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pueriso
jorge pires da silva

Resumo:
É uma história de ficção científica na qual um bondoso ser de outra galáxia ajuda um abnegado empresário em seu projeto de abrigar crianças carentes

P R Ó L O G O



     ... Milhões de partículas compõem um átomo; ... milhões de átomos, uma molécu-la;... milhões de estrelas, uma galáxia...
     Não existe um limite preciso que se possa afirmar onde começa exatamente o universo.
     Estabelecer um lugar preciso é, antes de tudo, determinar a hierarquia e a di¬mensão dos fatos envolvidos sem contar ainda com o impensável. Assim, hierarqui¬zados pela realidade palpável dos números possíveis, coabitam harmonicamente diversos sistemas e galáxias em número tão elevado quanto a nossa capacidade de imaginação.
     De todas as estrelas que cintilam em nosso céu, provavelmente muito poucas ainda existam como tal. O que vemos são meros sinais luminosos sinalizando o ocaso de um... talvez glorioso mundo cuja existência e esplendor não nos foi possível conhecer.
     Lastimável não termos conhecido esses irmãos...
     Algumas crenças assinalam a possibilidade de virmos, um dia, conhecê-los; outras, a de habitarmos cada uma dessas moradas celestes; outras ainda, nada cogitam preferindo confinar-nos a este cantinho perdido da via láctea.
     De qualquer forma, resta-nos o nosso maior elo com o Universo e seus infindáveis mistérios: NÓS MESMOS


             



           PUERISO






PRIMEIRA PARTE.



     A Nemius III parecia irremediavelmente perdida.
     Cansado pelas longas vigílias junto aos rastreadores, Lorbus deu-se conta de que nada comera neste dia. Esfregou os olhos, respirou fundo e, num derradeiro olhar às telas, conectou os rastreadores à sua unidade de pulso e resolveu descer até um posto de alimentação. Tomou um transporte vertical externo e deixou-se olhar distraidamente para os bosques que rodeavam o Centro de Operações Estelares. Chegou ao posto, digi¬tou a senha e ficou aguardando pelo sinal sonoro. Depois, pegou o volume por uma portinhola e foi sentar-se próximo ao córrego.
     O Projeto Nemius estava em pleno andamento e destinava-se a fornecer maiores dados sobre a galáxia na qual estava inserido o Império Mélquer. E, com esse objetivo, foram lançadas do pater planeta diversas sondas, nas mais variadas direções, procurando abranger o espaço não coberto nos projetos anteriores. Lorbus era um dos cientistas do Centro e tinha sob a sua responsabilidade as análises fornecidas pela nemius III.
     Praticamente tinha terminado a sua refeição quando um grupo ligado a outro projeto do Centro aproximou-se de sua mesa.
     — Finalmente nos encontramos! — disse um dos integrantes do grupo sentando-se à sua frente.
     — Não faz tanto tempo assim — respondeu Lorbus lembrando-se da última vez em que estiveram juntos.
     — Você é de Ramak? — perguntou curioso a uma jovem desconhecida que sen-tara-se ao seu lado.
     — Sim — respondeu com graciosidade abrindo a sua embalagem.
     Lorbus insistiu:
     — É verdade que vocês de Ramak desenvolveram formas de comunicação com os animais?
     A jovem de olhos pequenos e amendoados do longínquo planeta de Ramak tentou encetar uma resposta apropriada. Virou-se para Lorbus ajeitando os negros cabelos que lhe caíram sobre os olhos e respondeu:
     — A forma de comunicação entre os homens envolve um universo psicológico não presente nos animais.
     — Mas as pesquisas sobre os sons emitidos por eles estão muito adiantadas. Os últimos resultados...
     — Não é sobre isto que eu estou falando — interrompeu Arana enfatizando com um gesto de mãos. — Esses sons que procuramos traduzir a partir deles atingem-nos em regiões sensoriais diversas daquelas pretendidas por eles.
     — Como assim? — perguntou um outro também interessado.
     — Não é algo que possa ser explicado adequadamente — justificou a jovem. — Imagine — disse olhando em direção ao bosque — o significado que a árvore tem para um animal. Provavelmente, cada espécie a vê de um modo diferente, o que significa di-versas formas de linguagem para cada estímulo visual; e isso, sem contar com a forma particular que cada espécie possui para se comunicar.
     — Um vocabulário próprio? — arriscou Lorbus.
     — Mais ou menos — respondeu com um leve movimento de rosto. — Mas não com a conotação que atribuímos — emendou.
     Arana ainda tentou, enquanto comia, formular outros exemplos para ilustrar a tese que defendia mesmo sabendo que não dariam a exata amplitude do que tentava mostrar. Lorbus, por sua vez e, pelo que lhe aguilhoava a mente, convenceu-a de continuar o assunto mesmo após seu grupo ter retornado ao Centro. Essa era a primeira vez que tinha a oportunidade de conversar com alguém do místico Ramak e não queria desper¬diçá-la.
     Foram até o vale das efétias.
     — O que provoca a mudança nas suas cores? — perguntou Arana referindo-se às variações cromáticas nos frutos daquela espécie vegetal quando tocados.
     — Até hoje não conseguimos saber com exatidão — respondeu também tocando num deles mas produzindo efeito cromático diferente daquele tocado por Arana. — Al-guns dizem que é por irritabilidade; outros, que é uma espécie de hipersensibilidade..., não sabemos ao certo. Mas a grande questão é quanto a linguagem das cores.
     — É realmente interessante — disse Arana tocando-o novamente.
     — Vocês de Ramak são de alguma forma especiais em relação à natureza — dis-se Lorbus percebendo a diferença na reação do fruto.
     — De certa forma, é verdade — confirmou a jovem parando ao lado da pequena queda d'água que formava o córrego.
     — Nós — retomou Lorbus o assunto — pesquisamos e descobrimos muito da nossa natureza emocional após o invento do cromaton, mas ainda não sabemos como aplicá-lo à natureza como um todo.
     — Essa empatia que temos com a natureza — disse Arana olhando um cristal transparente à beira d'água —, é o resultado de uma prática milenar que ainda cultiva¬mos.
     — O que é exatamente isso? — perguntou Lorbus.
     — É muito simples — respondeu Arana caminhando em direção ao cristal transparente. — Nós não relegamos a nossa natureza mística em razão da ciência. Te¬mos ainda nossas tradições tão vivas quanto eram desde a época em que vivíamos nas cavernas. Somos o que vocês chamam de sensíveis. Mas você me pareceu preocupado à hora da refeição — observou Arana lembrando-se do encontro.
     — É... — confirmou abandonando o ar dos pulmões.
     — Qual o motivo? — perguntou indo sentar-se sobre o cristal.
     — A nemius III emudeceu. Não emite qualquer sinal.
     — Deve estar atravessando algum espaço vazio — justificou como um consolo.
     — Não é isso que está me preocupando, Arana. É com o que está se passando comigo.
     — Como assim? — perguntou ajeitando-se sobre a pedra.
     — É que eu já deveria ter encerrado as atividades dela se estivesse seguindo os protocolos.
     — E por que não o fez?
     — Não sei... Não sei porque ainda insisto na escuta. É ilógico... É como se eu estivesse querendo descobrir algo... — disse brincando distraidamente com um galho que pegara no chão.
     — Se voce fosse de Ramak saberia...
     — Não entendi — disse sentando-se ao seu lado.
     — Nossas intuições, Lorbus — disse olhando as pedras que crispavam a água. — Muitos as abandonam porque os seus conselhos não condizem com a técnica ou a lógica. E assim — continuou acompanhando uma folha que deslizava na água —, elas permanecem latentes e tímidas à espera de alguém que as ouça e se ampare nos seus con-selhos — finalizou procurando intuitivamente a folha que se perdera no turbilhão.
     — Então você acha que é por isso que eu não desliguei a sonda? — perguntou Lorbus levantando-se e indo sentar-se na grama, recostado a uma árvore.
     — Pela lógica, você já deveria tê-lo feito mas não o fez. Não é?
     — É como se alguma coisa existisse além daquele vazio — respondeu olhando para o galho em suas mãos.
     — O que? Por exemplo.
     — Não sei..., mas algo de muita importância — respondeu quase murmurando.
     — Você realmente acredita nisso? — perguntou Arana procurando a resposta nos seus olhos.
     — Eu não sei se acredito ou se quero acreditar. Talvez...
     — Talvez o que?
     — Sabe, Arana, é muito difícil acreditar em vozes interiores quando se tem tantos respaldos tecnológicos disponíveis.
     — É por isso que elas se calam — disse com certo lamento.
     — Não é bem isso, Arana — tentou justificar. — É que ainda me restam três analisadores para serem lançados através da sonda. Quem sabe se não estou intuitiva-mente querendo utilizá-los?
     — Só você tem a resposta — respondeu levantando-se. — Experimente procurá-la dentro de você pelo menos uma vez.

     De volta ao Centro de Operações, Lorbus entrou em seu laboratório, operou al¬guns controles e extraiu o relatório final das suas atividades junto à nemius III. Depois informou ao comandante Expius que terminara a missão e solicitou uma audiência para formalizar a entrega dos dados.
     — Estou aguardando — disse o comandante pelo videofone.
     Lorbus deixou o laboratório e tomou o corredor curvo que o separava da sala do comando. Gostava deste caminho, embora mais longo, mas que lhe permitia ver o lado oposto do bosque.
     — Aproxime-se, Lorbus — disse o comandante ao vê-lo na porta, mas sem des-viar a atenção da pequena tela à sua frente.
     — Eis o relatório da nemius III, comandante — disse passando-lhe às mãos um pequeno disco dourado.
          — Ótimo! — exultou o comandante introduzindo-o numa abertura do seu computador. — Agora venha até aqui — chamou-o para junto da enorme tela tridimen-sional no outro lado da sala.
     Lorbus aproximou-se com curiosidade.
     — Estamos bem aqui — disse apontando para um pequeno ponto luminoso so¬bre o mapa estelar. — Nos mapeamentos anteriores obtivemos esta configuração — disse ao surgir na tela as antigas fronteiras do império. — Olhe agora — insistiu acionando um dispositivo. — Vê essas linhas? — perguntou apontando para as que surgiram de um ponto luminoso após aquele comando.
     — Sim — respondeu Lorbus afastando-se um pouco.
     — Representam as rotas seguidas pelas sondas do atual projeto Nemius.
     E, acionando outro dispositivo tornando uma delas mais brilhante, apontou:
     — Essa foi a rota seguida pela nemius III.
     Lorbus observou a trajetória em direção ao espaço vazio e concluiu:
     — Então por isso teve uma vida útil tão curta...
     — Exatamente — confirmou o comandante. — Daqui em diante — apontou para a parte escura da tela —, só o desconhecido.
     Depois deu meia volta e sentenciou:
     — Sua missão está terminada, Lorbus.
     — É — respondeu lacônico e sem mover os olhos da tela.
     — Por falar em missão — retomou o comandante novamente o diálogo —, você pretende continuar conosco?
     E, antes que Lorbus articulasse uma resposta, sugeriu com animação:
     — Há uma gama de tarefas aqui no Centro, mas se você preferir há algumas ex-pedições em curso que... — interrompeu-se ao ver o seu interlocutor alheio àquelas sugestões.
     — Estou pensando em continuar com a nemius III — disse após longa reflexão.
     — Mas ela está perdida no vazio, Lorbus.
     — Eu sei... — disse baixinho olhando firmemente em direção à parte escura da tela.
     — Não estou compreendendo o significado desta decisão, Lorbus — disse o comandante aproximando-se novamente.
     — Vou precisar de uma cota extra de energia, comandante.
     — Para que? — perguntou num gesto.
     — Estou pensando em mover a nemius usando os saltos dimensionais.
     — Lorbus... essa modalidade de deslocamento no espaço ainda não está total-mente desenvolvida — ponderou o comandante aludindo à imprecisão deste método ainda insipiente. — Além disso, só podemos adicionar energia para uns poucos saltos e não mais.
     — Só vou precisar de apenas três — enfatizou.
     — Bem... se é o que você está querendo...
     — É exatamente disso que estou precisando — disse pensando nos conselhos de Arana.
     — Então siga em frente — incentivou o comandante mesmo desconhecendo-lhe as razões.

     Como ainda lhe restavam três analisadores, decidiu programar a sonda para dar os três saltos que tinha em mente de modo que cada um servisse como referência ao salto subseqüente. Elaborou os cálculos necessários, consultou os mais recentes trabalhos sobre essa técnica até que, por fim, sentiu-se apto para terminar a programação. Ultimou os trabalhos de inserção dos dados e ficou aguardando por algum tempo a confirmação pelos monitores. Recebida a indicação, respirou fundo e apertou as mãos. Lembrou do mapa visto na sala do comandante e, mentalmente, repassou os seus detalhes. "Vamos lá!" — disse para a sonda ao mesmo tempo que comprimia o disparador iniciando o primeiro salto. Confirmado o deslocamento que levou a nemius III a um lugar desco-nhecido no espaço, liberou o primeiro analisador. De imediato, movido mais pela emoção do que pela razão, repetiu a manobra aprofundando ainda mais a sonda no vazio liberando, em seguida, o segundo analisador. Decidiu não dar o último salto reservando-o para um possível retorno à posição inicial ou guardando a energia remanescente para alguma manobra de última hora.
     Nada mais restava a fazer senão esperar.
     "Esperar o que?" — perguntou-se.
     E, à medida em que o tempo passava sem ver suas respostas nas telas dos rastreadores, sentia a pressão do racional sobre seu frágil lado místico. Arana tinha viajado, portanto, não contaria com ela para dissipar suas dúvidas cada vez maiores sobre as vozes interiores. Porém, vez por outra, lembrava-se também de que essas dúvidas só fariam arrefecer-lhe o ânimo culminando com a desistência do projeto. E isso era verdade: por várias vezes tinha-se imaginado na sala do comandante dizendo-lhe: "foi um erro, uma perda de tempo" ; ou então argüindo sobre alguma expedição. "Não. Definiti-vamente não devo permitir que as dúvidas minem o que sinto. Ainda permanece em mim a crença de que somos o que honestamente pensamos" — decidiu.
     Mergulhado nesses devaneios Lorbus não percebeu a variação morfológica ocor-rida com o sinal do segundo analisador. Assim, com os olhos fechados, permaneceu até voltar-se novamente para os monitores.
     A surpresa dissipou-lhe as dúvidas. Impulsionado pelo pulsar do coração consul-tou seus instrumentos que também confirmaram a existência de alguma fonte externa emitindo sinais num padrão desconhecido. "Achei algo!" — disse para si sintonizando seus receptores e acoplando-os aos do Centro.
     Pensando depois mais friamente lembrou-se de que os sinais espaciais podem ser apenas meras testemunhas mudas de um passado muitas vezes imperscrutável. Precisava de mais alguns dias de observação para averiguar se haveria ou não um decaimento na curva energética daqueles sinais, pois só assim poderia ter a certeza da vida presente naquela fonte. Foram dias angustiantes mas, passado o prazo que lhe pareceu uma eter-nidade, confirmaram suas expectativas.
     
     — Eu não sou um especialista — disse o comandante ao tomar conhecimento dos fatos.
     E, ante a insistência de Lorbus por um parecer mais concreto, foi categórico:
     — Seria muita leviandade da minha parte emitir um parecer sem nenhum respal-do fático, mas posso indicar um especialista, alguém que certamente se interessará inclusive pelo lado não científico dessa pesquisa.
     — Isso seria ótimo, comandante.
     — Vá à Central de Decodificação e procure por Ezin. Ele, por certo, te ajudará.
     Tão logo possível, Lorbus fez contato com o especialista.
     — Traga cópia de uma seqüência, mas faça as gravações em cristal-memória — recomendou.
     Seguindo essas instruções, Lorbus copiou uma longa seqüência dos sinais emitidos pelo segundo analisador da nemius III e depois teletransportou-se àquela Central.
     Nunca tinha estado naquele Departamento antes e sentia uma estranha sensação por ter conhecido tantos planetas afora sem nunca ter estado em um lugar tão próximo do seu quotidiano. Saiu da cabine que o deixou em frente ao prédio do Departamento e caminhou pela passarela que dava acesso à sua principal entrada. Parou no vestíbulo e contemplou a paz que cercava aquela construção cilíndrica e imponente. Virou-se para o lado e avistou à frente um grupo que montava uma aparelhagem junto à vegetação marginal e indagou sobre Ezin.
     — Vá em frente, suba até a cobertura do lado da lagoa e desça um andar — disse um dos homens.
     — Talvez nem precise descer o andar, pois já está quase na hora do por do sol — completou um outro olhando para cima.
     Sem muito entender aquela última observação, Lorbus agradeceu e rumou até o transporte vertical externo e saltou na cobertura, conforme o recomendado. Não encon-trando Ezin resolveu descer o andar, mas não sem antes lançar vista na exuberante natu-reza exibida daquela altura.
     Desceu pelas escadas e penetrou num compartimento decorado com diversas espécies vegetais e atravessou outro, repleto de instrumentos. Neste último, encontrou um homem quase hipnotizado pelas telas.
     Estava recostado desleixadamente no assento e segurava um controle de mão. O movimento dos seus dedos era quase imperceptível e Lorbus não se atreveu interrompê-lo. Permaneceu imóvel aguardando o momento propício que veio com um estranho ruído de um dos painéis. Ezin, num salto, ficou de pé colocando o controle sobre um dos monitores e as telas se apagaram quase que simultaneamente. Virou-se e deparou com Lorbus.
     — Posso ajudá-lo? — perguntou dirigindo-se a um dos espécimes do outro com-partimento.
     — Meu nome é Lorbus — respondeu seguindo aquele homem alto que examinou rapidamente outra planta.
     — Lorbus... — murmurou tentando lembrar-se. — Ah! Do Centro de Operações. Tinha esquecido completamente. Desculpe-me.
     Lorbus fez um gesto compreensivo.
     — Trouxe o cristal?
     — Sim — respondeu mostrando uma pedra quase transparente.
     Ezin retirou a proteção e olhou-a contra a luz.
     — Perfeito! — disse após breve exame — É do asteróide de Tilker.
     Lorbus confirmou com a cabeça admirado por aquela habilidade em reconhecer um cristal dentre tantos outros parecidos e sem a ajuda de nenhum instrumental. Ezin, sem perceber-lhe o ar estupefato, inseriu o cristal no decodificador e iniciou a sua análise.
     — Muito bem — disse pressionando alguns botões —, vamos até lá em cima.
     Lorbus vacilou por alguns instantes ansioso que estava pelo diagnóstico.
     — Venha logo — chamou Ezin já no meio da escada. — A natureza não espera.
     Lorbus ainda lançou um olhar às tela antes de segui-lo ao terraço.
     Subiram rapidamente e posicionaram-se em direção ao sol poente fitando por algum tempo o imenso disco azulado que jazia atrás da floresta.
     — Sinta esta força, Lorbus — disse Ezin após inspirar profundamente.
     Lorbus também respirou fundo tentando, tal como ele, tragar a natureza inefável.
     — Sabe, Lorbus — disse com sua voz forte porém suave, — quando estou aqui sinto-me quando nos tempos de academia. Toda vez que o sol se põe eu me pergunto: o que aprendi hoje? O que fiz de importante? Se a resposta for negativa, apenas um simples "nada", meu dia foi inútil. Não valeu ser vivido. Cada um de nós, antes de nascer, deveria fazer um curso sobre a importância da vida. Se fosse possível, é claro. Assim, cada momento vivido teria a importância que bem merece.
     Nada nesta natureza, Lorbus, existe sem uma função definida.
     Ezin interrompeu seu discurso para olhar mais uma vez ao seu redor. Virou-se depois para Lorbus que lhe devotava toda atenção e continuou:
     — Nós, Lorbus, nós os seres pensantes, somos os únicos responsáveis por tudo isso — disse abrindo os braços. — Nada criamos, mas é fato que a nossa missão é, no mínimo, conservar o que nos foi legado.
     O disco azulado estava quase totalmente enterrado quando Lorbus teve o ímpeto de interromper. Conteve-se ao ver Ezin inspirar e recomeçar:
     — Certa vez, voltando de uma missão a um planeta em desenvolvimento, aqui fiquei a pensar nos seus habitantes: eram primitivos e extremamente violentos. Matavam-se com muita facilidade e quase sempre por motivos fúteis: como um espaço de terra, um pedaço de alimento, uma peça de roupa e até pela atenção do sexo oposto!...
     Lorbus ficou estarrecido com aquelas revelações. A noite, como se receosa daquelas palavras, chegou de mansinho e tomou conta daquele pedaço de mundo deixando a floresta iluminada pela fosforescência dos cristais.
     Ezin, como num desabafo, continuava:
     — Notamos que as suas crianças não eram como os adultos e pouco se importa-vam com essas questões. Brincavam normalmente e, contrariando aquela lógica, dividiam os seus pertences. Mas, somente por influência dos adultos, é que se tornavam diferentes, esquecendo-se rapidamente dos tempos em que brincavam imunes aos sentimentos de posse. Tornavam-se assim embrutecidas e passavam a repetir os nefandos atos dos adultos. Quem criou aquela gente certamente não a queria violenta, pois se o quisesse, as crianças também o seriam. E foi esse o principal argumento que o Imperador usou para autorizar uma missão àquele planeta.
     — E como foi essa missão? — perguntou Lorbus vivamente interessado.
     — Havia uma região cuja terra era impraticável para a agricultura. Porém, vimos que o subsolo possuía um imenso manancial de água, rara na superfície em determinadas épocas do ano. Mandamos então diversos voluntários, adultos e crianças travestidos em "famílias", pois era assim que eles denominavam as suas unidades grupais. Perfuramos poços e fertilizamos a terra. Utilizamos os materiais existentes na superfície do planeta para confeccionar instrumentos rudimentares de plantio e, a partir deles, desenvolvemos a agricultura, técnica que eles desconheciam. Produzimos assim alimento suficiente o bastante para evitar aquelas migrações em busca de comida fixando, desta forma, os homens nas suas regiões.
     Nosso primeiro contato foi com um grupo famélico que nos tentou tirar, com o uso da força, os alimentos estocados. Desistiram quando viram que éramos em maior número mas, principalmente, porque os cedemos sem resistência. Outros depois vieram e foram da mesma forma tratados. As crianças ensinaram o sentido da fraternidade; e os adultos, a técnica.
     — E as matanças acabaram?
     — Não de imediato. Não foi uma transição pacífica e nem rápida.
     Tomando um fôlego da brisa fresca, continuou:
     — A violência era a tônica deles. Sentiam-se desprotegidos e fracos por não aplicá-las; daí, tivemos que usar alguns artifícios para mostrar como eram frágeis as conquistas feitas desta forma.
     — E como foi isso? — perguntou Lorbus emocionado com o desenrolar dos fatos.
     — Foi a parte mais difícil — respondeu iniciando uma caminhada pelo terraço.
     — E por que? — perguntou Lorbus acompanhando.
     — Porque a paz, Lorbus, é o poder maior, porém oculto pela tolerância, amizade e pelo amor. Exatamente o que não conheciam.
     — E que artifícios foram esses?
     Ezin parou e apoiou os antebraços na mureta do terraço. Olhou a lagoa espelhar a orla iluminada pelos cristais e respondeu:
     — Alguns dos nosso misturaram-se a eles e disseminaram esses conceitos. Curaram-lhes as doenças, eliminaram-lhes as pragas e, naturalmente, recusaram qual-quer manifestação material de agradecimento.
     — Manifestação material de agradecimento? — repetiu Lorbus sem entender. — O que significa isso?
     — É uma espécie de troca — respondeu sem muita convicção. — É... não sei bem ao certo... mas algo meio absurdo. Imagine se para comer você tivesse que fazer algo em troca, algum trabalho...
     Ao reparar na intrigada fisionomia de Lorbus tentou complementar:
     — Confesso que também não sei explicar muito bem como isso funciona, mas...
     — Não tem problema — disse Lorbus tentando abreviar-lhe a dificuldade.
     — Tem sim, Lorbus. Lastimo não saber dar a exata dimensão dessa atitude porque assim você deixa de avaliar e entender a repercussão que ela causou entre eles.
     Mas, enfim, recusando essas pagas, foram amados, odiados e suscitaram toda a forma de sentimentos e instintos comuns aos povos primitivos. Tivemos, por isso, que intervir em diversas ocasiões para que não se ferissem e essas intervenções acabaram dando-lhes uma conotação divina. Atribuíram-lhes um Pai mágico e poderoso. Mas, contrariamente ao que prevíramos, teve um resultado benéfico. Tornaram-se quase intocáveis e, sob essa aura divina, suas mensagens foram seguidas e ouvidas com mais respeito... Até mesmo lendas foram criadas a partir dos seus feitos. Depois de muito tempo, retiramos os voluntários e deixamos o planeta entregue aos seus líderes.
     — Qual foi a sua participação, Ezin?
     — Manutenção. A alguns dos seus líderes nós nos revelamos.
     — Revelaram-se assim? — perguntou apontando-lhe para as vestes numa clara ênfase à sua verdadeira identidade.
     — Exatamente. Não sabemos como, mas existem pessoas que estão muito à frente do seu tempo e dos conceitos reinantes. Essas pessoas são capazes de entender em apenas um instante o que outras não entenderiam em toda uma vida. Assim, quando resolvemos deixar o planeta, encarregamos alguns dos seus líderes de receber, passo a passo, as instruções necessárias ao desenvolvimento do seu povo de modo não provocar traumas àquela insipiente cultura.
     — Não seria mais fácil e eficiente descer uma nave no meio deles e dizer logo tudo que devesse ser dito? — perguntou Lorbus pouco sensível aos cuidados tomados junto àquele povo.
     — Não, Lorbus. Primeiro, não há povo desenvolvido que esteja apto a entender tudo que deve ser entendido. Depois, isso também seria uma forma de violência, pois estaríamos impingindo o nosso poder.
     O caminho da paz é espinhoso e você bem sabe que a evolução não pode ser imposta. Podemos preparar a terra e semear uma espécie, mas não podemos fazê-la crescer sem a ajuda do tempo e da natureza. Semeamos a paz, mas não podemos impô-la.
     Todos nós, Lorbus, por mais primitivos que possamos parecer, somos capazes de sentimentos nobres. Temos só que dar uma oportunidade a eles para que floresçam e disseminem a paz. Mas, para isso, temos que desenterrá-los da crueldade e da ignorância. E foi o que fizemos — completou com os punhos cerrados pela emoção.
     Ambos calaram-se, deixando aquele silêncio preenchido pela meditação.






