado que nem sequer tinha idéia do que se tra¬tava.
— Entendo... — assentiu com o ar vago.
E, mudando rapidamente de assunto, sugeriu:
— Vamos almoçar. Há um restaurante fantástico na outra quadra.
— Agora sim você disse algo de agradável — parabeni¬zou Pedro com o apetite exacerbado.
Almoçaram alegremente com a sensação de que todos os problemas tinham sido resolvidos. Ao final, Lucio voltou a agradecer.
— Muito obrigado, gente. Vocês foram ótimos. Além de elevarem o astral do presidente colocaram muita genti¬nha nos seus devidos lugares.
Pedro fez um movimento de boca enquanto Janos, pouco afeito à esse elogios, pareceu desconfortável. Despediram-se no aeroporto onde uma aeronave militar os aguardava e embarcaram de volta ao laboratório.
Quase chegando ao aeroporto de destino Pedro pergun¬tou:
— Janos, será que o general sabe que fomos ao encontro do presidente?
— Oficialmente sim. Pelo menos Lucio me disse que um documento foi feito neste sentido — respondeu sem dar o menor valor àquele fato.
— E será que o general recebeu?
Janos respirou fundo soltando a revista que apenas o distraía e respondeu:
— O que está me preocupando de verdade é a otimização do sistema. Jaime tem um problema praticamente insuperável. Ele tinha razão quando disse que no computador não havia recurso lógico suficiente nas operações mais complexas, daí sua necessidade de novos software.
— Já que você tocou nesse ponto, eu também estou encontrando dificuldades — concordou Pedro — Por que você não fala com o general?
— Não iria adiantar muito, Pedro. Ele está amarrado aos diversos protocolos de utilização da máquina. Não se trata da faculdade de permitir, mas de uma obri¬gação a cumprir. Vamos ter que encontrar outra solução a não ser que Jaime faça algum mila¬gre.
— Ou mais uma das suas... — acrescentou Pedro com um sorriso magano.
O major não conseguia acreditar que a pane fora uma casualidade, apesar de ver endossado pelos técnicos de manutenção o relatório do chefe da segurança.
“Mas se o patife foi capaz de fazer isso, por que a abertura da porta não consta dos registros?” — perguntou-se momentos antes de entrevistar-se com o general.
— Acho que você está ficando obcecado por este caso, major. Penso mesmo que isto é para você uma espécie de desafio — observou o general ao tomar conhecimento do ocorrido e das ponderações do subalterno. — Também não posso autorizá-lo a desmontar as placas do com¬putador para examiná-las, conforme você está pretendendo. Não há nenhum sinal de violação mas somente para você não pensar que eu pouco me importo com essa possibilidade, vou colocar, junto ao fax que estou enviando aos fabricantes, as suas ponderações.
E, antes que o major pudesse externar qualquer agrade¬cimento, o general concluiu:
— Naturalmente, vou omitir certas particularidades desnecessárias — disse levantando os olhos em direção ao major que continuava de pé. — Você entende perfeitamente não é?
— Claro... Claro, senhor.
O general virou-se depois para o lado e pegou o tele¬fone, numa clara alusão de que terminara sua entrevista com o subordinado mas sem querer dispensá-lo explici¬tamente. O major compreendeu e saiu.
“Eu ainda vou pegar aquele filho-da-mãe e quando o fizer ele vai ter que me tratar com mais respeito” — disse fechando a porta ao sair do gabinete.
O major já estava ficando cansado e irritado com o tratamento que normalmente o general lhe dispensava.
Enquanto isso Jaime examinava atentamente os negativos das fotos, na esperança de descobrir algum caminho mais fá¬cil que o levasse aos programas desejado. Passou-os no scan¬ner para gravá-los em seu computador e deu-lhes senhas secretas, evitando assim sua leitura por qualquer outro usuário. Com efeito, depois de horas de análises, a combinação dos circuitos deu-lhe pistas seguras dos possíveis caminhos para alcançar os arquivos secretos que tanto necessitava copiar. Precisava agora de umas confirmações, o que poderiam ser dadas pelos micro chips instalados. Energizou-os atra¬vés da simulação de programas comuns e, pouco a pouco, seu computador foi decifrando os acessos.
Jaime estava trêmulo de emoção e constantemente passava a mão na cabeça calva à medida que sua tela completava mais uma seqüência. Preparou com imenso carinho dois disquetes e inseriu o primeiro no drive correspondente copiando todo o arquivo decifrado. Repetiu a operação para gerar uma cópia de segurança e, por fim, após certificar-se da qualidade dos dados nos dis¬quetes, apagou-os do disco rígido.
— Puta que pariu! — disse em voz alta quase completa¬mente suado pela emoção ao guardar seus preciosos arquivos. Saiu para caminhar ao ar livre, conforme fazia quando queria pensar e, por uma grande ironia, cruzou com o major na en¬trada do prédio.
Pela primeira vez o major viu, pessoalmente, a quem tanto perseguia. Jaime mal notou-lhe a presença.
À noite, junto com Janos e Pedro, jantou alegremente ouvindo os acontecimentos da capital.
No dia seguinte o incansável major recebe o relatório de acesso solicitado ao birrento chefe da segurança.
— Aqui estão os dados do gravador magnético, major — disse o tenente passando às mãos do superior uma bobina de papel assim que o viu sair do café da manhã.
— Obrigado, tenente. O chefe da segurança estranhou este pedido? — perguntou batendo distraidamente o rolo vá¬rias vezes na palma da mão.
— A princípio sim. Mas quando falei que era para o senhor ele fez uma cara feia e não perguntou mais nada.
— Já tomou o seu desjejum? — perguntou o major ten¬tando ser atencioso mas com o pensamento totalmente voltado para o que pretendia fazer.
— Ainda não, senhor.
— Então vou descer e esperá-lo na sala — disse apressado e ansioso para abrir aquela bobina.
Mal chegando em seu gabinete e retirando o elástico que envolvia a bobina desenrolou o papel sobre a sua mesa e observou cuidadosamente aqueles traçados, que muito lembravam um eletroencefalograma.
Ficou assim debruçado sobre esses gráficos durante toda a manhã, anotando e marcando cada evento até que levantou a cabeça e hiper-extendeu o pescoço, fechando os olhos num gesto que lhe pareceu aliviar as dores geradas pelo longo tempo em que ficou numa só posição. Depois sentou-se ao seu computador e alimentou-o com alguns dados, mantendo as mãos nervosamente cerradas. Aguardou mais alguns instantes lamentando a lentidão da máquina e, segundos depois, o resultado daquele processamento provocando-lhe um grande êxtase.
“O filho da puta pensa que é muito esperto...” — disse baixinho interpretando preliminarmente os dados.
— Tenente, se alguém perguntar por mim diga que estou na sala do general.
— Perdão, major, mas não me lembro de tê-lo agendado — disse o oficial que normalmente se encarregava daqueles pormenores tentando ser sutil com o superior.
— Não é necessário. Ligue para ele e diga-lhe apenas que é muito importante — disse saindo apressadamente com a bobina mal enrolada nas mãos.
— Espero que seja algo de muito importante mesmo, major — disse o general ao vê-lo entrar quase sem bater na porta.
— Desculpe, general, mas desta vez tenho provas conclu¬sivas de que houve invasão na área de segurança com uma possí¬vel violação aos circuitos do computador central — justificou retirando os documentos e demais objetos de cima da mesa de reuniões sem a menor cerimônia.
— Merda, major! Cuidado com isso — disse num desabafo ao vê-lo afastar displicentemente um determinado objeto que nem era de muito valor.
— Desculpe, general — disse o major mal olhando para a peça metálica.
— Que diabo é isso? — perguntou o general ao ver aquela bobina ser desenrolada à sua frente.
— É a prova que eu tanto queria, general. Veja! — disse apontando para um grupo de linhas em canais separados.
— Um momento — disse meio irritado o general pegando os óculos.
— Isso o que? — perguntou novamente aproximando-se já com os óculos no rosto.
— Esses gráficos mostram atividades em diversos pontos na segurança do computador. Essa linha aqui — disse apontando para uma que se mantinha praticamente reta —, é a atividade na porta principal onde estão a casa de força e o complexo central. Veja, general — disse apontando mais para frente —, essas variações correspondem à uma abertura nesta data. Veja agora o calendário de manutenção.
— Deixa-me ver — disse o general aproximando a es¬cala do rosto e comparando com as datas no gráfico.
— Agora veja, general — disse o major apontando quase para o final da bobina assumindo a postura de um grande descobridor. — Aqui também! — repetiu apontando para outra linha.
— É verdade — finalmente concordou dando grande satisfação ao esforçado subalterno. — Aqui estão duas entradas não previstas no calendário e mais um acesso à casa de força. Não é isso, major?
— Perfeitamente, general — respondeu meio frustrado por não ter, ele mesmo, percebido o acesso à casa de força, inferido pelo superior.
— Você acha que foi o Jaime? — perguntou retirando os óculos.
— Infelizmente, general, sou obrigado a admitir que ele é o único com competência e coragem para tal — respondeu com uma ponta de inveja percebida pelo general.
— Como poderemos provar a autoria desta invasão? — per¬guntou o general torcendo para que qualquer indício incidisse so¬bre o nefário escalvado.
— Ainda não podemos, general. Mas é certo que esta in¬cursão foi apenas preparatória. O principal ainda está por vir — disse o major enrolando o papel ainda pleno da sua emoção.
— Seja mais claro, major — pediu o general irritado com o hábito que o subalterno tinha em deixá-lo sem elementos para pensar, o que lhe dava sempre a dianteira do diálogo.
— Creio, general, que ele está se preparando para co¬piar alguns arquivos secretos e depois instal...
— Major... — interrompeu o general dando uma gargalhada irritada. — Uma coisa é penetrar fisicamente em uma sala. Outra, bem diferente, é controlar um processador sofisticadíssimo. Acho que ele está perdido quanto à estru¬turação dos seus circuitos e está querendo alguma inspi¬ração. Pirataria industrial...
E, concluindo e tentando ser compreensivo com aquele esforço demonstrado, deu-lhe um tapinha nas costas e ofereceu-lhe uma bebida.
O major sentiu-se recompensado e aceitou.
— Muito obrigado, general. Mas não vou me descuidar dele.
— Faça isso, major.
Enquanto isso, o trabalho no laboratório parecia entrar em um grande compasso de espera.
— Desligue rápido! — apavorou-se Jaime ao ver a fu¬maça sob a carenagem da maqver.
Janos desligou a unidade e abaixou-se tentando ver de onde o circuito incendiava.
— Não há necessidade, Pedro — disse Jaime ao vê-lo com o extintor.
Pedro recolocou o cilindro vermelho de volta na parede e procurou na face de Jaime algo que pudesse identificar como mais uma das suas. Mas ele parecia realmente preocu¬pado.
— Essa merda de refugo não suportou a corrente — disse após retirar a tampa traseira da maqver. — Bem percebi que esta merdinha são suportaria — repetiu após retirar uma placa semi-carbonizada, soprando-a em seguir.
— Então não podemos continuar os testes de compatibilidade — lamentou Pedro passando a mão instintivamente no volumoso abdome e olhando para o relógio.
— Já pensando em comer não é, negão? Qualquer motivo é motivo —Observou Jaime atirando o circuito defeituoso em direção à lixeira e errando o alvo.
— Tem outra sugestão que não seja a de ficar olhando para a sua cara feia enquanto prepara outro gatilho? — perguntou Pedro aproximando-se de Janos.
Jaime não respondeu. Entrou na sala de depósito en¬quanto Pedro e Janos saíam.
— Não voltaremos à tarde — comunicou Janos pegando algumas anotações que pretendia conferir junto com Pedro, na biblioteca.
Jaime substituiu alguns elementos na maqver e restaurou o seu funcionamento. Colocou depois uma placa no simulador e ligou o osciloscópio em seguir, consultando o grosso volume contendo os esquemas da unidade maqver que ele mesmo pre¬parou e abriu na página correspondente àquele circuito. Fez alguns ajustes de sensibilidade e ficou observando a resposta da tela enquanto variava a posição dos potenciôme-tros. De repente, numa daquelas viagens que normalmente se faz aos confins da mente quando se está concentrado em algo, Jaime deixou de ver a tela do osciloscópio e, mentalmente, viu outra.
"Agora faz sentido"— disse para si ao lembrar-se da conversa que presenciara entre os técnicos ao comentarem sobre o pedido do major. "Então o filho da puta do tal major deve ter lido os gráficos magnéticos e descoberto que a porta foi violada". — continuava no solilóquio enquanto segurava o queixo. "Já que até agora não deu nenhuma merda, deve estar somente esperando algum movimento para então me pegar".
Voltou sua mente à tela do osciloscópio e continuou testar a placa sem, no entanto, conseguir esquecer a conclusão que acabara de chegar. Fechou a tampa da maqver e continuou sozinho os testes de compatibilidade que muito dependiam do suporte lógico pretendido. A longa espera exigida após cada validação de funçâo, foi decisiva. Desligou todo o equipamento e voltou imediatamente para a tela do seu computador. Acessou alguns arquivos secretos que já tinha podido captar e colocou os gráficos magnéticos em sua tela. Foi direto à data que penetrara na sala do computador e, igualmente ao major, notou as variações da freqüência que denunciaram suas violações. "Quase que eu me fodo por causa de vocês, suas putinhas" — disse ao ver a clareza das informações. " O tal major não é trouxa e deve ter mandado instalar algum detetor de acesso, algo que não interfira com os programas. Eu, pelo menos, teria feito isso". — pensou com os olhos literalmente grudados na tela. "Se foi algum elemento físico, deverá ter alguma influência sobre a impedância do circuito, por menor que seja. Se for, vou descobrir agora." Interrompeu o raciocínio ao ver a presença do general entrando no laboratório junto a outro oficial que lhe pareceu familiar, embora não o reconhecesse de imediato.
— Onde estão os demais? — perguntou o general olhando para os lados, mas sem a preocupação em cumprimentá-lo.
Rapidamente, com gestos dignos de um prestidigitador, Jaime substituiu a vista do monitor do seu computador e recolocou o osciloscópio em funcionamento, simulando investigar uma das peças substituídas que ainda estavam sobre a mesa.
— Foram almoçar — respondeu quase sem interromper o "trabalho".
— Conhece o major Lisâneas? — perguntou o general in¬troduzindo o major na conversa.
— Infelizmente não — respondeu num tom irônico olhando firmemente nos seus olhos, tentando captar-lhe o próximo passo.
— Muito prazer, doutor Jaime. Já ouvi muito à seu res¬peito — disse o major tentando ser agradável aproximando-se e perscrutando o laboratório.
— Está muito diferente — disse o general elogiando a apresentação atual do recinto chamando a atenção de Jaime, enquanto o major vistoriava as paredes na tentativa de ver o que teria causado a pane nas escutas.
Jaime bem o percebeu.
— Como estão os trabalhos, Jaime? Alguma dificuldade que possamos solucionar? — perguntou o general passando as mãos sobre o painel da maqver e ostentando ar de aprovação.
— Criação exige paciência, general.
— Sim, eu sei. Mas quero saber até onde podemos cola¬borar para minimizar seus problemas? — perguntou novamente aproximando-se e olhando para a tela do osciloscópio.
Jaime teve um ímpeto em responder que melhor ajudariam se o deixasse trabalhar em paz. Porém, preferiu uma saída mais política:
— Prefiro que Janos decida — respondeu tornando a olhar para o major que, ostensivamente, continuava a exa¬minar o laboratório.
— Muito bem — disse o general após lançar um rápido olhar para o major. Este devolveu-lhe com um sinal de cabeça indicando que terminara a inspeção. — Então já vamos — disse nova¬mente voltando-se para Jaime. Diga à Janos que estivemos aqui e que me procure se achar conveniente.
— Sim senhor — voltou a ironizar. Depois, virando-se para o outro militar com frustrado aspecto, perguntou: — Achou algo de interessante, major?
— O que o senhor acha que eu estou procurando, doutor?
— Não sei. Mas creio que por aqui não há nada que possa desper¬tar a sua atenção. Certo?
— Vamos major — chamou o general ao perceber que ele não teria perspicácia para duelar dialeticamente com Jaime.
A porta se fechou e o general não perdeu tempo:
— Não seja idiota — disse logo ao saírem do la¬boratório com o seu conhecido mau humor. Precisava ser tão ostensivo assim?
— Foi proposital, general. Agora mesmo é que ele vai tentar de qualquer maneira. Conheço o tipo. É daqueles que gostam de desafios.
— Mas ele pode desistir aproveitando que Janos está em alta com o governo. Você acha que ele poria tudo à perder? Não leu nos jornais?
— Sim, mas se fosse uma pessoa como nós. Ele é um criminoso disfarçado que está na iminência de cometer o seu crime. E nada irá detê-lo, general.
— Não estou tão certo assim, a não ser que ele seja realmente um louco.
— Não se trata de loucura, general. Trata-se de um niilista.
— Você e sua doutrina de merda, major...
Vendo-se novamente a sós Jaime teve o elance de copiar os programas secretos que tanto precisava, porém a lembrança do major ini¬bindo-o totalmente.
"Então finalmente nos conhecemos, major" — pensou com o dedo indicador prensado aos dentes. "Você está aborrecido porque eu destruí as suas escutas e veio tentar descobrir como fui capaz de fazê-lo. Sabe que eu vou tentar copiar os programas de qualquer maneira e, por certo, já preparou as suas armadilhas. Vai tentar me pegar. É bem provável que a minha cabeça valha-lhe até alguns cocozinhos a mais sobre os om¬bros".
Voltando-se para diante da sua tela religou o programa em execução e viu novamente os gráficos magnéticos. "O fi¬lho da puta quase me pegou nessa" — pensou tamborilando sobre a mesa.
Concentrou-se com os olhos cerrados por alguns minutos e, como se estivesse em contato com alguma outra mente, iniciou uma digitação ruidosa e nervosa. Manteve-se neste ritmo de trabalho por quase uma hora e terminou-o com uma profunda inspiração. Seu rosto estava completamente suado, apesar do frio rei
nante no laboratório. Revisou depois tudo que programara corrigindo alguns erros de sintaxe e, mais calmo, fez ainda uma última correção.
“É isso mesmo!” — disse em voz alta como num desabafo.
Jaime acabara de preparar um programa em disquete que, além de si¬mular o acesso aos arquivos secretos, poderia também desco¬brir de que tipo e onde estariam as possíveis armadilhas preparadas pelo major. Copiou o programa para outro disquete e colocou nele atributos especiais, impossibilitando-lhe a leitura pela falsa mensagem de "trilhas danificadas". Colocou para rodar o programa e ficou aguardando pelo resultado, que veio na forma de tabelas e caracteres ininteligíveis que somente tinham sentido para ele. Copiou todas essas informações em outro disquete e passou-as pelo desencriptador que preparara. Mais algumas horas de análises e tinha em mãos a ferramenta de que tanto necessitava para levar a termo o que mais pretendia e não titubeou.
"Isso vai dar merda" — pensou num humor sarcástico prevendo a reação do major e de todos os implicados na segurança do supercomputador. Deu as últimas instruções à sua máquina e beijou o dedo médio antes dele tocar a tecla "enter", que daria início ao processo de cópia. "Fodam-se" — disse sorrindo segundos antes de comandar as instruções.
O major não havia tirado os olhos da sua tela, pois sa¬bia que Jaime tentaria o acesso o quanto antes. Havia visto o tom de desafio no seu olhar predador mas es¬tava confiante em sua estratégia: os picoamperímetros seriam capazes de fornecer imediatamente as informações sobre qualquer tentativa de leitura fora do cronograma preestabelecido. Sabia tam¬bém que não somente a leitura dos programas interessava ao projeto, mas uma cópia para as adaptações que fatalmente seriam introduzidas.
Jaime, por sua vez, esfregava as mãos suadas enquanto seus olhos fi¬xavam o cursor da tela ainda nua.
"Vamos lá, seu demônio, comece a guerra" — torcia o major excitado com a possibilidade do confronto.
— ACESSO LIBERADO!!! INICIANDO LEITURA.
Jaime engoliu à seco e deu um sorriso nervoso por mais uma vitória.
"O miserável conseguiu vencer o bloqueio! Agora quero ver a cara daqueles idiotas que dizem ser este um sistema in¬violável" — riu-se o major enquanto aguardava seu programa travar a tela do computador de Jaime, consignando assim o flagrante.
— MAL FUNCIONAMENTO??? SISTEMAS INOPERANTES!!!
— É agora que eu te pego, miserável. Quero ver a sua cara explicando ao general como os programas secretos foram parar em sua tela — disse o major em voz alta ao seu atô¬nito subordinado saindo apressadamente em seguir.
— General, general — gritou o major invadindo a sala do superior.
— Mas que diabo está acontecendo com você, major? — perguntou irritado com aquela invasão e desculpando-se com os outros oficiais presentes.
— Eu o peguei, general! Ele mordeu a isca!
— Como?
— Veja a sua tela, general! — ordenou o major apontando para o periférico.
— Não é possível! — disse sem acreditar que o sistema infalível estivesse fora do ar.
— Eu coloquei esta mensagem, general. Faz parte do programa de bloqueio para pegar o miserável.
— Então funcionou? — perguntou o general abrindo um largo sorriso.
— Sim, meu general... sim — respondeu com os punhos cerrados.
— E o que vamos fazer agora?
— Vamos até ao laboratório e surpreendê-lo. Provavel¬mente seu terminal deverá estar desligado ou destruído, sob qualquer falsa alegação — disse aos risos e supondo uma fisionomia aparvalhada que Jaime deveria estar ostentando naquele momento.
— Então vamos lá — disse o general pegando o major pelo braço e sinalizando qualquer coisa para os outros oficiais presentes que permaneceram calados sem nada entender.
— Vamos primeiro pegar o chefe da segurança e o auditor para comprovarem, juntamente conosco, a violação do sistema — sugeriu o major objetivando juntar mais provas da sua competência querendo, com isso, impressionar mais ainda o superior.
— Acho que você tem razão, major — concordou o general aliviado com a autorização concedida ao subalterno para a instalação dos picoamperímetros que contrariava os protocolos assinados e o deixava em posição delicada perante os fabricantes do supercomputador.
— Mas do que vocês estão falando? — perguntou azedamente o chefe da segurança ao tomar conhecimento dos fatos. — Este equipamento foi instalado sob condições e, pelo que acabo de saber, elas foram violadas. Espero que tenham razão ou...
— Espere um momento — interferiu o general contra¬riado com a posição assumida pelo chefe da segurança. — O senhor se esquece que a autoridade neste laboratório sou eu.
— Eu também não esqueci que o senhor assinou determinados protocolos, general. Sua autoridade está limitada por acordos internacionais que....
— Quem é o senhor para me dizer o que fazer dentro...
— O que está acontecendo, senhores? — perguntou o auditor chegando ao local.
Tendo uma visão extremamente política e ponderada, ou¬viu os exasperados argumentos e apaziguou:
— É bem verdade que se trata de uma flagrante violação aos tratados — disse virando-se para o chefe da segurança. — Mas, por outro lado, temos que tentar entender a sua posição de responsável direto pela utilização da má¬quina.
— Mas se havia alguma suspeita neste sentido, então por que não fomos acionados? — contra-argumentou o chefe.
— Indiretamente, ao solicitar as bobinas do gravador magnético, já havia, o major, levantado alguma suspeita — respondeu o auditor olhando para o general que pareceu gostar da resposta.
— É bom que tenham razão, senhores — disse finalmente o chefe nem um pouco convencido da possibilidade de violação do sistema.
— Ótimo! — reagiu satisfeito o auditor dando um leve tapa nas costas do chefe.
— Então vamos até ao laboratório do dr. Janos — con¬vidou o major sentindo-se íntimo o suficiente para tocar naqueles homens e carregá-los.
O chefe, ao ouvir o nome de Janos, fez uma cara de con¬trariedade em participar daquela comitiva, tal era a sua certeza da impossibilidade do ocorrido mas, principalmente, pelo imenso respeito que devotava ao cientista. O auditor também pareceu não apreciar aquela idéia.
Chegaram à porta do laboratório.
O general olhou para o major com um olhar grave, imputando-lhe toda a responsabilidade por um possível fracasso na diligência o que seria, no mínimo, ridículo para a sua posição.
O major, pela primeira vez, sentiu o peso da responsa¬bilidade do seu ato e tremeu ao olhar para o iracundo chefe da segurança.
— Abra a porta — ordenou o general ao chefe que não ocultava a contrariedade.
— Pelo menos deveríamos anunciar-nos — disse colo¬cando o cartão magnético na fenda.
Abriram a porta e encontraram Jaime em frente à sua tela tentando destravá-la.
— Não adianta, Jaime — disse o major sentindo-se vitorioso o suficiente para esta nova intimidade. — Desta vez você se ferrou.
Ambos, ele e o general, aproximaram-se do seu perifé¬rico. O auditor deu apenas alguns tímidos passos enquanto o chefe mal afastou-se da porta.
— Senhores! — disse Jaime levantando-se sem demonstrar surpresa.
— Queremos examinar o seu computador — disse o major assumindo o seu lugar à frente do aparelho.
O auditor, ciente dos seus deveres, aproximou-se imparcialmente do major para acompanhar-lhe o trabalho.
— Digite devagar, major. Todos os comandos deverão ser anotados e assinados pelo dr. Jaime, sem o qual não terão qualquer validade — disse o auditor com certa pachorra pegando um bloco especialmente confeccionado para este fim e rubricando uma folha, passando-o depois para Jaime também rubricar.
O general posicionou-se em lugar privilegiado, bem atrás do major; enquanto o chefe insistia em manter-se à distância. "Que palhaçada" — pensou.
O major começou a digitar alguns comandos chamando, primeira¬mente, a última tela. Seu sorriso confiante, se¬guido pelo do general, não encontrava respaldo no auditor e, principalmente, na serena fisionomia de Jaime.
A tela mostrou um inocente texto técnico.
O major, já ciente de que muitas artimanhas poderiam ter sido preparadas, não se impressionou. Digitou outra série de comandos, anotada diligentemente pelo auditor e seguida com aparente displicência por Jaime. Esperou mais alguns segundos, que mais pareceram horas, até a tela mostrar a foto uma mulher nua.
— Merda! — exclamou o major socando a mesa.
— O que é isso? — perguntou o general irritando-se com aquela imagem.
— Creio que é uma mulher — respondeu Jaime com aquele ar irônico aumentando a ira ainda contida do general e pro¬vocando risos no auditor.
Uma série de infrutíferos comandos sucederam-se au¬mentando a impaciência do general e fazendo aparecer na testa do major um nervoso suor.
— Posso saber pelo menos o que está acontecendo? — perguntou Jaime com olhar cínico.
— O major acha que o computador foi violado por alguém operando este terminal — respondeu o chefe aproximando-se de Jaime num gesto de solidariedade.
Jaime deu uma ruidosa e provocadora gargalhada.
— Alguém violando o sistema mais seguro do mundo e ainda num laboratório militar? — perguntou olhando delibe¬radamente para o major que dera uma pausa para encará-lo e ver naqueles olhos a confirmação das suas suspeitas.
— Um completo absurdo, não é? — insistiu o chefe vendo a cada frustrado comando a confirmação da sua tese de inviolabilidade do sistema.
— Com todo o respeito, major — disse Jaime aproximando-se do seu ouvido —, eu sugiro que o senhor dê uma saída... — insinuou pegando o retrato da mulher nua que usara para esca¬near.
— Terminou, major? — perguntou o general esgotado na sua paciência e sentindo-se extremamente desconfortável, principalmente depois daquelas provocações.
— Dê-me alguns segundos, general — pediu quase implorando o major lim¬pando a testa já totalmente molhada.
— Tenha o tempo que quiser, contanto que passe na minha sala depois — disse o general saindo sem despedir-se de ninguém.
— Acho bom o senhor encontrar algo de concreto, major — disse o chefe da segurança indo sentar-se no console da maqver e parando em frente ao painel de controle. — Que equipamento é esse? — perguntou a Jaime que permanecia ao lado do major.
— Ainda não definimos a sua função, chefe, mas é uma espécie de decodificador de freqüência — respondeu aproximando-se da maqver.
— Precisa de algum suporte especial?
— Não. Nada que não se encontre no comércio — disse olhando para o major com um sorriso disfarçado.
Vendo a pausa mais demorada para inserir novos coman¬dos, o auditor aproximou-se do major e disse-lhe baixinho.
— Eu não sei o que lhe deu para jogar tão alto assim, rapaz, mas acho que você está em sérios apuros.
— Eu tenho certeza, senhor — disse quase aos prantos.
— Tudo bem, major. Mas agora vamos sair daqui para uma conversinha antes do seu encontro com o general. Eu garanto que será mais amistosa.
— Ele vai me ferrar no relatório — disse olhando para o chefe que continuava a conversar animadamente sobre computadores com Jaime.
— Deixa ele comigo, major — disse amigavelmente o au¬ditor colocando a mão sobre o seu ombro. — Mas vamos logo sair daqui.
— Certo — rendeu-se enfim, derrotado.
— Vamos lá, chefe — chamou o auditor tocando-lhe o braço e olhando sério para Jaime.
— Até logo — despediu-se o chefe com certo calor. O mesmo não se deu com o auditor, que apenas deu um leve aceno de cabeça ficando entre ele e o major, evitando, assim, o olhar de deboche com o qual, fatalmente, Jaime o humilharia.
— Papelão! Não é, major? — disse o chefe logo ao entrarem no elevador.
— Não é hora e nem lugar, chefe — interveio o auditor francamente favorável à atitude do major.
— Mas o que há com você? De repente resolveu proteger o major? Não são as suas infundadas suspeitas que querem insuflar a desconfiança em nosso sistema?
— Calma, chefe. O major deve ter tido um bom motivo. Vamos primeiro esgotar todas as possibilidades de ter sido um engano ou termos sido enganados. Você conhece o passado do Jaime e foi o primeiro a levantar a possibilidade de ele vir algum dia a tentar algo nesse sentido. Aconteceu.
— Aconteceu o que? Eu não vi absolutamente nada. Ora vamos lá, senhor auditor, desde quando alguns transientes magnéticos podem ser provas contundentes de invasão em um sistema inviolável? No mínimo, o major foi irresponsável e leviano em suas conclusões. Pior, ainda colocou o chefe dele na linha de frente fazendo-o passa por idiota. Você viu a cara dele na hora que saiu?
— Um momento, chefe — interferiu o major não aceitando aqueles argumentos.
— Calma..., calma. Isso não vai levar a parte alguma — apaziguou o auditor saindo logo que a porta do elevador se abriu. — Vamos até a minha sala — convidou puxando o ma¬jor pelo braço. E depois, virando-se para o chefe, pediu: — Por favor, chefe, não comece o seu relatório ainda.
Este apenas resmungou.
— Vamos lá, major, temos algumas coisas para conversar.
Jaime ao ver-se a sós novamente deixou-se cair na pol¬trona numa longa gargalhada, antevendo as agruras que o ma¬jor, por certo, estaria passando naquele momento. "O idiota sabe muito mas é apenas acadêmico. Não tem jogo de cin¬tura e nem audácia para pensar" — disse para si lembrando os comandos usados na tentativa de descobrir seu acesso ao computador central.
Enquanto isso, na sala do auditor, o major ouvia aten¬tamente a leitura de um relatório confidencial:
— Então vocês também não conseguiram pegá-lo — con¬cluiu após o término do relato.
— Exatamente, major. Não conseguimos saber ainda como esses miseráveis fazem para entrar em sistemas lacrados. Nossos analistas passam anos elaborando os mais intrincados meios de acesso, colocando alarmes e estabelecendo senhas quase impossíveis de se combinarem ao acaso, e aí vem esse calhordas....
O auditor respirou fundo e olhou complacentemente para o major.
Sei que você tem razão ao afirmar que o sistema foi violado, major, mas é quase impossível provar isto. Vou conversar com o general antes dele tentar espinafrá-lo e também acalmar o chefe. Talvez esses relatórios de acontecidos similares os convençam de que a sua atitude não foi a de um doidivanas tentando provar o impossível.
E, pegando cuidadosamente a pasta e levantando-se, disse:
— O mais difícil vai ser convencer o chefe de que a sua máquina não é à prova de Hackers.
— Mais ainda depois da animada conversa que eles tiveram. Lembra? — disse o major sentado pesadamente no sofá que parecia querer segurá-lo.
O auditor fez ainda algumas menções sobre o que lera no relatório, mas o major praticamente não se apercebeu do que ouvira. Parecia que a sua mente o estava protegendo do imenso dissabor da derrota quando a vitória era pratica¬mente certa. Não conseguia saber onde tinha errado em sua avaliação e como tinha perdido quando só tinha a ganhar. Pensou no general ao seu lado, confiante, assumindo riscos e indo de contra os principais responsáveis pela instalação do computador.
— Aquele filho da puta ainda vai me pagar — disse olhando para o auditor que preparava-se para ir ao encontro com o general.
— Esqueça isso, meu filho — aconselhou com ar paternal. — Vamos enfrentar as feras.
Jaime resolveu sair naquela noite e comemorar a grande vitória. Afinal, sabendo que toda aquela confusão se formaria e que determinados fatores de segurança seriam esquecidos nas pesquisas do major, deixou uma unidade flutuante copiando toda a programação necessária ao implemento do projeto. Sabia que os consoles travariam em um determinado estágio, mas os chips instalados nas placas durante a sua visita responderiam à altura.
Tarde da noite, estacionou o carro na placa que trazia o seu nome, em frente ao prédio do laboratório, e urinou copiosamente sobre ela. Sequer importou-se com os seguran¬ças que a tudo assistiam mas, por respeito e até por não saberem como reagir num caso tão inusitado, nada fizeram. Porém, parado à porta principal como se já estivesse espe¬rando por um longo tempo, encontrava-se major.
— Se nem com o próprio nome você tem respeito imagine com a instituição a que serve — disse aproximando-se.
— Não me lembro de tê-lo mandado ir à merda, major — respondeu guardando o membro após balançá-lo além do usual e exibindo-o propositadamente ao interlocutor.
— Você está bêbado. Deveria envergonhar-se.
— Ora, major! Se você visse as mulheres que eu vi não estaria com essa cara de babaca. Aposto que acabou de mas¬turbar-se pensando em alguma obscenidade que finge deplorar.
— Não seja ridículo! — protestou o major arrumando a farda. — Um homem na sua posição deveria policiar melhor as atitudes.
— E sair do banheiro com cara de moralista após tocar uma bronha se enquadra nesta observação. Não é?
— Você é um depravado. Não sei como a comissão permitiu a sua presença entre nós.
Jaime deu uma sonora gargalhada e afastou-se do prédio, indo em direção ao bosque que tanto gostava de caminhar.
— Major — gritou virando-se para trás. — Esses notáveis que você tanto admira não passam de uns enrustidos. Vivem na ilusão de que são deuses quando não passam de simples babacas. Eu não. Se dependessem de mim os psicanalistas já teriam morrido de fome. Eu não me escondo atrás de fachada.
O major viu nesta oportunidade uma ótima ocasião de forçar uma confissão. Lembrou-se do inseparável gravador que trazia e tocou por fora do bolso, certificando-se de que estava desligado e ligou-o. Aproximou-se de Jaime que ia à sua frente e o chamou:
— Acho que você tem mesmo razão. Veja só o meu exemplo. Arrisquei o pescoço para provar que você estava invadindo o banco de dados secretos e me estrepei. O general me disse coisas que eu nunca pensei que algum dia eu pudesse ouvir.
— Foda-se você, major. Quem mandou inventar histórias — disse jogando os ombros para frente e conservando as mãos nos bolsos enquanto caminhava.
— Mas nós sabemos que eu não inventei nada — disse aproximando-se mais para melhor documentar a conversa.
— Não seja tolo, major — disse parando e virando-se de frente para o militar.
— Vamos lá, Jaime. Confessa. Eu tenho que admitir que você é realmente um artista na arte de piratear. Não deixou nenhum rastro. Provavelmente, enquanto eu quebrava a cabeça tentando localizar para onde os arquivos foram copiados, eles estavam, na verdade, ainda em processo de cópia. Eu sei como se faz isso.
— Ora, major. Se você é tão esperto assim, então por que deixou passar a oportunidade de ouro em mostrar-se para o seu chefe?
O major deixou que Jaime se adiantasse. Realmente, a idéia de verificar a simultaneidade das cópias lhe ocorreu, mas nunca poderia esperar tamanha ousadia. "O miserável não vai admitir nunca" — pensou desligando o gravador e julgando-se ainda menos perspicaz de que pensava.
Jaime após caminhar por mais algum tempo, entrou e foi diretamente para a cama. Sentiu o corpo desfalecer e viu o quanto era frágil um homem cansado. Abriu os olhos e viu-se no meio de uma enorme avenida urbana sob um intenso sol de verão. Olhou para os lados vendo a atmosfera tremular sobre o asfalto fervente e atravessou para outra calçada, aproximando-se de uma sórdida barraquinha ladeada por uma luxuosa armação em vidro escuro e metal dourado. Parou com um estranho desejo de comer uma das mal embrulhadas balas expostas sobre a madeira podre mas não viu o ambulante responsável. Virou-se para a porta do luxuoso prédio e viu um atilado velhote acenando.
— O senhor sabe onde está o ambulante? — perguntou aliviado ao entrar e sentir a diferença de temperatura.
— Queres alguma coisa? — perguntou o ancião esfregando as mãos numa atitude típica de quem vai realizar um grande negócio.
— Apenas uma daquelas balas — apontou canhestramente para a barraca, meio constrangido pelo estranho desejo que sentia.
— Ah! Sim. Aquelas deliciosas balas... Claro!
O velho fez um sinal e, de um outro compartimento, surgiu uma lindíssima mulher trajando uma espécie de uniforme que mostrava implicitamente as partes mais generosas do seu belo corpo. Jaime pareceu não acreditar no que via, tal era o desejo que sentiu.
— O cavalheiro quer uma daquelas... balas... — disse o velhusco à mulher.
Ela saiu e pegou uma bala, trazendo-a em uma reluzente bandeja de ouro.
— Aqui está — disse com um olhar luxuriante e voz sensual inclinando-se para frente e deixando os seios quase à mostra.
— O... Obrigado — agradeceu Jaime sentindo-lhe o perfume sensual.
— Experimente! Abra logo! — ordenou o velhote vendo a mulher se afastar e sentar-se em uma poltrona no compartimento ao lado deixando, desta vez, as pernas perfeitamente à mostra.
— O que acha? — perguntou o vetusto num olhar vulpino e passando a mão no despudorado nariz.
Jaime engoliu o último resíduo da bala e respondeu:
— Tem um gosto estranho, mas é muito boa. Mas o que eu não estou entendendo.... — ia começar a falar no paradoxo da situação quando o velho interrompeu:
— Ora! — disse levantando-se e fingindo arrumar uma elegantíssima e bem decorada estante. — Não queira estragar o seu prazer.
— Mas, senhor, como que um negócio de tão pouco vulto consegue manter esta estrutura? — perguntou olhando em volta e sem deixar de avistar a mulher que escrevia sobre as pernas prazerosamente cruzadas no outro compartimento.
— Você está sendo tolo com estas perguntas, Jaime.
— Como sabe o meu nome? — perguntou surpreso.
— Detalhes sem importância — respondeu aproximando-se novamente mas com outra atitude.
Jaime sentiu-se amedrontado e quis sair.
— Bem, senhor, quanto lhe devo pela bala?
— Deixa-me ver... — respondeu pegando uma complexa calculadora e introduzindo nela uma infinidade de dados.
— Mas que merda de tanto cálculo para deduzir o preço de uma bala? — perguntou levantando-se.
— Ora, Jaime — respondeu o velho aproximando os olhos da tela da máquina e balançando a cabeça, aparentemente satisfeito com o valor encontrado —, você é uma pessoa inteligente. Como bem percebeu, vender balas somente ao preço de balas não custeariam esta estrutura. Veja todo este aparato — disse abrindo outros compartimentos igualmente luxuosos e ajeitando a gravata borboleta ridiculamente presa ao pescoço gordo.
— Está certo — concordou. — Quanto deu a "conta"?
O velho, ao dizer o absurdo valor, fez Jaime esbravejar:
— Isso é um roubo! Vocês são completamente loucos!
O velho, ao contrário, manteve-se impassível. Num gesto sutil, chamou o homem vestido num sóbrio terno escuro que repentinamente surgira de outra porta.
— Esse é o advogado da nossa empresa que gostaria de explicar-lhe o alcance de um contrato de adesão — disse apresentando o cavalheiro, por cujas expressões finas e requintadas depreender-se-ia um caro profissional.
— Não acredito! Empresa? — perguntou atônito olhando para fora e vendo ao sol a depauperada barraca.
Logo ao terminar a brilhante explanação, ricamente ilustrada com exemplos, o velho sinalizou para o causídico e agradeceu-lhe a intervenção. Sentou-se depois ao lado do estupefato cliente, após indicar-lhe a confortável poltrona que dava vista à mulher ainda sentada no outro compartimento, e falou-lhe com a fisionomia estúrdia.
— Para que tudo isso? Pensando bem, onde foi parar o seu prazer? — perguntou olhando em direção da mulher que olhou para Jaime com um lascivo morder de lábios.
— Eu não acredito que isto esteja realmente acontecendo — foi o que conseguiu dizer.
— Escute bem — disse o velho pegando um maço de papel laboriosamente escrito. — Você disse que o preço da bala foi um roubo.
— E nisso o senhor concorda, não é? — interrompeu Jaime sentindo naquelas palavras uma ligeira volta à sanidade daquele todo inusitado.
— É uma questão de ponto de vista — concordou sem entusiasmo passando a mão no roliço pescoço. — Você, quando aceitou a bala, já tinha a completa noção de que algo não estava condizente com a sua realidade. Não só a aceitou como também desfrutou do nosso conforto. Sem falar, é claro, na nossa hospitalidade. (e nessa hora olhou novamente para a mulher que parecia cada vez mais sensual e atraente, deixando à mostra praticamente toda a sua peça íntima).
— Mas lembre-se de que foi você quem me chamou — contra argumentou.
— É bem verdade — assentiu esfregando as mãos gordas uma na outra. — Convidei-o para entrar ao vê-lo aflito, no sol, ardendo em desejos... Se tudo lhe pareceu estranho como diz, então por que não saiu de imediato? Por que aceitou a bala, sabendo que lhe custaria caro?
— Mas eu não sabia o preço — defendeu-se novamente.
— Mas podia inferir pela qualidade do atendimento — disse o velho com um sorriso malicioso passando a mão no licencioso nariz.
— Esse assunto está bastante aborrecido — disse Jaime em tom de desabafo. — Eu vou embora.
— A porta está aberta — disse candidamente o velho. Mas você estará jogando fora talvez... a maior oportunidade de ser feliz.
— Do que o senhor está falando?
— Eu sei que a conta ficou um pouco fora das suas expectativas, mas não precisa pagá-la toda de uma só vez.
Jaime deu uma sonora gargalhada.
— E parcelar o pagamento de uma simples bala? Isso só pode ser a sucursal de um hospício — disse olhando em toda a volta mas detendo-se novamente na mulher, que ajeitou-se para melhor ser admirada.
— Não exatamente, se levar em conta que tudo pode acontecer no limbo da nossa mente — justificou assumindo a postura de um analista. — Como pôde perceber, a dívida não mais pesará na sua consciência ou em nossa contabilidade. Bom para os dois. Não é essa a concepção de bom negócio? Percebeu que agora podemos fazer um outro negócio?
— Que outro negócio? — perguntou colocando as mãos nos bolsos num gesto quase medular.
— Deixe a sua mente vagar... — disse o velho dando um sinal para a mulher que aproximou-se espargindo o sensual perfume pela sala.
— Algo que eu possa fazer? — perguntou com uma voz lúbrica.
— O cavalheiro gostaria de conhecer toda a nossa hospitalidade — disse o velho narigudo com aquele peculiar sorriso e sugerindo, com um piscar de olhos, que a seguisse, deixando de oferecer resistência àquele doce toque...
— Não se preocupe com o preço. Isso somente iria estragar seu prazer.
Jaime acompanhou a mulher e com ela cruzou a sala, indo parar numa espaçosa suíte. Viu ainda o advogado aproximar-se do velho pencudo e tirar da pasta uns papéis com o seu nome no cabeçário. Tentou ler alguma coisa mas a mulher empurrou a porta com a ponta do pé e começou a despir-se, colocando à mostra o exuberante corpo que Jaime não resistiu...
— Ei, cara! Vai dormir o dia todo? — perguntou Pedro sacudindo-o.
— Merda! — disse Jaime mau humorado ao ver a figura do negro à sua frente. — Eu nunca consigo...
— Consegue o que? — perguntou sem entender.
— É uma porra de sonho muito doido que costumo ter de vez em quando — disse saindo da cama ocultando a ereção com um disfarce de mão. — Mas sempre vem um puto que me acorda no melhor — concluiu indo em direção ao banheiro deixando no ar o hálito de álcool.
Pedro, conhecedor dos hábitos do companheiro, resolveu descer sozinho ao restaurante para o desjejum. Sabia, pela hora , que Janos já os estaria esperando.
— O que há com Jaime? — perguntou Janos notando a sua ausência do laboratório.
— Parece que andou bebendo novamente. Pelo bafo...
— Acabei de ler um relatório da segurança — disse Janos passando às mãos de Pedro um papel.
— Deixa-me ver — disse pegando o documento e lendo-o rapidamente.
— O que achou? — perguntou Janos esperando que ele desse alguma explicação.
— Se é o que estou pensando desista de falar com o Jaime. Ele não vai admitir nada. Nem sob tortura.
— Será que ele traiu a confiança do general?
— Janos! — exclamou Pedro num gesto patético. — Desde quando o general confiou nele ou vice-versa? Ninguém traiu ninguém.
— Eu vou conversar com ele.
— Com quem?
— Com Jaime. Quero saber dele a verdade.
— Janos — aproximou-se Pedro em tom conciliador —, seja lá o que tenha acontecido ou o que Jaime tenha feito, tenha a certeza de que foi pela causa da maqver. Apesar de safado, de não valer coisa alguma e de não se poder confiar nele, alguma dignidade profissional aquele merda tem. Ele vai adiante neste projeto custe o que custar. Essa é a sua maior qualidade e o que o distancia de qualquer vulgaridade. É um mau caráter com caráter. Deu para entender?
— Vocês parecem estar em conluio.
— Ótimo! — animou-se Pedro amassando o relatório e colo¬cando um ponto final na questão.
Horas depois Janos é convocado a comparecer na sala do general.
— Eu não sei o que houve, general — disse Janos na reunião para a qual fôra convocado juntamente com o auditor e o chefe da segurança.
— Sei disso. Mas me parece que o seu indicado está envolvido — disse o general com ar sério.
— Mas o senhor mesmo disse que não havia provas.
— É verdade. Mas o auditor me convenceu que mesmo não se podendo provar concretamente, pode-se chegar a um crimi¬noso nesta espécie de crime.
— O que eu discordo plenamente, general. Se é assim, então por que o major não está sob suspeita, já que possui os pré-requisitos básicos para cometer o crime?
— Ora, Janos! O major é homem da minha inteira con¬fiança. Sua formação é um exemplo para a academia. Ele jamais cometeria um absurdo desses.
— Deixa-me ver se eu entendi, general — disse Janos com um delicado gesto de mão. — O senhor está se colocando como um homem infalível, isto é, se confia, o detentor da sua con¬fiança passa a ocupar um lugar de honra entre os homens ho¬nestos. E aí vem a pergunta: o que o qualifica como um ser divino para operar um milagre desses? Depois vem a insti¬tuição: a Academia. Ela é, por acaso, o Olimpo por onde só passam os deuses da honestidade? Se é assim, posso dizer que con¬fio nos homens que estão comigo e concluir que, da mesma forma, também é o suficiente — disse Janos levantando-se e colocando um ponto final na questão.
— Mas, doutor Janos... — ia interferindo o auditor quando o chefe o impediu:
— Deixe-o ir. De certa forma ele tem razão. Se não há provas de nada, então por que a discussão?
— E quanto aos micro chips encontrados? — perguntou o major.
— O senhor bem os poderia ter colocado para endossar seus argumentos — disse o chefe insistindo em não acreditar que o sistema tivesse so¬frido qualquer violação.
O general, num lampejo de lucidez e sentindo que a melhor decisão deveria ser mais política, decidiu também encerrar o caso.
— Eu não quero mais me desgastar com esse caso — disse o general colocando também um ponto final na questão. — Sugiro que, somente com provas insofismáveis, voltemos a tocar neste assunto.
A reunião chegou ao fim frustrando a sua razão. Pedro, que aguardava Janos na ante-sala, atirou para o lado a re¬vista que lia sem muito interesse e correu ao seu encontro.
— E então? Como foi lá?
— Eles resolveram deixar este incidente de lado — respondeu parando no pequeno café e acendendo o cachimbo.
— Assim... sem mais nem menos? — perguntou Pedro sem entender.
— Quiseram imputar toda a responsabilidade da pane so¬bre Jaime quando o major confessou que ele mesmo tinha insta¬lado um sistema de segurança para surpreender uma suposta ação de pirataria.
— É o passado falando mais alto... — lastimou Pedro.
— Bem, vamos trabalhar — convidou Janos dando-lhe um pequeno tapa nas costas.
— É quase hora do almoço — disse Pedro olhando para o relógio.
Janos não respondeu, apenas deixou-se levar.
Voltaram do almoço e encontraram Jaime com um foco de luz à sua frente examinando algumas placas. Pedro ia alarmando-se com cheiro de queimado mas deteve-se ao ver o ferro de solda ainda ligado.
— Que diabo de instrumento é esse? — perguntou ao aproximar-se da maqver com as tampas abertas.
— É uma espécie de controle — respondeu sem tirar a placa de frente da luz.
— E vai controlar o que? — insistiu.
— É um controlador de pulsos. Como o incremento da freqüência tende a aumentar a deformidade entre as relações dos sinais transmitidos e recebidos, pode também introduzir artefatos nas imagens geradas à partir da maqver.
— Grande, Jaime! — disse afastando-se e indo em direção de Janos.
— Não consegui resolver ainda o problema da rugosidade de superfície — disse sentando-se ao seu lado.
— Aquelas equações não serviram?
— Não. Elas tratam somente de superfícies absolutamente planas e teoricamente lisas. Não é exatamente isso que vamos encontrar na prática. Tenho que desenvolver um modelo matemático capaz de tratar superfícies irregulares como se fossem um plano perfeito. Estive pensando em filtros diferenciados, mas isso faria da maqver uma máquina muito limitada.
— Alguma outra idéia?
— Ah! Sim. Isso não me falta. Se eu pudesse dispor de um processador veloz, colocaria em prática alguns algoritmos e...
— Pedro, estive pensando naquele trabalho que vimos outro dia. Lembra daquele russo?