     
     Ezin repassou pela última vez a gravação de Lorbus e descartou definitivamente a possibilidade de serem, aqueles sinais, ecos espaciais ou emissão radioativa natural. Comparou-os aos arquivos existentes e, como resposta, constatou sua singularidade. Ao final da programação, o computador fez a observação: " SINAIS COMPATÍVEIS COM A LENDA".
     Desconhecendo-lhe o teor, decidiu inteirar-se daqueles fatos. Procurou maiores detalhes em outros arquivos e, sempre como resposta, a máquina sugeria uma entrevista com os sábios do Conselho.
     Passou o restante da noite reunido com os conselheiros.
     Lorbus também não dormiu, preferindo deixar-se perder entre a realidade daque-les sinais e seus devaneios, não percebendo que o dia há muito chegara.
     Sua volta à realidade veio num chamado do comandante.
     — Você pode vir urgente ao meu gabinete?
     — Naturalmente — respondeu ainda meio em transe.
     Levantou-se com um demorado alongamento e tomou o caminho que tanto gostava, quase distraindo-se ao ver, flutuando sobre a lagoa, uma estranha nave de pesquisas aquáticas. Chegou à porta do gabinete que, num suave deslizar, abriu-se à sua presença.
     — Pois não, comandante — cumprimentou. Depois, surpreso, deparou-se com Ezin.
     — Como vai, Lorbus? — perguntou aproximando-se.
     — Ansioso — respondeu tocando-lhe o ombro.
     — O comandante deseja falar-lhe. Ouça-o.
     Lorbus virou-se em sua direção.
     — Venham até aqui — chamou-os para junto da tela tridimensional.
     Ambos aproximaram-se da enorme tela que mostrava a galáxia de Mélquer e a rota da nemius III em destaque.
     — Essa — disse o comandante virando-se para Lorbus —, é a possível posição final da sua sonda após o segundo salto. — Bem aqui — enfatizou apontando para um ponto perdido no vazio após acionar um dispositivo e minimizar a escala de grandeza da tela.
     Lorbus aproximou-se do ponto assinalado no meio do nada sem entender.
     — Estamos inclinados a pensar que há algo, talvez alguma forma de vida nesta direção — disse o comandante apontando para o outro lado da tela.
     Lorbus inspirou com satisfação. Olhou para Ezin que lhe deu um significativo piscar e voltou-se para o comandante, que continuava a olhar para a tela.
     — O que o fez pensar que poderia haver algo ali? — perguntou-lhe o comandan-
te.
     — Não sei, comandante, mas parece que sempre soube.
     — Algo como... uma intuição?
     — Creio que sim — respondeu pensando em Arana.
     Depois, lembrando-se da inexatidão dos saltos dimensionais, perguntou:
     — Comandante, como a posição da sonda pôde ser precisada?
     Com um gesto, ele passou a pergunta para Ezin.
     — A chave do problema — explicou — foi fornecida pelos seus sinais. A variação da frequência em relação à velocidade da sonda até a sua parada total no espaço, foi fundamental para a elaboração dos cálculos finais. Agora sabemos que é um método seguro e preciso de deslocamento à impensáveis distâncias. O que precisávamos real-mente, era de uma linha ininterrupta para se estabelecer o parâmetro de distância e velo-cidade. E o conseguimos medindo a energia desses sinais — completou com simplici-dade.
     — Além desta contribuição científica, Lorbus — interferiu o comandante —, esses sinais depois de depurados apresentaram algumas características ímpares. Veja — mostrou apontando para uma pequena tela auxiliar. O que você nota? — perguntou indicando um gráfico construido à partir daqueles sinais.
     — Eu diria que há uma variação da frequência e...
     — E este aqui? — perguntou novamente o comandante mudando o aspecto das curvas do gráfico.
     — Agora a frequência é a mesma, mas com variações de amplitude que...
     — Parece bem simples — interviu Ezin —, mas é uma espécie de codificação. É, sem dúvida, um sinal emitido por uma fonte inteligente. Só não conseguimos ainda decodificá-los — lamentou.
     — Por que? — perguntou Lorbus — São muito primitivos?
     — Não sei — respondeu Ezin olhando para a pequena tela. — São sinais sobre-postos e combinados de uma forma tão simples que nos dificulta a análise. Não conseguimos mais nada deles mas, com certeza, o segundo analisador da nemius III está bem próximo à fonte.
     — Então ela está ainda em atividade? — exultou Lorbus.
     — Sim — respondeu o comandante —, mas pode ser uma estação automática de repetição, embora não haja nenhum sinal exatamente igual à outro.
     — Então como poderemos ter esta certeza? — perguntou Lorbus.
     — Você saberá — respondeu o comandante.
     — Eu?
     — Sim — tornou a responder dando um leve sorriso para Ezin.
     — Vamos caminhar um pouco, Lorbus — convidou Ezin pegando-lhe pelo braço após o significativo sorriso do comandante.
     Lorbus acompanhou-o sem entender o que se passava e tornou a olhar para o comandante, sem saber que esta seria a última vez que o veria.
     Caminharam em silêncio durante um longo tempo enquanto Lorbus ansiava por algumas palavras. Ezin mantinha sua fisionomia tranqüila e, vez por outra, lançava-lhe um olhar jocoso parecendo divertir-se da sua curiosidade.
     — Vamos sentar um pouco — disse finalmente apontando na direção da grande praça.
     Caminharam mais um pouco por entre os arbustos e a praça pareceu ainda mais distante quando Ezin resolveu parar e examinar uma espécie que se desenvolvia, apesar da pouca luz.
     — Veja, Lorbus, como a natureza é independente! — disse levantando-se após examinar atentamente o pequeno caule.
     Chegaram finalmente ao banco e deixaram-se cair quase que simultaneamente. Lorbus respirou fundo e sentiu um pulsar mais forte quando Ezin finalmente preparou-se para falar.
     — Vamos direto ao assunto — disse cruzando as pernas. — Tudo leva a crer que seja uma fonte em atividade, apesar de não termos nenhuma confirmação.
     — Uma civilização extra galáctica? — perguntou Lorbus esperando uma resposta positiva.
     — É bem possível — respondeu descruzando as pernas e virando-se um pouco mais.
     — E o que você tem mais para me dizer? — perguntou Lorbus sabendo que não teria o menor sentido aquela caminhada para tão pouca informação.
     — O Conselho dos Sábios interessou-se muito por esta descoberta.
     — E como souberam? — perguntou surpreso pois era sabido que o Conselho só tratava de assuntos de alta relevância para o Império.
     — Eu disse — respondeu. — Durante as minhas pesquisas, sempre me deparava com uma sugestão de aconselhamento junto aos sábios. Fui então ao Conselho e expus os fatos.
     Lorbus começou a preocupar-se com aquela repercussão.
     — Há uma lenda... — recomeçou Ezin após breve silêncio. — Mas eu não sou a pessoa mais indicada para falar-lhe sobre ela, mas posso adiantar que estão dando bastan-te importância a essa descoberta.
     — Até que ponto?
     — Ao ponto de decidirem enviar uma missão tripulada e pesquisar de perto a atividade desta fonte.
     — Uma missão tripulada a uma região desconhecida sem nenhum mapeamento prévio? — perguntou Lorbus sabendo que esse procedimento fugia totalmente às normas do Império.
     — Exatamente — confirmou Ezin. — E de alto nível.
     — O que significa "de alto nível", Ezin?
     — Não sei dos detalhes, Lorbus, mas sei que eles estão considerando esta missão como uma prioridade do Império. Alguma coisa eles sabem mas não nos podem revelar, talvez por proteção mútua: só podemos ter acesso a determinado nível de informação quando estivermos neste exato nível de compreensão e consciência.
     — É a maneira de se resguardar uma verdade sem descaracterizá-la. Não é?
     — Creio que sim — respondeu Ezin olhando para o céu. — Tentar entender a vida e o universo com o nosso atual nível de consciência é o mesmo que pegar um átomo e, a partir dele, inferir toda a matéria organizada.
     — Eu também penso assim — concordou Lorbus.
     — Ótimo que você pensa assim — disse Ezin numa súbita animação —, porque você irá nesta missão.
     — Eu? — perguntou num susto.
     — Sim, e será o único tripulante — respondeu olhando-lhe firme nos olhos.
     — Eu não me sinto preparado para esta missão — disse acreditando-se aquém da competência necessária.
     — Acho que eles não pensam desta forma — lembrou Ezin referindo-se aos sábios que o indicaram. — Há um roteiro preliminar que você deverá seguir antes de iniciar esta missão. Primeiro, haverá um encontro seu com o sábio de Pentátilis.
     — O maior sábio do Império? — espantou-se Lorbus.
     — Sim, confirmou Ezin balançando a cabeça. — O maior e o mais velho sábio do Império.
     — Estou assustado, Ezin. No fundo, estou com medo — disse assumindo a sua fragilidade.
     — O medo é uma reação do intelecto ante o desconhecido. Nenhum ser é provecto o suficiente para não tê-lo — animou Ezin tocando-lhe o ombro.
     — Assim falando, parece simples... mas sinto-me tão pequeno... — murmurou procurando no chão algum minúsculo animal para comparar-se.
     — Todos somos muito pequenos... muito pequenos — enfatizou.
     Lorbus levantou os olhos e viu aquele homem, reconhecidamente a maior autoridade do Império na sua área de pesquisa, considerar-se ainda tão pequeno.
     — Então, Ezin, por que sentimo-nos tão pequenos e incapazes em determinadas fases e situações das nossas vidas?
     — Creio que é algo... como, por exemplo: imagine infinitos círculos concêntricos a partir de um ponto. Se o seu universo é esse ponto, o limite da sua consciência é o primeiro círculo. Agora você evoluiu: o seu nível de consciência não é mais o primeiro, mas o segundo círculo. À medida que você evolui vai expandindo a sua consciência até conseguir imaginar alguns círculos à frente. Assim, quanto maior for a consciência, maior será a quantidade de círculos imaginados. Observe, Lorbus, que, quanto maior for o nosso nível de consciência, maior será a sensação de inferioridade ante aos infinitos círculos a imaginar. Paradoxal, não?
     Finalmente, quando você alcançar a consciência universal, sentir-se-á exatamente como o nada. E, a partir daí, estará completamente integrado ao todo.
     — Fascinante, Ezin!
     — Mas tem ainda um detalhe que eu não falei.
     — Mais ainda? — perguntou Lorbus refazendo-se da surpresa.
     — Sim, quanto ao tipo de nave que você usará.
     — E de que tipo será? — perguntou preparando-se para mais uma surpresa.
     — Nenhuma das que você está pensando — fez um certo mistério. — Será simplesmente a fertílitis — respondeu esperando uma reação.
     — A fertílitis!?...
     Realmente, era plenamente justificada aquela reação, pois se tratava da maior e mais completa nave do Império.
     — Exatamente — confirmou Ezin. — Neste momento, ela está sendo levada para a estação orbital de Valnius onde serão feitas as adaptações necessárias para ser operada somente por um tripulante. Mas não se preocupe com os detalhes técnicos pois amanhã, dia do seu embarque para Pentátilis, você receberá um cristal-memória com todas as instruções para o seu manuseio. Eu mesmo o prepararei.
     Ambos então abraçaram-se como numa grande despedida. Ezin olhou para Lorbus bem de frente e, como se lembrando de algo, disse:
     — É pena que tenhamos que esquecer certas experiências.
     — O que significam essas palavras? — perguntou Lorbus intrigado.
     — Elas não teriam o menor sentido se explicadas no atual estágio de consciência em que nos encontramos. Talvez noutra ocasião... — disse com um leve sorriso.
     — Até amanhã, Lorbus. Vejo-o na estação de embarque.
     — Até mais — despediu-se não perdendo Ezin de vista até vê-lo entrar na cabine do teletransportador, mas ainda com suas últimas palavras na mente.

     Lorbus não conseguiu conciliar o sono, apesar de ter ido cedo para a cama. Seus olhos continuavam fixos no céu buscando nele alguma resposta não encontrada na sua razão.
     Muito tarde, com os olhos ainda fixos no firmamento, ouviu o sinal de solicitação de acesso.
     — "Quem será?" — perguntou-se.
     Liberou o acesso e a porta deslizou suave e silenciosamente.
     — Arana!? — levantou-se num impulso — Que bom vê-la novamente!
     — Acabei de chegar e me disseram que você partirá amanhã. Daí resolvi aparecer.
     — E o fez no momento certo — agradeceu confortado. — Sente-se aqui — chamou-a para a parte externa do prédio de onde se podia ver melhor o céu em contraste com a pálida luz dos cristais na orla da lagoa.
     — Estou sentindo uma insegurança nunca antes experimentada — disse à jovem de Ramak.
     — Isso é uma coisa natural, Lorbus. Todos tememos o desconhecido.
     — Ezin falou a mesma coisa mas com palavras diferentes — disse virando-se e encontrando o seu meigo olhar. — Você tinha mesmo razão — concordou tocando nos seus cabelos.
     — Sobre o que? — perguntou com o seu habitual carinho.
     — Sobre as intuições.
     A jovem sorriu graciosa e pegou-lhe as mãos.
     — Eu tinha certeza que havia algo mais naquela rota — disse Lorbus apertando delicadamente aquelas suaves mãos. — Mas se não fosse por você...
     — Cultive isso, Lorbus — interrompeu docemente —, e não deixe que adormeçam no berço da incredulidade ou da ciência.
     — Não deixarei — prometeu tocando-lhe o rosto.
     Arana fechou os olhos e depois olhou novamente para o céu.
     — Está vendo? — perguntou apontando para uma constelação.
     — Sim — respondeu Lorbus virando-se também.
     — Esta direção tem para você algum significado?
     Lorbus pensou um pouco e depois respondeu.
     — A rota da nemius III?
     — Exatamente. Atrás daquelas estrelas existe um novo mundo que poderá depender de você.
     Ambos trocaram um olhar antes de Arana continuar.
     — Todas as noites, Lorbus, vou olhar para elas e lembrar-me de você. Não vou deixá-lo só — prometeu com os olhos fixos nos dele.
     E, num impulso que poucos sabem a razão, abraçaram-se e permaneceram assim até o amanhecer.
     