— Sim, mas aquelas equações não se enquadravam nos meus modelos.
— É exatamente isso o que eu queria dizer. Quando você me fez este comentário, transmiti um fax para o autor solicitando alguns esclarecimentos e coloquei suas ponderações.
— E daí?
— Veio a resposta — disse pegando um envelope de dentro da gaveta.
— Mas não são essas as equações que eu examinei — disse Pedro logo ao abri-lo.
— Sim, mas ele disse que a edição contendo a errata não é a que temos. Veja este comentário — indicou o final do documento.
— Só um momentinho — disse Pedro indo até sua mesa e pegando um caderno, voltando em seguir. — Talvez possamos adaptar....
E assim passaram quase toda a tarde discutindo fórmulas, enquanto Jaime recolocava a maqver em funcionamento e inseria a nova programação nos computadores, agora com os arquivos secretos copiados do computador central e devidamente alterados para seus aplicativos.
— Já posso usar isso? — perguntou Pedro após o longo debate com Janos.
— Está prontinho — respondeu Jaime tirando com a mão a fumaça que saía da ponta do ferro de solda.
— Pedro ligou a maqver e digitou o comandos de inicialização preparando-se para outras tarefas tal era o tempo despendido até poder utilizar a máquina. Olhou para a tela e assustou-se com o que viu.
— Que merda é essa? — perguntou baixinho.
— O que foi? — perguntou Jaime que estava próximo.
— Acabei de ligar e já está pronto? — perguntou surpreso com o exíguo tempo despendido pela máquina nesse processo.
— Pequenas modificações — disse Jaime encostando a cabeça na cadeira e dando uma piscadela, sempre fora do alcance do olhar de Janos.
— Então você conseguiu não é, seu sacana?
Jaime não respondeu, mas apenas fez um sinal de silêncio e apontou para o lado de Janos.
— Qual foi a bronca que deu? — perguntou baixinho.
— Depois te conto — respondeu Pedro sem tirar os olhos de Janos.
Trabalharam madrugada adentro, aproveitando a imensa velocidade de processamento conseguida graças às modificações introduzidas por Jaime e prepararam uma série de protocolos de testes que desenvolveram a partir de então.
Seguiram-se semanas de experiências e testes.
7
O presidente continuava ainda com grandes dificuldades administrativas, devido à incessante onda de corrupção.
— Parece que este pesadelo nunca mais vai acabar — desabafou com a mulher.
— É. Mas eu tenho uma boa notícia — disse a primeira-dama com seu eterno otimismo.
— O que poderia ser uma notícia boa nesta altura dos acontecimentos?
— Ora! A nossa filha. Ela resolveu voltar a morar no país — respondeu a mulher com grande alegria.
— E deixar o seu paraíso?
— Parece que ela amadureceu ou então está receosa com as constantes agressões a estrangeiros e as ondas de terrorismo que estão ocorrendo por quase toda a Europa.
— E depois fazem passeatas pacifistas. Eu realmente não consigo entender — disse o presidente.
— Esqueça um pouco a política — reclamou a mulher. — Pense em nossa filha.
— É verdade — assentiu com uma longa e saudosa expiração. — Quantos anos que não vemos a nossa menina.
— Lembre-se de que ela não é mais uma menina — advertiu a mulher. — Não vá voltar a tratá-la como tal porque...
— Já sei..., já sei — interrompeu o presidente entendendo onde a mulher queria chegar com aquela observação.
— Só que ela não pretende morar na capital. Está preferindo ficar no nosso apartamento. Você sabe. Ela adora a praia.
— É — concordou meio decepcionado. — E quando ela vai chegar?
— No final do mês.
— Agora? — perguntou espantado com a iminente chegada da filha.
— Sim. Não é maravilho?
— É. Só que eu gostaria que fosse num outro momento político. Sinto-me um pouco envergonhado em ser o presidente numa hora destas.
— Ora, deixa de bobagem. Flávia sabe perfeitamente que não é você o responsável. Nossa filha cresceu, Daniel — enfatizou a mulher.
— Ela está mesmo com quantos?
— 30 anos — respondeu a mulher lembrando-se de quando a filha ainda era uma menina.
— O tempo passa rápido, não é? — perguntou o presidente tocando as mãos da mulher num dos raros momentos de ternura em dias tão conturbados.
Assim ficaram a relembrar o tempo passado.
— Minha responsabilidade parece que aumentou — disse após o longo passeio pelo tempo e agora lembrando a reunião ministerial que do dia seguinte.
A mulher apenas sorriu com delicadeza.
No dia seguinte, após a reunião ministerial, o presidente mandou chamar Lucio.
— Recebi o seu recado, Daniel, algum problema? — perguntou o assessor que fôra convidado para um almoço reservado.
— Sim, meu amigo. Recebi um relatório da situação e, ao que tudo indica, parece que todos vão continuar impunes.
— Eu já imaginava algo assim — disse o assessor meio conformado.
— A oposição está aproveitando e explorando os outros crimes financeiros ocorridos e que também ficaram impunes. Estão usando esse lamaçal como campanha política. É claro que eles não pretendem apurar nada e nem colocar ninguém atrás das grades. É só para confundir a opinião pública, já cansada de tantos escândalos, e me imputar acusações levianas, como se eu tivesse sido o único presidente desde o nosso descobrimento.
— Pior é o povo acreditar sem reservas nesses argumentos — lamentou o assessor.
— Não se pode condená-lo — condescendeu o presidente. — Mas o que me motivou a chamá-lo foram duas coisas: primeiro, Flávia vai retornar em definitivo.
— Mesmo? Então vai abandonar o valhacouto europeu? — interrompeu o assessor que a conhecia desde menina.
— Sim. E vai chegar no final do mês.
— São menos de quinze dias! — observou.
— Bom. Essa foi a primeira coisa; a segunda, é que eu estou mesmo determinado a qualquer preço acabar com a corrupção em todos os níveis.
— O que você quer dizer exatamente com "a qualquer preço"?
— Ontem, com Marta falando sobre Flávia, fiquei vendo um pouco de televisão. Não que eu tenha um programa em especial, mas acabei me distraindo e... enquanto falávamos.... vi uma campanha solicitar auxílio para menores carentes que mal tinham o que comer. Foram mostradas cenas comoventes, de crianças nas ruas, gente abandonada pegando no lixo o seu sustento... Foram tantas as coisas que me passaram pela cabeça...
— O que, exatamente?
— Todo esse dinheiro desviado por pura ganância, velhacaria, cupidez.... Posso até dizer que não são apenas assaltantes do dinheiro público, são também assassinos. Por desviarem dinheiro destinado à saúde, educação, moradia, saneamento básico e tantas outras necessidades primárias do nosso povo, causaram e ainda causam a morte de milhares de pessoas.
E, balançando a cabeça numa profunda negativa, continuou:
— Será que não existe nenhum meio de punir esses criminosos e de reaver esse dinheiro roubado? Será que a nossa lei vai continuar a protegê-los eternamente?
— Você sabe como eu penso, Daniel, eu...
— Foi exatamente por isso que eu o chamei, Lucio — interrompeu o presidente. — Embora eu saiba da sua formação jurídica, sei também que você não concorda com os paradoxos legais a que estamos amarrados.
— Veja bem, Daniel — disse o assessor sacudindo displicentemente o guardanapo —, existe uma diferença em não concordar com determinadas coisas e fazer outras erradas, baseado num erro. Realmente, é uma expectativa decepcionante aquela de não ver parar atrás das grades um criminoso por detalhes processuais ou por razões puramente técnicas. Eu sei disso.
— Então você pensa como eu — disse o presidente.
— Não nego que tenho muitas vezes o ímpeto de estrangular o filho da puta que, com o maior cinismo, apresenta desculpas esdrúxulas e descabidas para justificar seu ato criminoso. Eu concordo com você. Mas como ter a consciência tranqüila de não ter cometido nenhuma injustiça ao tomar certas decisões baseadas na emoção?
— Se existisse alguma maneira de se poder ter a certeza, sem passar pelo nosso lento e corruptível processo judiciário. — disse o presidente olhando firme para o assessor.
Lucio respirou fundo. Depois olhou fixamente para o presidente e perguntou:
— Daniel, até onde você pretende ir nesta cruzada?
— Até o limite do impossível... Até a fronteira da razão... Se estas lhe parecem respostas razoáveis.
— Você mandaria matar se fosse necessário?
— Eu mesmo mataria, Lucio. É muito comum emocionarmos com casos isolados ou embalados sob outros rótulos. A morte lenta imposta por esses malditos corruptos emocionam menos que um assassinato urbano. Lembra da repercussão daquele crime que culminou na morte de cinco crianças?
— E quase nem eram mais crianças, sim delinqüentes juvenis próximos da maioridade. — lembrou o assessor.
— Será que aquelas caras chorosas sabem que todos os dias morrem muito mais crianças e adultos em condições mais aviltantes que aquelas vistas nos noticiários e que os culpados ainda estão por aí, desfrutando da impunidade e de prestígio social? A essa hora, enquanto eles passeiam em seus iates, dormem candidamente em mansões e gastam o que não conseguiriam com um trabalho honesto, milhares outros estão com fome e morrendo de inanição. Não, Lucio. Definitivamente, chegou a hora de agir.
— Talvez haja um meio, Daniel.
— É com isso que eu estou contando, meu amigo.
8
— Finalmente! — disse Pedro verificando as respostas do computador. — Agora temos alguns modelos para começar.
— O material está pronto? — perguntou Janos.
— Sim — respondeu Pedro segurando uma caixa hermeticamente fechada e contendo pedaços de metal especialmente laminados para aquele fim.
— Vamos injetar pulsos seqüenciais de luz e tentar recuperá-los através da maqver — determinou Janos apertando nervosamente as mãos.
E, interrompendo a caminhada que fazia em direção ao computador, perguntou:
— Você tem certeza de que os elementos que compõem esta amostra nunca receberam qualquer estímulo luminoso?
— Absoluta! — respondeu de pronto. — Eu mesmo os preparei — respondeu Pedro exibindo novamente as amostras na embalagem totalmente à prova de luz.
— Como está a maqver? — perguntou Janos virando-se depois em direção à Jaime que acabava de dar os últimos ajustes no módulo que montara no computador de Pedro.
— Prontinho — respondeu aproximando-se da portinhola por onde deveriam ser inseridas as amostras e explicando o seu funcionamento: — abre-se liberando esta tranca. — disse apontando para um dispositivo e calçando depois uma estranha luva presa num suporte e ligada a fios e sensores.
— Que diabo é isso? — perguntou Pedro como se estivesse diante de algum monstro pré-histórico.
— Qualquer movimento feito através desta luva ativa uma réplica dentro do módulo — disse Jaime olhando para Janos. Virando-se depois para Pedro, disse: — você pode não querer usá-la, mas terá que abrir, colocar a peça de análise e fechar o módulo mais rapidamente que a velocidade da luz.
— Palhaço! — resmungou Pedro ante aquela galhofa vendo Jaime descalçá-la com um riso.
— E como evitar o movimento da mão mecânica interna com o descalçar da luva? — perguntou Janos observando-lhe a manobra.
— Eu pensei nisso também — respondeu com sua característica displicência — Quando você calçar a luva pela primeira vez deverá resetar aqui — indicou um pequeno botão vermelho. — Depois, movimente as mãos até a posição desejada e trave aqui — indicou agora um botão verde. — Mas não se preocupe com os movimentos posteriores ao retirar a mão, pois a posição assinalada ao se pressionar o botão verde fica na memória do computador e a recoloca de volta. E, calçando-a novamente, continuou: — os números nesse painel são as memórias que possibilitam guardar até dez posições. E esses gráficos mostram as coordenadas inicial e final, de acordo com o movimento efetuado na amostra.
Pedro fez uma cara de deboche e aplaudiu compassadamente, tirando de Janos a observação: — vocês parecem que se entendem muito bem.
— Então vamos logo começar — disse Pedro animado.
— Certo — concordou Janos. — A propósito, quantas lâminas você conseguiu produzir? — perguntou indo em direção da maqver colocando-a em linha com o protótipo criado por Jaime.
— Exatamente cinqüenta — respondeu colocando-as no módulo de testes.
— Tudo pronto? — perguntou Janos emocionando-se pela primeira vez.
— Aqui tudo bem — respondeu Pedro verificando a maqver.
— E quanto a você, Jaime? — disse virando-se para o lado.
— Só um segundinho — disse abrindo a gaveta e pegando uma garrafa, sorvendo generosos goles.
Janos olhou preocupado para Pedro que lhe devolveu um olhar compreensivo, entendendo aquela motivação.
— Agora sim, podem soltar o capeta — disse arrolhando a garrafa e guardando-a novamente com uma longa e ruidosa expiração.
Os três assumiram suas posições no laboratório: Janos comandaria as operações através do console da maqver; Pedro, a reconstrução das imagens pelo periférico e Jaime gerenciaria todos os circuitos. Com um sinal, Janos anunciou que começaria os testes, obtendo a confirmação dos outros dois.
— Energizando — disse com a voz meio trêmula aplicando um pulso de luz sobre a primeira amostra posicionada dentro do módulo.
— Já tenho referência — disse Pedro ao ver, em sua tela, a matriz numérica se completando.
Trabalhou todos os modelos matemáticos eleitos mas a matriz não se transformou em imagens, frustrando os três.
— Análise de erros — pediu Janos incluindo diversos novos dados na maqver.
— Computando dados — respondeu Pedro.
Jaime, que nesta fase participaria somente em casos de falhas de circuitos ou de programação, permanecia imóvel à frente das telas que montou especialmente para gerenciar o trabalho dos computadores.
— Vou reajustar os fasores — disse Janos reprogramando a maqver.
— Certo — disse Pedro calçando a luva e substituindo a lâmina.
Jaime teve vontade de pilheriar com o contraste entre a luva e aquela mão negra, mas conteve-se. "Esses caras levam tudo muito à sério" — pensou.
— Pronto para recomeçar — disse Pedro retirando a mão.
— Energizando — disse Janos novamente acionando a maqver.
— Matriz completada — disse Pedro passando as mãos no rosto antes de processar os dados.
Jaime aproximou-se dele para certificar-se de que tudo estava bem.
— Essa merda não está funcionando — disse irritado ao ver apenas pontos esparsos na tela.
— Deixa eu verificar algumas conexões — disse Jaime aproximando-se mais dos controles. Pedro recuou esfregando as mãos na calça e depois sentou-se.
Janos voltou para o seu lugar e continuou serenamente concentrado sobre os cálculo, não permitindo que nenhum tipo de emoção tomasse conta dele naquele momento.
— Parece que está tudo bem — disse Jaime liberando a maqver.
Pedro calçou novamente a luva, mas desta vez Jaime não teve vontade de pilheriar.
— Já estou pronto para outra — disse recolocando outra lâmina em posição.
— Um momento só — disse Janos com os olhos fechados pelas mãos...
Passaram o dia e a noite envolvidos naqueles testes e sequer se alimentaram. E, ao final das cinqüenta lâminas, pararam sem que nenhum sucesso fosse alcançado.
— Merda! — disse Pedro visivelmente irritado com os testes.
— A perseverância e a paciência são os principais pilares da ciência — disse Janos animando. — Em quanto tempo você prepara as novas amostras? — perguntou tocando-lhe o ombro.
9
A presença do presidente no aeroporto causou grande confusão. O povo, numa clara demonstração de insatisfação, vaiou-o ruidosamente, causando-lhe grande consternação. Lúcio viu a fisionomia de Daniel e sugeriu que aguardassem no salão nobre especialmente reservado e não conforme ele gostaria, junto aos demais.
Marta aprovou a idéia de imediato.
— Ele tem razão, Daniel. Poupe-se disso.
— Está bem — concordou sem entusiasmo.
Porém, a simples visão da filha que não via a tantos anos fez ressurgir no homem amargo toda emoção... e abraçaram-se longamente. Uma fuga ao doce passado fê-lo esquecer por algum tempo da dura realidade. Os dois casais saíram do aeroporto pelo portão privativo, evitando os jornalistas e suas incômodas perguntas e partiram para a residência oficial, onde estava sendo preparada uma pequena recepção.
— Ora, papai! Não precisava se incomodar — disse Flávia ao ver a sala especialmente arrumada e seus principais amigos esperando.
Foi uma tarde agradável, na qual não se falou em política mas sim em artes e museus, especialidades que levaram Flávia à Europa num curso de aperfeiçoamento mas que acabou por determinar sua permanência no velho continente.
— Então você vai ser a nova secretária de cultura? — brincou um amigo.
Flávia olhou para o pai com um sorriso e virou-se para o amigo respondendo:
— Se eu pudesse trazer a cultura européia e o dinheiro asiático... até que não seria má idéia.
— Mas aí você estaria querendo governar o paraíso — observou outro amigo.
Flávia imediatamente retrucou:
— Por que eu deveria optar pelo inferno?
— Talvez por causa dos diabos — brincou outro
— Não por isso. O nosso congresso está repleto de almas perdidas e mal intencionadas. Os verdadeiros demônios — disse com ênfase a última frase colocando os indicadores na cabeça em forma de chifres, provocando risos.
O presidente também riu, mas com um certo desconforto.
A noite terminou como toda festa: melancólica. Embora não fosse do agrado do pai, Flávia insistia em residir só e fora da capital. "Lugar sem nenhum charme ou tradição cultural, onde nada de bom acontece" — era como costumava referir-se quando indagada sobre a capital.
— Deixe-a escolher o seu destino, Daniel — disse Marta um pouco antes de se deitar após conversar bastante com o marido sobre o futuro da filha. — Veja você mesmo. Vive se lamentando por não ter seguido a carreira de pintor somente para satisfazer a vontade do seu pai.
— Mas eu não estou pretendendo interferir — desculpou-se.
— De certa forma, sim — insistiu a mulher. — A partir do momento em que você oferece "refúgio" dando para ela outras opções, está deixando de confiar em suas decisões.
— É apenas um pai preocupado com a filha. Só isso.
— Sua filha tem bastante juízo — disse Marta do mesmo modo que uma mãe fala a um filho teimoso. — Você devia sim é cuidar para por na cadeia aqueles safados congressistas.
Daniel não respondeu dessa vez. Virou-se para o lado e deitou, permanecendo assim em silêncio.
— Desculpe — disse a mulher tocando-lhe as costas e compungida pelo que falou.
10
— Vamos repassar os protocolos — disse Janos pacientemente após dias de espera.
— Eu já estou ficando saturado. É a décima vez que repetimos essa série — desabafou Pedro fechando os olhos numa longa expiração.
— Vamos lá, negão. Prove que os da sua raça podem também ser inteligentes — escarneceu Jaime ainda sob os eflúvios da noite anterior.
Pedro nada respondeu, sabendo que era exatamente essa a reação que Jaime esperava dele para novas brincadeiras. Pacientemente pegou suas anotações e voltou ao primeiro item, conforme sugestão de Janos.
— Estou pronto para recomeçar — disse olhando para Jaime numa momice meio irritada.
— Vamos conferir os padrões das tabelas — sugeriu Janos. — Deve estar ocorrendo algum desvio na decodificação dos sinais.
— Não vai precisar daquela trabalheira novamente — interferiu Jaime —, pois fiz a gravação de todos os testes. Vamos precisar somente fazer uma análise comparativa dos testes realizados.
— Ora viva! — exultou Pedro. — Agora você provou que dentro dessa careca tem um cérebro, além de prostitutas e neurônios estropiados pelo álcool.
Jaime deu uma sonora gargalhada enquanto começava a rodar o programa, obtendo rapidamente a análise comparativa desejada e um quadro de opções para as possíveis correções.
— É isso mesmo! — disse Janos ao pegar a listagem da impressora.
— O que foi? — perguntou Pedro aproximando-se.
— Como fomos tão displicentes, Pedro? — disse apontando para uma determinada fila.
— Merda! — disse Pedro indo rapidamente para a maqver e reprogramando todas as suas tabelas após verificar a seqüência de erros cometidos. — Eu já estou pronto — disse ao final.
— Muito bem — disse Janos também à postos. — Energizando.
— Muito bem — disse Pedro recebendo as informações —, já tenho a matriz.
Ficaram os três próximos à tela principal da maqver à espera de alguma imagem. Aos poucos os números foram sendo substituídos por pontos luminosos esparsos e depois mais próximos, até formarem um padrão cromático que arrancou de Pedro um grande grito de satisfação.
— FUNCIONOU, SEU FILHO DA PUTA!
Seguiram-se novos testes até fecharem em definitivo os protocolos-padrão que usariam daí em diante na reconstrução das imagens.
— Quantas lâminas ainda sobraram — Perguntou Janos sob estado de euforia controlado.
— Duas apenas — respondeu Pedro sem denotar nenhum cansaço, apesar de estarem trabalhando ininterruptamente há mais de vinte horas.
— Só para que eu acredite não estar sonhando — disse Janos —, vamos projetar sobre a lâmina uma figura qualquer.
E, virando-se para Jaime, perguntou:
— Temos como fazer isso?
— Sim, basta retirar a tampa superior do módulo e acoplar um monitor de vídeo com uma lente focalizadora e um obturador. Gero uma imagem qualquer e a projeto sobre a lâmina.
— Será que vai funcionar, Pedro?
— Ainda não testamos nenhuma forma de emissão com radiação difusa.
— Mas eu vou poder focalizar a imagem — interferiu Jaime.
— Não, sua besta — devolveu Pedro. — Você tem que enxergar os fótons luminosos tal como os elétrons da lâmina o fazem. Uma focalização óptica, por mais perfeita que possa parecer, jamais terá a precisão necessária para convergir os raios luminosos ao ponto de termos uma imagem nítida.
— Esqueça por um momento estes detalhes e vamos tentar — disse Janos numa atitude inusitada.
Antes que Pedro tivesse qualquer reação, Jaime entrou na sala de sucatas e pegou algumas ferramentas, iniciando de imediato a modificação no módulo de testes.
— Espera um pouco, deixa-me pelo menos proteger as lâminas — disse Pedro calçando a luva e recolocando-as na embalagem protetora.
Minutos depois, graças a habilidade de Jaime em lidar com equipamentos, o módulo fora totalmente modificado para receber o pequeno monitor de vídeo.
— Agora vamos escolher uma imagem — disse ao terminar.
— Röentgen usou a mão da mulher para fazer a primeira radiografia da história — disse Pedro. — Qual será a imagem que entrará para a história? — perguntou a Janos sugerindo que ele a escolhesse.
— Uma folha — escolheu candidamente.
Jaime entrou num programa comercial e abriu um leque de opções, embora preferisse como modelo a imagem de uma mulher nua.
— Algumas dessas?
— Não — respondeu sem olhar para a tela. — Eu gostaria que fosse essa — disse tirando do bolso uma folha que recolhera no jardim.
— Isso muda um pouco os meus planos — disse Jaime preparando-se para acoplar uma câmera, desacoplando eletronicamente o monitor do computador. — Mas não vai demorar.
Minutos depois, com uma pequena câmera na mão, virou-se para Pedro e disse focalizando-lhe o rosto:
— Vamos fazer um teste de contraste. Sorria.
— Deixa de babaquice e liga esta merda logo — disse Pedro fazendo uma careta para a lente.
Janos, embora acostumado com essas constantes provocações que caracterizavam o relacionamento entre ambos, desabafou, tal era a sua expectativa.
— Vamos logo com isso, gente.
— Certo, chefe — disse Jaime com o mesmo jeito gozador.
Colocou a folha sobre um fundo branco e prendeu a câmera num suporte, focalizando-a até sua máxima nitidez. — Acho que está bom — disse olhando para Janos.
— Creio que sim — concordou por emoção.
— Quanto de luz vamos precisar? — perguntou Jaime à Pedro.
— Só um momento — respondeu pegando as tabelas e inserindo na maqver alguns valores. — Pronto, podemos energizar.
Janos foi até a maqver e acionou o dispositivo de disparo quase sem acreditar que um dia isso pudesse realmente acontecer. Estava mesmo apertando o botão que durante tanto tempo em sua vida sonhou em acionar. Era o seu sonho se concretizando e deixou-se acreditar nele, tal como fazia quando não podia ter a realidade fora da sua mente. Pedro e Jaime foram sensíveis o suficiente para entender que esse era o seu maior momento e lhe permitiram vivenciá-lo intensamente
Pedro ia dizendo que já tinha a matriz, mas preferiu manter-se calado chamando apenas Jaime para seu lado, torcendo para que os números sobre a tela se transformassem em qualquer forma de imagem.
Janos aproximou-se calmamente da tela da maqver ainda em tempo de ver a matriz numérica, lentamente, transformar-se num borrão disforme.
Pedro engoliu uma saliva e passou a língua nos lábios, enquanto seus dedos ajustavam alguns controles até obter uma imagem que, de alguma forma, lembrava o contorno de uma folha.
— Está funcionando, Pedro... está funcionando... — disse Janos tentando conter a emoção.
Jaime, bem mais emotivo e desprovido de qualquer autocontrole, passou as costas da mão nos olhos e deu um soluço, atraindo para si as atenções e os abraços.
Permaneceram assim, abraçados e comovidos com a vitória durante um longo tempo até Jaime lembrar-se da garrafa em sua gaveta.
— Vamos comemorar — disse pegando-a como se estivesse erguendo uma taça.
— Os ajustes... A tão esperada fase dos ajustes — disse Pedro acariciando o painel da maqver.
— temos que melhorar bastante — disse Jaime extraindo o último gole da bebida —, mas será a melhor parte do trabalho.
Janos ia voltando para a sua mesa no firme propósito de iniciar de imediato a preparação de alguns protocolos para os ajustes, mas foi impedido por Pedro:
— Quero jantar fartamente e me embebedar.
— Essa eu pago — disse Janos sorrindo pela primeira vez.
11
Enquanto isso, em algum lugar da capital, o presidente da câmara dos deputados e o líder da oposição conspiravam contra o presidente.
— Qual a sua proposta? — perguntou o presidente da câmara ao deputado João.
— Se forçássemos Daniel a renunciar você, como presidente da câmara, assumiria.
— Mas ele não pretende renunciar — disse o presidente da câmara.
— Mas você não disse que ele estava com este propósito? — perguntou com certa surpresa o deputado João.
— Sim, até alguns meses atrás quando estourou o escândalo. Mas parece que a vaca da mulher conseguiu convencê-lo a continuar.
— Merda! Quantos estão envolvidos?
— Quase a metade — respondeu o deputado Matoso.
— Puta merda! — exclamou o deputado João com surpresa. — Mas também ficou muito fácil. Bastava apresentar um nome qualquer e conseguir a liberação do dinheiro. Não havia qualquer fiscalização; e quando alguém aparecia bastava oferecer algumas migalhas ou pedir a sua transferência. E pronto: tudo ficava resolvido... Por isso o olho de muita gente cresceu.
— A culpa foi toda sua. Se tivesse sido mais discreto.
— Mas eu estava sendo muito pressionado — defendeu-se o deputado João. Lembra-se de que era o meu nome que aparecia nas listas negras da federal. Se não fosse pela imunidade...
— Mas eu acho que a saída é mesmo essa — observou o presidente da câmara. — Se Daniel saísse eu assumiria e colocaria um grupo na cadeia apenas por algum tempo, satisfazendo assim aos mais radicais “defensores da probidade pública”. Como a memória do povo é curta mesmo, logo tudo estaria esquecido. Fingiríamos uma austeridade e até forçaríamos a devoluções de parte do dinheiro desviado. Uma pequena parte, é claro — endossou com ênfase.
— Quem seria o bode expiatório?
— Os mais frouxos!
E, com um sorrisinho solerte, completou:
— Como sempre.
— Mas estamos esquecendo um pequeno detalhe — observou o deputado.
— Qual? — perguntou o presidente da câmara.
— O presidente tem que renunciar antes.
— Ele irá renunciar, não se preocupe.
Flávia estava feliz com a decoração simples que fizera no apartamento. Seus vizinhos já não mais a incomodavam com olhares e atenções. Tinha seus amigos e um trabalho que gostava e uma discreta privacidade. Deixou de ser a filha do presidente para ser ela mesma.
— Eu tenho a impressão que estamos sendo constantemente seguidas — disse Joana encostada à janela do apartamento de Flávia e olhando para fora.
— Eu já me acostumei com isso — condescendeu Flávia sem dar importância ao fato. — Devem ser os seguranças que papai mandou como parte de algum esquema de proteção... Sei lá! — desconversou.
— Eu não sei como você agüenta — disse Joana fechando a cortina e sentando-se.
— Esqueça isso, Joana. A propósito, vamos à exposição?
— Quando? — perguntou levantando-se novamente.
— Hoje à noite — respondeu arrumando delicadamente as flores no vaso.
— Fechado — concordou Joana fazendo um sinal com o polegar para cima.
Enquanto isso, de longe, elas são observadas...
— Aquela é a amiga inseparável — apontou Ismael vendo Joana sair do prédio.
— Ela é bastante perspicaz — disse Fernando. — Ontem, saindo daquela galeria, cruzamos na porta e ela me encarou demoradamente. Acho que me reconheceria se me visse de novo.
— Não se preocupe. Deve pensar que somos agentes de segurança da Flávia. É até bom que assim pense, porque não vai se assustar quando chegar a hora — observou Ismael fechando o vidro do carro devido ao aumento da chuva.
— Será que vai dar para ficar rico? Os caras tem muito dinheiro. Não é? — perguntou Fernando meio nervoso.
— Eu já disse para não se preocupar. Não só vamos ganhar muita grana como também escapar sem problemas para o exterior. É coisa da pesada. Eles são os graudões da capital.
— Quem são eles? — perguntou Fernando.
— Aí você já está querendo saber demais — respondeu Ismael meio contrariado. — Nossa segurança está exatamente em não sabermos quem nos paga.
— Sei lá — resmungou Fernando passando a mão sobre o vidro embaçado —, não gosto de serviço com intermediários.
— Deixa de ser burro. Você acha que eles iriam procurar nossos nomes em um anúncio de jornal? Seria muito engraçado encontrar: "RAPTORES: OFERECEM-SE PARA RAPTAR A FILHA DO PRESIDENTE" — disse Ismael dando alguns tapinhas na cabeça de Fernando e rindo-se da sua insegurança.
— Que tipo de apoio vamos ter? — perguntou Fernando.
— A nossa parte é a mais importante — respondeu olhando para os lados e disfarçando os lábios como se alguém estivesse ouvindo-o. — Depois de pegá-la, vamos até a casa de praia que alugaram e ficar lá com ela esperando o resgate.
— Quem vai pagar? O presidente?
— Isso eu não sei — respondeu Ismael com desdém.
— É porque ouvi dizer que o presidente é duro.
— Que bobagem é essa, Fernando? Onde já se viu um político duro? Porra, vereador que é vereador já está nadando no ouro, que dirá um presidente da república.
Fernando pensou mais um pouco e concordou:
— É mesmo.
— Semana que vem ela irá a uma exposição aqui — disse Ismael apontando para um cartaz que tirou do bolso. Vamos receber um carro com placa especial e nos apresentar como agentes. Por isso que foi bom a vaquinha te reconhecer.
— É verdade — sorriu Fernando satisfeito e mais aliviado. — E quem vai trazer o carro?
— Ninguém. Ele será estacionado num shopping e suas chaves escondidas em algum lugar.
— E como vamos saber qual o shopping e onde estarão as chaves?
— Vão mandar entregar um bilhete lacrado na portaria do hotel — respondeu. — Lembra da caixa de charutos?
— Sim. Agora que você falou...
— É um código — interferiu Ismael. — Vamos ter que ficar sentados no banco daquela praça um dia antes, entre as três e quatro horas, fumando charutos. Desta forma, eles saberão que recebemos o bilhete e colocarão o carro e as chaves conforme o combinado.
— Isso é que é foda... Eles sabem quem somos e nós...
— É pegar ou largar — disse Ismael. — Mas é melhor assim, pois se der alguma merda ninguém poderá nos acusar de nenhum crime, a não ser o de poluir a praça. Mas vai ser sopa porque a garota é gente boa e o plano é bom. Eles sabem até que o presidente virá aqui numa viagem particular, não à filha, mas para visitar uns amigos. Nessa hora ela estará na galeria e também sabendo que o pai está na cidade. Não será pois nenhuma surpresa para ela se receber um bilhete assinado pelo pai pedindo que vá encontrá-lo depois.
— E se ela quiser confirmar a história? — perguntou Fernando.
— Já pensaram nisso também. Vão colocar um celular no carro. No bilhete que ela vai receber, pensando que é do pai, estará também um número para uma possível confirmação. Ela falará com um imitador.
— E se ela desconfiar?
— Não desconfiará porque ela é muito desligada. Vive em outro mundo. Só pensa em quadros, museus e outras coisas assim. Provavelmente, nem pestanejará ao entrar no carro.
— E a porra daquela amiga? — voltou a insistir Fernando.
— Aí pode haver problema. Elas só andam juntas.
12
Na reunião com as principais lideranças partidárias e políticas, o presidente foi ostensivamente encorajado a continuar na luta pela democratização e moralização do país. O presidente da câmara dos deputados, também presente, entregou um manifesto de apoio no qual a sua assinatura vinha em primeiro lugar. Tal foi a veemência do seu apoio que mais tarde o presidente comentou:
— Ainda há homens públicos honestos. Nem tudo está perdido, Lucio. Veja o exemplo de altivez e civismo do Matoso. Como presidente da câmara deveria estar articulando a minha saída, pois assim seria o presidente. E nota-se que nem do mesmo partido somos. Mas ao invés, além de patrocinar publicamente este manifesto de apoio, tem evitado seguidamente falar à imprensa sobre qualquer golpismo ou desestabilização das nossas instituições. É um nacionalista.
— Eu não participo muito da sua opinião, Daniel — observou Lucio. — No passado vocês foram grandes inimigos...
— Isso foi há muitos anos. Todos amadurecemos. Animosidades fazem parte do jogo político.
— Pode ser, Daniel... pode ser... — concordou sem nenhum ânimo o assessor.
— Deixa de bobagens. Você está reagindo como amigo do presidente e não como seu assessor. No momento estamos todos pensando na pátria — observou o presidente.
Passam-se mais alguns dias e o plano de seqüestro da filha do presidente tem início.
— Algum recado para o apartamento 205? — perguntou Fernando na portaria do hotel.
— Deixa-me ver... — respondeu o modorrento senhor colocando os óculos no rosto. Fernando viu o homem procurar algo lentamente naquelas caixinhas e teve uma espécie de horror, imaginando-se naquela idade.
— Aqui está — disse o porteiro com um sorriso gentil.
— Obrigado — agradeceu pegando num só gesto o envelope e subindo rapidamente as escadas. Entrou no quarto resfolegando.
— Ismael. Chegou a correspondência — disse entre uma respiração e outra.
— "Luis Pereira Verflöet mora na rua Anastácia, 2238" — leu Ismael em voz alta.
— Que significa isso? — perguntou Fernando sentado na cama e sem entender.
— Deve ser algum código — respondeu Ismael verificando o número do apartamento no envelope e certificando-se de que estava correto.
— Porra! — irritou-se Fernando.
— Calma, vamos ver no catálogo onde fica esta rua e dar uma passada nela. Talvez descubramos algo — disse Ismael bem mais experiente e tentando acalmar o parceiro.
Entraram no carro munidos de um mapa da cidade e partiram.
— Vire à esquerda no próximo sinal — ordenou Ismael.
— É contramão — disse Fernando aproximando-se da esquina.
— Então na outra, merda.
Fernando fez a curva adiante e parou próximo à uma banca de jornal. Ismael saltou e perguntou ao jornaleiro:
— Onde fica a rua Anastácia, companheiro?
O homem coçou a cabeça, recolocou o boné e olhou para os lados. Depois, com uma feliz expressão facial, respondeu com um forte sotaque italiano.
— Agora me lembrei! É aquela onde tem um monte de lojas bonitas e cinemas.
— Obrigado — agradeceu comprando um jornal que possivelmente nem leria e voltou para o carro.
— E aí? — perguntou Fernando.
— Eu já entendi — disse tirando o bilhete do bolso. — Vamos voltar que depois eu digo.
De volta ao hotel, Ismael sentou-se na poltrona e chamou o parceiro.
— Veja este nome — apontou para o bilhete. — Deve ser falso.
— E daí? — perguntou Fernando ainda sem entender.
— Deixa de ser burro! — disse baixinho. — Será que você ainda não percebeu que se trata da placa do carro?
— L.P.V. 2238? — perguntou Fernando certificando-se.
— Claro. Estamos prontos para fumar os charutos — reconfortou-se na poltrona tirando os sapatos.
No dia e hora combinados, ambos sentaram-se no banco em frente à estátua do Libertador e, pontualmente, acenderam seus charutos.
— Ainda bem que não está chovendo — observou Fernando olhando para o céu azul. — Imagine o que os outros não iriam pensar ao ver dois homens de terno fumando charuto em plena chuva.
— É verdade — concordou Ismael soltando uma baforada e imaginando-se naquela situação. — Como alguém pode ter prazer em fumar um troço deste? — reclamou.
— Até que não é mau — respondeu Fernando brincando com a fumaça. — Ajuda a relaxar.
Ficaram exatamente uma hora sentados fumando e observando à volta; tentando ver aqueles que, fatalmente, os estariam observando.
— Vamos embora — disse Ismael consultando o relógio.
— Ainda bem — respirou Fernando aliviado. — Eu já estava morrendo de calor neste sol.
O dia da exposição havia chegado e Flávia havia combinado de esperar Joana na calçada, em frente à portaria do seu prédio, apesar de Joana achar mais seguro aguardá-la dentro do próprio apartamento. Flávia ponderava que era muito difícil estacionar naquele local e preferia não dar trabalho para a amiga. “ É tão mais simples parar e me pegar na calçada. Para que estacionar longe e ainda aturar esses flanelinhas enchendo a paciência?” — ponderava Flávia justificando a sua decisão.
— O que houve com o seu carro? — perguntou Flávia ao ver Joana dentro de um táxi.
— Eu não sei. Ontem quando cheguei em casa estava funcionando, mas agora fui virar e não pegou.
— Não é a tal da bateria? Isso vive dando defeito e deixando todo o mundo a pé. — perguntou Flávia que não dirigia e nem tinha a menor noção de como um carro funcionava.
— Não foi a bateria, senão o carro não virava. Não estou certa? — perguntou ao motorista atento à conversa.
— Pode ser o rotor, a vela... A senhora abasteceu o carro?
— Flávia olhou para a amiga que fez uma careta antes de responder.
— Até a boca. Eu acho sim é que ele afogou.
— Afogou? — perguntou Flávia sorrindo. — Ouvi dizer que carro morria, mas não sabia que também se afogava. — disse esta última frase com tal graça que provocou gargalhadas nos três.
— Aqui estamos — disse o motorista saltando e abrindo a porta gentilmente.
— Obrigado. Pode ficar com o troco — agradeceu Flávia arrastando indolentemente a bolsa.
Estacionados do outro lado da calçada Ismael e Fernando viram quando elas saltaram.
— Lá estão — apontou Fernando.
— Então o carro não funcionou — observou Ismael. O que você fez?
— Essas mulheres só sabem entrar no carro e ligar. Têm muitas que pensam que motor de carro é igual ao de uma geladeira. Eu só tirei o cabo da bobina do lugar — disse rindo.
— Você se arriscou para quase nada. E se ela fosse do tipo da Soraya? — perguntou Ismael irritado.
— Igual à ela não existe. E é você que sempre vive dizendo isso.
— É. Mas nunca se sabe — concordou meio a contragosto.
— Você vive me chamando de burro por qualquer coisa — observou Fernando —, mas agora a burrice foi sua. Imagine se ela descobre que o carro foi sabotado, sabendo que iria sair com a filha do presidente? Do jeito que ela é poderia estragar todo o nosso plano. Ao contrário, se alguém a ajuda a consertar o carro e mostra que o cabo simplesmente saiu, não daria a menor importância para o fato e assim não despertaria nenhuma suspeita.
— Devo admitir que você acertou. Palmas — disse Ismael com desdém.
Fernando olhou para ele irritado com as suas constantes provocações e prometeu acabar de vez com isso. Acariciou o cano de sua arma e imaginou-se apontando para o companheiro, obrigando-o a desculpar-se ajoelhado aos seus pés. Respirou fundo e largou a arma. Sabia que Ismael era um assassino frio e cruel e, por isso, deveria ter cuidado. Além de tudo, era ele quem tinha os contatos.
Passado algum tempo, Ismael determinou:
— Estacione na porta e me aguarde.
Saltou do luxuoso e imponente veículo e entrou na galeria, sendo cortesmente saudado na entrada, não só pelo carro que usava, mas também pela impecável indumentária que vestia.
— Com licença — disse aproximando-se de Flávia.
— Pois não — disse a moça virando-se.
— Sou agente especial — disse pegando uma falsa mas bem confeccionada identidade — e tenho um recado do presidente.
— Aconteceu algo? — perguntou preocupada.
— Não, senhorita, nada de anormal. Ele está neste endereço e pediu que a levássemos até lá — disse mostrando o também falso bilhete.
— Agora?
— Não. Não há pressa. Ele mandou dizer que está com amigos e gostaria apenas da sua presença. Foi só o que disse.
Flávia olhou para Joana.
— O que você acha?
— Acho bom você ligar antes e falar com ele — disse Joana sem nenhum receio de ofender ao homem.
— A senhorita diz, confirmar o que estou dizendo? — perguntou com tal sobriedade que Joana ruborizou.
— É... sabe. Trata-se da filha dele...
— Não se preocupe, senhorita. É perfeitamente compreensível a sua colocação. Eu também sou pai...
Essa última frase conquistou rapidamente a sua confiança ao ponto de interrompê-lo com um gesto de desculpas.
— Mas acho que a senhorita tem razão — disse virando-se para Joana e tirando um celular do paletó. E depois, voltando-se para Flávia, entregou-lhe o aparelho já ligado.
— Pode falar. Ele está esperando o seu telefonema — disse afastando-se estrategicamente e permitindo uma leve privacidade, já que estavam em público.
Flávia digitou os números do bilhete e falou com o imitador.
— Ele não estava? — perguntou Ismael fingindo preocupação ante a rapidez da conversa.
— Estava sim, mas a ligação está muito ruim e não deu para conversarmos. Aguarde só mais um pouquinho que eu gostaria de ver mais alguns trabalhos. Está bem?
— Naturalmente. Conforme eu disse, não há pressa. Esperaremos o tempo que for necessário. Estamos bem em frente à porta principal.
— Obrigado.
Ismael afastou-se solenemente deixando as duas no salão. Logo ao entrar no carro foi inquirido por Fernando, que já começava a aparentar uma certa apreensão tanto pela demora quanto pela proximidade da ação.
— E então? Engoliram? — perguntou antes mesmo do companheiro sentar-se completamente.
Ismael não respondeu de imediato.
— Nada de conversas. Quando ela chegar eu salto e abro a porta. Só cumprimente se ela tomar essa iniciativa. Entendeu?
— Entendi — respondeu Fernando sentindo-se humilhado.
— E quando usar o retrovisor evite olhar para ela também — acrescentou.
Mas Joana continuava intrigada e assim permaneceu até o fim da exposição.
— O que há de errado? — perguntou Flávia preparando-se para sair.
— Você disse ao seu pai onde estaria?
— Pensando bem, acho que não — respondeu Flávia.
— Então, como ele sabia que estava aqui?
— É uma boa pergunta — disse Flávia pegando o bilhete em sua bolsa. — Mas essa é a sua letra e eu falei com ele ao telefone.
— É verdade... — concordou Joana já na porta de saída.
— E estão num carro oficial. Veja — apontou Flávia para o suntuoso veículo que delas se aproximava. — Agora deixa de história, Joana, você anda lendo muita ficção. Vamos logo. — convidou com certa jocosidade fingindo uma impaciência.
— Não se preocupe comigo. Eu pego um táxi.
— Nada disso — contestou Flávia aproximando-se do carro já com a porta aberta.
— Senhorita — disse Ismael inclinando-se levemente para frente.
— Vamos levá-la em casa primeiro — disse Flávia entrando.
— Teremos imenso prazer — disse Ismael. — Por favor.
Fechou a porta delicadamente, quase sem provocar ruído, e saíram.
— É... Por favor... — disse Joana dirigindo-se à Ismael.
— Pois não, senhorita.
— Como vocês sabiam que estaríamos lá? — perguntou à queima-roupa sem tirar-lhe os olhos.
Ismael, com grande velocidade de raciocínio e sem perder a fleuma, respondeu de pronto:
— Nós não sabíamos, senhorita. Fomos informados.
— É?
— Sim, senhorita. Mantemos várias pessoas sob constante vigilância, mesmo contra a vontade de alguns — disse primeiro olhando para Joana e depois para Flávia. Para esta, com um sorriso discreto e respeitoso.
— Então papai sabia que eu estava lá?
— Não, senhorita. Simplesmente basta que ele pergunte para ser informado.
— Então a qualquer hora ele pode saber onde eu estou?
— Exatamente. Não só a senhorita como também diversas outras pessoas de alta relevância.
— Uhmmm... — brincou Joana ao chegarem em sua casa. — Aqui vai descer a amiga de uma relevante.
Despediram-se e partiram em direção ao litoral.
— Qual o nome do amigo que o papai está visitando? — perguntou Flávia percebendo a demora em chegar.
— Sinto muito, senhorita. Mas foi como eu disse. Apenas recebi a ordem para acompanhá-la neste endereço.
— Eu estou achando meio longe. Posso falar novamente com ele?
— Naturalmente — respondeu passando o telefone, mas tendo antes o cuidado de retirar o cabo da antena.
— Não está funcionando — disse Flávia sentindo uma estranha sensação.
— Deixa-me ver — disse delicadamente pegando o aparelho.
Ismael tentava a todo custo manter a confiança de Flávia, evitando assim qualquer suspeita em casos de uma blitz ou tomar atitudes drásticas, já que simpatizara com a moça. Fernando, que não dissera uma palavra, mantinha-se calado. Conhecia também o temperamento de Ismael e sabia que era capaz de matar com aquele mesmo sorriso. Temeu pela sorte da moça e torceu para que dormisse ou parasse de insistir em falar com o pai.
— Aqui está o motivo de não funcionar — disse Ismael segurando a ponta partida do fio. É pena que esta estrada seja tão mal servida de telefones públicos.
— De fato, o senhor tem razão — disse Flávia olhando para a via escura. — Vou comentar isso com o papai. Imagine se fosse um caso de emergência ou víssemos algum acidente...
— Bem pensado, senhorita.
Passaram por algumas barreiras e os policiais abriram respeitosamente a passagem para o carro oficial, embora não reconhecendo os seus ocupantes.
— Que estupidez a minha — disse Ismael quebrando o silêncio. — Bem que eu poderia ter pedido para usar o rádio dos policiais.
— E eu poderia falar com o papai?
— Sim, indiretamente. Mas falaria de qualquer forma.
— Não tem problema — conformou-se Flávia perdendo-se nas imagens dos quadros que apreciara passando a analisá-los mentalmente.
Assim, chegaram à casa de praia alugada sem maiores incidentes.
— Chegamos — disse Fernando falando pela primeira vez.
Ismael desceu e abriu a porta do carro para Flávia. Ela agradeceu e caminhou alguns passos em direção à praia estranhando a quietude e a escuridão do lugar. Esfregou os braços abrandando os efeitos do vento frio que vinha do mar e perguntou:
— É aqui mesmo?
— Sim, não nos enganamos. Vamos entrar que ele está lá dentro.
Se não fossem pela polidez e o respeito que tanta confiança passavam as atitudes de Ismael Flávia, por certo, já teria entrado em pânico. Mas como temer ante a polidez?
— Entre — disse após Fernando ter acendido a luz da sala acionando antes um dispositivo que, pelo ruído, parecia o de um gerador.
— Onde está papai? — perguntou cada vez mais apreensiva com os pensamentos que teimava em afastar.
— Vá chamá-lo, por favor — ordenou a Fernando trancando a porta em seguir.
— Sente-se, por favor — disse com a mesma polidez.
Flávia sentou-se e Ismael começou a falar:
— A senhorita acaba de ser seqüestrada. Mas por favor fique tranqüila que ninguém vai machucá-la. Flávia não acreditou no que acabara de ouvir. A princípio, pensou em dar um sorriso nervoso e perguntar: "Vocês estão brincando com a filha do presidente?" Mas o homem parecia estar falando sério. Fechou os olhos e, por alguns instantes, teve a veleidade de estar acordando em sua cama de um terrível pesadelo.
— Por que? — perguntou desesperada — Meu pai não é um homem rico, apesar de ser o presidente.
— Então já contou — disse Fernando voltando para a sala e trazendo um revólver à mão.
— Guarde isso, idiota. Não vamos precisar — irritou-se Ismael.
Ao ver a arma Flávia atirou-se pela janela numa desesperada tentativa de fuga, ferindo-se violentamente com os vidros que se partiram. Ao vê-la caída e o sangue em profusão, Ismael irritou-se ainda mais.
— Viu o que você fez? — berrou apontando para o chão onde Flávia jazia ferida. — Vá correndo pegar alguma coisa para deter o sangue senão ela acaba morrendo.
Fernando saiu rapidamente sem sequer saber o que procurar e deixou Ismael praguejando.
— Tome — disse voltando com um pano na mão.
— Isso você passa na sua mãe! — disse Ismael ao ver o trapo imundo que ele arranjara. Rapidamente tirou o lenço do paletó e passou a limpar as feridas, verificando com certo alívio que, embora múltiplas, não pareciam ter gravidade. Pegou aquele corpo inerte nos braços e deitou-o no sofá, saindo em seguida para buscar água limpa. Lavou as feridas e deteve os focos hemorrágicos colocando, por último, o lenço úmido em sua testa. Fernando permaneceu de pé, aproveitando-se que Ismael estava de costas, e ficou admirando aquelas coxas desnudas pela saia levantada. Depois lembrou-se das suas palavras ao entregar-lhe o pano e sentiu novamente o sangue invadir-lhe a face. "Esse filho da puta ainda me paga" — disse para si passando novamente a mão na arma.
— Deixaram alguma comida para nós? — perguntou Ismael virando-se para Fernando e sentando-se ao lado da moça.
— Eu ainda não verifiquei mas já ia ver — respondeu mentindo antes que tal lhe fosse ordenado.
Ismael assentiu com um grunhido baixo pegando o celular e conectando o cabo da antena. Em seguida fez uma ligação comunicando que tudo estava sob controle mas omitiu propositadamente o incidente com Flávia, o que lhe daria maior poder de barganha, já que conseguira trazê-la sem violência.
— Acho que pensaram na gente — disse Fernando retornando e falando com a boca cheia.
Ismael olhou para ele e desaprovou intimamente o que considerava uma profunda falta de educação, lembrando-se do tempo em que era surrado quando cometia a mesma falta. Virou-se para Flávia que se movia dolorosamente e desligou o aparelho.