     Dia alto, Lorbus teletransportou-se para a estação de embarque, onde encontraria Ezin antes de, finalmente, partir.
     O movimento nas plataformas era intenso: as pequenas naves que serviam de ligação entre os cargueiros em órbita, iam e vinham ininterruptamente, despejando gente e mercadorias provenientes de todas as partes do Império. Lorbus, afastado da multidão em um dos mirantes, aguardava o momento do embarque transformando cada rosto... cada gesto que via em lembranças para embalar sua inevitável solidão. Aproximou-se de um painel que mostrava a posição das naves em órbita e procurou pela rimélius, cargueiro que o levaria até Pentátilis. Sentiu uma certa decepção, algo meio vazio que não soube explicar ao não ver o prefixo do cargueiro na relação.
     — Encontrou o que procurava? — perguntou uma voz familiar.
     — Salve, Ezin! — cumprimentou num misto de felicidade e alívio. — Sinto-me meio tonto com tanta atividade.
     Ezin sorriu descontraído.
     — Até parece que todos resolveram viajar ao mesmo tempo — concordou após uma rápida incursão visual pela estação.
     — Por que a rimélius não se encontra na relação? — perguntou Lorbus sentindo o momento de embarque.
     — Essa programação — respondeu olhando rapidamente o painel —, indica somente as naves em plano orbital. A rimélius descerá.
     — Descerá? — perguntou surpreso sabendo que não era comum uma nave de grande porte descer à superfície a não ser em casos especiais.
     — Sim — confirmou Ezin. — E daqui a alguns instantes ouviremos o alarme de aproximação.
     — O que trazem de tão importante? — perguntou aproximando-se da janela panorâmica e olhando para cima.
     — Uma rocha descoberta por uma das nemius.
     — Uma rocha? — estranhou o carregamento.
     — Sim — confirmou Ezin olhando distraidamente para os lados —, mas uma nunca antes vista.
     — O que tem ela de especial? — perguntou Lorbus revendo mentalmente a escala de classificação mineral.
     — As pesquisas preliminares indicam que é composta de elementos completamente desconhecidos. E isso vai revolucionar os nossos conceitos!
     — Há algo de mais significativo além da sua composição? — perguntou Lorbus vivamente interessado neste achado.
     — Sim. O arranjo molecular... É uma perfeição, Lorbus. Possui uma simetria que... — interrompeu-se numa longa expiração e retomou com ar pensativo.   — Sabe, Lorbus, é impossível que algo assim tenha se formado espontaneamente, como um capricho...
     — O que você quer dizer com isso?
     — Nada — dissimulou com um gesto. — Só sei que, vez por outra, a natureza troça com a nossa capacidade em compreendê-la.
     Lorbus ia insistir um pouco mais quando o alarme de aproximação foi acionado. Aos poucos a estação foi se modificando para receber a gigantesca nave que se aproximava: primeiro, cessou o fluxo das pequenas; depois, imensos braços se estenderam, deixando à mostra os feixes luminosos das guias de pouso e, por fim, a parte superior da estação recuou, desnivelando-se da restante e amoldando-se à forma da rimélius que vagarosamente se aproximava. Agora suas luzes eram visíveis e brilhavam sobre a plataforma. Também era audível o som dos flutuadores. As guias de pouso acenaram para o imenso retângulo que, com uma precisão absoluta, deixou-se segurar por aqueles braços abertos. Por fim, com os flutuadores desligados, repousava solene-mente, cessando o estado de alerta e iniciando o trabalho de descarga.
     Vários cabos de teletransporte foram acoplados ao mesmo tempo em que as portas se abriram. Nesse momento, Lorbus e Ezin trocaram seus olhares numa derradeira despedida: era chegada a hora.
     — Aqui está, Lorbus — disse passando-lhe o cristal.
     Lorbus tomou o pequeno quadrado em tom azul e guardou-o dentro do traje. Olharam-se novamente e um longo abraço selou a despedida.
     Sem mais voltar-se, Lorbus, com aquele dolorido nó na garganta, penetrou na rimélius ao mesmo tempo em que era desembarcada a rocha, considerada por Ezin como a mais perfeita obra da natureza.
     — Ele já embarcou? — perguntou outra voz momentos depois.
     — Acabou de fazê-lo — respondeu Ezin virando-se para Arana.
     — Faltou dizer-lhe certas coisas — lamentou.
     — Ainda há tempo — disse Ezin consultando o cronograma de partida.
     — Pensando bem, acho que não devo.
     Depois, com um breve sorriso, completou:
     — Vou falar por outros canais.
     Ambos deram mais uma olhada no cargueiro.
     — Vamos até lá embaixo — convidou Ezin.
     Desceram e foram até o local onde fôra deixada a rocha.
     — Pode abrir — disse para um dos cientistas encarregados das pesquisas prévias.
     A porta deslizou para o lado expondo a ante-câmara ao excepcional brilho emanado pela pedra. Arana, com a respiração suspensa, mal podia compreender a magnitude daquele cristal, somente a sentia.
     — Não é prudente se expor desta forma — observou o cientista aproximando-se de ambos e consultando o medidor de radioatividade.
     — Algo nos registros? — perguntou Ezin sem desviar-se daquela luz.
     — Não, mas estamos apenas começando as pesquisas. Nunca se sabe exatamente tudo mesmo após exaustivos estudos. Não é verdade?
     — Tem razão — concordou tocando no braço de Arana convidando-a para sair — Mas seria lamentável se algo tão belo nos fizesse mal.
     Nesse momento, o alarme soou: a rimélius estava de partida.
     Ezin e Arana aproximaram-se do colosso que anunciava sua partida com um rugir de flutuadores. Lentamente, libertou-se da gravidade e foi ganhando altura, enquanto os braço foram recolhendo-se. Gradativamente, a nave foi acelerando até não mais poder ser vista.
     A estação recompôs-se e, novamente, iniciou-se o movimento, retornando à dinâ-mica anterior.

     Instalado em uma cabine na parte inferior da nave, Lorbus preparou-se para a primeira sessão de instruções preparadas por Ezin. Já havia inserido o cristal na fenda do console quando olhou para fora. A nave ainda seguia à velocidade de escape e logo estaria em um dos corredores, impedindo a visualização dos astros como pontos em deslocamento. Resolveu então interrompeu-se e desligou as luzes da cabine, facilitando-lhe a observação exterior.
     "Que vastidão!" — comentou para si.
     Lorbus seguia suas observações enquanto os pontos passavam cada vez mais rápidos pela sua janela até tornarem-se linhas tão próximas e abundantes que deram ao exterior um aspecto de luminosidade homogênea: a velocidade constante fôra alcançada.
     Clareou novamente a cabine e concentrou-se longamente nas instruções do cristal.
     Terminada a sessão, resolveu alimentar-se.
     Abandonou a cabine e caminhou por um longo corredor mal iluminado até parar em frente à porta de um transporte vertical. Tocou em um pequeno botão e, após um instante, a porta se abriu. Leu o painel de opções de parada mas não entendeu a simbologia empregada, lastimando assim ter negligenciado o manual do cargueiro.
     Tocou aquela que lhe pareceu a mais lógica e, quando a porta novamente se abriu, viu-se diante de um imenso compartimento de cargas. Saiu do transporte em direção aos volumes e teve uma surpresa: a gravidade artificial estava desligada. Ainda tentou segurar-se na porta do transportador mas suas mãos deslizaram na superfície lisa indo seu corpo flutuar sobre as caixas. Lentamente, sentiu tocar no teto e, com gestos suaves, impulsionou-se de volta ao piso. Repetindo a mesma manobra, consegui entrar no transporte vertical que ainda mantinha-se com a porta aberta, caindo pesadamente no seu interior. Assustou-se com a possibilidade de uma súbita desaceleração da nave que, certamente, o esmagaria de contra aquelas paredes. Passou as mãos no rosto suado pelos pensamentos quando a porta fechou-se, movendo-o até um compartimento onde se encontrava um tripulante do planeta Bantok.
     — Como vai? — cumprimentou Lorbus com indisfarçável satisfação.
     — Enfim o nosso único passageiro — disse o homem de pele escura e voz grave. — Meu nome é Baar — apresentou-se tocando em um dos controles do transporte. — Precisa de alguma ajuda?
     — Na verdade, sim. Estou procurando um distribuidor.
     E, antes que o negro pudesse transformar em palavras a sua expressão, Lorbus se adiantou: — parece que eu me perdi.
     Baar gargalhou sem a menor cerimônia.
     — Se você quiser posso levá-lo. Mas antes tenho que fazer algumas verificações de rotina.
     E, em tom de brincadeira acrescentou:
     — Você não morrerá de fome por isso.
     A porta se abriu para uma sala repleta de instrumentos iluminados por uma infinidade de pequenas lâmpadas. Baar caminhou por entre uns cilindros que mais pareciam os transmissores de potência utilizados nas antigas naves da frota e parou sob um painel.
     — Você não vai entrar, Lorbus? — perguntou vendo-o parado na porta.
     — Sim... — respondeu meio sem jeito. — Mas como sabe o meu nome?
     — Não é muito difícil decorar uma lista de um só nome — respondeu rindo com seu ar jocoso.
     Lorbus também riu.
     — Veja, Lorbus — apontou para uma porta que abria ao seu comando —, não é uma beleza? — perguntou entrando no compartimento após este abrir-se totalmente.
     — Me parece algo eficiente, mas nem mesmo sei do que se trata — disse aproximando-se também.
     — Ah! — exclamou Baar fingindo contrariedade. — Estamos nas pernas da nave. Esta é a sala de máquinas!
     Lorbus olhou novamente à sua volta e não reconheceu nada que a identificasse como tal, a não ser pelos cilindros.
     — Esses velhos caçadores de frequência ainda funcionam? — perguntou surpreso.
     Baar sorriu orgulhoso ante aquela surpresa, pois era plenamente justificada. A rimélius era a única nave que ainda se deslocava com propulsores cujo suporte energético eram as radiações cósmicas.
     — E como funcionam! — respondeu sentando-se ao console.
     — Nunca vi um propulsor destes em funcionamento — disse Lorbus examinan- do de perto o maquinário.
     — Isso é uma maravilha! — disse Baar efetuando diversas conexões entre o console e alguns pontos específicos dos propulsores. — É uma obra-prima da engenharia. Tomara que não inventem nada melhor.
     Sem dúvida, tratava-se de um velho cargueiro, a começar pelo seu propulsor. Mas, para rotas tão densamente povoadas de corpos siderais como aquela, de nada adiantariam os propulsores por difusão hiperespacial que equipavam as naves de longo curso.
     Lorbus assim divagava enquanto via Baar em seu laborioso afazer. Com muita habilidade, revisou tabelas, corrigiu formas de onda, ajustou freqüências e, por fim, deu-se por satisfeito. Desfez todas as conexões, desligou o maquinário de ajustes e pontificou:
     — É uma máquina perfeita. Precisa apenas de um carinho vez por outra. Não é muito. É? — perguntou com seu ar alegre.
     Lorbus sorriu e concordou, dando uma derradeira olhada para trás antes de saírem.

     — Nosso ilustre passageiro, senhores — disse Baar aos outros dois tripulantes que iniciavam a refeição.
     — Como vai, Lorbus? — cumprimentou o mais velho que identificou-se por Tin.
     — Esta é Egen — apresentou-lhe a tripulante de longos cabelos claros e olhos azuis.
     A mulher apenas lançou um rápido olhar em sua direção sem manifestar qualquer emoção. Baar, vendo-lhe o constrangimento, riu e comentou:
     — Parece que você não está muito acostumado a lidar com os povos fora do pater planeta.
     — Você conhece as particularidades dos nativos de Hegar? — perguntou Tin referindo-se ao complexo temperamento daquele povo representado por Egen.
     — Algumas — respondeu pegando o volume das mãos de Baar e sentando-se ao seu lado. — Mas nunca tive nenhum contato com eles — completou lançando um tímido olhar para ela.
     Fez-se uma pequena pausa. Lorbus observou o biotron e, vendo apenas quatro suportes de vida, perguntou:
     — São apenas vocês três os tripulantes?
     — Na verdade — respondeu Tin —, somos apenas dois. Egen é pesquisadora itinerante.
     — Ah! Sim — admirou-se. — Em que ramo de pesquisa? — perguntou sem saber ao certo para quem olhar.
     — Indícios da nossa origem — respondeu Egen colocando lentamente os cabelos para trás da orelha e fitando Lorbus com seus penetrantes olhos azuis. — Apenas indícios, já que a nossa condição não permite ir além dessa premissa.
     Lorbus tornou a olhar para os outros tripulantes que já pareciam acostumados àquela dialética.
     — Você sempre se refere a indícios, Egen — interrompeu Tin. — Por que não algo mais completo?
     — Somos tal como os nossos sentidos permitem que sejamos — respondeu com ar sereno e compenetrado.
     Baar interrogou-a com os olhos mas ela continuou sem os aperceber:
     — Ouvimos e vemos em apenas uma estreita faixa de freqüência enquanto os outros sentidos somente captam sensações a partir de determinados estímulos. Porém, o universo está quase que totalmente fora do alcance dos nossos órgãos sensoriais. Como podemos concluir, o nosso maior bloqueio junto ao universo encontra-se justamente neste corpo — completou olhando-se com certo desprezo.
     — Mas é o único veículo que temos para... — ia fazendo uma colocação pensando no que lhe dissera Arana, quando Egen interrompeu:
     — Liberte-se das três dimensões e das emoções do seu corpo, Lorbus — disse levantando-se em direção ao laboratório.
     Lorbus ainda teve um ímpeto em prosseguir no assunto, mas foi contido por Tin.
     — Ela não dirá mais nada, Lorbus. Acredite — disse segurando-lhe as mãos.
     — E por que não? — perguntou sem entender.
     — Essa ilusão material que chamamos de vida é, para eles, apenas um suporte para o transcendental. Por isso muitas vezes não os compreendemos e nem eles a nós.
     — Mas há diversos nativos de Hegar no Conselho dos Sábios — observou Baar.
     — Sim — confirmou Tin. — Precisamos de todas as vertentes da manifestação humana pois é assim que alcançamos o equilíbrio.
     A nave pareceu vibrar.
     — O que foi isso? — perguntou Tin colocando as mãos na parede do cargueiro.
     — Uma desaceleração — respondeu Baar levantando-se em direção à cabine de comando, sendo seguido pelos outros dois.
     Com efeito, viram pelas janelas um enxame de asteróides bloqueando a pas-sagem. Baar sentou-se e ligou o rastreador.
     — A frenagem foi automática — disse observando as leituras do aparelho.
     — Por que a nave não desviou sua rota? — perguntou Tin sem compreender aquela manobra dos computadores.
     — Já estava previsto — respondeu Baar consultando o guia de programação. — Alguém sabia que passaríamos por aqui neste momento e não optou por uma mudança de rota. Deve ter tido os seus motivos.
     — É um belo espetáculo — observou Lorbus após Baar ter escurecido a cabine para melhor visão daqueles corpos.
     — É verdade — confirmou Tin virando-se para trás rapidamente enquanto manobrava a nave por entre aqueles obstáculos.
     Lorbus voltou à sua cabine após o incidente. Repassou o conteúdo do cristal e submeteu-se à nova sessão de treinamento deixando-se, depois, vencer pelo cansaço. Acordou com lentidão e reparou que nem tirara o capacete de estudos. Olhou para fora e viu a escuridão pontilhada.
     "Estamos parados" — concluiu.
      Foi até a cabine de comando e, encontrando-a vazia, valeu-se do biotron para apenas assinalar duas presenças. A telemetria determinou a localização da outra.
     "Onde estarão Baar e Tin?" — perguntou-se.
     Ia verificar a programação da nave quando viu, abaixo da linha do horizonte, uma pequena estação orbital.
     Esquecera-se totalmente que estava à bordo de um cargueiro. Permaneceu na cabine e lembrou-se da ausente presença de Egen. Sentiu-se embaraçado pelo desejo em vê-la novamente mas, vencendo a inibição, caminhou até o seu laboratório.
     A porta não estava totalmente cerrada e deixava ver o seu interior repleto de estranhos aparelhos. Ela estava lá, sentada calmamente como se fosse um dos seus periféricos. Aproximou-se lentamente e, antes que pudesse expressar qualquer palavra, viu-a virar-se e dizer:
     — Não comece pelas perguntas, Lorbus, elas somente servem para enquadrar logicamente as constatações do seu quotidiano. Não aprisione a sua mente e deixe as respostas livres de qualquer estigma. Assim sua compreensão sobre o mundo será mais ampla.
     — É difícil imaginar somente respostas — justificou aproximando-se.
     — Sua cultura obrigou-o a isso, não a sua mente.
     Egen voltou-se depois para os instrumentos passando a ignorar-lhe a presença. Lorbus ficou ainda por alguns instantes a observá-la, totalmente integrada à sua máquina mas com uma certeza: dela se diferia não apenas organicamente, mas na mais pura essência. Saiu e voltou para a cabine de comando bem a tempo de ver o pequeno veículo conduzido por Baar passar em frente à janela lateral.
     
     Tin ultimava os preparativos para entrar nas fronteiras de Pentátilis quando um aviso sonoro saiu do seu painel.
     — Avise Lorbus que estamos nos aproximando — pediu a Baar que imediata-mente retransmitiu.     
     — Não quer avisar também a Egen? — perguntou Baar. — Assim talvez eu possa ver alguma expressão naquele rosto — completou com um leve sorriso ajustando o motor auxiliar de reentrada.
     — Vocês de Bantok jamais compreenderão os de Hegar — observou Tin. — São os dois opostos.
     Baar sorriu e perguntou troçando:
     — Se estamos em pontos opostos, quem está à frente na evolução?
     — Estamos todos eqüidistantes do centro — respondeu Egen que aproximara-se também para ver o espetáculo da reentrada.
     Tin trocou rapidamente um olhar de canto de olho com Baar.
     — Já estamos no cinturão? — perguntou Lorbus alertado pelo chamado.
     — Estamos quase — respondeu Tin virando-se para trás e vendo-o posicionar-se de pé, ao lado de Egen. — Lá está o primeiro sinal de Pentátilis — indicou apontando para uma estrela bem à esquerda da nave.
     — Parece com todas as estrelas — disse Egen —, mas individualiza-se por ser a única a anunciar Pentátilis.
     Lorbus olhou para o rosto dela que, embora não estivesse demonstrando nenhuma emoção, deixava emanar algo de si, tão suave era o seu olhar.
     Tin pareceu entender aquelas palavras, pelo rápido e atento olhar lançado àqueles olhos azuis.
     Baar não chegou a ouvir-lhe, concentrado que estava em ajustar os propulsores para a nova situação.
     Uma vibração quase tão rápida quanto imperceptível foi sentida na cabine.
     — Tudo bem — tranqüilizou Baar. — Pode manobrar agora.
     Tin assumiu o controle manual do cargueiro e o desacelerou.
     — Vamos passar próximo à primeira lua — disse consultando o rastreador.
     Lorbus aproximou-se um pouco mais da frente da nave tentando ver o satélite.
     — Lá. Olhe para lá — orientou Baar apontando uma pequena fonte luminosa em frente.
     — Majestoso! — exclamou ao ver o satélite mais de perto. — Tem luz própria? — perguntou não percebendo nos arredores nenhum astro mais iluminado.
     — Na verdade não — respondeu Tin. — Essa luminosidade é uma espécie de radiação característica resultante da interação da sua atmosfera com uma longínqua fonte de radiação.
     — O cinturão está bem à frente — interferiu Baar consultando novamente o rastreador.
     — O que forma este fenômeno, Tin? — perguntou Lorbus.
     — Basicamente, é provocado pelo distúrbio magnético causado pelas massas das luas que interferem na propagação da luz dos dois sóis de Pentátilis.
     — Chamamos isso de vento sideral — disse Baar em nova intervenção.
     A nave penetrou no labirinto cromático. À medida em que avançava, dava a impressão de estar navegando no fundo de um lago iluminado por bolhas coloridas que estouravam contra as paredes da nave. Lorbus lançou um olhar a Egen que permanecia impávida quando o efeito espiral começou: primeiro, um imenso círculo à frente seguido por vários outros menores e concêntricos que se sucediam em frequência crescente até formar o espiral, terminando ao atravessar o menor deles caindo, depois, numa espécie de túnel, cujas paredes pareciam esculpidas por pedras multifacetadas.
     — A primeira vez que passei por aqui tive a impressão que me chocaria com elas — disse Baar após o efeito de fragmentação do túnel terminar.
     As cores foram perdendo a intensidade até desaparecerem por completo.
     Tin, com movimentos precisos, passou a nave entre as luas até atingir a órbita do planeta alaranjado. Ajustou o plano orbital conforme as instruções recebidas e lançou um derradeiro olhar a Lorbus.
     — Aqui desce uma carga preciosa — disse com um piscar.
     Lorbus tocou-lhe o ombro e despediu-se.
     Baar, por sua própria natureza descontraída, levantou-se para acompanhá-lo até a sala de transporte onde uma pequena nave entraria.
     Egen já não se encontrava mais com o grupo.
     Ambos se abraçaram e permaneceram juntos até a sala de transporte atingir a pressão e gravidade normais. Depois, Lorbus caminhou até a pequena nave e embarcou, ficando Baar parado até a nave iniciar a manobra de descida e a porta externa ser aberta. Lorbus virou-se instintivamente para trás após a pequena nave mergulhar no espaço e viu, por uma das janelas, os olhos azuis de Egen.