— Fique calma — tranqüilizou com certo conforto paternal —, já disse que nada de mal vai lhe acontecer. Se eu quisesse fazer-lhe algo já o teria feito. Não é?
— Por favor... — disse sem concluir a frase com a voz chorosa.
Ismael, percebendo os olhares de Fernando sobre o corpo da moça, jogou-lhe o paletó sujo de sangue sobre as pernas. Nesse momento Flávia tossiu e uma ferida voltou a sangrar. O cheiro de sangue provocou-lhe ânsias de vômito.
— Vai passar — disse levantando-se e colocando o lenço sobre a ferida. Depois, sentindo a bexiga plena, virou-se para Fernando que ainda mastigava com certo ruído e disse:
— Volto já.
Mal os mentores do plano receberam a notícia da consumação do seqüestro, ligaram para o amigo do presidente e transmitiram as primeiras instruções.
— Deve ser alguma brincadeira de mau gosto — comentou Lucio ao ser informado do conteúdo da ligação pelo anfitrião.
— Não vai passar para ele? — perguntou o anfitrião preocupado.
— Você sabe quantos telefonemas anônimos deste tipo recebemos por dia? — justificou Lucio tentando minimizar a situação.
— Eu imagino — respondeu —, mas este está dando detalhes que já foram confirmados pela amiga, uma tal de Joana. Ela ainda está na linha.
— Eu a conheci num dia desses — disse Lucio cada vez mais preocupado com a veracidade da notícia que recebera. — Posso falar com ela?
— Por favor. Enquanto isso vou tentar distraí-los um pouco.
— Lucio não vem conosco? — perguntou o presidente ao ver o amigo anfitrião aproximar-se.
— Sim, mas resolveu atender um telefonema. Enquanto isso vamos sentar um pouco e terminar aquele assunto.
— Já é tarde — reclamou Marta bocejando.
— É verdade — concordou Daniel —, e um telefonema não dura uma noite toda, a não ser aqueles.... — disse provocando risos.
— Depois você me diz que telefonemas são esses — interferiu Marta. — Comigo nunca passou de curtos recados — simulou um ciúme.
— Enfim o locutor noctívago! — brincou Daniel ao ver Lucio juntar-se a eles.
— Era um assunto de estado — mentiu. Depois virou-se para Marta e pediu: — Você nos dá um minutinho a sós?
— Será que ele não pode deixar de ser o presidente nem por alguns minutos? — queixou-se Marta visivelmente aborrecida.
— É só um momentinho — disse Daniel reconhecendo a gravidade daquela conversa reservada principalmente porque o assessor não pôde contornar, como de hábito fazia, a situação.
— O que aconteceu? — perguntou Daniel tão logo viu-se a sós com Lucio.
— Uma merda, Daniel...
— Diga logo, porra. Não está vendo que estou aflito?
— Raptaram a Flávia — disse num só tom.
— O que você está dizendo? — perguntou num tom tão dramático que atraiu a atenção de todos.
— O que está acontecendo? — perguntou Marta aproximando-se de Daniel e vendo sua fisionomia transtornada. O anfitrião posicionou-se atrás dela, como precaução, antes de ser-lhe transmitida a trágica notícia.
— Nossa filha... — respondeu Daniel apoiando-se em Lucio e sendo amparado por este.
— Ela não morreu — adiantou-se o anfitrião antes que Marta pudesse formar algum juízo mais pessimista.
— O que aconteceu com ela? — perguntou aos prantos. — Algum acidente grave?
— Ela foi seqüestrada — respondeu finalmente Lucio abraçando o casal.
— Oh! Meu Deus...! — foram as últimas palavras de Marta antes de desmaiar. Graças ao providencial posicionamento do anfitrião que a amparou, Marta pôde ser levada para uma poltrona, recuperando-se logo em seguida.
Lucio determinou que Joana se juntasse ao grupo, principalmente pela ameaça de matarem Flávia caso a notícia se espalhasse. Como precaução, instruiu-a a pegar um rádio-táxi ao invés de enviar-lhe um carro oficial.
— Por que fizeram isso? Eu não sou um homem de posses. — perguntou Daniel tentando achar alguma justificativa naquele ato.
— Não sei. Mas parece que esperaram a saída de todos para então comunicarem o seqüestro — respondeu o anfitrião referindo-se aos demais convidados presentes.
— Como está Marta? — perguntou Daniel não mais vendo a mulher na poltrona.
— Está no quarto com a Catarina — respondeu Lucio voltando do aposento para onde a levara junto à mulher do anfitrião.
Daniel estendeu-lhe a mão em sinal de agradecimento e apoio.
— Vamos sair bem dessa, Daniel — disse segurando-a com as duas mãos. Vamos permanecer aqui até recebermos mais instruções. Foi o que disseram.
— A minha casa é de vocês — disse consternado o anfitrião querendo ajudar de alguma forma.
Daniel apenas balançou a cabeça, sustentando a dor de pai.
O telefone tocou novamente e Lucio não esperou o segundo toque. Ouviu atentamente as instruções e depois desligou impotentemente o aparelho.
— Eles querem que você — disse dirigindo-se para o anfitrião — chame o seu motorista e ligue para o clube náutico mandando preparar o barco. Eles querem fazer parecer que passaremos juntos o feriadão em sua ilha. Iremos todos, inclusive a tal amiga.
— Será que ela comentou isso com mais alguém? — perguntou Daniel temendo pela sorte da filha.
— Eu não me preocuparia com isso — acalmou Lucio —, ela é uma moça bastante esperta e responsável o suficiente para manter-se calada. Ademais, ela mora só e ainda não teve contato com ninguém após ter sido deixada por Flávia. Disse até que chegou a desconfiar da história mas o homem com quem falaram era por demais polido e não levantou nenhuma suspeita.
— Eles souberam escolher a pessoa e o momento — comentou Daniel.
— Estamos lidando com profissionais — asseverou Lucio.
Daniel, num gesto de extrema coragem, levantou-se e foi consolar a mulher pedindo-lhe que procurasse demonstrar ao mínimo a tensão a que estavam sendo submetidos, pois os repórteres que porventura pudessem encontrar poderiam por tudo a perder.
Graças ao trabalho psicológico de Catarina, Marta recobrou a lucidez e prontificou-se de imediato a colaborar.
13
A fase de testes havia terminado com relativo sucesso e Janos encontrava-se agora na sala do general, pronto para dar a boa notícia.
— E então? — perguntou o general com visível interesse.
— Creio que chegamos a um resultado confiável e bastante significativo, general.
— Isso que é uma boa notícia — disse o militar ajeitando suas condecorações e esfregando as mãos logo em seguir. — Quando poderemos assistir a uma demonstração?
— Agora mesmo — respondeu de pronto.
Embora estivesse com a agenda tomada, o general evitou valorizar seus compromissos, cuidado que não teve durante o encontro no qual discutiram pela primeira vez o projeto, sensibilizando desnecessariamente seu principal cientista.
— Muito bom... Então podemos ir já?
— Sim — respondeu Janos levantando-se e olhando em direção a uma peça de metal que ornamentava a estante.
— Como será o teste? — perguntou curioso.
— Podemos testar com isso — respondeu apontando para a peça.
— Com o meu troféu? — perguntou com um sorriso incrédulo. — E que tipo de informação poderíamos ter à partir de um pedaço de ferro fundido? — perguntou tentando dar pouca importância ao troféu de que tanto se orgulhava.
— Lembra-se bem da finalidade do projeto, general?
— Bem... creio que era algo como tentar retirar som e imagem de um material... Claro que me lembro! — respondeu estalando os dedos, hábito que deixava Janos profundamente irritado.
— Então vamos levá-lo e ver o que há gravado em sua estrutura.
— Espere um instante, Janos — interrompeu o general pegando o troféu. — Você quer dizer que todos os acontecimentos ocorridos na presença disso foram gravados exatamente como se estivessem diante de uma máquina fotográfica ou de uma filmadora?
— Perfeitamente.
O general engoliu uma saliva querendo acreditar no que ouvia, mas sem poder fazê-lo. Era algo fantástico demais para os seus padrões conservadores. Mas era Janos quem falava e isso merecia uma profunda reflexão.
— Muito bem — disse resoluto e pronto para o desafio. — Então vamos.
Chegaram ao laboratório onde Jaime e Pedro contabilizavam alguns resultados em uma longa fita de papel.
— Espero que o senhor entenda o secretíssimo caráter destas experiências — disse Janos logo ao entrar.
— Não se preocupe, pois eu sou o maior interessado neste sigilo — disse o general aproximando-se dos outros dois.
— Podemos começar? — perguntou Pedro largando a fita nas mãos de Jaime e dirigindo-se para o seu computador.
— Sim — respondeu Janos. E, virando-se para o general, pediu:
— Dê a ele o seu troféu.
— Claro — disse o general passando-o às mãos de Pedro.
— Obrigado — disse Pedro olhando a peça com curiosidade e inserindo-a no módulo de testes agora carinhosamente denominado módulo de leituras.
Pedro certificou-se da posição que normalmente era colocado na sala do general, visando com isso obter leituras dos fatos ocorridos na direção da mesa de trabalhos do militar e impressioná-lo ainda mais.
— Se essa não for a posição correta, general — explicou Janos ao vê-lo intrigado com o cuidado de Pedro ao inserir o troféu no módulo —, teremos apenas a imagem da sua janela.
— Estou pronto — disse Pedro fechando o módulo.
— Só um instante — disse Janos inserindo alguns dados na maqver. — Muito bem — disse ao final. — Podemos energizar.
— Recebendo dados. Matriz pronta — disse Pedro ao ver sua tela repleta de números.
Em segundos, a tela auxiliar, especialmente adaptada para este fim, mostrou a imagem do general despachando com o seu chefe de gabinete momentos antes da entrada de Janos.
— Isso é fantástico! — exclamou o general aproximando-se da tela.
— E isso não é tudo — adiantou-se Pedro. — Podemos obter imagens dinâmicas, idênticas a um filme.
— Não acredito! — disse o general virando-se para Janos.
Jaime, que ultimava os preparativos para uso da memória especial, responsável pelo processamento dos dados necessários à elaboração da animação de imagens, sinalizou para Pedro avisando que já estava pronto. Pedro balançou a cabeça para Janos que imediatamente entendeu.
— Estou energizando.
— Vai demorar um pouco — disse Jaime lamentando não ter um computador mais possante.
— Temos a seqüência de um minuto — disse finalmente Pedro saindo do mutismo enquanto aguardava o processamento. Estou transferindo para a tela.
O general estava ansiosamente junto ao monitor.
— Espero que não tenhamos invadido nenhuma privacidade, general — disse Janos alertando que o momento daquela seqüência fora arbitrariamente determinado.
— Não tenho nada a esconder — brincou nervoso o general sem tirar os olhos da tela.
Instantes depois, viu-se despedindo-se do ajudante e recebendo Janos, no mais perfeito sincronismo.
— Mal posso acreditar no que estou vendo.... — disse ao final da seqüência. Acabou-se a privacidade!
— Não concordo, general — interrompeu Janos. — Nossa máquina não foi desenvolvida com essa finalidade.
— Mas se for utilizada por mentes inescrupulosas... — disse Pedro num esgar.
— Isso jamais acontecerá — garantiu o general. E, virando-se para Janos com certa desconfiança, ponderou: — Se houvesse uma câmera instalada dentro da minha sala, daquelas minúsculas — disse com um gesto de mãos —, você não poderia também obter estas imagens?
Antes que Janos pudesse responder, Jaime adiantou-se com uma fisionomia cínica e perguntou:
— Igual aquela do tipo "M" usada pelo serviço secreto?
O general não respondeu de imediato. Sabia que era uma pergunta indireta e ficou imaginando por alguns segundos como o demônio tivera conhecimento daquele equipamento super-secreto. Olhou em direção aos demais e fixou-se em Pedro, que não pôde esconder a satisfação ao vê-lo assim embaraçado perante Janos.
— Sim. E por que não? — reperguntou num olhar desafiante.
— Qual o fulcro de sua pergunta, general? — interferiu Janos desviando para si as atenções sentindo a atmosfera enegrecer ao observar ambas as fisionomias.
O general, percebendo aquela manobra, olhou mais duramente para Jaime e virou-se para Janos, mudando depois de atitude.
— Eu preciso certificar-me de que não houve nenhuma fraude na tomada dessas imagens — justificou-se o militar sabendo que o cientista concordaria com o seu ponto de vista sem levá-lo para o lado pessoal.
— Muito justo — concordou Janos balançando a cabeça.
— E como o senhor pretende fazê-lo? — perguntou Pedro desencostando-se do computador e pegando displicentemente a longa fita de papel.
O militar deu alguns passos pensativos sem uma resposta imediata e, sem querer, olhou para os botões metálicos do seu uniforme. Num gesto brusco, arrancou um e passou-o para Pedro.
— Isto aqui — disse olhando-o nos olhos como se olha para um charlatão. — Se você for capaz de extrair dele fatos ocorridos ontem, no intervalo entre as oito da manhã e o meio dia, este projeto terá meu apoio e crédito irrestritos.
Pedro pegou o botão dourado e analisou rapidamente a sua superfície, sem perceber o movimento de Jaime em direção ao módulo de leitura. Janos, por sua vez, adiantou-se na inserção dos dados e ficou aguardando o posicionamento de Pedro para recebê-los. Este, após colocar o objeto dentro do módulo e efetuar os cálculos de varredura, piscou em direção a Janos, que acionou a maqver.
Jaime liberou o máximo de memória disponível, o que daria uma seqüência de pelo menos uns vinte minutos de gravação.
— Eu gostaria que o senhor entendesse uma possível falha temporal — justificou-se Pedro enquanto aguardava o final do processamento —, pois ainda faltam alguns ajustes na obtenção de imagens sobre superfícies irregulares como esta.
— Tente me explicar isso do modo mais sintético possível — pediu o general querendo entender melhor o processo.
— É algo assim — disse Pedro pegando uma folha de papel: — imagine a luz incidindo sobre esta folha e sendo absorvida por ela. Naturalmente, para os fotons luz, esta folha não é plana, implicando em infinitos ângulos de absorção. Agora — continuou pegando uma folha amassada —, a luz não só verá as irregularidades microscópicas, mas também essas angulações da sua macro superfície. E essa é a situação que de fato temos. Para simular uma superfície plana, colocamos o objeto naquele módulo e passamos sobre ele um feixe luminoso de baixíssima intensidade. A devolução deste estímulo, por reflexão, é captada tal como nos transdutores usados em ultrassonografia diagnóstica. É feito então um padrão de superfície em três dimensões que será usado na compensação dos planos, tomados sempre no eixo horizontal, de fora para dentro em relação ao objeto a ser escaneado.
— Então — disse o general fazendo o desenho de uma escada e esforçando-se para conter um bocejo —, a luz incidente atinge simultaneamente estas superfícies e o escaneamento diz exatamente a altura desses degraus para que, quando a leitura estiver sendo feita no plano de maior altura serem incluídos os planos mais baixos automaticamente e não considerar essas diferenças — disse apontando para os degraus mais baixos.
— Exatamente — disse Pedro concordando, embora considerando inútil aquele exemplo.
— Bastante engenhoso — disse o general feliz por ter finalmente entendido algo sobre o projeto. — Mas como se dá a datação, isto é, como se estabelece a hora da seqüência desejada já que a luz incide continuamente sobre a superfície.
— Isso não é problema quando é conhecida a estrutura do material a ser analisado — respondeu Janos. — Já sabemos o coeficiente de absorção de luz em diversos materiais e, desta forma, calculamos a velocidade da sua penetração. O ato de escanear um objeto não só dá o padrão de superfície como também estabelece o horário exato em que foi feito. Assim, de posse do tipo de material e da profundidade do plano horizontal, podemos saber exatamente quanto tempo decorreu desde a sua incidência até o momento da leitura. É um método simples e bastante seguro.
— E qual o grau de precisão atingido? — perguntou o general acreditando ter dominado perfeitamente bem aquela tecnologia.
— Depende muito da complexidade da estrutura do material. Quanto mais puro e denso, maior a precisão. Mas, felizmente, temos a matemática ao nosso lado para resolver as de maior complexidade, isto é, as compostas e de menor densidade — respondeu virando o olhar em direção a Pedro.
— Sim, eu entendo, mas qual o grau de precisão? — insistiu o militar.
— Eu calculo cem por cento no primeiro caso até..., no mínimo, oitenta por cento nos mais complexos, porém com grandes probabilidades de aumento deste percentual em uma segunda medida, após decompor a amostra nos seus elementos composicionais.
O pequeno led verde indicou o fim do processamento. Pedro acenou para Janos com a cabeça e virou-se depois para Jaime, que lhe devolveu um discreto sinal positivo.
— São oito da manhã de ontem — disse Pedro lendo a mensagem que o seu computador colocou momentos antes de montar a seqüência.
O general estalou ruidosamente os dedos, obrigando Janos afastar-se um pouco em direção a Jaime, que pegava sua garrafa na gaveta.
— Aumente a velocidade — ordenou Pedro vendo que a seqüência mais parecia uma sucessão de diapositivos.
— Mas é fantástico! — exclamou o general boquiaberto e com os olhos fixos na tela. — Esse compartimento é à prova de qualquer método de espionagem.
E, segurando Janos pela gola do guarda-pó, disse com ênfase:
— Vocês não sabem o que descobriram! Vocês nem tem idéia do potencial desta máquina... Meu Deus!
14
A noite caiu sobre a ilha sem que nenhuma comunicação tivesse sido feita pelos seqüestradores de Flávia, aumentando ainda mais a angústia do casal e dos seus amigos. Lucio, já cansado de andar pela praia com o telefone na mão, sentia-se cada vez mais impotente para ajudar o sofrido presidente.
— Nada? — perguntou o anfitrião ao vê-lo entrar novamente.
Lucio respondeu apenas com um contrito gesto negativo.
— Merda — sussurrou o anfitrião aproximando-se da janela e vendo as longínquas luzes do continente.
Gostava de ficar ali parado desde menino, época em que imaginava-se num grande navio partindo em direção ao seu mundo de sonhos. Lembrou-se de quando corria naquelas praias imune aos sentimentos de tristeza, no tempo em que era só um menino, e chorou baixinho tentando voltar por apenas alguns segundos à felicidade dos tempos de outrora. Passou as mãos pelos cotovelos retirando alguma poeira que nem chegou a sentir, após afastar-se da janela, e foi consolar Daniel. Mal entrou no quarto e o telefone tocou.
— Residência dos Oliveiras — atendeu Lucio tentando parecer o mais natural possível.
— Vocês estão de parabéns — disse uma voz modulada artificialmente do outro lado da linha.
— São eles? — perguntou Daniel aproximando-se com a respiração apressada.
— São — respondeu Lucio com a mão tampando o fone e virando-se um pouco de costas.
— O que vocês querem, afinal? — perguntou Lucio com alguma autoridade.
—"Prepare um discurso com o pedido de renúncia do cargo de presidente da república a ser lido na próxima segunda-feira, em rede nacional, exatamente às dezenove horas. Dois dias depois a filha dele será entregue sem problemas".
— E como vamos ter a certeza de que vocês não estão blefando?
— Há um pequeno barco bem em frente. Você está vendo?
— Sim — respondeu Lucio levantando-se e vendo através da janela um ponto luminoso dentro do mar.
— Ele está deixando uma bóia. Vá pegá-la. Depois entraremos em contato novamente.
E, antes que Lucio pudesse dizer qualquer coisa, foi severamente alertado:
— Lembre-se! Se o barco for capturado ou o homem preso...
— Está certo, está certo. Eu já entendi — assentiu com desânimo.
Mal desligou o telefone e viu que aquelas sôfregas fisionomias ansiavam por alguma informação. Relatou imediatamente sobre o conteúdo do pedido e, quando mencionou sobre a bóia, Marta deu um grito, imaginando estar lá algum pedaço da filha.
— Tenha calma — pediu o anfitrião —, não se deixe derrotar pelos pensamentos. Depois virou-se para Lucio e perguntou se ele sabia dirigir barcos. Recebendo uma resposta afirmativa instruiu-o a pegar um dos que estava ancorado para então buscar a bóia.
— Os três estão abastecidos. O menor deles é o mais veloz. — aconselhou o anfitrião querendo que a bóia fosse logo resgatada como se isso pusesse logo um fim naquele pesadelo.
— Eu vou com você — ofereceu-se Joana que até então permanecera calada e recolhida num canto, arrependida por não ter sido mais perspicaz e culpando-se pelo ocorrido.
— Está certo — concordou aliviado porque não queria ser o único a ver o que todos imaginavam que encontraria. Assim, chegando perto da bóia, poderia simular uma manobra qualquer deixando à cargo de Joana a responsabilidade de recolher o pedaço de Flávia. — imaginou rapidamente a sua estratégia.
Entraram no barco e, nervoso, deu a partida.
— Cuidado com isso — alertou Joana ao ver o leme virado.
— Desculpe — disse segurando rapidamente a haste metálica.
— De que lado colocaram? — perguntou olhando para a escuridão.
— Lá — apontou um pequeno e solitário ponto luminoso.
— Foi tudo culpa minha — lamentou Joana iniciando uma crise de choro logo que a pequena embarcação deixou o ancoradouro.
— Olha — interrompeu Lucio agastado com tudo aquilo —, eu não sou psicólogo mas acho que você está se colocando numa falsa presunção de importância para determinar fatos de tão alta relevância. Primeiro, tente se perguntar quem orquestrou e para que finalidade raptaram a Flávia. Depois, veja se não poderia ser pior para todos se você tentasse fazer algo movida somente pelo instinto. Você é apenas parte do fato e não a geratriz dele. Portanto, dê a sua ação ou omissão a importância que realmente tem, isto é, nenhuma.
Joana assustou-se com aquelas palavras que julgou grosseiras, frustrando o consolo paternal que tanto esperava. Ao invés, foi-lhe desterrada a fragilidade oculta pela autoconfiança que julgava ter. Limpou o rosto das lágrimas até então contidas e olhou para o céu estrelado, achando um desperdício uma noite tão bela brindando um dia tão triste. Suas divagações foram interrompidas pelo súbito desacelerar do barco.
— Está vendo? — perguntou Lucio apontando para a bóia agora perfeitamente visível.
— Sim — respondeu Joana aproximando-se da proa. Parece que há um embrulho nela.
— Pegue-a enquanto manobro o barco — ordenou sem querer olhar-lhe o conteúdo.
— Até a bóia?
— Eu disse para pegar tudo.
Joana esticou o tronco para fora fazendo o barco adernar. Lucio posicionou-se do lado oposto reequilibrando-o mas evitando ver a manobra de resgate.
— Já pegou? — perguntou ao sentir que o barco voltava ao equilíbrio.
— Isso parece leve, mas... — disse com um esforço enquanto puxava para dentro o restante do cordão que servia como âncora.
A bóia foi colocada no meio do barco e ambos sentaram-se para a viagem de volta. A luz do seu mastro continuava acesa e agora, de perto, mostrava-se mais intensa. Lucio sentia não só a vista ofuscada por ela, mas também incomodado pelo que poderia revelar.
— Apague esta luz — ordenou com a mão na frente dos olhos.
Joana procurou algum interruptor com as mãos e, não o encontrando, justificou.
— Não dá para apagar.
Lucio então vendo os remos ao longo pegou um deles e bateu contra a lâmpada que se partiu com uma explosão surda, assustando Joana que não esperava tal reação.
— Sente-se melhor agora? — perguntou Joana extravasando sua ira. Não por aquele ato, mas pelo que ouviu no início da viagem.
Lucio não respondeu.
Mal o barco encostou o anfitrião pegou a corda e o amarrou de qualquer maneira, esquecendo-se do laborioso nó de que tanto se orgulhava em fazer.
— Trouxe tudo? — perguntou ao ver a bóia a bordo.
— Sim, mas eu não sei o que eles querem que vejamos. — respondeu Lucio afastando-se um pouco daquele incômodo local.
— Ajude-me com isso — pediu o anfitrião para Joana vendo Lucio caminhar em direção ao presidente, que deixava a casa, e fugindo do nauseabundo dever junto à bóia.
— Parece que não há nada mais — disse Joana após examiná-la com a ajuda da lanterna. — Acho que é só aquilo — concluiu apontando para um pequeno embrulho preso à bóia.
— Vamos abrir? — perguntou nervoso o anfitrião pegando o volume enquanto os outros mantinham-se a certa distância.
Joana olhou para o anfitrião que suava mais do que o calor permitia e ofereceu-se para abrir o invólucro de plástico.
O homem assentiu com um gesto quase agradecido.
Joana, friamente, pôs-se ao trabalho iluminada apenas pela luz amarela da lanterna. Os ruídos das desdobras sucederam-se até mostrar um volume retangular, parecendo uma pequena caixa que, imediatamente, foi aberto.
— Deus seja louvado! — exclamou Marta ao ver uma fita de vídeo nas mãos de Joana.
Todos respiraram aliviado com a tênue esperança que o objeto representava.
— O senhor tem um videocassete? — perguntou Joana com a fita na mão.
— Claro — respondeu o anfitrião mandando todos entrarem com um gesto.
Colocaram a fita no aparelho.
— Passe rápido — determinou a mulher do anfitrião vendo que as imagens custavam a aparecer.
Quando finalmente surgiram, viram uma Flávia serena.
— "Pai. Até agora nada de mal me aconteceu. Estou muito assustada, mas eles estão me tratando muito bem. Essas marcas não foram eles que fizeram, eu mesmo as provoquei tentando escapar logo que soube do meu rapto. Acredite".