     Em rápida descida, logo alcançaram a estação de Pentátilis.
     O contraste com a do pater planeta era significativo: além de menor e de reduzido movimento, parecia ter uma atmosfera própria. Até as pessoas eram, de certa forma, di-ferentes.
     — Você é Lorbus? — perguntou um homem aproximando-se logo ao desem-barque.
     — Sim — respondeu levantando-se.
     — Então venha — convidou com delicadeza. — Vou levá-lo ao encontro com o conselheiro.
     Lorbus acompanhou-o até uma nave de superfície, um daqueles modelos sem a proteção superior usados principalmente em análises florestais.
     A nave ganhou altura lentamente, conforme era a sua característica, permitindo uma viagem suave e ao mesmo tempo reflexiva.
     A natureza especial de Pentátilis abria-se a sua passagem: embaixo, a floresta que cobria quase todo o planeta; depois, com a nave numa altitude maior, sobrevoaram a montanha gelada e a grande queda d'àgua derivada do degelo. Continuaram nessa direção, acompanhando o rio formado por essa cascata até o lago, para então mudar a rota e sobrevoar um campo verdejante. Alcançaram ainda um pequeno córrego e o seguiram até sua entrada no bosque. E, entre as suas árvores, desceu.
     — É aqui — disse o piloto desligando o silencioso flutuador da nave.
     Lorbus olhou ao redor antes de descer, provavelmente esperando encontrar algum prédio especial. "Afinal, era ali que morava o maior conselheiro do Império." — pen-sou. Desceu e caminhou até uma construção rústica, feita em madeira e de estranha arquitetura. Olhou para cima e ainda viu a nave em evolução, voando em direção à montanha gelada. Caminhou até aquela estranha habitação, reteve-se a uma distância que o permitiu analisar mais apuradamente o prédio inusitado e viu uma das suas portas se abrir. Não era uma porta comum, pois se prendia a um dos lados que servia como eixo de movimento.   Por ela, saiu um homem velho. O ancião caminhou em sua direção, parou à sua frente e disse:
     — Venha, Lorbus, vamos entrar — convidou o sábio de Bantok.
     Lorbus obedeceu, indo à frente e adentrando na casa.
     Notando a sua curiosidade, o sábio deixou-o à vontade.
     — Observe bem, Lorbus. Por certo, você nunca viu nada parecido.
     — É verdade, conselheiro — concordou emocionado com aquele primeiro contato.
     — Quando cessarem as perguntas pela inutilidade em fazê-las, conversaremos.
     Lorbus não entendeu aquelas palavras, mas vendo o conselheiro sentar-se confortavelmente em um dos estranhos assentos, deixou-se levar pela curiosidade e captou cada detalhe do que viu. Mais tarde, refeito da emoção e da surpresa, sentou-se também junto ao velho e esperou-o tomar a iniciativa.
     — Você deve estar ansioso em saber por que o mandaram tão longe para conversar com um velho — disse o conselheiro quebrando o silêncio.
     — O mais sábio dos conselheiros — emendou Lorbus com acentuado respeito.
     — Ah! — resmungou com ar contrariado. — Renegue estes títulos de sua vida, meu rapaz. Não se deixe impressionar pelos rudimentos de técnica que aprendeu. Eles só copiam a natureza. E mal! — acrescentou enrugando ainda mais o rosto. — Sábio é o criador de tudo isso. E você não me venha com teorias academicistas que só explicam acontecimentos isolados e em pontos insignificantes da nossa galáxia — disse apontando-lhe o dedo.
     Lorbus continuava atento, sorvendo cada palavra.
     — Imagine você, Lorbus, viajando em linha reta por este mundo afora... sempre em linha reta... — gesticulou com as mãos. — O que vai encontrar? — perguntou com um reforço fisionômico. — Planetas... estrelas... galáxias... vazio... e mais galáxias e mais vazios. Não tem fim, Lorbus. E, agora que iniciamos as viagens por saltos dimensionais, vamos conhecer coisas que nunca imaginamos, aumentando ainda mais a nossa igno-rância. O saber é como uma viagem ao infinito.
     Sábio, o mais sábio dos conselheiros... — disse rindo de si com uma aparente comiseração por aqueles que assim o classificaram.
     — Mas conselheiro... — ia interrompendo Lorbus.
     — Tudo que aprendi — continuou não se deixando apartear —, serviu-me apenas para mostrar o tamanho da minha ignorância. Eis aí um título que bem mereço — disse o velho com a fisionomia luminosa: — velho e ignorante. É o que realmente sou — disse rindo-se da reação de Lorbus.
     Seu nome era referência obrigatória em quase todos os ramos da atividade científica do Império. Mesmo o imperador vinha até Pentátilis aconselhar-se com aquele ancião. Sabia também que fôra o Conselho dos Sábios que indicara aquele encontro.
     — Vamos andar pouco, meu rapaz — convidou o velho levantando-se e recusando-lhe a ajuda. — Isso me basta — apontou para um bastão de madeira com que caminhava.
     Saíram em direção às árvores próximas ao córrego. O velho ia começa a falar mas interrompeu-se para admirar um pássaro que bebericava.
     — Das muitas lendas que possuímos — começou o sábio após o pássaro alçar vôo —, há uma que me desperta especial interesse.
     O velho parou à beira do córrego como se estivesse procurando um lugar adequa-do, mas sem muita pressa.
     — Vamos até ali — apontou para uma clareira.
     Lorbus acompanhou o velho respirando fundo a brisa que vinha da montanha gelada.
     — Sente-se aqui, Lorbus — indicou o ancião um tronco caído à beira do riacho.
     Lorbus sentou-se e esperou o velho, na expectativa de ajudá-lo.
     — Conta-se que uma nave foi resgatada após perder-se no espaço — iniciou o conselheiro a narrativa após sentar-se e colocar o bastão ao seu lado. — Era uma nave muito rudimentar, tão lenta, que as viagens de longo curso só eram possíveis porque os seus tripulantes as faziam dormindo. Congelados!
     Lorbus franziu a testa.
     — Sim! — disse o velho percebendo-lhe a reação. — Era uma técnica que empregavam para não morrerem pela velhice, tal era o tempo que despendiam. Os instrumentos de navegação eram precários, sujeitos a muitos erros. Acredito que essa foi a provável causa para justificar o desvio na rota que os levaria ao seu planeta natal.
     Essa descoberta foi casual: um dos nossos cargueiros, viajando próximo à fron-teira em missão de reabastecimento às estações orbitais, detectou um sinal que sugeria ser uma delas fora de posição, hipótese afastada após verificação feita pelo Centro de Operações Estelares. Naquela época não fazíamos ainda incursões fora das nossas fronteiras e como aquele objeto estava muito distante da nossa área de segurança, foi deixado de lado. Isso não é a lenda — enfatizou o velho esticando as pernas —, está registrado nos arquivos de vôo. A lenda é contada a partir do momento em que um dos nossos, tempos depois, baseado na rota assinalada pelo cargueiro, aventurou-se pelo vazio e fez uma aproximação com algo que lhe pareceu um veículo espacial. Também não existia o biotron, o que mudaria radicalmente a conduta do cargueiro que o avistara anteriormente. Sem este recurso, o jeito foi a abordagem direta que mostrou a presença de seres idênticos a nós dormindo dentro de uns cilindros transparentes. Julgando-os em dificuldades, resolveu trazê-los à superfície. Desceram bem ali — apontou em direção a uma rocha. — Feita a verificação no suporte de vida, a nave foi aberta e eles desconge-lados.
     Viveram entre nós até morrerem de causas naturais.
     — E quem eram eles, conselheiro?
     — Eram viajantes em missão de estudo a planetas próximos do seu sistema solar.
     — De que parte do universo eles vieram?
     — Não sabemos exatamente, Lorbus, mas com certeza não foi da nossa galáxia.
     E, vendo a interrogação no seu olhar, continuou:
     — Em depoimento posterior disseram que, durante as suas viagens, entraram em contato com um povo primitivo e permaneceram entre eles durante um determinado tempo. Foram depoimentos um tanto confusos devido aos distúrbios de memória que sofreram em decorrência do longo tempo em que estiveram congelados.
     — E os seus registros de viagem?
     — Não conseguimos muitas coisas a partir deles, porque o sistema de coorde-nadas que empregavam era incompatível com o nosso. E além disso, estava seriamente danificado. Mas o que mais me intrigou nesta história e o verdadeiro motivo do nosso encontro, foi a presença, entre eles, de um homem que originalmente não pertencia à tripulação.
     — Um passageiro?
     — Sim, um estranho passageiro — respondeu o velho com ar perdido. — Esse homem, além de servir como guia junto à sua gente, era também muito influente. Parece que tinha uma espécie de missão... — disse ajeitando as costas na árvore.
     — Que espécie de missão, conselheiro?
     — Não sei bem ao certo, mas parece que estava ligada a alguma mensagem escrita sobre umas folhas que, infelizmente, não conseguimos achar. Havia um estranho objeto que ele jamais deixava, algo que associava continuamente à paz universal.
     — Posso ver este objeto? — perguntou curioso.
     — Naturalmente — respondeu compreensivo. — Mas ouça um pouco mais, Lorbus — disse o conselheiro contendo aquele arroubo.
     — Sim, conselheiro — redimiu-se.
     — Antes deste homem morrer — continuou olhando em direção à rocha —, em sua agonia, disse que o seu rei, no momento em que lhe fazia a entrega do objeto, vaticinou: "Quando a nossa voz viajar por estes caminhos, estaremos em sério perigo."
     Lorbus ficou olhando para o velho sem entender o significado daquelas palavras.
     — Também não as conseguimos entender, Lorbus, se é isso o que está pensando. Mas tudo nos leva a crer que estão relacionadas com os seus sinais.
     — Como assim?
     — Não havia mais combustível naquela nave, o que nos levou à conclusão de que viajaram em linha reta. E, quando os nossos arquivos foram abertos para consultas, fize-mos uns cálculos comparativos e deduzimos que os sinais e a nave provinham da mesma origem.
     Nosso Instinto Maior diz que há uma civilização em perigo, por isso, resolvemos enviar esta missão.
     — Crê então, conselheiro, que esses sinais estejam relacionados com aquelas previsões?
     — Talvez sejam o passado de um mundo que não mais existe. Não sabemos o quanto viajaram até serem captados; mas temos o sagrado dever de examinar.
     — Conselheiro, por que a missão me foi confiada?
     — Lorbus — respondeu o conselheiro levantando-se —, tudo neste universo tem uma razão de existir. Tudo é importante, não importando seja um grão de areia ou um sistema sideral inteiro. Para o infinito, grandes diferenças, por maiores que possam parecer, serão sempre insignificante.   Somente os pequenos enxergam essas diferenças.
     Quanto a nós, Lorbus, todos nascemos com um objetivo. É o nosso dever com o criador.
     — Você fala como se existisse alguém responsável pela criação de tudo que nos rodeia — ponderou.
     — É verdade, meu rapaz. Negamos essas evidências na maior parte da nossa vida procurando resgatar da ciência as nossas questões. E o que descobrimos? — perguntou o velho interrompendo a marcha. — Nada, apenas algumas particularidades mecânicas do funcionamento da natureza conhecida. Apenas algumas... — enfatizou humilde retomando a caminhada.
     — Pense bem, meu rapaz — disse abrindo a estranha porta —, conforme observamos os povos em desenvolvimento dentro do nosso Império, podemos também estar sendo observados; ou através de instrumentos, conforme fazemos; ou através de outros meios... Quem sabe?
     O conselheiro entrou e remexeu alguns objetos dentro de uma caixa e pegou aquele que estava procurando.
     — Aqui está — disse passando-lhe às mãos o estranho objeto que tanto tinha representado para aquele viajante.
     A nave de superfície já manobrava para descer, preparando mais uma etapa da viagem daquele que seria, talvez, a única alternativa de um mundo por acabar.
     Lorbus entrou na pequena nave e um vento um pouco mais forte começou a soprar. O velho aproximou-se e Lorbus estendeu-lhe as mãos, permanecendo assim durante algum tempo.
     — Conselheiro — chamou baixinho. — Você não respondeu a minha pergunta.
     — Não se preocupe. Você descobrirá por si — respondeu sorrindo despedindo-se de ambos.
     
     Foram direto à estação onde a pleus, uma nave de manutenção, já se preparava para partir em direção à estação orbital de Valnius, local determinado para o encontro final com a maior de todas as naves do Império. Lorbus, portanto, não teve muito que esperar.
     A viagem foi rápida, sem os percalços da rimélius, apesar do pouco conforto que esse tipo de nave oferecia obrigando-o a acomodar-se junto aos instrumentos de reparos.
     — Chegamos — disse um dos pilotos virando-se para trás e apontando à estação que surgia no escuro horizonte como um ponto apenas.
     Mesmo àquela considerável distância já se conseguia distinguir a forma da colossal fertílitis, provocando um verdadeiro êxtase naqueles três experientes passageiros ante o poder dela emanado.
     Encostaram no lado oposto ao da fertílitis e fixaram o cabo do transportador no andar superior da estação, único ponto possível de desembarque. Lorbus despediu-se de ambos os tripulantes e entrou na pequena cabine. Quase que instantaneamente, viu-se dentro da estação junto aos seus controles e demais instrumentos. Aproximou-se da janela e ficou distraidamente observando a manobra de saída da pleus lançando um olhar nos que seriam os últimos súditos do Imperador que veria daqui por diante. Acompanhou a trajetória da nave até vê-la ser tragada pela distância e assim permaneceu com os olhos no infinito, vendo aqueles milhares de olhos luminosos que rodeavam a estação. A solidão e o silêncio permitiam ouvir os ruídos do seu corpo, fato raramente percebido no quotidiano. Lorbus caminhou até a janela panorâmica do lado oposto ao do desembarque vendo, por outro ângulo, a imensa fertílitis.
     Majestosa no seu tamanho e de poder incomensurável; dócil, porém, aguardava gentilmente as ordens do homem que a levaria a rasgar o vazio, reencontrando o seu destino.
     Lorbus desceu até o controle da estação e fez as verificações de rotina, ultimando os preparativos para a decolagem. Abasteceu o colosso e acoplou o cabo do teletrans-porte onde, por fim, embarcou.
     Instalou-se na cabine de comando e viu, pela primeira vez, aqueles instrumentos conhecidos apenas através dos simuladores preparados por Ezin. Depois, acionando a partida, virou-se para o lado direito, em direção à estação, e sentiu sua pálida luz abandoná-lo.
     Suas mãos estavam úmidas e o coração disparado, como uma bomba que lhe sugava toda a saliva.
     A nave começou a mover-se lentamente e sentiu a angústia aumentar quando a fraca luz da estação não mais se refletiu na cabine, ficando na mais completa escuridão. Com a boca seca, iluminou-a e tentou coordenar suas tensões. Percebeu que ainda não tinha programado a rota e permitiu-se, por alguns instantes, a veleidade de estar sendo conduzido pela vontade da nave. Programou-a e seguiu em frente.
     Rapidamente, penetrou no imenso vazio negro tendo como companheiros apenas os instrumentos de bordo.
     Lorbus tocou-os levemente.
     Deixou sua mente vagar enquanto aguardava a passagem pela fronteira e pensou em Arana, lamentando não estar em sua companhia; depois, em Ezin e, finalmente, nas palavras do conselheiro de Pentátilis.
     A fronteira fora atingida.
     Seguindo instruções de Ezin, conectou um pequeno cristal contendo as últimas palavras do comandante:
     "Lorbus, você acaba de transpor as nossas fronteiras. Está, portanto, fora dos limites do nosso Império. Nessa condição e em nome do Imperador, outorgo-lhe o título de Emissário Imperial com plenos poderes de decisão. Mas lembre-se da cláusula da não interferência. Você está autorizado a revelar-se apenas àqueles cuja freqüência for compatível com aquelas estatuídas pelo cromaton.
     Sua missão será muito difícil, mas você está à altura. Lembro também que não haverá mais nenhum contato entre nós.
     Boa sorte."
     Ao final da gravação, quando a tela enegreceu, Lorbus ficou a imaginar no teor da missão que o aguardava. Permaneceu assim divagando até o alarme do rastreador indicar que estava próximo da posição de salto. Olhou para fora e viu a escuridão enganá-lo com a falsa impressão de estar a nave parada.
     O momento do salto chegou. Era a primeira vez que seria colocado em prática e, não sabendo porque, pensou nas palavras de Egen. Decidiu que, no primeiro, perma-neceria com os olhos abertos durante todo o tempo da transição interdimensional, e os fecharia no segundo.
     O contador entrou em contagem regressiva.
     Lorbus abriu os olhos ao máximo quando, na tela do computador, leu: SALTO EM CURSO!
     Sua vista não definiu mais nenhuma linha, mas diversas cores em matizes desconexas e desconhecidas. Formas geométricas indefinidas e total perda da noção de tamanho e distância. Não conseguiu situar-se dentro daquele mosaico sem limites. Era lindo e ao mesmo tempo, aterrorizador. Lorbus tentou tocar em algo quando viu-se novamente de volta ao comando da fertílitis.
     Lá fora perdurava o vazio, dando a impressão de que nada ocorrera. Aumentou a amplitude da varredura dos rastreadores e constatou que, de fato, a nave se locomovera. Aguardou mais um pouco a confirmação da sua nova posição que seria dada em função das coordenadas do primeiro analisador lançado pela nemius III.
     O pequeno ponto luminoso confirmou.
     Lorbus lembrou-se quando, no laboratório, executou pela primeira vez esta manobra. Lembrou-se também o quanto fora impulsivo na execução do segundo salto.
     Era chegada a hora do segundo e último salto que o levaria direto à origem dos sinais. Olhou para o contador em nova contagem regressiva e preparou-se para o evento. Só que, desta vez, com os olhos totalmente cerrados.
     SALTO EM CURSO!
     Ao ver a frase na tela, cerrou os olhos o quanto pôde.
     Sua visão parecia melhor.
     "Como era possível ver com os olhos fechados?" — interrogou-se sem entender aquele fenômeno.
     Sentiu-se flutuar no meio daquela miríade de formas e sentiu, pela primeira vez, o caráter imanente do seu ser.
     Como da vez anterior, a volta foi imediata e a fertílitis se auto manobrava, seguin-do à risca a programação idealizada.
     Nas telas dos rastreadores, múltiplos corpos celestes eram mostrados.
     Lorbus franziu a testa interrogativamente, pois nada no exterior justificava aquelas leituras. E como estava a uma velocidade considerável, achou mais prudente diminuí-la, pois nesse ponto cessara a programação automática. A nave passava total-mente ao comando manual, sem nenhuma rota pré-estabelecida.
     "Para onde devo ir?" — perguntou-se olhando aquela imensidão vazia.
     Ajustou os rastreadores para receberem apenas os sinais codificados do segundo analisador e ficou aguardando alguma resposta.
     "Pela lógica deveria estar por aqui" — disse para si sem querer admitir que o deslocamento através dos saltos dimensionais o levara para o desconhecido, perdendo-se para sempre no espaço. Sentiu um forte desejo de conduzir a nave por uma rota ditada apenas pelos seus sentidos e, pensando em Arana, reprogramou-a conforme os impulsos vindo do seu interior. Deixou depois que ela deslizasse livre naquele espaço e ficou aguardando. Momentos depois, dois pontos luminosos surgiram nas telas dos rastreadores: a nemius III e seu fiel analisador. Não precisou sequer corrigir a rota para a aproximação e posterior confirmação visual. Acoplou rapidamente aqueles sinais aos computadores de navegação e o espectrômetro fez o resto.
     De posse da nova rota, respirou fundo e agradeceu Arana pela oportuna interfe-rência, sentindo-a profundamente através da constelação de Mélquer.
     À medida que a nave avançava, o negro vazio foi cedendo lugar a uma nova vida. Aproximou-se de uma estrela amarela e rumou para um pequeno planeta azul. E, sem mesmo consultar nenhum instrumento, teve a certeza: "É aqui!"

SEGUNDA PARTE.