Depois, a cena volta-se para um homem encapuzado exibindo a primeira página de um jornal, confirmando a data daquela gravação, que emendou:
— "É comovente não? Pois é. É a presidência ou a filha querida — disse num sorriso cínico. — Agora é a hora de provar o seu lado paterno, esquecido pelas campanhas e substituído pelo poder. É hora de recuperar a filha que teve que viajar para esquecer o pai que nunca teve. O eterno ausente envolvido em esquemas de corrupção e responsável pela desordem na qual está mergulhado o país. O poder é para os quem podem, e não para os que querem. Veja bem, presidente, nós estamos oferecendo à Vossa Excelência a opção de ser um herói e ter sua filha de volta, ou um final melancólico de presidente deposto.
Dentro em breve, a história saberá da verdade e o senhor será reconhecido. Quem sabe não será essa a sua chance de tornar-se o maior de todos os estadistas de nossa terra?
Bom, aqui eu me despeço e louvo para que sua filha tenha a sorte de contar com o pai para salvá-la”.
Fez-se um longo silêncio antes que alguém manifestasse qualquer opinião.
— Eu vou morrer e este país continuará vivo. — disse Daniel quebrando o silêncio e atraindo para si as atenções. — Prepare o discurso — ordenou após uma pequena pausa virando-se para o lado em que Lucio se encontrava e retirando-se em direção à praia. O anfitrião levantou-se para acompanhá-lo, mas foi impedido por Marta:
— Pode deixar. Ele está bem — disse vendo-o caminhar lentamente pela areia e quase desaparecendo na escuridão.
— Senhora — disse Joana aproximando-se da primeira-dama. — Eu morei com Flávia na Europa e posso afirmar que tudo não passa de uma grande mentira. Ela não viajou para fugir do pai, muito pelo contrário, orgulhava-se dele. Sempre o mencionava em nossas conversas como um pai, e não como um político de expressão.
— Obrigado, minha filha — agradeceu comovida. Depois, virou-se para Lucio e ordenou:
— Faça o que o presidente mandou. Por favor...
— Pode deixar, Marta, amanhã estará pronto — disse tentando formular mentalmente os termos. — Preciso ir até ao meu escritório e pegar alguns documentos...
— Use o barco o quanto quiser — ofereceu o anfitrião.
— Obrigado, Oliveira, acho que vou precisar mesmo.
— Quando você pretende ir ao litoral? — perguntou Joana.
— Agora mesmo — respondeu consultando o relógio.
— Vou com você — disse.
— Acho que não deve — interferiu Catarina —, eles provavelmente estão nos vigiando. Qualquer atitude que julgarem colocar o plano em perigo poderão reagir e...
— Eu concordo. — interrompeu delicadamente Joana. — É que eu precisava comprar umas coisas na farmácia... a senhora entende. Saí apressada e...
— Não acredito que nos dias de hoje uma moça ainda tenha o pudor de ocultar que está menstruada — admoestou Catarina. — Não é isso que você está querendo dizer?
— É verdade. Nós somos muito desprendidas em nosso meio, mas basta mudá-lo para tornarmos provincianas.
— Você compra absorventes para ela? — perguntou voltando-se para Lucio.
— Naturalmente. E isso tem marca ou tamanho?
Chegando ao cais, viu um barco pequeno e muito parecido com aquele que vira no momento em que falava com o seqüestrador, mas fingiu ignorá-lo. Olhou em volta e todos pareceram vigiar seus mínimos passos. Todos eram suspeitos. Dirigiu-se ao responsável pela guarda das embarcações informando que o barco ali permaneceria e depois tomou um táxi. Logo que o motorista entrou numa curva virou o quebra-sol espelhado e passou a monitorar a retaguarda. Não estava sendo seguido. Chegou ao seu apartamento e, vendo a cama tão aconchegante, teve ímpetos de atirar-se nela e esquecer todo o pesadelo. Mas ao invés, sentou-se na poltrona e deixou seu cérebro trabalhar.
15
— Há um homem querendo vê-lo. Parece ser alguém importante, pois me informaram que viajou num avião militar e o carro que o trouxe até aqui é oficial — disse o general ao comunicar-se com Janos.
— Já estou subindo.
— Janos! — Exclamou Lucio ao ver o velho companheiro.
— Então já se conhecem — disse o general percebendo aquela manifestação de camaradagem. — Aceita uma bebida? — ofereceu tentando ser simpático.
— Sim, acho que vou aceitar — disse Lucio com ar ansioso mas parecendo não querer perder muito tempo.
Tão logo respondeu ao general, virou-se para Janos e, sem a menor cerimônia, foi falando:
— Janos, preciso conversar muito com você — disse virando-se novamente para o cientista.
— Se quiserem podem usar o meu gabinete — ofereceu o general trazendo um copo e tentando ser gentil, preparando-se para sair.
— Acho que o senhor terá que participar também, general — disse Lucio.
— Eu teria muita honra mas, primeiro, gostaria de saber a que nível de conversa vamos nos reportar.
— Eu sou o assessor especial do presidente e com livre trânsito pelo departamento de informações — respondeu Lucio com toda sua autoridade.
— Então o senhor deve ter um código para...
— Acesso a informações secretas — completou Lucio.
— Sim, é isso — confirmou meio sem jeito.
— Eu não tenho muito tempo para formalidades, general, por isso faça o obséquio de proceder a investigação de praxe.
O militar, mesmo sentindo-se diminuído, não se deixou levar pelo impulso inicial. Pegou o terminal e digitou uma série de informações, seguidas pelo nome completo de Lucio.
— Digite a sua senha, por favor.
Janos acompanhava aquele diálogo com certa desaprovação, embora soubesse avaliar sua utilidade, principalmente depois que pensou na sua máquina.
Lucio digitou toda a longa série numa única velocidade, ficando durante alguns segundos aguardando a confirmação. Quando, finalmente, o computador mostrou na tela a foto seguida da sua hierarquia, o general mudou o tom, chegando quase a tratá-lo por excelência.
— Então trata-se de um assunto oficial de extrema segurança — concluiu.
— É exatamente isso, general. Mas, primeiro, devo informá-los sobre tudo que está acontecendo.
Lucio relatou sem rodeios ou meias palavras tudo o que acontecera no dia anterior.
— E como espera que o ajudemos, senhor? — perguntou o general findo o relato.
— Essa máquina que estão desenvolvendo. Qual o seu estágio atual?
O general olhou para Janos decepcionado por não ser a única autoridade a conhecer de perto o projeto. Teria que dividir, no mínimo com mais outro, o poder de manipular informações. Depois, voltou-se para Lucio e respondeu:
— Eu diria que está em fase de testes finais.
— O que o senhor chama de testes finais?
— Bem...
— Se você quer saber, Lucio — interrompeu Janos sentindo o general preparar alguma resposta evasiva —, ela está praticamente pronta. Podemos utilizá-la com alguma segurança dentro dos âmbitos laboratoriais, mas carecemos de experiências práticas. Aprontamos há menos de uma semana.
— Janos, eu pretendo usar esta máquina mesmo correndo o risco de não funcionar. É a única saída que o presidente tem para recuperar a filha para si e o país para nós. Ele não sabe que estou aqui negociando ajuda, senão me impediria.
— Então está agindo por conta própria? — perguntou o general tentando minimizar sua autoridade.
— Não da forma que o senhor está pensando, general, mas mesmo que eu o estivesse, o meu cargo me permitiria — enfatizou Lucio que raramente invocava seu poder.
— Claro...., claro. Não estou querendo insinuar isso e peço desculpas pelo mal entendido...
— Não há problemas, general, estamos todos de alguma forma preocupados. Seria extremamente lamentável se nossa conversa saísse desta esfera.
— Você quer assistir a alguma demonstração? — perguntou Janos.
— Não. Sua palavra basta. Gostaria apenas de reunir a sua equipe para idealizarmos um plano de ação.
— Seria mais conveniente no laboratório — sugeriu o general convencido que, embora estivesse em segundo plano no poder, Lucio estava interessado tão somente em resolver a gravíssima situação do presidente.
— Parece-me bastante razoável a sugestão — concordou Janos.
— Então vamos — disse Lucio levantando-se rapidamente e vendo o tempo se escoar sem piedade.
— Onde está Jaime? — perguntou Janos ao entrar no laboratório.
— Nos finais de semana ele costuma dar aquelas saídas — respondeu Pedro estranhando a visita de Lucio, que reconheceu de imediato.
— Como vai, Pedro? — cumprimentou também reconhecendo-o. — Soube que fizeram um ótimo trabalho.
Pedro sorriu agradecido mas evitou dar qualquer informação adicional.
— Tudo bem, Pedro. — disse o general percebendo seu embaraço. — o nosso visitante é um emissário do presidente e está em missão oficial.
— Então ele já conhece o nosso projeto?
— O suficiente para querer utilizá-lo numa causa nobre — respondeu Janos.
— E quanto ao outro? — perguntou Lucio.
— Não se preocupe — tranqüilizou o general. — Eu sei onde ele costuma freqüentar. Vou mandar dois agentes trazê-lo imediatamente.
— Ótimo, general. Independentemente do resultado do nosso trabalho, vou recomendá-lo ao Comando do Estado Maior pela inestimável ajuda que está prestando a causa do país num momento tão delicado — disse Lucio percebendo que aquelas palavras atingiriam o ego do militar, conseguindo assim sua total colaboração.
Assim que o general saiu, Pedro comentou:
— Isso é que eu chamo de jogo de cintura.
— Política é a arte de caminhar sobre espinhos com os pés dos outros mas sem deixar que se firam — disse Lucio dando um pequeno tapa no gordo braço de Pedro.
Os agentes já estavam rodando há quase uma hora, revirando todos os lugares indicados pelo general.
— Onde aquele careca filho da puta se meteu? — perguntou Mattos sem tirar os olhos das calçadas.
— Vamos visitar este endereço — sugeriu Borges abrindo seu caderno de anotações. — Não sei como um cientista importante como ele pode freqüentar lugares tão chulos.
— Mas é lá que estão as melhores mulheres — justificou Mattos.
— E as piores doenças — arrematou Borges.
— É aqui — disse Mattos fazendo um sinal.
Estacionaram o carro e logo veio um homem com um pano sujo nas mãos dizendo-se guardador de automóveis.
— Pode dexar, dotô, que eu tomo conta.
Borges sentiu repulsa pela subserviência a serviço da malandragem. Mattos, porém, sacou da sua carteira e deixou propositadamente o homem ver o seu revólver.
— Tudo bem... tudo bem — disse o homem afastando-se assustado.
— Você não devia se exibir assim — censurou Borges.
— É? Esnoba só o filho da puta e tenta achar o carro inteiro na volta — justificou-se Mattos. — Já pensou no que diria o general se nós ligássemos dizendo que o nosso carro foi roubado ou quebrado porque não pagamos a um "flanelinha"?
— Lá está ele — apontou Borges com alívio logo que cruzaram a porta.
— Olha que mulherão! — disse Mattos esbarrando no companheiro com o ombro. — Ele vai ficar muito puto — completou.
— Isso é problema dele — disse Borges aproximando-se da mesa. — Nossas ordens foram para trazê-lo de qualquer maneira e de qualquer lugar.
— Boa noite — cumprimentou Mattos adiantando-se ao companheiro.
— Estou conhecendo você de algum lugar — disse Jaime com a voz arrastada pelo álcool.
— O senhor deve nos acompanhar agora — ordenou apresentando um bilhete com o timbre do laboratório.
— Não encha o saco, cara! Não vê que estou ocupado? — perguntou dando uma piscada para a mulher ao seu lado.
— Doutor — disse Borges próximo do seu ouvido —, nós temos ordens de levá-lo nem que seja debaixo de porrada.
Jaime sinalizou para um homem que imediatamente chamou dois seguranças.
— Por acaso os senhores estão incomodando o meu cliente? — perguntou o homem aproximando-se com dois jagunços, que cercaram os agentes.
— Olha bem — disse Mattos mostrando as suas credenciais —, se tentarem nos impedir de tirar este homem daqui mandaremos lacrar esta espelunca agora mesmo e ainda levamos vocês em cana.
Borges calmamente abriu o paletó e tirou o telefone.
— Escolham: — disse ao homem e aos seus seguranças — ou nos ajudam ou se ferram.
Sem necessidade de argumentação mais convincente, o homem afastou-se com os seus capangas deixando o campo livre para os dois agentes.
— Vamos embora — ordenou Borges com um movimento de cabeça.
— Pode deixar que ele volta, moça — disse Mattos à mulher que pareceu não estar dando a menor importância ao fato.
Jaime levantou-se e, ao cruzar com o homem a quem pedira auxílio, ouviu dele:
— Hoje é por conta da casa.
Entraram no carro e partiram rapidamente. Borges pegou novamente o telefone e ligou para o laboratório informando que estavam a caminho e também do lamentável estado do cientista.
— Já está chegando — informou o general minutos depois ao trio reunido.
Jaime tomou, por ordem do general, uma injeção para minimizar os efeitos do álcool e foi levado diretamente ao laboratório.
— Porra, não me deixaram nem mijar! — reclamou sem tomar conhecimento da presença de Lucio.
— A culpa é toda minha — disse apresentando-se.
— Agora que já somos íntimos, pode autorizar-me a ir no banheiro?
Lucio deu uma gargalhada, surpreendendo-se depois como conseguira rir em semelhante situação. Mais tarde, ajudado pelos demais, colocou Jaime também ao par da situação.
— Para isso teremos que criar um transmissor de dados — disse ao tomar conhecimento dos fatos.
— Como assim? — perguntou o general.
— A base fundamental do nosso trabalho — explicou Jaime —, se resume em analisar pedaços de material naquele módulo de testes. Uma operação dessa envergadura, tentando localizar algo, necessitará.... sei lá... de muitas amostras e em locais diferentes. Teríamos ou que montar a maqver lá ou transmitir para cá os resultados de cada leitura. Obviamente, a transmissão dos dados é a única solução viável.
— E isso pode ser feito em tempo hábil? — perguntou Lucio sentindo a pressão do tempo.
— O que você chama de tempo hábil? — perguntou Jaime desconhecendo o prazo exíguo dado ao presidente para renunciar.
— Três dias e meio para estar tudo resolvido — respondeu Lucio adiantando-se.
— Três dias? Três dias para inventar, testar, transportar, analisar... Você enlouqueceu de vez — disse Jaime indo até a sua gaveta e pegando a garrafa. — Sabe há quanto tempo estamos trabalhando neste projeto? Claro que nem faz idéia. Sabe quantas vezes deve-se testar algo novo para que se tenha uma razoável confiabilidade?
Os homens entreolharam-se enquanto Jaime sorvia um gole.
— Muito bem — disse limpando os lábios com as costas da mão —, consigam o circuito da câmera do tipo "M".
— Somente o serviço secreto tem acesso.... — ia dizendo o general quando Jaime interrompeu.
— Não me venha com essa, general. Aquele circuito que vocês instalaram aqui no laboratório ainda deve funcionar muito bem. Eu destruí apenas os transdutores.
— Eu desconheço totalmente o assunto — disse caminhando em direção a Janos.
— Então nada feito — finalizou tomando mais uma generosa golada. — E me tiraram de uma festa por isso... — lastimou sentando-se em sua mesa pelo frustrado final de semana.
— É possível descobrir se esse tal circuito existe mesmo ou isso já é uma espécie de delirium tremens? — perguntou Lucio irritando-se com aquela cisão do grupo.
— Vou averiguar imediatamente — disse o general olhando para Janos a quem jamais gostaria de admitir-lhe a traição. — Enquanto isso, vejam o que podem ir fazendo para adiantar — completou saindo apressadamente.
O major ficou surpreso com o pedido.
— Mas, general, como podemos revelar a presença de uma unidade dessa natureza? Se essa informação vazar teremos muito a explicar ao comitê de segurança.
— Eu sei, merda. Temos que dar um jeito de passar às mãos daquele demônio bêbado o que ele tanto queria.
— A prova definitiva — asseverou o major.
— Não exatamente a prova, mas o circuito.
— O senhor está mesmo disposto a ajudar aquele assessor? — perguntou o major pronto para colocar-se ao lado do chefe qualquer que fosse a sua decisão.
— É preciso. O país corre grande risco de ficar ingovernável e a comunidade internacional não gostaria de ver-nos novamente no poder. Não que eu seja contra, mas a continuar o clima de corrupção desenfreada e o constante desrespeito às nossas instituições, não vemos outra saída senão tomarmos à frente do governo. Um golpe agora traria um retrocesso com prejuízos incalculáveis à nossa sociedade. E não é isso o que queremos.
O major respirou fundo caminhando até o cofre e dele retirou uma maleta. Abriu-a e pegou uma pequena caixa e mais uma placa contendo um circuito, passando-as às mãos do general.
— Isso deve servir.
— Obrigado, major, é bom contar com você.
O general saiu apressado da sala do major e dirigiu-se de imediato ao laboratório, passando às mãos de Jaime o que ele tanto precisava.
— Parece que ainda não foram usadas — disse examinando a placa contra a luz e passando o dedo nos contato de ouro, não sem antes colocar a pulseira anti-estática.
— Vão servir? — perguntou apreensivo Lucio olhando sempre para o relógio.
Jaime fez um ar de mistério mas por fim respondeu:
— Eu posso construir uma extensão do módulo, mas nunca o fiz antes. E a merda toda é que vocês não vão me dar nenhuma chance para errar.
— Esse luxo realmente você não vai ter, meu caro — disse Pedro. Depois chamou Janos e Lucio e marcou uma reunião de trabalho, enquanto Jaime dedicava-se a montar o transceptor que seria acoplado ao módulo de testes para receber as análises à distância.
O general chegou quase instantaneamente, pois apenas simulara um compromisso urgente para justificar sua ausência do laboratório e assim tornar-se mais importante.
— Muito bem — disse querendo determinar o rumo dos trabalhos —, como vocês pretendem usar a maqver nesta busca?
Foi novamente Pedro quem assumiu a palavra:
— A idéia é bastante simples — disse colocando diversas moedas sobre a mesa. — Primeiro, temos que ter um ponto de partida. De acordo com o relato de Lucio, a filha do presidente foi seqüestrada na porta deste prédio — disse separando uma moeda e colocando-a no meio da mesa. — Depois, há o homem que colocou a bóia no mar — completou colocando outra um pouco mais distante da primeira. — Ambos os casos servem como ponto de partida.
Tomou uma respiração e, notando que todos estavam compreendendo o plano, continuou:
— No primeiro, podemos recolher informações da estrutura metálica desta escada — disse apontando para uma das fotos trazidas por Lucio —, lemos as amostras no próprio local e transmitimos os resultados para cá, através do equipamento que Jaime está construindo. Estas informações revelarão o tipo do carro usado assim como os próprios seqüestradores.
— Mas são apenas informações locais — interrompeu o general. — E quando o carro sair da esfera de visão desta amostra?
— A situação é esta — continuou Pedro colocando outra moeda. — O carro levando a moça ou foi por aqui ou por lá. Isto o próprio sentido da rua nos dirá. O problema começará nas curvas. Há uma esquina aqui — disse apontando para um palito que partiu ao meio. — E, nesse ponto, uma nova amostra será colhida. E deverá ser assim, isto é, teremos que colher amostras sempre que a outra perder o seu raio de visão.
— Poderão ser infinitas coletas... — pressagiou Lucio com certo desânimo.
— Não me parece tão mau assim — disse Pedro assumindo novamente. — Com um pouco de sorte, se tiverem tomado alguma estrada reta, poderemos chegar ao seu cativeiro o mais breve que imagina.
— Vocês realmente são fantásticos — desabafou Lucio —, mas eu gostaria de ter esta certeza. Há o problema do tal transmissor que pode não funcionar... e ele não me pareceu muito bem... — ia referindo-se à quase embriaguez de Jaime quando foi interrompido.
— Não se preocupe com ele — acalmou Pedro. — Nessas horas parece que entra numa outra dimensão e acaba descobrindo a solução. E, virando-se para Janos, perguntou: — lembra de quando ele foi citado numa revista especializada em paranormalidade?
Janos ameaçou um sorriso e confirmou com a cabeça.
— Vocês são uns iluminados — elogiou novamente Lucio.
— Mas voltando ao ponto de partida — interrompeu o general enciumado com aqueles elogios, principalmente porque colocaram Jaime em situação inatingível. — Esta operação de recolher as amostras e de aproximação com os seqüestradores terá que ter necessariamente um comandante militar.
— Eu estava pensando exatamente nisso agora — disse Lucio —, e gostaria que o senhor nos desse a honra de assumir.
— Eu aceito com muita honra — disse o general satisfeito por participar mais ativamente do resgate. — E, virando-se para os demais assumindo de fato o novo posto, perguntou: — mais alguma dúvida sobre o plano?
— Não da nossa parte, mas do lado policial da operação. Não podemos nos esquecer que este resgate extrapola os computadores que... não sangram — disse Janos querendo maiores detalhes, já que era a sua máquina o ponto central da operação.
— Quanto a isso não se preocupem. Tenho os melhores e os mais bem treinados agentes do país. Homens que dariam a própria vida para o sucesso da missão.
— Isso me assusta um pouco — disse Janos ao ouvir a última frase.
— Janos — interrompeu o general —, não foi sua a idéia seqüestrar a filha do presidente. E quem o fez já sabia dos riscos que corria.
— Vou até o laboratório e saber se Jaime precisa de alguma ajuda — disse Janos levantando-se pouco à vontade com aquele desenrolar.
— Deixa ele ir, general — pediu Pedro ao ver o militar preparando-se para impedir-lhe a saída.
— Quando poderemos começar? — perguntou Lucio olhando novamente para o seu relógio.
— Vou até o meu gabinete e...
— Só um detalhe, general — interrompeu Lucio. — Antes que eu me esqueça, esta é uma missão extremamente sigilosa e não constará de nenhuma pauta ou ordem oficial. Ninguém deverá saber que se trata da filha do presidente ou o motivo do seqüestro. Não haverá nenhum relatório, nenhuma pergunta e nenhuma informação. Os sobreviventes e os mortos deverão ser completamente esquecidos. Não haverá também nenhum herói.
O general sorriu e asseverou:
— Esta é exatamente a minha especialidade.
Jaime estava quase de cabeça para baixo quando Janos se aproximou.
— Como está indo? — perguntou Janos ao ver Jaime naquela incômoda posição com o módulo desmontado sobre a mesa preso a diversos fios.
— Não foi tão difícil quanto pensei — respondeu limpando as mãos na camisa suja e batendo desleixadamente na calça. — Se eu já tivesse esses circuitos desde o início do nosso trabalho muitas etapas teriam sido desnecessárias — lamentou.
Virou-se depois para o lado lembrando-se de algo e pediu:
Janos — chamou pegando uma garatuja com diversas medidas —, peça ao Pedro para projetar e construir esta peça de montagem. Ela deverá ser instalada na viatura que transportará o transceptor durante as análises de rua. Preparei também as instruções para sua instalação.
— Você vai permanecer no laboratório?
— Sim. Não será necessária a ida de nenhum de nós àquela cidade. Veja esse acoplador — mostrou uma peça que muito lembrava um funil com alças — Ele permite que os sinais sejam retirados do local.
— Como assim?
— Até agora usamos pedaços de matéria para as nossas análises. Mas se durante a coleta eles se depararem com a impossibilidade de retirar determinada parte para amostra? É uma possibilidade que pode perfeitamente ocorrer. Para evitar isso preparei esta peça, que deverá ser fixada sobre a superfície de leitura.
— E como funciona?
— Há um feixe de luz horizontal idêntico ao usado no escaneador do módulo que indica o início da varredura. De posse desta informação, o escaneador iniciará o seu trabalho no exato ponto em que a luz horizontal foi interrompida. Dessa forma não haverá mais a necessidade de destacar nenhum pedaço de matéria. Tudo graças ao circuito-espião.
— Muito bom, Jaime! E quando estará pronto para os testes?
— Já testei — respondeu piscando o olho.
16
O eficiente general, logo ao desembarque, providenciou cuidadosamente os preparativos para o início da missão. Requisitou uma viatura oficial camuflada em carro de manutenção de energia elétrica e nela instalou, pessoalmente, todo o maquinário enviado do laboratório. Diligentemente, seguiu à risca as instruções e somente deu-se por satisfeito depois de confirmado o sinal de acoplagem final com o laboratório.
Além da tecnologia da maqver contava com a colaboração direta do major, dos dois agentes especiais e de outro agente local, que também serviria como motorista.
— Podemos partir? — perguntou Moreira assumindo o volante da viatura e mexendo-se desconfortavelmente dentro da roupa. O general também sentia-se um tanto ridículo naquele disfarce, parecendo até que iria a algum baile de carnaval.
— Pelo menos estamos na cidade certa — tentou com algum humor justificar os trajes, apesar do sono pela noite não dormida.
Lucio voltou para o seu apartamento e de lá informou ao presidente que permaneceria no continente acompanhando os acontecimentos e preparando o discurso de renúncia, que sequer ousou pensar. Montou também uma pequena central de comunicações que o permitiria, sem intermediação, entrar em contato simultâneo com a unidade móvel do general e com o pessoal do laboratório. E, dentro deste quartel-general, Lucio autoriza o início da operação.
O general e a sua equipe deslocam-se imediatamente para o local em que Flávia fora seqüestrada.
— É aqui — disse Moreira estacionando o carro em frente ao prédio da galeria.
— Já sabem o que fazer — disse o general aos dois agentes.
Moreira retirou a escada de sobre a caminhonete enquanto Borges, disfarçadamente, fixava o acoplador na estrutura metálica da portaria. Havia passado a manhã inteira treinando, de sorte que não teve dificuldades em fazê-lo. Mattos e Moreira simulavam um exame nos cabos do transformador de rua, temendo para que nada acontecesse ou alguém os chamasse para algum real reparo.