     Carlos invadiu o escritório de Vandenberg trazendo nas mãos um maço de papéis.
     — Eu disse, cansei de repetir mas você nunca me deu ouvido. Agora, olha o resultado — mostrou o advogado atirando os papéis sobre a mesa.
     — O que há? — perguntou Vandenberg um tanto assustado com aquela atitude.
     — Pelo menos leia — disse ajeitando os óculos no rosto magro.
     Vandenberg colocou os seus e leu rapidamente.
     — O que significa tudo isso? — perguntou com ar esgazeado deixando cair os óculos sobre a mesa.
     — É uma intimação — respondeu levantando-se e mostrando o papel à frente do maço.
     — E esses? — perguntou pegando os demais como se fossem cartas de um baralho.
     — São avisos de débito — respondeu indo posicionar-se às suas costas segurando-lhe os ombros. — Fomos roubados! — disse com pesar.
     — Roubados? — perguntou incrédulo virando-se para trás.
     — Sim, o maldito Ricardo — que Deus me perdoe por falar assim — respondeu soltando-lhe os ombros e indo sentar-se à sua frente.
     Vandenberg passou as mãos nos cabelos grisalhos e perguntou:
     — Mas que diabo você está me dizendo?
     — Estou dizendo que o seu diretor financeiro desviou bens, emitiu títulos falsos, lesou os nossos credores e toda a sorte de falcatruas.
     — Mas que filho da puta! — berrou levantando-se num gesto brusco. — Mas vamos agir logo, Carlos — orientou sentando-se com a mesma violência. — Primeiro, vamos emitir um comunicado à praça — disse pegando o bloco de despachos —, depois vamos à polícia e...
     — Não podemos fazer nada disso — denegou Carlos interrompendo e tirando os óculos.
     — Que história é essa de "não podemos"? — contestou indo em direção ao bar.
     — As operações foram perfeitamente legais — respondeu esfregando os olhos.
     — Legais uma ova! — contestou novamente. — Porra, Carlos, você é o meu advogado ou o meu verdugo? — bradou entornando o scoth na parede.
     — Todos os documentos têm a sua assinatura — disse com desânimo virando-se lentamente para trás.
     — Falsificações grosseiras!
     E, depois de uma pausa, continuou cada vez mais irado:
     — Mas que merda, Carlos. O que há com você? — vociferou aproximando-se e injetando-lhe os olhos azuis.
     Carlos levantou calmamente os seus e encontrou as pálpebras de Vandenberg vibrando de emoção.
     — Todos com firma reconhecida... — confirmou pegando alguns papéis que Vandenberg espalhara sobre mesa.
     E, levantando-se, colocou-lhe o dedo no rosto em atitude incisiva:
     — Essa sua louca mania de confiar cegamente nos outros foi a causa desta catástrofe. Você — continuou com o dedo levantado —, por diversas vezes, deixou papéis assinados em branco e títulos incompletos. Já sei — disse impedindo Vandenberg de se defender. — Você vai alegar que só fez isso para adiantar determinada remessa ou abreviar um procedimento de rotina, enfim, que confiava no destinatário.
     E, como se estivesse num tribunal, continuou:
     — Eu cansei de dizer que o Ricardo não era uma pessoa confiável. Aquele jeitinho sempre risonho e prestativo, quando nós sabíamos que com os demais não tinha a mesma atitude... Um homem com duas caras tem, no mínimo, dois procedimentos diferentes. E sabe-se lá quantas caras tinha aquele sem-vergonha! Mas você, cego pelo fato de tê-lo criado, nunca procurou averiguar nenhuma denúncia, nem mesmo quando o Walter provou aquela negociata.
     Carlos interrompeu-se em frente a um quadro que tanto admirava e quando virou-se ainda viu a porta do banheiro bater com violência.
     Mal trancou a porta, Vandenberg fechou a tampa do vaso sanitário e deixou-se cair sobre ela. Afrouxou rapidamente a gravata, puxando a camisa junto ao nó fazendo despregar o botão que correu sobre o piso indo perder-se dentro do ralo.
     — Merda — resmungou.
     Com um movimento vacilante, retirou do bolso os comprimidos e tomou-os, pegando a água no lavatório com o auxílio das mãos em concha. Permaneceu assim, dispnéico, suportando a forte angina desencadeada pelos fatos. Sabia que a eficácia dos comprimidos estava diminuindo e a doença que degenerava seu coração avançando. A única terapia possível, um transplante, negava-se a fazer.
     Chorou baixinho e implorou ao fundo da sua alma para que lutasse mais bravamente pela vida. Pensou no Pueriso e nas crianças que dele dependiam.
     Reanimado pelos pensamentos e efeito do remédio, lavou o rosto e saiu, mas não sem antes acionar a descarga.
     — Deve ser aquela disenteria de fundo nervoso — comentou obstruindo a ver-dade e deixando-se cair pesadamente na poltrona.
     — E estão cada vez mais freqüentes — observou Carlos.
     — O que vamos fazer agora? — perguntou tentando manter a calma.
     — Vamos, primeiramente, ter fé em Deus — disse o advogado com certa ternura.
     Vandenberg não rebateu desta vez aquela fé inabalável. Por diversas vezes, o desafiara para explicar como o seu Deus podia ser justo num mundo de injustiças. Gostava de vê-lo embaraçado em seus dogmas falando sobre o livre arbítrio e da teoria da reencarnação.
     Por vezes, até admitia que essa teoria justificava algumas questões de ordem prática mas, sob uma análise mais profunda, se esvanecia. Tinha até um certo prazer em ouvi-lo discorrer sobre o carma e suas implicações na conduta do homem. "Era uma teoria — afirmava Vandenberg ao final de cada debate —, que, embora não fosse muito sólida, era extremamente confortável à medida em que dava oportunidade para todos os que não fossem, serem um dia o que gostariam de ser.
     — Você me ouviu? — perguntou Carlos sacudindo alguns papéis.
     — Ah! Desculpe, Carlos, acho que eu me ausentei — disse pegando o scoth que esquecera de beber.
     — Tudo bem — conciliou. — Eu disse que ia levar essas pastas.
     — Faça isso — disse levantando-se momentos depois de sentar. — A propósito, onde está o Ricardo?
     — Encontra-se desaparecido — respondeu saindo e deixando-o a sós.

     Era tarde quando Vandenberg resolveu sair. O prédio, com exceção dos funcionários, encontrava-se vazio. Ligou antes para o jornal autorizando o chefe de redação a despachar a edição, trabalho que gostava de fazer pessoalmente, e desligou as luzes caminhando em seguir na direção da janela no intuito de fechá-la. Depois parou em frente a ela e ficou observando a cidade do alto dos quarenta andares do escritório. Aproximou-se do parapeito e, por alguns instantes, quis deixar-se cair.
     "Estou perdendo a sanidade!" — disse para si assustado com o que passara na sua mente. Passou as mãos no rosto banhado em suor e procurou uma justificativa:
     "Afinal, estou morrendo mesmo. Talvez nem viva o suficiente para ver tudo isso desabar". — pensou com certo desdém no jornal.
     Depois refletiu mais profundamente:
     "Será que estou sendo honesto? Construí um modelo de unidade educacional para crianças carentes que me rendeu inúmeras homenagens. Sou admirado pela minha independência na direção do jornal sem nunca ter me curvado aos poderosos e aos corruptos. Sou também um cardiopata grave que se nega terminantemente e sem nenhuma razão aparente ao tratamento cirúrgico. Será que no fundo estou querendo morrer como herói, como aquele que só foi detido pela morte inevitável? Será que sou mesmo tão mesquinho, tão pequeno ao ponto de querer isso? Será o amor à causa que abracei falso e escudo apenas para desejos abjetos e obscuros?"
     Sentou-se novamente.
     "Acho que preciso de alguém para conversar. Um ouvido que apenas ouça sem querer penetrar-me a mente. Alguém que me deixe falar sem constrangimentos. Preciso de uma criança com maturidade de adulto que entenda esses conflitos sem o crivo da lógica."
     Desceu depois pelo elevador de serviço, evitando a portaria principal, o que lhe poupou das odiadas reverências e, dispensando a ajuda do manobreiro, pegou o carro e rumou direto ao Pueriso. Estacionou silenciosamente procurando não bater a porta do veículo com justos receios de acordar alguma criança. Embrenhou-se no meio do bosque torcendo para que Pedro estivesse ainda acordado e, feliz, avistou ao longe a chama avermelhada do lampião.
     Totó, preguiçosamente deitado na soleira, foi o primeiro a saudar-lhe com vigo-rosas batidas de cauda.
     Vandenberg abraçou o animal, sentindo a emoção de receber o maior bem do universo: o amor desinteressado. Nem mesmo se importou com a enorme lambida que recebeu na orelha.
     — Ora, seu sacana, eu já tomei banho — disse secando-a com o ombro.
     Depois, olhando para frente, avistou a silhueta do negro.
     — "Vanderbeg"! — ovacionou sorridente.
     — Como vai, meu velho? — perguntou dando-lhe um forte abraço.
     O negro não respondeu com palavras. Sua fisionomia era por demais eloqüente e bem demonstrava a satisfação daquela visita.
     — Está sem sono? — perguntou certificando-se de que Pedro não estava por se recolher.
     — Hoje tá muito quente. Eu tava acabando de ler a bibla e ia dá uma voltinha. Olha que céu bunito — apontou chegando um pouco mais para fora.
     — Ah! — exclamou lembrando-se de algo. — Você lembra daquelas pranta?
     Vandenberg pensou um pouco e lembrou-se de umas mudas que trouxera, quase sem vida, de um sítio abandonado.
     — Pegou? — perguntou com entusiasmo.
     — Você pricisa vê — respondeu com orgulho entrando para preparar o indispen-sável chá.
     Vandenberg também entrou, relaxando na cadeira de vime junto à pequena janela do barraco. Olhou para totó, deitado com a cabeça entre as patas, e pegou a caneta do bolso batendo-a contra a parede.
     O cachorro virou-se rapidamente naquela direção provocando-lhe uma garga-lhada.
     Totó espreguiçou-se ruidosamente, acentuando ainda mais a curvatura da sua cauda.
     Depois guardou a caneta e virou-se para Pedro vendo-o abrir cuidadosamente a gaveta do velho armário e dela retirar dois saquinhos, enquanto as borbulhas afagavam a chaleira quase imprestável. Com um jornal especialmente dobrado para aquele fim, pegou a chaleira pela alça partida e encheu as duas canecas, usando a mesma colher para adoçar.
     — Pedro, você tem ainda aquela esteira? — perguntou após o chá.
     — Tá enrolada ali — respondeu apontando para o canto e indo pegá-la de imediato carregando o lampião.
     Totó assustou-se com o deslocamento das sombras, levantando suas enormes orelhas.
     — Muito bom! — agradeceu Vandenberg desenrolando-a fora do barraco.
     Pedro balançou a cabeça e foi lavar as canecas. Depois olhou para fora e viu o amigo deitar-se sob o céu estrelado.
     — Deixa ele durmir — disse baixinho para o cachorro enquanto soprava o lampião. Depois deitou-se devagar, evitando os gemidos do velho catre.
     Vandenberg não conseguiu dormir de imediato, ora se distraindo com os insetos que voavam sobre a sua cabeça, ora fitando as estrelas que pulsavam no céu. Tinha a companhia de totó que fôra aninhar-se ao seu lado como um fiel guarda-costas.
     A visita a Pedro fôra benéfica. Sempre o era.
     Olhou para dentro e lembrou-se das críticas por ter trazido aquele velho negro, ex-presidiário, para o convívio junto às crianças.
     Pedro fôra preso injustamente por tráfico de drogas ao ser encontrado, no seu barraco, alguns pacotes de cocaína. Inocente, aceitou guardar o "açúcar" do vizinho que não se encontrava em casa até que voltasse.
     Preto, pobre e analfabeto, serviu perfeitamente para encobrir os verdadeiros traficantes, possibilitando um saldo positivo naquela batida policial.
     Convencido da sua inocência e comovido com aquela história, Vandenberg conseguiu soltá-lo, mas não sem o decisivo empenho de Carlos.
     Solto, mas sem meios de sustento, foi levado ao Pueriso com a missão de cuidar das plantas e do bosque. Recusou, porém, o convívio com os demais preferindo erguer, ele mesmo, a sua cabana.
     Vandenberg nunca se arrependeu por isso e o tinha como o único e sincero amigo.
     
     No dia seguinte, sentindo a manhã, despertou. Fez sua higiene, tal Pedro a fazia, e entrou na cabana guardando a esteira. Não encontrando o negro, saiu a procurá-lo.
     Encontrou-o como sempre cuidando das plantas.
     — Bom dia, Pedro — cumprimentou caminhando em sua direção.
     — Olha aqui — respondeu ao cumprimento apontando para uma determinada folhagem.
     — Puxa! — exclamou Vandenberg admirado. — São elas?
     — É! — respondeu com redobrado orgulho assustando totó com uma enorme minhoca na mão. Depois, soltando o anelídeo na terra, comentou rindo:
     — Êta bicho medroso.
     Saíram em direção ao barraco para tomar o chá com biscoitos enquanto totó ficou por algum tempo, com suas grandes orelhas viradas para frente, farejando a terra por onde o verme penetrara.
     Tomaram o chá e Vandenberg resolveu passar por seu escritório no Pueriso.
     Atravessou a pequena ponte de madeira que dividia o bosque da área de recreação e cruzou com Leila.
     — Que horror, Vandenberg! Que cara é essa? — perguntou a administradora do Pueriso surpresa com a sua aparência.
     — Dormi na sarjeta — pilheriou.
     Leila, num esgar, afastou-se.
     Vandenberg entrou no escritório, pegou roupas novas, tomou um banho e trabalhou o dia inteiro. Tarde da noite voltou para casa e, sem ligar para a fome, deixou-se cair na cama, onde dormiu profundamente.
     
     Manteve sua rotina de trabalho inalterada, apesar dos acontecimentos, até o dia da última audiência.
     — Vamos lá — disse o advogado quase implorando.
     — É o jeito — conformou-se.
     Viajaram num táxi em bancos separados devido ao hábito que Vandenberg possuía em viajar na frente.
     — Quanto foi o jogo ontem, companheiro? — perguntou ao motorista.
     — Ah! doutor — respondeu enfatuado. — 3 x 0 o mengão!
     Carlos, atrás, não conseguia entender como um homem que estava prestes a perder tudo que possuía ainda encontrava humor para banalidades.
     — Mas também o adversário era fraco — desdenhou.
     — Não, doutor — retrucou o motorista. — Os homens jogaram trancados o tempo inteiro — valorizou.
     — É sua filha? — perguntou olhando um retrato colado no painel do carro.
     — É sim, doutor — respondeu com orgulho paterno. — É a minha gatinha — en-dossou com a voz pastosa.
     Sem a menor cerimônia, retirou a moldura magnética do painel e examinou a foto mais de perto, sob o orgulhoso olhar do motorista.
     — Não parece nada contigo, companheiro — disse após colocar os óculos.
     — É a cara da mãe — riu solidário.
     Chegaram ao fórum.
     Vandenberg sentiu-se nauseado.
     Carlos pagou a corrida mesmo sob protestos do motorista, talvez agradecido pela sincera presença daquele passageiro.
     — Vamos lá — disse guardando o troco em notas velhas e conduzindo-o pelo braço.
     Entraram por um comprido corredor apinhado de gente que ia de um lado para outro, entrando e saindo de portas e driblando os funcionários que equilibravam maços de processos nos ombros.
     — Água... água... — gritava um ambulante carregando uma suja caixa de isopor, enquanto outro apregoava as maravilhas do seu café.
     Pararam em frente a uma porta.
     Vandenberg viu a fisionomia de Carlos modificar-se ao deparar com um grupo em frente.
     — São eles — disse conjugando um gesto de lábio.
     Vandenberg virou-se e encarou-os de frente.
     Tinha nomeado o patrimônio da Tribuna Livre como bens à penhora, mas a sua oferta fôra recusada pela parte contrária, alegando insuficiente valor apurado em perícia. Nem o acréscimo representado pelos seus bens particulares foram suficientes.
     Carlos levantara a identidade dos credores que, coincidentemente, tinham negócios imobiliários. "Com certeza — disse na época —, armaram uma negociata junto ao Ricardo para ficarem com as terras do Pueriso."
     Feito o pregão, os litigantes entraram na sala de audiências. Ao sentarem, olharam-se como os pugilistas o fazem antes de um importante embate.
     Vandenberg cravou seus olhos azuis no velhote à sua frente que, na opinião de Carlos, fora o mentor do golpe. Desviou o olhar para o juiz e depois para o escrivão, irritado com a velha máquina que já lhe rasgara outra folha. Voltou depois a vista para os homens à sua frente que cochichavam debochadamente, irritando-o ainda mais.
     Aqueles risinhos de confiança e o pouco caso que faziam da justiça induziram-o, identicamente a uma criança, a reagir de forma inusitada: chutou, por baixo da mesa, a primeira perna que achou.
     O velhote deu um urro, contido pela mão na própria boca.
     — Mil perdões, senhor — desculpou-se com sarcasmo. — É que eu tenho problemas neuromotores e este caso acentuou-os ainda mais.
     Dito isso, olhou para o juiz que não avaliou o incidente e, posteriormente, para um jovem desconfortavelmente vestido dentro de um paletó, que, pela expressão, pareceu perceber-lhe a artimanha.
     — Muito bem, senhores — disse o juiz abrindo os trabalhos —, o presente processo não envolve somente cifras elevadas, mas o destino de centenas de crianças. Por isso, antes de começar a analisar mais profundamente o caso, gostaria de propor uma conciliação.
     E, virando-se para o advogado do velhote, perguntou:
     — O que o senhor acha, doutor?
     — Nós, excelência, infelizmente, não podemos aceitar nenhum acordo.
     — E por que, doutor? — insistiu o magistrado.
     O advogado ajeitou o nó da gravata e passou o lenço na calva e brilhante cabeça.
     — O réu não reconhece o malôgro na sua administração eivada de irregulari-dades. Insiste na fantasia do engano quando temos todos os documentos por ele assinados. A não ser que seja declarado incapaz, seus atos foram perfeitamente legais e realizados sem nenhuma coação. Ele nos deve esta quantia e, por direito, deve ressarcir-nos.
     — E quanto ao senhor, doutor? — perguntou o magistrado virando-se para Carlos.
     Num instante, Vandenberg teve a visão de Carlos esbravejando e contando toda a verdade. Viu-se depois pegando o velhote pelo colarinho e atirando-o para fora da sala, sob os aplausos da platéia. Mas, contrariamente, seu advogado calmamente cumpri-mentou o juiz e iniciou sua defesa:
     — Boa tarde, excelência. Sem dúvida, insistimos que fomos ludibriados em nossa boa fé. Meu cliente jamais iria atentar contra o seu próprio patrimônio. É um empresário tradicional no ramo jornalístico e com imensas benfeitorias realizadas. Suas obras sociais dão a exata amplitude do seu caráter e personalidade. Somos vítimas sim — disse olhando em direção ao velhote. — E é muita coincidência sermos devedores exatamente de um grupo interessado nas terras do nosso orfanato e terem negociado com um elemento de nossa empresa que, neste momento, encontra-se desaparecido. Pedimos, excelência, que a execução seja suspensa até que possamos esclarecer este grande mal entendido e que a negociata, fruto desta pendenga jurídica, seja declarada nula por peritos criminais por estar carregada de vícios.
     — O que o senhor tem como réplica? — perguntou o juiz virando-se novamente para o advogado do velhote.
     — Excelência — recomeçou o calvo que ainda não se acertara com o nó da gravata. — Não concordamos com o nobre colega, embora sejamos obrigados a concor-dar que a sua imaginação é bastante fértil. Novamente insiste em vícios contratuais. Foram negócios perfeitamente legais, solenes e devidamente assinados pelo réu. Não importa se quem intermediou as negociações foi demitido ou esteja ausente, pois a pessoa de direito para honrar os compromissos assumidos está presente.
     E, abrindo uma pasta repleta de documentos, mostrou:
     — Veja, excelência, temos todos os documentos. São títulos executivos extra judiciais perfeitamente reconhecidos pelo réu, conforme atesta o cartório. Negar a auten-ticidade e lisura desses contratos é negar o próprio direito. Esquece o nobre e imaginativo colega que "allegatio partis non facit jus". Se confiou em quem não devia, não nos cabe então a responsabilidade.
     É realmente uma história comovente essa do orfanato. Mas fizemos um levantamento dos valores abatidos nos imposto e concluímos que o Pueriso é um mau negócio para o fisco...
     E, virando-se para Vandenberg e contrariando a disciplina processual, perguntou:
     — O senhor discorda que a manutenção do Pueriso é praticamente subsidiada pelos abatimentos nos seus impostos?
     — Muito bem, senhores — disse o magistrado fechando o processo e encerrando a audiência. — Já tenho os elementos necessários para o meu convencimento.
     Assinaram a ata e levantaram-se.
     — "Alea jacta est." — disse o advogado tirando rapidamente a gravata do pescoço.
     — Como se manda alguém ir à merda em latim, Carlos? — perguntou sentindo o sangue ferver-lhe o rosto.
     O magistrado olhou para Vandenberg convicto da sua probidade, porque sabia não haver qualquer lisura naqueles contratos. Mas o que fazer? Sentenciar a favor do réu era moralmente correto, mas juridicamente errado. Era o velho maniqueísmo mani-festado no direito que lhe fustigava a mente.
     Vandenberg foi o último a levantar e, quando o fez, lançou um último olhar ao magistrado... um olhar de súplica pelas suas crianças.
     O juiz retribuiu-lhe com um de perdão...
     Vandenberg não quis voltar com Carlos e preferiu caminhar, apesar do tempo anunciar iminentes chuvas pelo que se podia deduzir das negras nuvens e do vento úmido que começava a soprar.
     Caminhava por entre a multidão, enquanto a tormenta se formava, quando o seu coração fraquejou novamente. Entrou rapidamente num bar e tomou os comprimidos. Depois, sentindo-se melhor, caminhou mais um pouco e foi sentar-se em um banco de jardim,     permanecendo assim sentado apreciando o movimento, como um espectador no cinema.
     Sua mente começou a vagar...
     "Será — perguntou-se — que a vida se restringe somente a essa existência?"
     Olhou em volta e o que viu foram pessoas dos mais variados tipos que passavam uma pelas outras, apressadas e indiferentes.
     "Por certo — pensou novamente —, passam pelos mesmos lugares e, ainda assim, lhes parecem estranhos. E assim devem ser as suas vidas: vivem sempre a mesma existência sem dela se aperceberem."
     E, olhando a tormenta iminente, continuou a pensar:
     "A vida não pode se restringir a apenas esta existência. Seria como encenar uma peça medíocre sobre um palco esplendoroso."
     Sem saber bem o porquê, seguiu com o olhar um grupo de meninos andrajosos que caminhavam atrás de um casal idoso. Subitamente, dois passaram-lhe à frente e ensaiaram uma briga, atraindo-lhe, desta forma, a atenção. Os demais, aproveitando-se do ardil, roubaram os velhinhos deixando-os assustados e desolados. A anciã, chorando, tentava inutilmente juntar as partes rasgadas da blusa.
     — Esses moleques são uns filhos da puta. Viu? — perguntou um transeunte a outro quase em frente a Vandenberg.
     — Vi — respondeu o outro colocando inconscientemente a mão no bolso traseiro.
     — Esses pôrras, bicho, só matando mesmo — disse com revolta o magricela de veias proeminentes.
     — Mas aí — retrucou o barrigudo puxando a calça para cima —, vão dizer que você é covarde, assassino... Mas olha só — apontou para o casal idoso que se afastava consolado pelos demais. — Isso não é sacanagem?
     — Eles não tem mais jeito — vaticinou o magricela com gestos.
     — Meu vizinho — endossou o barrigudo —, pegou um processo só porque deu uma "arrepiada" num merdinha desses.
     — É isso aí, cara — concordou o magricela com a voz arrastada de malandro. — Depois neguinho vem com esses papos de direitos humanos, igreja e o cacete... É porque o "deles não tá na reta" — concluiu.
     Os dois se afastaram e o barrigudo, passando por Vandenberg, ainda disse:
     — É, meu tio, o mundo tá mesmo perdido!
     Passado o episódio, Vandenberg voltou a mergulhar nos seus pensamentos. Já havia debatido exaustivamente sobre este assunto e seguia sempre a mesma linha de raciocínio, narrando a história de um operário honesto e detentor de um salário mínimo mensal:
     "Imaginem o dia desse homem — dizia à atenta platéia. — Acorda todos os dias antes das quatro horas da manhã. Toma, quando muito, um café fraco e requentado e embarca num trem lotado, após muito caminhar. Pega depois um ônibus que lhe consome quase a metade do salário e trabalha pesado até o meio dia. Almoça um feijão azêdo, sentado sobre tijolos ou mesmo no chão imundo e sempre sob o severo olhar do encarregado. Retoma, após desumano repouso, a jornada até o pôr do sol, quando não é coagido a continuar. Volta nas mesmas condições disputando, fisicamente, um lugar nas conduções. Finalmente, chega em casa(?) e vê sua dispensa vazia, sem um mínimo para sobreviver..., sem nenhuma expectativa de melhora. Está amargurado e impedido de qualquer contato familiar. É um maltratado sem respeito que não conhece nenhuma afetividade, elixir básico da felicidade. Está faminto, cansado e feio, e o que vê à sua volta é pura miséria, fruto do seu esforço de Sísifo.
     Nenhum filho vê, neste pai, um herói ou um ídolo. Ele é um anti-exemplo.
     Para uma criança deste lar, herói é aquele que desce o morro e retorna, sem grandes esforços, com o dinheiro dos patrões, como num ato de justiça. Cresce avesso a toda iniciativa honesta, principalmente pelo insucesso do pai bêbado e marginalizado, recebendo dos seus "heróis" os lenitivos paternos ausentes no trabalhador cansado.
     Da sociedade, reconhece-lhe apenas as injustiças e o trabalho escravo que oferece. Quando muito, suas marquises e seu lixo."
     E, quando o discurso chegava neste ponto, Vandenberg sempre perguntava:
     "E o que fazemos diante deste quadro?"
     E respondia com sarcasmo:
     "Ventamos pelos transmissores imagens de famílias sorridentes, crianças sadias e casas confortáveis; sem falar nos maldosos comerciais destinados ao consumo das crianças e brinquedos que jamais terão. Padres gorduchos com voz de falsete enalte-cendo as virtudes humanas. Campanhas que promovem os promotores e arrecadam esmolas, muitas vezes com destinação duvidosa. Sem falar, é claro, na "maravilhosa" retórica dos políticos caçadores de votos.
     Pronto, estamos de alma lavada! Não importa se no dia seguinte morrerem mais algumas crianças por falta de assistência ou de fome. Afinal, a sociedade está ciente destes problemas e já tomou suas "providências".
     Senhores! — era como gostava de encerrar. — Não é a miséria a fonte inesgotável de fé e voto?
     Senhores! — insistia com eloqüência. — É um absurdo querer que os meninos de rua se comportem como os nossos filhos. Se lhes negamos a nossa sociedade, também não é justo que lhes apliquemos as nossas leis.
     Para eles, somos apenas suas presas. Foram compelidos a nos caçarem, por nossa própria discriminação! É nossa a culpa!"
     Revendo a cena do assalto, a ternura e a fragilidade dos velhinhos significaram para eles apenas um trabalho mais fácil. Essa era a única visão que tinham e não se podia culpá-los ou exigir que agissem de outra forma. Por isso, nunca poupou esforços para empreender o Pueriso e ficava bastante irritado quando se referiam à sua obra como um orfanato de luxo.
     "Em vista do nada, o mínimo é o máximo — costumava rebater.
     Para a sua obra, contratou os mais renomados especialistas em educação e deu a cada criança tudo que pôde, inclusive o amor. Usou o imenso terreno que herdara como sede e suportou, ele próprio, as despesas.
     Mas as crianças do Pueriso eram realmente notáveis, e isso era o seu maior orgulho. Seu maior trunfo. Só lamentava não poder estender a todas.
     Certa vez, após uma série de reportagens que promoveu sobre a crescente mortalidade infantil, mandou construir troféus que mostravam, em bronze, a escultura de uma criança subnutrida e entregou-os às autoridades responsáveis pela tragédia.      Processado pelo ato, defendeu-se:
     "Vocês se chocaram com esses bonecos de ferro mas, no entanto, mostram-se ainda insensíveis com os de carne".
     Os primeiros pingos começaram a cair, apressando os passos da multidão desprevenida. O cheiro da terra molhada invadiu suas narinas aumentando o prazer em contemplar aquela gente que corria e disputava um lugar sob as marquises ou, simples-mente, tentando inutilmente proteger-se com jornais na cabeça.
     O forte vento encarregou-se de molhar aqueles que julgavam-se abrigados pelos guarda-chuvas, enquanto a torrente se incumbia de alagar as ruas provocando os inevitáveis engarrafamentos.
     Ensopado, percebeu um pequeno cachorro amarelado sob o banco à sua frente tremendo aos açoites do vento úmido. Aquela visão fê-lo lembrar-se dos riscos que corriam as crianças do Pueriso, simbolizando também os desamparados e famintos. Lembrou-se, sem saber porque, do chocolate que comprara de um menino no semáforo vermelho e não comera. Tirou do bolso a embalagem amolecida e rasgada e abriu-a com cuidado. Aproximou-se então do animal e colocou o alimento junto a ele, indo sentar-se depois. Viu, feliz, que o animal aceitara o presente da melhor maneira: devorando-o completamente não poupando, sequer, o papel. Agora, sentindo o estômago aquecido, o bicho ensaiou um cochilo não concretizado pelos constantes pingos que, vez por outra, atingiam-lhe a ponta da orelha.
     Passada a chuva, Vandenberg levantou-se devagar e voltou para o escritório. Nem mesmo reparou nos significativos olhares que recebia, principalmente quando adentrou no luxuoso prédio.
     — Quem é esse cara? — perguntou um elegante rapaz ao vê-lo passar todo molhado.
     — É o dono do jornal e metade deste prédio — respondeu o segurança interrom-pendo a fala pelo rádio.
     Vandenberg trocou-se após o banho e, ao sair do banheiro, percebeu a secretária eletrônica sinalizando: era uma mensagem de Leila querendo um encontro urgente.
     — Sim, Leila. Estou aguardando — disse retornando a ligação após ouvir toda a gravação.
          