Um idoso transeunte, vendo o curioso objeto preso à portaria, perguntou:
— Que tipo de medida você está fazendo, meu filho?
— Ah... é uma espécie de análise de fuga de corrente. É isso.
— Interessante — disse o velhote tocando distraidamente a parede e parecendo satisfeito com aquela explicação, embora sem se afastar imediatamente do local.
O general, que ocupava o interior fechado da caminhonete, olhava preocupado aquela presença, enquanto aguardava o sinal do laboratório. Ainda bem que determinara o uso de uniformes velhos e avariados, detalhe que agora lhe pareceu bastante relevante, pois uma equipe de manutenção estatal com indumentária toda nova, no mínimo, seria uma atração indesejada.
Foi com grande alívio que viu a luz verde do painel sinalizando a perfeita recepção dos dados.
"O miserável tem o seu valor" — disse para si um pouco antes de sinalizar aos demais que a missão naquele local terminara com sucesso. Moreira baixou rapidamente a escada, auxiliado por Mattos, enquanto Borges retirava o acoplador. O general, por sua vez, permaneceu no interior da viatura, de onde não mais sairia, controlando dali toda a operação.
Borges, já dentro da caminhonete, ouviu a batida no vidro traseiro que separava a cabine do restante do carro e pegou das mãos do general a impressão da imagem gerada pelo computador de bordo, usando os dados obtidos à partir do acoplador e processadas pela maqver.
— É tão nítida que parece uma foto — comentou apontando para o veículo e os seqüestradores, no que os outros dois também concordaram.
— Traz até o momento exato do fato ocorrido. Não é? — perguntou Mattos mostrando os números na parte inferior da impressão.
— É verdade — concordou Borges que não os havia reparado.
— Pare nesta esquina — ordenou o general pelo intercomunicador após decorrido um certo tempo de percurso em linha reta.
Pararam e repetiram a mesma operação, com igual sucesso.
— Parece que está funcionando — disse Pedro recebendo os novos dados.
Mas, à medida que as amostras iam sendo processadas, surgiu um complicador que não fôra contabilizado durante o curto período de planejamento: não se podia saber ao certo o exato momento que o carro passaria em frente ao ponto de coleta dos dados. Isso aumentava em muito o tempo de processamento, pois tinham que programar uma longa seqüência para só aproveitarem, efetivamente, apenas uns poucos quadros.
A equipe de campo também sentia o tédio pelo longo intervalo entre as coletas.
— Pedro — chamou Jaime —, se estamos seguindo o carro, por que então não criamos um padrão específico da sua identidade?
— Explique melhor isso — interessou-se Janos.
— Se criássemos um modelo matemático do carro com suas três dimensões, esses dados poderiam ser introduzidos no computador com um programa específico que o reconheceria sem a necessidade de reconstruir nenhuma seqüência. No exato instante em que esses padrões fossem reconhecidos a máquina iniciaria de imediato a reconstrução das imagens, economizando assim um tempo precioso.
— Parece interessante — disse Janos aproximando-se visivelmente interessado na idéia. — Você tem alguma idéia de como fazê-lo? — perguntou olhando para Pedro.
— Creio que sim — respondeu passando a mão no volumoso abdome.
Em pouco tempo, após profunda concentração, apresentou uma página repleta de cálculos matemáticos e desenhos que mais lembravam uma escrita antiga. Janos não teve nenhuma dificuldade em interpretá-los
— Creio que já temos a solução. — disse Janos mostrando para Jaime a folha após breve análise.
Jaime fez uma espécie de careta, pois fórmulas matemáticas não era efetivamente algo que ele considerava como sua especialidade.
— O pior de tudo é que sempre sobra para mim.
Dizendo isso, sentou-se em frente ao seu terminal e pôs-se a digitar alguns dados, enquanto os outros dois aguardavam em silêncio outra longa seqüência de programação.
— É isso — disse para Pedro passando-lhe um disquete. — Tente acoplar isso no seu programa e ver se ele reconhece esses dados.
Pedro pegou o disquete e colocou-o no drive do seu computador, abrindo depois o seu compilador predileto e mergulhando numa profunda reflexão. Depois, como se estivesse ligado a uma fonte de inspiração, iniciou um trabalho ininterrupto durante uns quinze minutos, findo os quais acoplou o novo programa ao principal.
— Vamos experimentá-lo na próxima remessa — disse com certa ansiedade.
O general, mesmo tendo que aguardar o longo período entre as leituras, continuava animado com a nova tecnologia.
"O demônio vai acabar dando um jeito nisso, posso até antever o resultado"
— Está ficando escuro, general, vamos continuar noite adentro? — perguntou Mattos espremendo um mosquito de contra o rosto suado.
— A noite toda e o dia todo. Se alguém aqui está pensando em dormir pode esquecer — disse pelo interfone sem ver as momices que Moreira fazia diante daquelas ordens.
— Acho melhor começarmos a tomar aqueles malditos comprimidos — disse Mattos referindo-se aos estimulantes tomados em missões cujo fim não se poderia determinar.
— É o jeito — concordou Borges tirando uma cápsula do bolso e ingerindo-a sem o auxílio da água.
— Eles mandaram seguir em frente — ordenou o general ultrapassando o posto policial, o mesmo que, gentilmente, deixou Ismael passar durante o seqüestro.
— É melhor abastecermos o carro depois da coleta, só assim ficamos com algo por fazer — transmitiu Mattos ao general.
Desceram próximos a uma passarela metálica e, reparando a bifurcação das pistas, Borges resolveu colher duas amostras, rigorosamente anotadas pelo general.
— Meia hora de espera... No mínimo — disse Moreira segurando indolentemente a chave de ignição.
Auxiliado por um mapa da região que digitalizou, Jaime sabia com precisão o exato local onde estava parado o carro de coleta, sofisticando ainda mais a busca.
— Eles dobraram nesta avenida — disse apontando a linha negra da tela — e, se não houver nenhuma pista secundária neste trajeto, o próximo ponto de parada deverá ser aqui — completou apontando uma linha perpendicular.
Pedro transmitiu as coordenadas em menos de cinco minutos após ter recebido as duas amostras.
O programa criado por Jaime e Pedro funcionou com perfeição.
— Já? — surpreendeu-se Moreira ao receber a ordem de partida.
"Devo reconhecer que são os melhores" — admitiu mais uma vez o general.
— Chegamos — anunciou Moreira iluminando o local com o foco móvel do carro.
Borges saltou com o acoplador na mão e procurou um lugar para a coleta. Estava escuro e não havia nenhum ponto para leitura, de sorte que foi obrigado a caminhar pela velha rodovia à procura de uma fonte.
— Merda! Só tem árvores — praguejou pela impossibilidade da obtenção de imagens à partir de organismos vivos.
O general também resolveu descer, após permanecer trancado quase o dia inteiro.
— Onde está o Borges? — perguntou ao dar falta do agente e dirigindo um olhar de reprovação para Moreira, que urinava ruidosamente sobre o asfalto.
— Ele foi em frente e virou à direita — indicou Mattos esperando apenas que ele se afastasse para também urinar.
Moreira peidou ruidosamente, gargalhando prazeirosamente ao notar que o general ouvira o estampido anal, pelo balançar negativo de sua cabeça.
O general apressou o passo e tentou ver algo que pudesse servir como colheita de amostra, calculando que Borges afastara-se exatamente para este fim.
— O que aconteceu? — perguntou meio ofegado pela rápida caminhada após longo tempo sentado.
— Não consegui encontrar nada que sirva — lamentou olhando para os lados escuros da via.
— Foi o que eu imaginei. O mapa que estão seguindo e tomando como base não indica nenhuma secundária naquela pista, por isso nos mandaram direto para cá — informou o general referindo-se ao pequeno entroncamento por onde passaram. — Se eles não entraram naquele desvio devem ter passado por aqui, dobrando para uma dessas direções — disse apontando para os dois lados da avenida na qual estavam parados. Vamos seguir em frente e verificar se há um poste ou qualquer outra superfície analisável. Se não passaram por aqui ou por lá, seguramente entraram naquela secundária.
— É o jeito — concordou Borges meio desanimado. Passados alguns minutos de procura conseguiram finalmente encontrar os pontos de colheita, que não indicaram a passagem dos seqüestradores naquela avenida. Foram então instruídos a voltar e entrar pelo pequeno entroncamento, após receber do general a informação da sua existência.
— Por que então não colheram logo uma amostra? — indignou-se Jaime. — Assim queimariam esta etapa.
— O general disse que é uma pista meio abandonada e sem iluminação pública. Como iriam justificar um carro de manutenção parado nessas condições sem despertar suspeitas? — respondeu Pedro concordando inteiramente com a estratégia do militar.
— Sendo assim... — concordou Jaime voltando-se para um mapa mais específico da região que conseguira obter através da internet.
— Pelos cálculos do general eles estão a menos de cinco quilômetros desta esquina. — ia dizendo Pedro quando Jaime interrompeu e mostrou a secundária referida pelo general e que dava para uma praia pouco freqüentada:
— Minha intuição diz que estão em algum lugar por aqui — disse com o dedo sobre uma pequena enseada.
— O que você acha, Janos?
— Onde essa avenida vai dar? — perguntou antes de opinar.
— Nesta direção, para fora do estado; e, para cá, volta ao centro.
— Há muitas casas nesta praia?
— Não sei, mas o Lucio está verificando com os seus contatos e daqui a pouco informa.
O general pediu novamente cautela devido à suspeita que poderiam despertar usando aquele carro. Pensou até em trocar de viatura, mas foi demovido por Lucio que alegou não poder dispor de mais tempo para novas montagens. Sem outra alternativa, portanto, teve que seguir o plano original.
Moreira acendeu um cigarro e, conforme combinaram, conversariam em voz alta sobre a última partida de futebol e simulando divergências de opinião.
Borges sentia-se pouco à vontade em virtude de não gostar daquele esporte.
Avançaram por alguns quilômetros na estrada escura até começarem a encontrar algumas casas, distantes uma das outras, mas não viram nenhuma rede elétrica que justificasse a presença de um carro de manutenção.
— Será que ainda estão na era do lampião? — perguntou Mattos irritado por não ver nenhuma delas utilizando eletricidade.
— Calma — pediu Borges afagando o acoplador no colo. — Se eu tivesse que seqüestrar alguém não ficaria tão exposto. É bem provável que tenham seguido até a praia onde há a possibilidade de continuar pelo mar. Além de tudo, essa estrada não tem nenhuma outra secundária.
— Você acha que eles estão por aqui? — perguntou Moreira atirando fora a ponta de cigarro.
— Posso até sentir o cheiro deles — respondeu Mattos pensando em Ismael, que procurava ver pelas janelas fechadas por onde passavam.
— Pare o carro — ordenou subitamente o general.
— O que houve? — perguntou Mattos levando instintivamente a mão até sua arma.
— Abra o motor, xingue um palavrão e volte até aqui. Rápido! — ordenou novamente.
Moreira desligou a ignição e deixou a caminhonete sair da estrada, abrindo depois a frente e encenando um aborrecimento. Voltou para a cabine e disse, entre palavrões, que o motor apagara.
— Pegue uma lanterna e finja tentar um reparo — ordenou à Moreira. — E quanto a vocês dois, coloquem a escuta auricular e batam em qualquer casa, preferencialmente vazia, para que pensem que estamos realmente em apuros.
— Certo, general, mas o que aconteceu? — perguntou Borges saindo do carro e seguido por Mattos.
Pelo auricular, o general informou que havia somente mais uma casa no final da rua e que dava para uma praia. Se realmente estivessem lá, estranhariam a presença do carro; por isso, decidiu parar antes de se mostrar visível.
— E como o senhor soube desta casa? — perguntou Mattos olhando a escuridão em frente.
— Eles me informaram — respondeu.
Borges alcançou a varanda de uma residência saltando sobre a pequena cerca e bateu na porta, mesmo seguro de que lá não havia ninguém. Olhou em volta procurando algo metálico que respaldasse os apelos da sua tecnologia e viu, feliz, a tampa da caixa de correspondência. Rapidamente fixou o acoplador enquanto Mattos dava-lhe cobertura encenando um aborrecimento por não encontrar ninguém em casa. Depois voltaram para o interior do carro e ficaram aguardando a resposta.
Na tela do monitor puderam ver, com razoável nitidez, o automóvel conduzindo Flávia em direção à casa de praia.
— Só falta confirmar se eles ainda estão lá — disse o general totalmente refeito do cansaço pelo aparente sucesso da missão.
— E como faremos isso? — perguntou Borges olhando pela janelinha da viatura sem nada definir ao fim da rua.
— O major está a caminho com alguns equipamentos e vem acompanhado da Silvia. Eles deverão parecer um casal de turistas e ficarão estacionados na praia bem em frente ao casarão.
— E como faremos contato com eles sem despertar suspeitas? — perguntou Mattos.
— Somente pelos transceptores auriculares — respondeu o general voltando a aparentar cansaço. — Agora vamos desligar as luzes do carro e descansar um pouco até o major e a Silvia tomarem posição — ordenou aliviando a sua equipe.
O sol já estava alto quando o carro do major passou pela viatura do general, rumando em direção à praia.
Através do laboratório, ficaram sabendo exatamente qual a casa e procurou sequer olhá-la ao passar por sua frente. Fingiu conversar animadamente com Silvia e estacionou próximo a umas árvores, abrigando-se do forte sol. Armaram uma tosca mas sólida barraca de camping e transferiram para o seu interior os equipamentos cuidadosamente acondicionados sob falsas embalagens. Depois, enquanto Silvia armava o pequeno fogareiro em frente à barraca, o major caminhou até a beira d'água e entrou em comunicação com o general, mantendo sempre o cuidado de ficar de costas para a casa.
— Já estamos posicionados — informou passando um pouco da água no rosto e olhando para as montanhas ao longe.
— A recepção está perfeita — informou o general. — Você está na escuta, Silvia?
— Sim, também ouço com clareza — respondeu tirando a saída de praia e virando-se displicentemente para trás.
— Como está o movimento na casa? — perguntou o general com um mapa na mão assinalando a posição do carro na praia.
— Parece que não há ninguém — respondeu jogando a roupa dentro do carro e entrando na barraca.
— Vocês tem certeza de que esta é a casa? — perguntou o general ao laboratório.
— Temos absoluta certeza — respondeu Pedro acrescentando que o carro ainda continuava lá.
Esta certeza ele obteve fazendo a leitura da amostra no exato momento em que foi obtida e não constatando nenhuma indicação da repassagem do veículo por aquela via, a única possível.
— General, pode nos enviar uma foto da casa? — solicitou Pedro.
— Creio que já podemos — respondeu acionando uma chave e redirecionando a comunicação para o major.
— Já podem enviar alguma foto da casa?
— A Sílvia está manobrando o carro — respondeu informando que a câmera oculta nele estava sendo posicionada.
— Já estão no foco — respondeu desligando a ignição — Quer que tiremos agora?
— Sim — respondeu o general preparando-se para transmitir as imagens —, mas faça uma tomada de toda a área e inclua principalmente a via de acesso.
As imagens foram então enviadas.
Pedro, auxiliado pelos computadores, retransmitiu ao general a visão da casa sob a óptica do major e enviou também os valiosos dados telemétricos de que tanto precisava.
— Major — chamou novamente pelo rádio —, já temos sua exata posição. A casa é exatamente essa e somente tem três pessoas: os dois seqüestradores e a filha do presidente. Arme o termotelescópio e tente localizá-los para uma confirmação final.
Enquanto isso, na casa, Ismael não saía da janela.
— Temos companhia — disse virando-se para Fernando que acabava de acordar.
— Quem são? — perguntou bocejando longamente e olhando em direção à praia.
Ismael pensou um pouco antes de responder e pegou o binóculo.
— Parecem inofensivos — respondeu sem muita certeza.
— Deixa-me ver também — pediu tomando-lhe o binóculo das mãos.
— Eu não me preocuparia — disse entregando-lhe o binóculo depois de examinar o casal. — Você viu a cara de babaca do sujeito?
Ismael não respondeu. Deu mais uma olhada e perguntou por Flávia.
— Como ela está?
— Dormindo ainda. Parece que o sedativo funcionou, porque ela nem se mexeu...
— Vamos dar uma olhada — disse Ismael preocupado.
Chegaram perto da moça e constataram que estava bem, apesar do mau aspecto dado pelas escoriações. Ismael respirou aliviado e ordenou a Fernando:
— Fique de olho nela enquanto tomo conta daqueles dois lá fora. Não sei porque mas aquele casal não está me cheirando bem.
— Bobagens! — disse Fernando descascando uma manga e respingando o chão — É só olhar para a cara do sujeito...
— É por isso mesmo — respondeu Ismael. — Como um sujeito com aquela cara de idiota consegue uma mulher daquela?
— Vai ver que tem dinheiro... — respondeu Fernando limpando a boca com as costas da mão e deixando à mostra a palma imunda.
Ismael voltou para a janela, ocultando-se atrás da cortina, e ficou observando o casal.
Dentro da barraca o major ultimava a instalação do termotelescópio.
— Ligue na bateria — pediu à Silvia entregando-lhe o conector de mão.
— Pronto — disse ajustando o valor da tensão de saída do pequeno gerador. As imagens avermelhadas e sem foco preencheram a tela do vídeo acoplado ao telescópio.
— A temperatura do asfalto está prejudicando a leitura — disse para Silvia justificando a má qualidade daquelas imagens.
— Talvez se usarmos os filtros isolantes a interferência diminua — sugeriu a agente já bastante experiente com aquele equipamento.
— É uma boa idéia — assentiu o major. — Vamos interligá-los.
A surpreendente eficiência dos filtros demonstrou a exata posição dos três no interior da casa. O major, exultante com o resultado, tratou de oficiar o general.
— Excelentes imagens! — elogiou ao receber as transmissões. — Agora desliguem os equipamentos e divirtam-se um pouco.
— Pessoal — disse o general reunindo a sua equipe. — Logo iremos receber a vista aérea da casa e a planta da distribuição dos cômodos. Com isso, e com os dados da telemetria, poderemos saber exatamente a real posição dos três no interior daquela casa usando o termotelescópio. A minha idéia é retirar a moça no momento em que estiver a sós. Mas, para completar a instalação, temos ainda que montar um outro termotelescópio de referência e acoplar ambos ao computador.
— E onde o senhor pretende montá-lo? — perguntou Borges.
— Ainda não sei — respondeu olhando para fora —, mas tem que ser em posição simétrica à do major em relação à casa. Vamos esperar os dados e dar um tempo para que ambos sejam vistos como veranistas para então começarmos a agir. Enquanto isso, diga ao Moreira que apronte o carro.
O general temia, e com muita razão, que houvessem seqüestradores espalhados por mais de um lugar e informando qualquer movimento suspeito ao redor do cativeiro. Por isso, dera aquela ordem.
Uma hora depois e devidamente conspurcado pela graxa, Moreira anunciou o reparo da viatura.
— Estamos prontos — informou Borges entrando por último e batendo a porta da cabine.
— Vamos em frente — ordenou o general pelo intercomunicador. — Depois que passarmos pela praia, pararemos novamente a uns quinhentos metros da barraca do major.
— Não é muito perto? — perguntou Borges preocupado.
— Eu também acho — concordou o general —, mas o alcance do termotelescópio é limitado
— Esqueci deste detalhe — lastimou Borges.
A caminhonete passou quase em frente à casa, despertando ainda mais a aguçada percepção de Ismael.
— Aqui está bom — disse o general verificando os dados. — Vou pedir ao laboratório para que efetuem as correções necessárias, já que é impossível parar numa posição exatamente simétrica.
E consigo mesmo falou, pensando novamente em Jaime:
"Para aquele demônio isso é tarefa simples".
— Ela acordou — disse Fernando aproximando-se da janela de onde Ismael não se afastara.
E, vendo que sua presença não surtira nenhum efeito, perguntou:
— O que foi?
— Veja você mesmo — indicou afastando-se do pequeno furo que fizera na cortina.
— Estou vendo um carro de manutenção e três homens com aqueles troços de agrimensor... estranho né?
— Muito estranho... — repetiu Ismael. — Primeiro, aquele casal; agora, essa caminhonete. Isso já começa a me preocupar.
—Tem um telefone gravado na lataria — observou Fernando. — Por que não telefonamos e perguntamos se destacaram alguma viatura para cá? Podemos até mentir dizendo que houve um acidente e....
— Parece uma boa idéia — concordou Ismael pegando o binóculo e tentando ler o número. — Pegue o outro — pediu o mais potente.
Colocou os cotovelos no parapeito e inclinou-se para olhar a objetiva. Ditou os números para Fernando, que os anotou na palma da mão, e depois pegou o telefone, discando o primeiro que seria para chamadas de emergência.
— Acho que morderam a isca — disse o general ao ouvir o sinal de chamada. Rapidamente, ligou o equipamento sonoro que simulava um escritório e assegurou-se de que todas as janelas da caminhonete estavam lacradas, impedindo a entrada dos sons externos. Depois retirou o telefone do gancho e atendeu:
— Emergência, bom dia.
Identificando-se como um vereador local e proprietário de uma casa de praia, Ismael interrogou o general sobre a presença da viatura.
— Eu não sei exatamente qual a viatura que mandamos, isso é com o setor de transportes. Posso, porém, assegurar que há um plano de expansão e que as equipes de emergência estão colaborando nos levantamentos preliminares. Mas se vossa excelência fizer questão, posso mandar averiguar o tipo de viatura e a equipe destacada para o local.
E, parecendo interessado, perguntou:
— Eles não estão cometendo nenhuma irregularidade, estão?
— Não..., não, — respondeu Ismael olhando novamente pela abertura da cortina e também para Fernando, que se afastara um pouco do local. — É que esta área não possui luz elétrica e, por isso estranhei.
— Estamos mudando a nossa filosofia, vereador.
Ismael agradeceu e desligou.
— Parece que é apenas uma coincidência — comentou com Fernando após relatar-lhe a conversa telefônica. — Mesmo assim, seria bom ligar para o outro número.
Fernando concordou sem muito entusiasmo.
Fez a ligação que caiu direto na barraca do major. Imediatamente entrou uma gravação, com a voz de Silvia, que desculpava-se por ser final de semana e pedia para repetir a chamada na segunda-feira.
— Reclamações...! — disse desligando o aparelho e convencendo-se da veracidade das informações. De qualquer maneira, é bom não descuidar — disse sinalizando para Fernando substituí-lo no posto enquanto saía para ver Flávia.
— Como está se sentindo? — perguntou sentando-se na beira da cama.
— Bem... — respondeu com dificuldade esboçando um tímido sorriso.
Ismael também sorriu com um leve balançar de cabeça e levantou-se em direção ao freeser, pegando um copo de leite e algumas frutas.
— Coma um pouco — disse sentando-se novamente. — Vai lhe fazer bem.
Flávia levantou o tronco lentamente e pegou a pêra, fruta que mais gostava.
— Eu sei que é a sua preferida — disse pegando a toalha da cadeira e colocando sobre as suas pernas.
Flávia não conseguia ver naquele homem a figura de um assassino. Sua atenção e os cuidados com que a tratava depunham contra qualquer temor que a sua condição de cativa normalmente teria nestas circunstâncias.
— O que vocês querem do meu pai? — perguntou com olhar piedoso.
— Eu, pessoalmente, nada. Mas aqueles que estão me pagando querem que ele renuncie.
— Por que? — indignou-se. — Basta esperar um pouco mais e eleger outro. Nós não temos dinheiro — disse novamente não acreditando nas razões políticas alegadas.
— Eu já disse que não queremos o seu dinheiro — repetiu Ismael levantando-se para ajustar o termostato do ar condicionado quando Fernando entrou:
— O pombinho está se alimentando, né? — disse insinuando-se com o olhar percebido imediatamente por Ismael, que não o aprovou.
— Olha aqui, rapaz, temos que ser dignos em qualquer profissão. Não importa se somos seqüestradores ou assassinos. Se formos pagos para matar, matamos e nada mais. No momento, a ordem é mantê-la viva e bem. Por isso, não vou permitir isso que está nesta cabecinha. Está bem? — disse tocando-lhe a fronte com o indicador.
— Eu não estou pensando em nada... — respondeu sentindo novamente o sangue fluir-lhe o rosto.
— É bom que assim seja — asseverou Ismael olhando rapidamente em direção à Flávia e retirando-se depois.
Flávia percebeu a diferença que havia entre aqueles homens e, por mais estranho que lhe pudesse parecer, desejou ter conhecido Ismael numa outra situação, lamentando o destino tê-los colocado em posições tão opostas.
Ao ver-se a sós com Flávia, Fernando aproximou-se e falou baixinho:
— O santo protetor não vai durar para sempre.
E, antes de fechar a porta e sair, ainda deu-lhe uma significativa olhada.
— Fique de olho que eu vou lá fora e conversar com aquele casal. Ainda não estou convencido desta coincidência.
— Vai demorar? — perguntou Fernando pensando em ficar a sós com Flávia novamente.
— Talvez — respondeu trocando de roupa e vestindo uma bermuda. — Vou ver se compro um jornal também.
Ao vê-lo sair desarmado, Fernando sentiu que esta era a chance que tanto esperava. Afinal, poderia perfeitamente matá-lo e dizer que foi a moça, numa tentativa de fuga. Quem sabe até herdaria sua parte no trabalho em reconhecimento à manutenção da prisioneira, pois é isso que pensariam os que estavam pagando aquele seqüestro.
— General — chamou Silvia pelo auricular. — Um dos seqüestradores está saindo e vem em nossa direção.
O major, de costas e empenhado numa pescaria, teve um reflexo ao ouvir a transmissão. Mas conteve-se.
— Ele não porta nenhuma arma — tranqüilizou o general segundos após rápida verificação nos computadores de bordo —, portanto, não façam nada.
Por sorte, a vara de pesca do major começou a puxar, o que lhe deu a desculpa para virar-se em direção à Silvia.
— Acho que peguei algo — disse para ela vendo Ismael aproximar-se.
— Está dando alguma coisa, companheiro? — perguntou Ismael vendo a suposta euforia do major.
— Creio que sim — respondeu apontando a linha retesada. — Este deve ser dos grandes.
— Quer ajuda?
— Seria ótimo — respondeu o major —, porque eu não tenho lá essas experiências.
Com grande perícia, Ismael retirou do mar o peixe e ofereceu-se para prepará-lo.
— Você poderia almoçar conosco — convidou Silvia saindo da barraca onde, rapidamente, desmontou e desligou os equipamentos.
— Seria ótimo — concordou o major impressionado com a frieza e eficiência da parceira no serviço dentro da barraca —, pois estamos esperando um casal amigo. Mas pela hora, acho que não virá mais — completou olhando para o relógio e disfarçando seu temor.
— Vocês costumam vir sempre aqui? — perguntou Ismael tentando observar cada detalhe que lhe parecesse relevante.
— Às vezes — apressou-se em responder Sílvia antes que o major pudesse titubear. — E o senhor?
— Não. Nunca estive aqui. Sou de fora e aluguei a casa para passar este final de semana.
— Sua mulher pode vir também — disse o major —, mas é claro que não terá que pegar no pesado — tentou sorrir e parecer mais destemido.
— Ah. Obrigado. Mas me parece que ela vai querer continuar a ler. Ela adora ler à beira mar. Bem — disse afastando-se —, vou caminhar um pouco.
Ismael afastou-se e o general, imediatamente, ordenou que não expressassem nenhuma manifestação de alívio. Imaginava que aquele encontro fosse provocado exatamente para estudar-lhes as reações e que de dentro da casa estariam sendo observados.
— Que pena — lamentou Silvia virando-se para o major e reforçando a expressão labial. — Ele me pareceu tão solitário.
— É verdade — concordou o major sem a teatralidade da companheira.
Ismael caminhou durante quase uma hora, entrando e saindo das biroscas locais com o intuito de verificar a possível presença de agentes anti-seqüestro. Assim que entrou no cativeiro, sentiu uma atmosfera diferente.
— E então, o que você achou deles? — perguntou Fernando.
— Tudo bem — respondeu laconicamente.
— E o pessoal lá da manutenção? — voltou a perguntar.
— Eles confirmaram o plano de expansão e foram até atenciosos, mostrando uma possível subestação que seria construída atrás do morro.
E, mudando de assunto, perguntou:
— Como está ela?
— Deve estar dormindo, não sei... A última vez que a vi foi quando estivemos lá pela manhã. Lembra-se?
— Dê-me a chave — pediu Ismael sem dar-se ao trabalho de responder-lhe.
Fernando empalideceu.
— Aqui está — entregou com a mão trêmula e suada.
Ismael entrou no quarto e viu Flávia acuada, toda envolta no lençol.
— O que houve aqui? — perguntou.
— É o que eu gostaria de saber também — respondeu Fernando com cinismo.
— O que aconteceu? — perguntou Ismael novamente aproximando-se dela.
Flávia não respondia, apenas mantinha os bugalhos em Fernando. Ismael virou-se então para ele e perguntou segurando-lhe pela gola com violência:
— O que você fez, seu miserável?
— Eu não fiz nada, merda — respondeu num grito irado. Essa mulher é muito esperta. Já percebeu que você a protege e quer jogá-lo contra mim, assim é menos um a tomar conta. Ela acha que você está apaixonado e quer usar isso para fugir.
Ismael soltou-o e virou-se para Flávia que, aterrorizada, assistia ao embate.
— Ela está usando você, seu idiota — insistiu Fernando.
— Ninguém fala assim comigo — disse virando-se novamente para Fernando e tomando-lhe a pistola.
Ao perceber que Ismael estava na iminência de atirar, Flávia gritou.
— Pare, ele não fez nada. Por favor... não...
E desmaiou.
Flávia salvara a vida de Fernando, mesmo após o brutal ataque dele sofrido. Ao recobrar os sentidos e ver Ismael sentado ao seu lado como um anjo protetor, sentiu-se mais segura. Teve vontade de chamá-lo, mas preocupou-se em ter-lhe mentido e, por isso, perder-lhe a confiança e o respeito. Olhou mais atentamente e viu com surpresa o livro de poesias que lia. E, mais para perto, o prato contendo duas pêras, lembrando-se de que ali não estavam pela manhã. Ficou a imaginar como um homem tão sensível e atencioso pudesse ter como profissão a infelicidade alheia.
O dia chegava ao fim anunciando que a operação-resgate teria início. Descansados, os homens do general ultimavam os preparativos para a instalação dos equipamentos que usariam na operação. Por sua vez, Silvia e o major, num perfeito sincronismo, terminavam também suas instalações.
— Já estamos prontos, general — disse o major pelo auricular pegando uma toalha e deitando-se preguiçosamente na areia.
Sentindo todo o peso da responsabilidade por um trabalho desta envergadura não autorizado e que ainda punha em risco a vida da filha do presidente, Lucio continuava à frente da missão. Sabia que o general aguardava apenas a sua autorização para sair da viatura e somente voltar trazendo Flávia, de qualquer maneira. Novamente, como que para reforçar sua convicção, ligou para Janos:
— Qual o nosso percentual de sucesso?
— Não depende somente dos nossos aparelhos — respondeu sem ater-se ao lado psicológico da pergunta. — Se assim fosse, seria de cem por cento. Existem as variáveis creditadas às reações humanas, mas essas não podem ser previsíveis.
— Janos — aconselhou-se pela última vez. — Estou fazendo a coisa correta?
Pedro e Jaime, que acompanhavam o diálogo, entreolharam-se e voltaram as vistas para Janos.
— Eu não teria a sua coragem — respondeu após consultar aqueles olhares. — Mas você deve ir em frente.
— Obrigado — agradeceu emocionado. Depois, em linha direta com o general, autorizou o início da operação.
— Comecem a operação de resgate.
— Estamos autorizados, rapazes — disse o general. — Peguem os equipamentos e as armas e vamos caminhar.
Por segurança e após fazer o reconhecimento da área, o general mandara estacionar o carro em um ponto deserto, longe de qualquer olhar suspeito. Moreira conseguira achar uma espécie de clareira de sorte que o carro ficara realmente completamente oculto. Os quatro homens caminharam através do morro e, lá de cima, contemplaram a pequena baía onde estavam a barraca e o carro do major. Desceram até um ponto que consideram seguro e retransmitiram a nova posição ao laboratório para que fossem feitos outros cálculos de simetria em substituição ao anterior.
— Vamos aguardar o sinal — disse o general ao grupo ligando o monitor.
De posse das novas coordenadas começou a distribuir a tarefa exaustivamente ensaiada.
— Este cômodo nunca foi usado — disse o general apontando para a tela que mostrava a vista aérea da casa baseando-se nos dados transmitidos por Pedro. — Portando, deveremos invadir a casa por ele.
E, virando-se para Moreira, ordenou:
— Leve o laser até esta janela e tente abri-la. E você, Borges, desça com ele. Logo que a janela for aberta entre e pegue a moça. Ela está neste cômodo. Mattos, você que é atirador de elite, entrará com Borges e lhe dará cobertura. Atire para matar, pois não fazemos questão de nenhuma informação que porventura eles possam fornecer. Mas prestem bastante atenção aos auriculares. Agora desçam com cuidado.
Os três desceram com seus equipamentos enquanto o general conectava a pequena tela de cristal líquido aos computadores do laboratório. As imagens geradas à partir dos termotelescópios e processadas posteriormente, quase em tempo real, estavam perfeitamente visíveis e confiáveis. Nelas, o general tinha a vista da exata posição do interior da casa, sua divisão interna e dos seus ocupantes, representados por manchas avermelhadas. A silhueta de Flávia era perfeitamente distinguível. Reduziu o fator de zoom da tela e enquadrou mais três pequenos pontos luminosos aproximando-se da casa.
— Podem continuar avançando — instruiu o general vendo as três manchas vermelhas no lado oposto ao de aproximação.
Na barraca, Silvia e o major continuavam atentos à evolução do plano, participando agora na manutenção do funcionamento dos seus aparelhos.
— Estou em posição — informou Moreira ao chegar à janela. — Posso continuar?
— Sim — respondeu o general sem desviar-se um segundo da tela. — Mas tome bastante cuidado.
Moreira retirou lentamente das costas o pesado equipamento, colocou os óculos de segurança e ligou o finíssimo feixe luminoso, encostando-o na tranca. Fez alguns cortes e depois colocou uma espécie de presilha, por onde seguraria a peça depois de cortada, evitando assim que caísse. Por fim desligou o feixe e retirou os óculos para depois, cuidadosamente, retirar a tranca com o auxílio da presilha que colocara. Com a testa suada forçou a entrada, mas a janela não cedeu.
— Merda — praguejou virando-se para trás onde se encontrava Mattos. — Deve ter outras trancas.
— Vá com calma — orientou o general atento ao auricular. — Eles estão na frente da casa e parecem quietos. Mattos baixou a arma e recuou um passo.
Nesse exato momento, um carro encosta na praia com quatro ocupantes visivelmente drogados. Desceram com grande alarido e perguntam ao major, assustado com aquela súbita visita, se tinha cerveja.
— Vá falar com eles — ordenou Silvia entrando rapidamente na barraca e engatilhando sua pistola.
— Não tenho cerveja, amigos, eu não bebo — atendeu o major querendo parecer amistoso.
— Vocês acreditam nele? — perguntou um dos homens virando-se para os demais que batiam ruidosamente na lataria do carro.
— Não! — responderam em uníssono em meio à gargalhadas provocadoras.
— Parece que estamos com problemas, general — transmitiu Silvia sentindo que a situação sairia de controle.
Ismael também ouviu o barulho e aproximou-se da janela.
— O que está acontecendo? — perguntou Fernando vendo-o levantar-se.
— Vá ficar com Flávia — ordenou de imediato.
— Merda! — praguejou desta vez o general vendo o movimento dentro da casa. E, irritado com a desagradável surpresa, ordenou ao major:
— Livre-se desses idiotas de qualquer maneira. Rápido antes que ponham em risco o nosso plano.
Ismael continuava atento, acreditando ser aquele acontecimento uma encenação de agentes anti-seqüestro.
Alheio à esses acontecimentos, Moreira continuava a cortar a janela. Mattos e Borges entreolharam-se, ouvindo o ruído ao longe mas sem saber do que se tratava.
— Que gritaria é essa? — perguntou finalmente Mattos pelo auricular angustiado pela falta de informação.
— O general desligou o sistema ou deu algum defeito — disse Borges ao perceber que nenhuma resposta fora transmitida.
— Pronto — disse Moreira abrindo finalmente a janela.
— Vamos aguardar um pouco — aconselhou Borges. — Os canais estão cortados. Acho melhor ficarmos escondidos ali enquanto o general restabelece a comunicação.
Enquanto isso a parlenda na praia continuava cada vez mais acirrada.
— Eu já disse que não tenho cerveja. Agora vão embora e me deixe em paz — gritou irritado o major.
Um deles, ao ver Silvia saindo da barraca, exclamou:
— Olha só a mulher do cara! É por isso que ele quer ficar sozinho.
Os outros logo que a viram desceram do carro e aproximaram-se perigosamente. O mais afoito tentou puxar um dos cravos da areia e entrar por debaixo da lona mas foi contido pela enérgica ação de Silvia, que lhe apontou a pistola.
— Se continuar a palhaçada eu atiro — disse segurando firme a arma com as duas mãos.
— Olha só para isso! — desafiou o rapaz não acreditando naquelas palavras. E, rasgando a própria camisa e expondo o desenvolvido tórax tatuado, na veleidade de sensibilizar-lhe a libido, aproximou-se do major insinuando uma comparação e disse: — Você não perderia uma chance dessa...
Suas palavras exacerbaram ainda mais os seus companheiros, que passaram a incentivar aquela provocação.
— Vamos lá! Pega ela, Ronaldão.
O infeliz aproximou-se de Silvia e foi alvejado com certeiro tiro entre os olhos. Os outros, assustados, ainda tentaram fugir. Mas ela, impassível, eliminou-os da mesma forma. O último, que tentara abrigar-se atrás do carro, não chegou a ser atingido mortalmente, convulsionando e sangrando copiosamente na areia. Ela, dele se aproximando como se estivesse avaliando a necessidade de gastar mais um cartucho, demorou-se um pouco antes de fazer o disparo fatal.
— Precisava disso? — perguntou horrorizado o major vendo aqueles corpos ensangüentados no chão.
— Você quer a polícia por aqui fazendo perguntas? — respondeu recolocando outro carregador e não esboçando qualquer emoção.
E, com a mesma atitude, comunicou ao general que a situação estava sob controle.
— Continuem — ordenou religando o canal de comunicações.
— E esses corpos? O que vamos fazer com eles? — perguntou o major com a expressão atarantada.
— Pegue uma pá e enterre-os na areia. Depois calce uma luva e tire aquele carro daqui.
E, ante a sua hesitante atitude, gritou:
— Vamos logo com isso! Você pensa que essas missões são sempre limpinhas e românticas conforme nos filmes? Não quer sujar as mãos com sangue? Vai ficar agora pensando que eram bons rapazes e que estavam apenas querendo se divertir? Não seja tolo. A realidade não tem espaço para heróis ou bandidos. Estamos defendendo apenas o nosso lado e nada mais.
Borges acabava de comunicar que a janela fora removida e que estavam prontos para entrar.
— Sigam o plano — retornou o general vendo a silhueta de Ismael sair da sala e dirigir-se ao seu banheiro.
— Acho que aquele casal está encrencado — disse passando por Fernando que saía e puxava o zíper da calça.
— O que houve?
— A mulher acabou de acertar quatro lá fora.
— Uau! A mulher? Conta mais — insistiu parando na porta e curioso por maiores detalhes.
— No princípio até pensei que fossem agentes disfarçados, mas quando ela atirou...
— Então daqui a pouco virão até nós para saber se vimos algo ou pedir para sermos testemunhas — disse Fernando acompanhando Ismael que retornava para a janela.
— Acho que não — respondeu Ismael olhando pela abertura da cortina. O cara está enterrando os corpos na areia. Se eles vierem até aqui vou dizer que não sei de nada. Nós já temos o nosso problema. E se forem espertos vão se livrar do carro e dar o fora.
— A coisa pode complicar para o nosso lado — preocupou-se Fernando. — Imagine a polícia fazendo perguntas e revistando a casa.
— Não seja tolo, Fernando, que tipo de ligação ela poderia fazer entre nós e os corpos na areia?
— Sei lá...
Enquanto isso, Borges e Mattos caminhavam lentamente pelo interior da casa, sempre sob a monitorização do general. A grande dimensão do imóvel que tanto facilitou a entrada agora dificultava a localização do cômodo procurado.
— Acho que fizeram algumas reformas, general. Há uma parede onde deveria ser a porta — transmitiu Borges ao não encontrar a referência assinalada pelo computador.
— Então volte e tente o outro corredor — instruiu.
Ismael viu quando o major entrou no carro após enterrar o último corpo.
— Vou dar um pulo atrás da casa e ver se ele não pretende escondê-lo por lá — disse saindo da janela e dirigindo-se exatamente em direção aos três agentes. Cruzou pelo corredor que minutos antes Borges passara com Mattos e dirigiu-se até o cômodo invadido. Vendo a janela aberta, acendeu a luz e voltou correndo.
O general já havia avisado deste deslocamento e ambos procuraram um lugar seguro, agora perdidos pelos corredores da casa. Moreira, que permanecera do lado de fora, também procurou afastar-se o máximo que pode.
— Onde está Flávia? — perguntou segurando sua arma.
— Está no quarto — respondeu Fernando assustado ao vê-lo assim transtornado.
Mal ouviu a resposta, entrou no quarto e viu Flávia placidamente lendo o seu livro de poesias.
— Calma — disse-lhe ao perceber que se assustara com a arma —, mas apronte-se porque vamos partir.
— O que vão fazer comigo? — perguntou sentindo o pânico invadir-lhe novamente.
— A janela dos fundos foi arrancada.
— Ora, Ismael, nós nunca estivemos naquele quarto antes. Vai ver está assim desde que chegamos.
Ismael parou e pensou que talvez ele tivesse razão.
— Pode ser — disse finalmente. — Mas dê uma olhada enquanto fico com ela.
Fernando saiu e Ismael guardou o revólver, virando-se depois enquanto Flávia trocava de roupa. Lembrou-se então de quando era menino e fazia o mesmo sempre que as irmãs se trocavam no cômodo único da casa pequena.
— Quando eu era pequeno — disse para Flávia em súbita recordação —, eu também virava assim. As minhas irmãs ficavam repetindo: "não vire, não vire..." E só paravam de gritar quando estavam completamente vestidas, inclusive com os sapatos.
— E você nunca virava?
—Não! — respondeu com ênfase. Eu só me aborrecia quando queria sair e elas demoravam. Afinal — disse rindo —, o sapato podia ser calçado na minha frente!
Borges e Mattos aguardavam as ordens do general para prosseguirem o avanço.
— Alguém se aproxima de vocês — instruiu o general pelo auricular.
— Estamos num cômodo ao norte daquele corredor — disse Borges baixinho com receio de ser ouvido.
— Ele está vindo pelo lado esquerdo — disse o general —, e está a menos de cinco metros da sua posição.
Mattos fez um sinal com a mão enquanto o general continuava fornecer as coordenadas de aproximação.
— Deixa ele comigo — disse Mattos pegando a faca e ocultando-se atrás de uma peça de mobiliário. Fernando ultrapassou o móvel e, provavelmente, nem sentiu a nuca ser traspassada pelo certeiro golpe. Mattos segurou-lhe o corpo e arriou-o suavemente no tapete. Borges veio em seu auxílio e ajudou a puxá-lo para um quarto, enquanto imitava seu assobio.
Ismael continuava ainda de costas, enquanto conversavam.
— Não sei quanto tempo ainda ficaremos juntos — disse à Flávia —, mas quando você for solta espero que não passe por isso novamente. Trago sempre um amuleto... não sei se você acredita nestas coisas, mas sempre me deu sorte. Você é uma mulher de fibra. Provou que merece ter sorte, por isso, vou dá-lo de presente.
— Quanta gentileza — disse Flávia puxando a blusa para baixo. — Agora pode virar.
Nesse exato momento, enquanto Ismael virava-se e pegava o amuleto colocado próximo à sua pistola, Borges e Mattos alcançavam a porta do quarto.
Com a mão no amuleto e impedido de sacar sua arma, Ismael foi presa fácil para a eficiente pontaria de Mattos, que lhe desferiu um tiro no tórax.
— NÃO!!! — gritou Flávia ao vê-lo cair.
Mas já era tarde. Alvejado próximo ao coração sentiu, por alguns instantes, que os seus sentidos voltaram à infância e, como num filme, ouviu novamente o sino que anunciava o vendedor de doces puxando sua mula. Lembrou de como corria por entre os trilhos ferroviários para pegar a bacia da mãe e enchê-la d'água, saciando a sede do animal em troca de algumas balas. A imagem bondosa do velho desdentado sorrindo veio-lhe a mente.
Cada vez menos sentia o corpo...
Lembrou ainda quando, ao entardecer, esperando como sempre o fazia, não ouviu o sino. Somente uma semana depois soube da morte do ancião. Procurou saber sobre a mula e a descobriu, doente e maltratada pelo novo dono que dela se apossou. Ainda era viva a emoção que sentiu quando o animal, mesmo naquele estado lastimável, o reconheceu. Nem a surra que levou do pai, ao saber que invadira a propriedade alheia para lhe dar água e lavar-lhe as chagas doeu tanto quanto vê-la morrer aos poucos.
De todos os crimes que cometeu, o único de que realmente nunca se arrependera foi ter matado aquele infame posseiro.
O segundo tiro foi desnecessário.
— Conseguimos! — comemorou Borges ao transmitir para o general que passou imediatamente a notícia para Lucio e ao pessoal do laboratório. Mattos ia examinar o corpo de Ismael quando, surpreso, viu que Flávia não se atirara nos braços dos seus libertadores. Viu sim ela abaixar-se com grossas lágrimas e pegar das mãos cerradas de Ismael um pequeno chaveiro feito com uma espécie de pelo. Retirou-o cuidadosamente e apertou-o contra o rosto.
Mattos ia falar qualquer coisa mas foi impedido por Borges, que lhe conteve a euforia.
— Ela está bem — disse arrastando-o para fora.
Minutos depois Silvia entrou na casa e encontrou Flávia ainda sentada, consternada com a morte do seu protetor.
— Você está bem? — perguntou sentando-se ao seu lado.
— Não sei... eu não sei... — respondeu deixando-se chorar copiosamente no seu ombro.
17
Era madrugada quando o helicóptero da marinha manobrava sobre a ilha.
— O que será desta vez? — perguntou o anfitrião vendo a aeronave sobrevoar a baixa altitude.
O presidente temeu que fosse um golpe de estado.
— Não espere boas notícias — disse Daniel vendo o aparelho pousar numa nuvem de areia. — Afinal, ninguém se atreveria a sobrevoar o presidente sem prévia autorização.
A nave pousou suavemente e seus motores começaram a desacelerar. Com as mãos no rosto, protegendo os olhos, o presidente aproximou-se ensaiando mentalmente o desabafo por tamanha petulância. Os demais, já do lado de fora da casa, argüíam-se das razões daquela visita tão inesperada.
A porta do aparelho foi aberta dando passagem primeiro para Lucio, aliviando de certo modo o presidente em razão do que esperava. Depois, para imensa alegria de todos, surgiu a frágil figura de Flávia...
Refeitos da emoção do reencontro e sendo constatado o satisfatório estado de saúde da recém-libertada, graças aos cuidados dos médicos que a assistiram no hospital naval, foram iniciadas as perguntas. Lucio, prudentemente, omitiu o inestimável auxílio dado pela equipe da maqver e, naturalmente, da fantástica tecnologia utilizada.
— Mas como chegaram tão rapidamente ao cativeiro? — era a pergunta mais freqüente.
— Informações, agentes bem treinados... — respondia Lucio evasivamente.
— E a vida de Flávia não correu nenhum risco durante a operação resgate? — perguntou Marta?
— Na verdade, estávamos plenamente seguros de que ela não correria nenhum risco, senão teríamos cancelado a operação — tranqüilizou Lucio.
Daniel, com a fisionomia séria, virou-se para Lucio e disse:
— Apesar de tudo ter dado certo, você colocou deliberadamente a vida de minha filha em risco, desobedecendo as suas ordens.
Não era exatamente essa a hora de tal observação, constatou Joana vendo naquelas palavras uma falta de reconhecimento na atitude corajosa do assessor.
— O senhor tem razão, presidente — concordou abaixando a cabeça. — Mas há certas ocasiões em que a desobediência a um homem não significa desrespeitá-lo. Infelizmente sou obrigado a admitir que desobedeci ao homem cuja filha encontrava-se em perigo, e não ao presidente que deve compromissos à nação. Creia-me, Daniel, para mim também foi extremamente difícil tomar esta decisão, já que sou assessor e amigo do presidente.
E, olhando para os demais que guardavam um profundo silêncio, concluiu:
— E quem nos garante que após a sua renúncia você teria sua filha de volta?
Marta, que voltava do quarto a passos lentos trazendo Flávia, interferiu:
— O homem Daniel jamais autorizaria pôr a filha em risco, mas o presidente teria o dever de fazê-lo se a pátria assim o exigisse. E o momento exigiu.
E, olhando para Flávia, disse:
— Como primeira-dama e em nome do presidente, parabenizo sua decisão. Mas, como mãe...
— O que eles querem dizer com todo esse palavreado — interveio o anfitrião com o bom humor que lhe era peculiar —, é que você é um filho da mãe que teve a coragem de fazer a coisa certa, livrando a todos de um pesadelo.
Aquela intervenção providencial uniu todos em favor do assessor, que viu seus esforços reconhecidos. Flávia, embora feliz pelo desfecho, ainda pensava em Ismael.
EPÍLOGO
Desconhecendo totalmente o sucesso da operação de resgate, o presidente da câmara reuniu-se com seus principais cúmplices para assistirem ao discurso de renúncia.
— Deixe tudo preparado que, logo ao término do pronunciamento, serei chamado para assumir — disse já sentindo-se na condição de presidente.
Na hora marcado para o discurso, o presidente fez um duro pronunciamento e ainda anunciou medidas provisórias surpreendendo os envolvidos no plano de seqüestro.
— Esse filho da puta não liga para a filha — disse o presidente da câmara ao deputado João assim que a rede noticiária se desfez.
Horas depois, dezenas de sinistros acontecimentos ocorreram em diversos pontos do país, não conseguindo a polícia estabelecer qualquer elo entre eles.
Lucio, com redobrados poderes, consegue de Janos um acordo para utilização mista da maqver como instrumento do serviço secreto e de pesquisas históricas e dá início a uma série de investigações, enquanto as autoridades de um distante balneário tentam ainda elucidar o mistério dos corpos na praia e o duplo homicídio numa casa abandonada...
F I M
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