     — Ufa! — exclamou a administradora num desabafo, horas mais tarde. — O trânsito está caótico, todo engarrafado. Tudo bem? — cumprimentou finalmente puxando uma cadeira e sentando-se sem cerimônias.
     — É assim mesmo nesta época do ano — concordou Vandenberg recostado com as mãos na nuca. — Enchentes, quedas de barreira, barracos rolando... Mas o que há de tão urgente, Leila?
     — Estive refazendo o nosso orçamento, "Van". A coisa está realmente feia — disse com seriedade. — Os nosso fornecedores suspenderam as entregas e só temos mantimentos para no máximo um mês.
     — Merda! — disse passando as mãos nas têmporas — E o pessoal? — perguntou mexendo na ponta de um pequeno bloco sobre a mesa.
     — Não estão indo. Tive que suspender os seus salários.
     — Idealistas de merda. É o que são.
     — Bem — animou Leila —, pelo menos garantiram que não ajuizarão nenhuma reclamação trabalhista.
     — Que abnegados! — ironizou. — Asseguraram um trono ao lado do Senhor dos céus... Mas quais as providências mais urgentes que devemos tomar?   — perguntou aproximando mais a cadeira da mesa.
     — A revisão médico-odontológica que deveria ser feita na semana passada.
     — Merda! — praguejou novamente ameaçando levantar-se.
     — Consegui que a policlínica fizesse um abatimento — disse remexendo a bolsa e pegando um papel —, mas o preço ainda fica fora do nosso alcance.
     — Tenho algumas obras de arte que ainda não foram arroladas — disse Vandenberg. — Lembrei-me agora que o sacana do Carlos não colocou a marca nem o ano do meu carro, só o citou. Ah! Aquele velhaco com cara de santo — regozijou com um risinho aquela manobra não percebida pelos vorazes credores que só tinham olhos para os terrenos do Pueriso.
     — Vai vender tudo? — perguntou surpresa sabendo-lhe da paixão pelas obras.
     — Algumas — respondeu com pesar. — Quanto ao carro, posso trocá-lo por um de menor valor. Creio que isso dará um pouco mais de fôlego às nossas finanças.
     — E o nosso futuro, Van?
     Vandenberg respirou fundo e respondeu:
     — Meus bens estão bloqueados, Leila. Mas o que eles realmente querem são as terras do Pueriso.
     E, colocando as mãos no rosto encobrindo o opróbrio, lastimou:
     — Eu fui um idiota.
     Leila desviou o olhar para não ver-lhes as lágrimas, ocultando as suas próprias.
     — Temos alguma esperança de sairmos desta? — perguntou limpando os olhos vermelhos.
     — Tenho muitos inimigos, Leila, gente poderosa e incomodada com as idéias do Pueriso. Gente que não se importa com o destino daquelas crianças. Sabem que um dia essas novas idéias eliminarão as práticas nocivas de enriquecer às custas da miséria e da ignorância...
     — Arrolaram também o scoth? — perguntou num tom mais ameno tentando mudar o humor da conversa.
     As rugas do dinamarquês abandonaram-lhe a testa idosa.
     — Eles foram condescendentes — brincou também levantando-se e pegando duas doses.
     Conversaram sobre outros assuntos, fugindo ao principal, até despedirem-se.
     Leila fora uma das primeiras voluntárias do Pueriso. Tinha um temperamento forte e às vezes agressivo, atitudes creditadas ao insucesso da sua vida afetiva.
     Vandenberg sabia que aquele excesso de zelo pela causa do Pueriso era, na verdade, uma fuga da sua própria vida. Mas, superando até as próprias expectativas, fez daquela causa a sua; seus filhos, aqueles que não pudera ter. Apaixonada por esta causa, acreditava, tal como Vandenberg, que somente a educação diferenciada poderia modifi-car o modelo social que tanto combatiam.
     Era belo ver aquelas crianças nas bibliotecas, nos laboratórios, nas praças de esportes, tocando um instrumento ou, simplesmente, brincando.
     Vandenberg, por sua vez, via tudo como uma enorme recompensa. Não tinha receios em mostrar a sua obra e nem determinar nenhuma medida especial (asseio, pintura, mudanças de rotina, melhor alimentação e etc..) durante as visitas oficiais.
     O Pueriso era referência obrigatória em qualquer assunto ligado à educação e a proteção da criança.
     Mas tudo isso estava ameaçado, para não dizer, com os dias contados. Nem mesmo os apelos de entidades estrangeiras demoveram a justiça da sua decisão.
      
          No dia seguinte, Vandenberg voltou ao Pueriso para examinar pessoalmente as apreensões de Leila. Revirou papéis, deu vários telefonemas e sempre ouvia respostas evasivas. Os "Amigos do Pueriso", associação de especialistas objetivando dar apoio técnico àquela fundação, tergiversava sempre quando arguída das soluções práticas imediatas para resolver a presente questão. Alguns, acreditando ser ele mesmo o mentor das falcatruas, afastaram-se em definitivo.
     "Se desconfiam de mim a culpa só me cabe, pois não soube mostrar as minhas verdadeiras intenções." — justificou para si aquelas atitudes.
     Carlos, atendendo ao chamado de Vandenberg, acabava de chegar.
     — Olá, Vandenberg — cumprimentou olhando para o condicionador de ar desligado.
     — Contenção de despesas — respondeu brincando e levantando-se para ligar o aparelho.
     Passaram a tarde toda verificando a situação do Pueriso.
     — Para ser franco, Vandenberg, a situação não nos favorece. Essas cartas — apontou para o canto da sala —, são consoladoras mas não resolvem o problema.
     — É! — lamentou Vandenberg — Representam apenas um momento emocional. Aposto como já esqueceram o que escreveram nelas.
     — Não fale assim — criticou Carlos.
     — É verdade! — insistiu Vandenberg. — Já estão com a alma lavada. Escrever uma bela carta de solidariedade é muito fácil. Basta um papel e uma caneta. Colocado o ponto final, volta-se a viver, cada um, a sua própria vida, deixando que outro resolva efetivamente o problema. A nossa sociedade apoia-se em falsas premissas, por isso é imperfeita.
     — Que falsas premissas são essas? — perguntou Carlos certo de que Vandenberg iniciaria outra das suas costumeiras polêmicas.
     — Veja bem: toda a nossa sociedade é fundamentada na emoção. É verdade! — enfatizou vendo a incredulidade no rosto de Carlos. — Não é por amor que nos casamos e constituímos famílias, células-mater da nossa sociedade? Analogamente, não é o sentimento que também dissemina a discórdia entre as pessoas?
     — Você está querendo se colocar contra os sentimentos?
     — Não contra os sentimentos, mas a sua má utilização. Somos capazes de gestos maravilhosos e, ao mesmo tempo, terríveis! Hediondos!
     — Então você propõe modificar a nossa maneira de sentir?
     — Não a maneira, pois isso seria impossível. Proponho administrá-la.
     — Como?
     — Muito simples: pegue o exemplo de uma pessoa apaixonada e observe as suas atitudes. Ela é tolerante, amável, simpática. É capaz de qualquer gesto enquanto neste estado de encantamento: dos mais sublimes aos mais diabólicos. Observe uma mãe: Não importa quantas crianças estejam reunidas, pois ela só terá olhos para o seu filho, aconteça o que acontecer. Numa tragédia — disse lembrando-se de uma reportagem que fizera anos atrás —, vi casais darem graças a Deus por terem os filhos salvos. Estavam plenos da felicidade suprema e assim foram para suas casas comemorar o milagre. Sequer lembraram-se dos casais que ficaram chorando a perda dos seus e dos corpos mutilados que saltaram durante as buscas. Vi também, durante a identificação, o deses-pero de um casal a cada lençol que era levantado à sua frente:
     — Não é esse — dizia a cada corpo apresentado.
     Acompanhei-os mais de perto nesta busca e acabamos num hospital. Da mesma forma, vi-os abraçarem-se às lágrimas ao verem o filho numa enfermaria, com vida.
     E, num gesto de contrariedade, perguntou:
     — Diga-me, Carlos, onde fica a solidariedade se somos condicionados a amar somente determinadas pessoas?   Para aqueles — referiu-se novamente ao caso que acabara de contar —, que tiveram os seus filhos salvos, no máximo e na segurança do lar dirão: "Que coisa horrível! Que tragédia!" Mas, em nenhum momento — disse levantando-se em direção ao bar —, fizeram efetivamente nada que amenizasse a dor daqueles que perderam os seus entes queridos. Não! — disse enchendo o copo — Esse tipo de sentimento não constrói nada de concreto. É extremamente fugaz e sujeito a variações.
     — E o que você sugere? — perguntou Carlos secando a testa.
     — Amai-vos uns aos outros. Não é isso que está escrito?
     Carlos engoliu a seco. Ficou por alguns instantes mirando Vandenberg que se voltara em direção à janela com os olhos perdidos no bosque do Pueriso.   Respirou fundo para articular algumas palavras mas conteve-se ao perceber que voltava para sua mesa.
     — Até admito que me tomem o Pueriso, mas como ficam as crianças?
     — Eles já pensaram numa solução — respondeu timidamente.
     — Que solução é essa? — perguntou Vandenberg quase sobre a mesa.
     — Vão distribuí-las por vários orfanatos e...
     — Você chama isso de solução? — berrou Vandenberg socando a mesa e derrubando o copo — Você chama tirar as minhas crianças daqui e levá-las para essas universidades do crime de solução?
     — Eles chamam — respondeu com a calma habitual.
     — São uns cínicos filhos da puta. É isso que são.
     Carlos torceu o nariz. Não era nada simpatizante daquele vocabulário tão comum em Vandenberg nas suas horas de revolta.
     — Escute uma coisa que aconteceu hoje — disse Vandenberg lembrando-se de uma notícia que ouvira no rádio pela manhã. — Um menino caiu da janela a uma altura de vinte andares e não morreu.
     — Isso é um milagre! — interrompeu Carlos de imediato.
     — Milagre é o cacete! — contestou Vandenberg. — Pôrra, Carlos, não me venha com essa! Aposto como não caiu de cabeça para baixo.
     E, aproximando-se novamente do bar e pegando outro copo, insistiu:
     — Se foi milagre, então que diabo de lógica é essa usada por Deus que salva uma criança de uma queda e deixa milhares de outras morrerem de fome todos os dias?
     E, com o rosto vermelho, arrematou:
     — Ou uma ou outra: ou a lógica Dele é incompreensível para nós, simples mortais, ou somos todos grandes idiotas.
     — Não fale assim, Vandenberg. Compreendo o seu agnosticismo mas agora vejo uma grande revolta envenenar-lhe o coração.
     — E daí? Se Ele está me castigando pelas minhas blasfêmias, ótimo, são merecidas; mas as crianças não tem nada com isso.
     Carlos nada respondeu. Sua fé inabalável não permitia ser colocada à prova com apenas alguns exemplos. Secou novamente o rosto e respondeu finalmente:
     — Acho que a lógica Dele é incompreensível. Quem somos nós e o que sabemos sobre o mundo?
     — Isso não me interessa — retrucou. — Se eu nasci no século vinte só posso raciocinar com os elementos que possuo agora.
     — Tenha fé — disse Carlos levantando-se. — De alguma forma as coisas vão se resolver.
     Vandenberg apenas abanou a cabeça vendo o velho amigo sair. Sentia-se amargo e agastado. Leila tinha viajado à procura de novos investimentos e não viria. Como tinha ainda muito o que fazer, decidiu passar a noite no Pueriso.
     
     A tarde chegava ao fim e, pela janela, ficou a observar a pequena ponte de madeira e o bosque ao fundo. As crianças, indiferentes aos acontecimentos, corriam alegremente pelos jardins. Outras, liam ou, simplesmente como ele próprio, contemplavam.
     Por entre as folhas, viu a figura de Pedro, o velho da cabana como muitas crianças o chamavam, amarrando cuidadosamente um galho que parecia muito frágil para os frutos que carregava. Ao longe, ouviu um choro de criança. Virou-se para o lado e viu um menino sentado num pedaço de madeira próximo à posição de Pedro. O negro, percebendo, interrompeu o trabalho e caminhou em sua direção, mas o menino não lhe rendeu nenhuma acolhida. Pedro sentou-se então ao seu lado e começou a falar algo que Vandenberg, pela distância, não entendeu mas que parecia surtir algum efeito. O menino, coçando os olhos, agora olhava para o velho que continuava a falar. Depois, passou a rir timidamente, dando vazão, mais tarde, à alegria infantil habilmente conseguida pelo jardineiro. Ambos foram continuar o trabalho interrompido assumindo o menino a tarefa, sob o carinhoso olhar de Pedro.
     "Agora isso resolveu, meu velho, mas daqui a alguns dias..."
     Retornou à sua mesa apavorado com a idéia de ver suas crianças jogadas num orfanato, vivendo de esmolas e implorando migalhas de amor.
     " Que filho da puta é você, Ricardo. Um escarro humano que deambula pelo lodo transportando merda e mijo. É para isso que o seu corpo serve, maldito" — disse baixinho reunindo em si todo o ódio que um ser humano é capaz de sentir.
     Levantou-se num sobressalto assustado com os próprios pensamentos e logo tratou de mudá-los, evitando assim aquelas armadilhas preparadas pela mente envene-nada. "Não! Não posso continuar pensando nessas coisas terríveis."
     Vandenberg acreditava que os pensamentos sintonizavam, tal como os circuitos ressonantes nos receptores, os homens ao universo. Procurou então trabalhar, interrompendo-se apenas para jantar e caminhar um pouco.
     Foi nesta caminhada que encontrou Vaninha sentada próxima à ponte de madeira num banquinho improvisado. Trazia o seu inseparável ursinho, quase em frangalhos pelo uso e única porta para o mundo exterior.
     Vandenberg ainda lembrava-se de como a encontrou vagando solitária em uma estrada. Apesar de toda divulgação e investigação para localizar os seus verdadeiros responsáveis, ninguém se habilitou como tal. Resolveu então adotá-la.
     Apesar do tempo decorrido, mais de cinco anos, ainda estava viva em sua alma a indignação que teve ao ser-lhe negada a iniciativa pelo fato de ser velho e viúvo.
     "Mas que diabo estão dizendo?" — lembrava. "Quantos irresponsáveis sem a menor estrutura moral e psíquica fazem filhos todos os dias? Vejam as ruas apinhadas de menores vendendo toda a sorte de bugigangas e explorados por cafajestes. Eles deveriam sim estar brincando e não expostos dessa forma ao vírus da marginalidade."
     E foi assim, aos brados e com forte apoio da opinião pública, que conseguiu a adoção daquela menina autista.
     — Olá, minha gatinha — cumprimentou falseando a voz.
     Naturalmente, não esperou nenhuma resposta. Costumava passar horas junto à menina, acarinhando-a e contando histórias que, geralmente, incluíam ela própria e o seu ursinho.
     — Hoje o vovô está muito triste, Vaninha. Tem uns homens maus querendo tirar a nossa casa.
     E, sentando em frente à menina, continuou:
     — Sabe, Vaninha, o vovô fez uma coisa errada. É por culpa minha que vamos perder tudo... — fez uma pausa limpando os olhos úmidos. — Não vamos mais ter os patinhos... — Lembra daquele que dormiu com o ursinho? — perguntou tentando rir.
     Engoliu o nó e prosseguiu:
     — O vovô tem um amigo que acredita em milagres... Você sabe o que é milagre?
     A menina continuava a olhar para o nada.
     — Milagre — tentou explicar —, é uma coisa boa que acontece quando você não mais acredita que possa acontecer.
     E, posicionando-se mais frontalmente aos olhos da menina, exemplificou:
     — Se você falasse comigo agora, seria um milagre. Acho até que bastaria que você me olhasse... só um pouquinho...
     Vandenberg chorava.
     — Estou usando a linguagem do amor, Vaninha, e tenho a certeza de que estou chegando em algum lugar dentro de você.
     Ficou ainda olhando a menina de frente, entrando e saindo do seu campo de visão, buscando seu olhar perdido, quando, por um instante, sentiu o poder do milagre. Seus olhos encontraram-se com os dela! Foi por apenas um instante que se olharam, mas valeu a pena.
     Vandenberg não acreditou. Seu velho coração doente disparou de emoção. Tinha, finalmente, captado o olhar de Vaninha... Tinha atingido algo no seu interior...
     Sentiu-se trêmulo. Repetiu a manobra mais algumas vezes, tentando ver-lhe novamente o olhar mas não teve sucesso. Porém, jamais desistiria.
     Por alguns instantes viu-se correndo com ela pelo bosque, rindo... — Espera vovô, não vá tão rápido...
     O seu coração começou a fraquejar. As fortes dores e a sensação de sufoca-mento impeliram suas mão à procura dos comprimidos salvadores, mas nada encontra-ram.
     — Meu remédio... onde está...
     As forças começaram a abandoná-lo. Tentou ainda chamar a menina mas ela parecia completamente alheia ao seu sofrimento.
     — Vaninha.... chame.... algu...
     
     Tão logo soube da internação de Vandenberg, Leila retornou à cidade.
     Sua viagem não fora bem sucedida, produto da crise e do auspicioso mercado financeiro. Em sua bagagem, muita promessa e solidariedade.
     — Como está ele? — perguntou preocupada ao dr. Junqueira, médico pessoal de Vandenberg.
     — Nada bem — respondeu lançando um triste olhar ao paciente que respirava com o auxílio de aparelhos.
     E, voltando-se novamente para Leila, acrescentou:
     — Se não fosse pelos empregados, ele teria morrido — disse fazendo alusão aos primeiros socorros prestados por Pedro que o achou caído junto a Vaninha.
     — Então foi lá no Pueriso?
     — Sim. Foi muita sorte mesmo. Vandenberg havia chamado o veterinário para a inspeção no zoológico. Na saída, ele e o jardineiro viram-o caído próximo àquela menina autista e correram para ajudá-lo. Parece que o negro lembrou-se dos compri-midos e fê-lo engolir alguns, não sei como, e o veterinário fez o resto até eu chegar.
     E, voltando-se para o paciente novamente, acrescentou:
     — Foram bastante eficientes no atendimento, pois não há nenhum indício de lesão cerebral.
     — Que ironia ter sido salvo por um veterinário... — disse Leila com olhar perdido. — Mas ele estava muito preocupado com o destino das crianças e a situação do Pueriso, por isso enfartou.
     — Ele é cardiopata há muito tempo, Leila. A situação somente agravou o seu quadro — disse o dr. Junqueira surpreso pelo fato da administradora desconhecer-lhe a doença.
     — Cardiopata? O Vandenberg? — perguntou mal deixando o médico concluir.
     — Sim, há muito tempo. E o caso dele é bastante grave — endossou.
     — E o que ele tem?
     — Uma doença degenerativa nos músculos do coração. É um caso típico para transplante, sua única salvação.
     — Então estamos esperando apenas um doador? — perguntou com esperança.
     — Não — respondeu baixando os olhos. — O seu estado é muito grave. Não posso operá-lo nestas condições.
     
     Semanas depois, Carlos voltou ao hospital para a sua visita diária. Sentou-se na cabeceira do doente e, sentindo-se impotente para qualquer ajuda, ajeitou a ponta da fronha e puxou o lençol. Cruzou as mãos e assim permaneceu observando aquele corpo inerte ligado a tubos e fios, como se também fosse um aparelho.
     Prestes a sair da UTI, viu Vandenberg mover as mãos envoltas em ataduras e, num gesto brusco, arrancar os eletrodos fazendo soar o alarme do monitor cardíaco. Assustado e sem saber o que fazer, levantou-se para conter-lhe as mãos que já se preparavam para novas investidas até que o dr. Junqueira e sua equipe entraram.
     Carlos sentiu um enorme alívio, largando Vandenberg.
     — Ele está acordando — disse o médico desligando o alarme e religando os fios arrancados.
     Vandenberg abriu os olhos e viu apenas imagens confusas. Sua primeira reação foi tentar tirar o tubo da garganta, logo contida pela atenta enfermeira que segurou-lhe firmemente a mão. Mas a outra conseguiu desconectar a borracha preta do respirador.
     — Calma... calma — disse com brandura contendo-lhe a agonia.
     — Acho que vamos ter que amarrá-lo novamente — disse o outro médico que acompanhava o dr. Junqueira.
     — Vandenberg balançou vigorosamente a cabeça ao perceber a enfermeira com uma injeção nas mãos.
     — Fique quieto, Vandenberg, não piore a situação — advertiu o dr. Junqueira preocupado com aqueles esforços. — Só posso retirar essas coisas se você cooperar com o tratamento — disse apontando para os tubos.
     Mas a agonia dos vômitos causada pela cânula não o deixava em condições de cooperar. E, como continuava agitado, teve que ser novamente sedado.
     Acordou horas mais tarde mas já sem a incômoda cânula, substituída por uma máscara. Abriu os olhos e os sons do monitor junto ao sopro do ar comprimido devolveram-lhe a realidade. Olhou para o lado e viu Carlos mergulhado nos seus pensa-mentos e tentou tocá-lo, mas as amarras que continham as suas mãos junto às grades do leito impediram-no. Mas, com o tronco ligeiramente erguido, viu a tampa esquecida de um esparadrapo próxima ao seu pé direito, sobre o lençol e, com um gesto, derrubou-a no chão. Carlos virou-se e encontrou sua figura risonha dando-lhe uma significativa piscada.
     — Finalmente acordou, seu velho rebelde! — disse aproximando-se da sua cabeceira com um largo sorriso — Está se sentindo melhor?
     Vandenberg não pôde responder mas balançou a cabeça afirmativamente.
     Carlos chamou a enfermeira com um toque no botão e foi rapidamente atendido. Chegando no quarto e vendo a placidez do paciente, perguntou olhando para as amarras:
     — Vai se comportar?
     O dinamarquês respondeu com a cabeça como um menino que acabara de ser admoestado.
     — Está bem — disse pegando uma tesoura. — Vamos soltá-lo.
     Mal sentiu-se livre, tentou tirar a máscara.
     — Não! Nada disso! — interviu a enfermeira com energia recolocando os cabelos que se-lhe soltaram do laço sob a touca.
     Vandenberg resignou-se temendo nova sedação.
     Advertido para não comentar nada que lhe pudesse suscitar fortes emoções, Carlos tranqüilizou:
     — Tenho boas novas, não se preocupe com nada porque...
     Vandenberg balançou a cabeça negativamente num gesto de contrariedade.
     — Você mente muito mal — disse levantando a parte inferior da máscara exalando um forte hálito de remédio.
     A enfermeira que trocava o soro viu e fez que não gostou. Vandenberg gesticulou uma desculpa.
     — Quem mandou lembranças foi o pessoal lá do fórum — disse novamente mudando de assunto.
     Ficaram juntos por mais alguns momentos até que a enfermeira, discretamente olhando para o relógio, sinalizou o fim da visita. Carlos levantou-se após um fraterno abraço e saiu.

TERCEIRA PARTE



     Lorbus mantivera-se em órbita estacionária, mas guardando uma grande distância do planeta. Desconhecia-lhe ainda a tecnologia e não queria expor a fertílitis a nenhum tipo de rastreamento. Aprendeu alguns idiomas e, vez por outra, fazia algumas incursões no espaço para melhor analisar os estranhos artefatos em órbita.
     Verificou, com imenso temor, que muitos deles estavam carregados de tal forma que poderiam explodir, causando grandes destruições, caso determinados elementos de sua composição fossem combinados. Através dos computadores da fertílitis, descobriu também milhares de outros artefatos similares na superfície e, da mesma forma, poten-cialmente perigosos.
     "A quantidade de energia — calculou —, se liberada, destruiria vários planetas iguais a esse."
     Em princípio, pensou que tivessem sido colocados por outros povos com a finalidade de escravizá-los. Depois descobriu que as suas conclusões estavam erradas, mas não em relação aos objetivos.
     No relatório preliminar que enviou, dizia não entender como as convenções criadas valiam mais que o trabalho.
     "Aqui as coisas são inversas: trabalha-se para comer e não pelo prazer em construir."
     Teve, identicamente a Ezin, dificuldades em descrever o sistema de trocas baseado na contraprestação de serviço. Grande parte do relatório foi tentando elaborar um raciocínio explicando que, apesar de muitos trabalharem, ainda assim morriam de fome ou de subnutrição. Outra parte importante no que relatou foi dedicada à violência reinante: "o sistema privilegia a minoria em detrimento da maioria, por isso, posso considerá-la como uma manifestação de contrariedade dos preteridos".
     Lorbus estava agora confuso. Não sabia se o grande perigo da profecia relacionava-se com aqueles artefatos ou com o modelo social reinante. "Não há diferenças entre eles, a não ser pela crueldade e velocidade de extermínio" — disse ao final do relatório.
     Resolveu que, para melhor análise, teria que descer e entrar em contato direto com aquela gente. Elaborou alguns critérios e alimentou os computadores para um melhor ponto de aterrissagem. Como os dados eram insuficientes, decidiu por um bosque dentro de uma grande cidade, baseado somente nas suas intuições.
     Novamente, Arana veio-lhe à mente.
     Fabricou um modelo de roupa e, tão logo pudesse ter às mãos os cartões que usavam para identificação pessoal e os papéis que utilizavam para trocar mercadorias e serviços, os fabricaria também. Precaveu-se também de sofrer violência fatal alterando as ligações moleculares do seu corpo impedindo, desta forma, qualquer contundência grave. Implantou ainda os microcircuitos nas pontas dos dedos que serviriam como comandos emergenciais acionados por combinações de toques. Através deles, além de controlar algumas funções básicas da fertílitis, poderia também consultar os seus computadores e deslocar a pequena nave de classe miz que seria usada na descida. Foi ao compartimento onde estavam as naves auxiliares mas não sem antes passar no laboratório e pegar o cromaton, manufaturado em forma de óculos.
     Entrou na miz lacrando sua porta e imediatamente o painel entrou em funcionamento, fornecendo ar fresco e mostrando as opções para decolagem. Com a ajuda do computador, traçou a rota escolhida e abriu a passagem para o exterior, abandonando lentamente a nave mãe. As luzes do compartimento foram apagadas, facilitando a vista para o exterior: primeiro, um retângulo de estrelas; depois, como se penetrando em um quadro, alcançou o espaço em direção ao pequeno planeta azul. Tentou ainda olhar a fertílitis virando-se para trás, mas a forte luz da estrela amarela impediu seu intento. Virou-se novamente e continuou a aproximação em direção à superfície, que foi ganhando dimensão até obstruir totalmente a visão à frente.
     A pequena miz fez uma rotação e dirigiu-se para o lado oposto ao da luz solar, obrigando Lorbus a acionar o dispositivo de visão noturna.
     A nave continuou o processo de descida até próximo às copas das árvores e a lenta manobra permitiu a vista de uma construção parecida com aquela usada pelo velho conselheiro de Pentátilis.
     Pousou completamente invisível em um ponto seguro do bosque.
     Lorbus desativou os flutuadores e iniciou uma rigorosa análise nas condições do solo e na qualidade do ar. Não que os desconhecessem, mas porque sabia das muitas variações que sofriam em função do lugar e das atividades próximas. Verificou as demais conexões lógicas com a fertílitis e testou novamente os microcircuitos àquela distância.
     Pelo biotron, observou diversos sinais vitais a uma distância que considerou prudente. Calculou depois que a luz trazendo o amanhecer não tardaria e tratou logo de excursionar pelas proximidades.
     Desceu pela primeira vez em um solo não pertencente ao Império. Analisou a água de uma nascente, classificou algumas espécies vegetais encontradas e continuou caminhando distraidamente pelos arbustos, tão pleno de liberdade que resolveu sentar-se em um montículo e ver o sol prestes a nascer. Ficou a observar as figuras amorfas que o clarão desenhava nas nuvens e o arco luminoso, permanecendo ali sentado até o astro ficar totalmente exposto.
     "Como, diante de um cenário destes, consegue-se ser violento?" — perguntou-se.
     Distraído, não percebeu um ruído de motor aproximando-se até que, ensur-decedor, fê-lo olhar para o lado.
     Assustado e sem ter para onde ir, ocultou-se atrás de umas árvores e viu uma estranha máquina pousar. Lembrou-se rapidamente: era um helicóptero.
     Vários homens saíram do seu interior protegendo-se do forte vento da hélice, reunindo-se depois numa roda até a parada total dos motores. Pareciam fazer planos, pois apontavam para os lados e diziam:
     — Aqui será o shopping. — Lá ficarão os edifícios. — A estrada passará bem aqui.
     Um outro foi mais enfático:
     — Tudo isso será aterrado — disse apontando a direção onde Lorbus se ocultara.
     Instintivamente, olhou para trás e deparou-se com um velho, idêntico aos de Bantok, próximo a um animal que identificou como um cachorro. Fitou o negro de fisionomia suave, porém triste, e acionou o cromaton: a exuberância da coloração azul pontilhada por um forte amarelo que emanava do seu corpo fê-lo lembrar-se do conse-lheiro de Pentátilis, não deixando dúvidas de que era também um iluminado.
     As vozes agora, muito próximas, chamaram mais uma vez a sua atenção. Virou-se para o grupo e analisou rapidamente as cores de cada um: eram esmaecidas e muito próximas do corpo. "Sem duvida — pensou —, tratam-se de seres pouco evoluídos e sem nenhuma grandeza."
     — Vai aproveitar alguma coisa daqui, Wilson? — perguntou um dos homens ajeitando a calça.
     — Só de início para abrigar os operários. Depois derrubo tudo — respondeu com a fisionomia nauseada.
     — Além daqueles prédios velhos — perguntou o velhote apontando para os pavilhões do Pueriso —, que outras edificações existem por aqui?
     — No levantamento preliminar — respondeu o gordo ajeitando novamente a calça —, de alvenaria mesmo só aqueles prédios. Há um barraco no outro lado implorando por um trator — complementou provocando risos.
     — Vamos caminhar mais um pouco — convidou o velhote que alguns tratavam por dr. Wilson.
     — E essa floresta? — perguntou outro acendendo um cigarro.
     — Vamos derrubar tudo — enfatizou com um gesto de mãos. — Está ocupando um espaço precioso. Vamos deixar só um pedaço para justificar o nome do empreen-dimento.
     E, sempre falando em construir e derrubar, o grupo liderado pelo dr. Wilson afastou-se daquele local indo na direção dos pavilhões, deixando a presença ameaçadora daquela máquina.
     Lorbus voltou-se para o velho e dele se aproximou, atraindo para si o animal que o saudou com várias cheiradas. Abaixou-se um pouco e tocou nos pelos amarelados do cachorro.
     — Você num tá com eles não. Né? — perguntou Pedro estabelecendo uma intuitiva discriminação entre aquele homem e os demais do grupo.
     — Não entendi direito — respondeu Lorbus estranhando a maneira curiosa do velho falar.
     Pedro riu.
     — Ah!... Num faz mal! Já sei que você num é um deles — disse apontando para o grupo que já ia longe.
     Lorbus não entendeu bem a que o velho aludira. Entendia as palavras mas não a linguagem.
     — Eu não sei quem são eles — disse olhando também na direção que o velho apontara.
     — Eu também não — endossou —, mas num parece gente boa. Essa história de dirruba isso..., quebra aquilo... Humm! Num cheira a coisa boa!
     — Eu também não sei do que se trata, mas parece que querem modificar alguma coisa por aqui — disse Lorbus.
     — Bastô o Vanderbeg ficá doente prá aparecê um bando de urubu. Êta gente danada!
      Lorbus ia perguntar sobre o doente mas foi interrompido.
     — Eu sou o Pedro e esse é o totó. Sou o jardineiro.
     — Meu nome é Lorbus — disse estendendo a mão tal como vira nas transmis-sões captadas pela fertílitis.
     — Lorbus? — perguntou rindo — Que nome engraçado!
     Pedro estalou os dedos chamando o cachorro e pôs-se a caminhar, seguido por Lorbus.
     — Isso tudo é do Vanderbeg — disse apontando para os lados. — Ele cuida das criança abandonada.
     — Como assim, Pedro?
     — As criança que os pais num quer, ora! — respondeu com uma simplicidade quase infantil. — Eles joga fora e o Vanderbeg cuida!
     — E por que ele faz isso?
     — Num sei... mas acho que ele é quase um santo... ! Acho que é isso!
     Ao chegarem no barraco, Pedro lançou um olhar de tristeza para o jardim.
     — O que foi, Pedro? — perguntou Lorbus olhando na mesma direção.
     — A pranta do Vanderbeg... Tá doente qui nem ele...
     Realmente, a planta parecia estar perecendo. Lorbus acionou imediatamente os computadores da fertílitis através dos microcircuitos, procurando evitar que Pedro visse sua manobra.
     — Não se preocupe, meu amigo — disse colocando-lhe as mãos no ombro magro e ossudo —, amanhã elas estarão melhor.
     Pedro sorriu confiante. Era a primeira vez, depois de Vandenberg, que alguém o tratava como amigo.
     — Si Deus quisé — disse com os olhos fechados e cheios de fé.
     Lorbus teve a sua atenção voltada para aquela estranha construção, tão parecida com a que vira em Pentátilis e que tanto aguçou a sua curiosidade na aterrissagem.
     — O Vanderbeg queria me dá uma de tijolo, mas eu priferi fazê o meu barraco assim — disse percebendo-lhe a atenção.
     Lorbus passou a mão suavemente na madeira e disse com um leve sorriso:
     — Eu gostei.
     Pedro balançou a cabeça, feliz, e perguntou entrando:
     — Você gosta de chá?
     Lorbus procurou na memória o significado daquela palavra e depois respondeu sem nenhum receio:
     — Nunca tomei chá.
     Pedro soltou uma enorme gargalhada.
     — Então tá na hora. Senta aí enquanto eu preparo um bem gostoso — disse apontando para a cadeira de vime que Vandenberg costumava sentar nas suas visitas.
     Lorbus sentou-se e ficou a observar o velho sorridente que pairava acima daquele mundo. Não resistiu e levantou-se, aproximando-se do fogareiro e do utensílio sobre o fogo. Virou-se e tocou na mesinha rachada e sentou-se na velha cama que rangeu.
     Pedro parecia gostar daquela inspeção, pela expressão do olhar paternal sobre Lorbus lançado.
     — Moringa? — perguntou destampando e tocando aquela peça úmida não presente nos dados da fertílitis.
     — É — confirmou achando engraçadas aquelas perguntas que muito lembravam os meninos do Pueriso.
     Lorbus, satisfeito, foi até a janelinha e ficou por uns instantes vendo o bosque, lembrando-se do seu mundo.
     — Aqui tá o chazinho.
     Lorbus virou-se e viu Pedro balançando um pequeno embrulho na água enfumaçada.
     — Cuidado que tá quente! — advertiu.
     Lorbus levou cuidadosamente o líquido até a boca e sorveu um gole, sob a vista tensa de Pedro.
     — Humm! Gostoso... — disse mexendo a língua.
     Pedro desfêz-se da tensão e sorriu abertamente, parando de imediato ao ver totó com as patas enlameadas na porta.
     — Ora, seu porcalhão! Vô te dá um banho.
     A última palavra fez o cachorro desaparecer.
     — Só vive fuçando a lama — disse Pedro chegando na janela e vendo o animal cavando o chão. — Mas hoje ele num escapa.
     Súbito, ouviram vozes.
     — Êpa! parece a voz da Leila. Com quem ela tá brigando?
     Saíram do barraco em direção ao vozerio no qual a da mulher se destacava. Pararam e viram os homens do helicóptero discutindo com a administradora.
     — Eu já disse — esbravejava Leila —, vocês não são donos de merda nenhuma por enquanto. Agora tirem aquela lata velha do meu terreno senão eu chamo a segurança.
     — Calma, dra. Leila — ponderou o dr. Wilson. — É só uma questão de tempo. A senhora coopera nesta transição e amanhã administra um grande condomínio.
     — Eu não estou nem um pouco interessada nas suas imundícies — continuava em altos brados. — Vocês não tem a menor decência. Só pensam no lucro fácil.
     — Chi! — disse Pedro virando-se para Lorbus — A Leila tá brava!
     Os seguranças que ainda permaneciam no Pueriso aproximaram-se da discussão quando Leila, num aceno, determinou a expulsão do grupo. — Fora daqui todos vocês — ordenou com o dedo em riste. — E tem mais — vociferou mais uma vez pegando sua reluzente pistola da bolsa —, o primeiro que entrar aqui sem a minha autorização sai com o rabo furado. E isso vale para você também — disse apontando a arma para o rosto do dr. Wilson que, assustado, recuou.
     Pedro arregalou os olhos mas sentiu alguma satisfação ao ver aqueles homens serem enxotados pelos seguranças em direção àquela máquina barulhenta.
      — Vamos sair daqui — sugeriu retornando ao barraco.
     No caminho foi, à sua maneira, situando Lorbus dentro daquele contexto, embora sequer imaginasse o que realmente estava acontecendo. Já dentro do barraco ouviram o ruído do helicóptero afastando-se.
     — Quero essa mulher fora do meu caminho — disse o dr. Wilson em tom vingativo. — Sinto que ela poderá fazer qualquer besteira e atrapalhar meus negócios.
     — Quer ela debaixo da terra? — perguntou um auxiliar gritando sob o barulho do motor.
     — Se for necessário... — respondeu.
     
     Lorbus permaneceu ainda em companhia de Pedro, familiarizando-se com aquele povo e ouvindo histórias. Como ele muito insistia, concordou em almoçarem juntos.                        
     —   Assim é bom que você conhece as criança.
     O restaurante estava quase vazio quando chegaram. Havia somente algumas crianças que se divertiam nas últimas mesas sob o vigilante olhar de uma religiosa, recrutada por Leila em substituição aos educadores que se demitiram.
     Do lado de fora, totó corria atrás dos patos e, vez por outra, abocanhava a bola que os meninos jogavam, para o deleite dos demais.
     — Esse é o meu amigo — apresentava orgulhoso aos funcionários que serviam as bandejas.
     — Como estão? — cumprimentou Lorbus familiarizando-se rapidamente com a linguagem que aos poucos dominava.
     Sentaram-se numa mesa próxima ao ventilador e, mal começaram a comer, Carlos apareceu. Cumprimentou Pedro ainda na porta, pegou a bandeja e foi juntar-se aos dois.
     — Vandenberg acordou — disse desabotoando os botões superiores.
     Pedro recebeu a notícia juntando as mãos como se estivesse agradecendo algum milagre.
     Depois, virando-se para Lorbus, advertiu:
     — Acho bom você não permanecer por aqui, principalmente depois das atitudes do seu chefe. A administradora está furiosa.
     — Ele num tem nada com eles — defendeu Pedro passando o guardanapo de papel contra o rosto barbado. — Ele é meu amigo — enfatizou.
     — Eu só estou avisando — ponderou o advogado.
     Lorbus, imaginando o embaraço da sua presença e não querendo deixar em situação delicada o seu companheiro, ensaiou mentalmente uma despedida. Porém, sua concentração foi interrompida pela exclamação de Pedro:
     — Chiii!!...
     Era Leila que acabava de chegar.
     Carlos virou-se para a porta e viu seu gélido olhar lançado sobre Lorbus. Respirou fundo e fez uma careta pelos presságios que lhe ocorreram. Tornou a olhar para ele, que mal tocara na comida, e para Pedro, cujo espírito parecia fora do corpo, enquanto a religiosa tratava de retirar as últimas crianças que ainda brincavam passando-as pela porta dos fundos. Leila aproximou-se da mesa, sem pegar o almoço, e sentou-se ao lado de Carlos, bem à frente de Lorbus.
     Carlos afastou-se um pouco e pousou os talheres, mastigando devagar e em atitude defensiva.
     Foi Pedro que novamente interviu:
     — Ele é meu amigo, Leila, num é aquela gente do ...
     Tentou falar a palavra helicóptero mas tropeçou nas primeiras letras.
     Leila apenas desviou seu olhar, voltando a encarar Lorbus de frente e com a mesma hostilidade.
     — É verdade — confirmou Lorbus. — Realmente eu não sei quem eles são.
     Leila virou o rosto para o ventilador e depois perguntou:
     — Como você entrou se o portão estava trancado?
     Pedro virou-se para Lorbus interrompendo a garfada e aguardou a resposta convincente.
     — Desci de pára-quedas — mentiu.
     Não era uma resposta descabida, pois havia um aeroclube próximo e essa não seria a primeira vez que um incauto pára-quedista principiante cairia no Pueriso.
     Pedro pareceu gostar da resposta. Desfêz-se da imobilidade e levou à boca o garfo que retinha na mão. Carlos deu um leve suspiro.
     Leila, embora já tivesse presenciado várias aterragens, não se convenceu da resposta.
     — Se é assim, onde está seu pára-quedas? — perguntou soprando a mecha de cabelo que se desprendera do arco.
     — Em uma árvore próxima ao zoológico — tornou a mentir.
     — Você poderia pegá-lo depois?
     — Claro, só terei que encontrá-lo.
     — Pois então faça isso — ordenou secamente levantando-se logo a seguir.
     — Eu ajudo — ofereceu-se Pedro, profundo conhecedor daquele bosque.
     — Bom, gente, boa caçada — despediu-se Carlos.
     Com muito jeito, Lorbus dispensou a ajuda de Pedro, convencendo-o a dar um banho em totó. Saiu rapidamente em direção à pequena miz e pôs-se em contato com os computadores da fertílitis e buscou todos os dados referente ao pára-quedismo. Ao recebê-los, determinou que confeccionassem um modelo a ser materializado a bordo da pequena nave. Acautelou-se também de solicitar um modelo atual e ainda programou imperfeições e impurezas que simulassem avarias, dando a impressão de que realmente ficara preso a alguma árvore. Recebeu também os dados referentes à doença da planta que tanto afligira Pedro e adaptou o cromaton para a cromoterapia que aplicaria sobre os vegetais doentes.
     Ao final da tarde, voltou à cabana de Pedro e mostrou-lhe o pára-quedas.
     — Então é isso um paraqueda? — perguntou pegando o tecido liso e macio envol-to em barbantes.
     — Sim — respondeu constrangido em mentir para aquele que julgava um conse-lheiro.
     — Vai mostrá pra Leila, não vai?
     — Vou — respondeu frustrando a tentativa de totó em pegar o tirante que pendia próximo ao seu focinho.
     — Bota aqui em cima — disse Pedro ajudando. — Vamos tomar um chazinho antes.

     
     Já era noite fechada quando Lorbus chegou ao gabinete que Leila ocupava. A porta não estava totalmente cerrada e, pela abertura, viu a administradora concentrada sobre uns papéis e bateu levemente.
     — Ah! É você? — perguntou virando-se um pouco de frente e tirando os cabelos do rosto.
     — Sim — respondeu timidamente entrando no gabinete.
     — Pelo menos pode-se dizer que você é uma pessoa obediente — disse observando-lhe o volume nas mãos. — Ficou até agora procurando?
     — Na verdade, não — respondeu voltando-se para a magnífica biblioteca que Vandenberg mantinha em seu gabinete.
     — Então, por que só agora?
     Lorbus não respondeu, perdido na admiração daquele acervo.
     Foi novamente Leila quem tomou a iniciativa:
     — Você tem que admitir a coincidência da sua queda com a vinda daqueles homens.
     — Sim — respondeu sentando-se à mesa. — Mas o que eles queriam?   — per-guntou lembrando-se do que vira pela manhã.
     — Então você não sabe? — perguntou admirada.
     — Realmente não — respondeu com naturalidade.
     — Tem lido os jornais ultimamente?
     — Bem... ultimamente não — respondeu embaraçado.
     — Quando é que a sua cabeça vai aterrar também?
     Lorbus não entendeu o teor da pergunta e fitou-a com ar interrogativo.
     — O que há com você, rapaz? É por acaso algum estrangeiro?
     — Eles não pareciam muito amigáveis — disse mudando a resposta.
     — Querem apenas transformar o céu em inferno. E isso não é bom, não é?
     — Por que a opção pelo inferno?
     — Você conhece o significado da palavra cupidez?
     — Sim, mas não consigo entender com se opta pelo inferno conhecendo-lhe as conseqüências.
     — Para os outros, meu caro, não para quem opta.
     — Não é verdade. Ninguém que opta pelo inferno vive no céu.
     — Não entendi muito o que você quis dizer — disse Leila levantando-se — mas para mim isso é muito mais um clichê do que sentimento.
     — Você pode me contar o que está acontecendo?
     — Desde o início? — perguntou acreditando por um momento ser aquele homem representante de alguma organização de amparo ao menor.
     Lorbus ouvia atentamente a narrativa enquanto acionava os microcircuitos, trans-mitindo para os computadores da fertílitis todo o conteúdo da biblioteca e também dos documentos sobre a mesa.
     Terminada a narrativa, ficou impressionado com os objetivos de Vandenberg, mas confuso em relação aos fatos.
     — Quer que eu chame um táxi? — perguntou com ar cansado pondo fim àquela entrevista.
     — Não, obrigado. Vou passar em casa de Pedro e despedir-me dele.
     — Então, pode deixar isto ali — disse indicando um canto na sala onde Lorbus deixaria o pára-quedas.
     — Obrigada — agradeceu arriando o volume. — Posso ir ao banheiro antes de sair? — perguntou com intuito de verificar se as transmissões foram adequadas e com-pletar alguns comandos que, em presença dela, seriam facilmente perceptíveis.
     — Bom... — disse depois esfregando as mãos à maneira que aprendera. — Então até logo.
     — Um momento —    levantou-se Leila interrompendo-lhe a saída.
     — Pois não — parou Lorbus voltando-se.
     — Eu não quero que você fique andando por aí sozinho. É contra as normas de segurança um estranho permanecer desacompanhado dentro da nossa instituição.
     — É perfeitamente compreensível — concordou sentando-se enquanto Leila solicitava a presença de um segurança para acompanhá-lo.
     Minutos depois, Julio aparece na porta.
     — Algum problema, doutora? — perguntou com olhar meloso e voz de falsete.
     — Ah! Então é você que está de plantão hoje — observou com um leve repuxar de lábios e olhar benevolente, enchendo aquele rude coração de esperança.
     Julio estufou o peito e virou-se para o estranho com ar de superioridade. Depois tornou a virar-se para ela e acrescentou:
     — Estou no turno da noite — disse com uma leve insinuação.
     — Leve este homem até a cabana de Pedro — ordenou secamente.
     — Sim senhora — acatou servilmente. — Vamos lá — disse virando-se para Lorbus com arrogância acreditando estar sendo eficiente.
     Chegaram à cabana de Pedro que lia sob o velho lampião.
     — Boa noite, seu Pedro — cumprimentou tirando o quepe e limpando a testa suada.
     Pedro levantou-se e abriu um largo sorriso ao ver novamente o amigo.
     — A doutora Leila mandou eu trazer este homem — disse Julio recolocando a cobertura.
     — Pode deixá ele comigo.
     — Sim... senhor — acatou o vigilante temendo não ter sido esta a ordem da administradora. Coçou a nuca antes de dar meia volta e sem saber se deveria ficar para escoltá-lo ou apenas deixá-lo em companhia do negro.
     "Mas que merda!" — praguejou consigo afastando-se do barraco. "Mas ela disse para eu levar até a casa de Pedro, e foi o que fiz" — concluiu feliz por achar que tomara a decisão correta.
     Desde que chegou pela primeira vez ao Pueriso, Julio passou a alimentar uma secreta paixão pela administradora. Posteriormente, sabendo das suas decepções amoro-sas, acreditou-se no único capaz de fazê-la feliz; e nessa fantasia, sentia-se correspondido por uma simples ordem, um fugaz olhar, enfim, qualquer manifestação que, para ele, era um aceno positivo de uma mulher que relutava em se entregar novamente. Era comum vê-lo, mesmo nos dias de folga, ajudando um companheiro ou fingindo qualquer interes-se. O fato de nunca tê-la visto em nenhuma companhia masculina reforçava ainda mais sua crença.
     — Já jantô? — perguntou Pedro preocupado. — Você quase num come, até parece um passarinho — disse rindo da comparação.
     Lorbus ia responder quando reparou no livro que Pedro estava lendo. Pegou-o com cuidado e examinou o título: "A Bíblia Sagrada".
     — Ah! É a minha bibla. Vanderbeg quem deu.
     — O que significa isso aqui, Pedro? — perguntou apontando para o desenho da capa.
     — Ué!!! Isso é uma cruz! — respondeu com cara de espanto.
     — Uma cruz? — repetiu Lorbus também surpreso.
     Pedro riu compreensivo.
     — Ah! Já sei. Você deve ser daquele lugá que ninguém acredita em Deus. Só pode sê! — disse tirando de um lugar perdido em sua mente simples algo que lembrara de uma conversa com Vandenberg sobre alguns estados comunistas que existiram.
     Lorbus acionou novamente os microcircuitos e rastreou o livro, conforme fizera na biblioteca.
     — Uma cruz... — disse olhando para Pedro.
     — É onde Cristo foi pregado, hômi!
     Lorbus leu rapidamente alguns trechos e ficou bastante impressionado com aquele personagem cujo símbolo, agora sabia, transcendera as galáxias. E, de alguma forma, julgando o velho como um elo entre aquele símbolo e a fantástica realidade, prometeu:
     — Tenho algo para você, Pedro.
     — Prá mim? — perguntou cético, julgando-se incapaz de suscitar tais deferên-
cias.
     — Sim, de um amigo comum — respondeu com naturalidade.
     E, percebendo que Pedro não compreenderia, simplificou:
     — Alguém que gosta muito de você pediu-me para entregar-lhe um presente.
     — Qui presente? — perguntou não propriamente interessado em qualquer objeto, mas em quem não conseguiu encontrar na mente.
     — Amanhã eu trago — disse levantando-se. — Agora leve-me até o portão pois Leila tem justos receios de ver-me sozinho dentro do Pueriso.
     — É que ela num sabe a diferença dos bom pros maus. Ela só vê a cara...
     — E você não?
     O velho não respondeu, apenas riu como criança.
     — Então espera um pouquinho que eu vou até a casinha.
     Vendo-se a sós, dirigiu-se até as plantas doentes e ajustou o cromaton para iniciar a cromoterapia. Logo, a forte luz proveniente da fertílitis atingiu as combalidas criaturas iniciando um processo de recuperação absolutamente impossível sem a intervenção daquela poderosa tecnologia. Finda a transmissão da nave, viu, como explosões silen-ciosas, a recuperação dos vegetais que espargiam cores de diversas tonalidades até alcançarem um padrão uniforme de coloração.
     Totó, como todo animal sensitivo, farejou aqueles eflúvios e até saltou tentando abocanhar um feixe luminoso.
     — Tá um cherinho gostoso — disse Pedro aproximando-se.
     Chegaram à portaria e despediram-se, para alívio de Julio.
     
     Lorbus saiu pela primeira vez à rua e, como não tinha um local definido para ir, caminhou a esmo até uma praça mal conservada e escura. Também seria a oportunidade de conversar com outras pessoas que se apresentou na figura de um andrajo bêbado.
     — Com licença — falou mal articulando as palavras deixando-se cair no banco.
     Lorbus acionou o cromaton e viu cores de sofrimento, apesar da aparente euforia.
     — Que é que um rapaz bonito que nem você faz aqui sozinho? — perguntou ajeitando-se e mexendo no saco que carregava.
     Lorbus aproximou-se e sentou-se ao seu lado.
     — Já sei — disse antecipando-se e lutando para manter o equilíbrio. — Foi encontrar a namorada e pegou ela com outro, né? — perguntou com uma sonora gargalhada.
     Tomou um gole da garrafa que pegou no saco, eructou e cuspiu para frente, deixando um visgo de saliva grossa na barba comprida.
     Lorbus olhou para aquele rosto intumescido e triste.
     — Já sei — arriscou novamente olhando a garrafa vazia de contra a luz de um longínquo poste. — Você levou o fora. Ou então perdeu o emprego... Dá tudo na mesma, né compadre? Voltou a gargalhar e seguiu-se uma tosse produtiva com ruidosos estertores. Escarrou novamente e ficou, por alguns minutos, vendo a secreção como se fora uma parte de si que se desprendera. Depois, vendo o rosto sereno do seu interlo-cutor, disse: — acho que não é nada disso... Você deve ser um anjo...
     A pobre criatura levantou-se e saiu cambaleante, deixando Lorbus com muito o que pensar.
     Decorrido mais algum tempo, três homens se aproximaram.
     — Vamos lá, camaradinha. Vai passando a grana — ordenou o mais alto deles portando um canivete.
     Lorbus olhou o objeto cortante e depois para o rosto daquele que o ameaçava, desviando-se para outro com uma grande cicatriz no braço.
     — Vamos logo, cara — apressou o terceiro em atitude ameaçadora. Mas Lorbus permanecia voltado para o da cicatriz.
     — Deixa ele — disse finalmente, intrigado com aquele olhar e empurrando ambos para trás.
     — O que deu em você, cara? Ficou maluco? — reagiu o que estava com o canivete.
     — Eu já disse, vamos embora — insistiu o da cicatriz em tom severo empurrando mais fortemente os dois para frente.
     Assim, os três se afastaram, seguros pelo da cicatriz, que ainda deu uma última olhada, seguindo um impulso nunca antes sentido.
     Lorbus levantou-se e caminhou até a parte mais escura da praça acionando a pequena miz estacionada no Pueriso. Aguardou alguns minutos até perceber a silhueta quase invisível da nave à sua frente e embarcou rapidamente em direção à fertílitis. Lá chegando, preparou-se para receber os impulsos derivados da decodificação dos livros rastreados, método rápido e eficiente de leitura por fluxo cerebral direto.
     
     No dia seguinte, após apreender o conteúdo de toda a biblioteca, Lorbus tinha uma idéia geral mais ampliada daquele povo. Ordenou seus pensamentos, fez comparações e, sobretudo, tentou entender tão complexa civilização.
     Dos personagens extraordinários que pisaram aquela terra, Jesus sobressaia. Lorbus lamentou profundamente não tê-lo conhecido. Lembrou-se então da entrevista com o velho conselheiro de Pentátilis e, aos poucos, as suas palavras ganhavam sentido. Mais ainda, as palavras de Cristo aos seus apóstolos: "Eu tenho muito ainda a dizer, mas vós não podeis suportar agora".
     Da mesma forma que os antigos não o podiam compreender, também não aqueles que conviveram com os voluntários a que se referira Ezin.
     "Se isso era verdade, então existiu um povo maravilhoso que o trouxe para cá..." — pensou.
     Instintivamente, olhou para fora da nave acreditando-se acompanhado por alguma entidade. Nada viu, mas sentiu-se envolvido por uma energia encorajando-o na decisão que acabava tomar.
     Por uns instantes, percebeu algo nunca experimentado: A Mão do Criador...
     Viu a harmonia dos astros, a vida pulsando nas estrelas e uma imensa obra inacabada esperando cada um, pacientemente, cumprir a sua parte. Num reflexo, Lorbus pensou ter entendido aquela obra, mas faltou-lhe vivência. Sabia que deveria viver em cada unidade do Universo, uma eternidade que fosse, para entender o que sentira.
     O velho conselheiro tinha razão quando referiu-se a um Criador.
     Extenuado pelas longas sessões junto aos computadores, deixou-se cair. Aquela experiência exauriu suas últimas forças. Agora, sob o olhar cintilante das estrelas, dormia profundamente.
     
     Mal amanhecera o dia, Carlos tentava desesperadamente um acordo. Já não queria evitar a perda do Pueriso, fato inevitável, mas um novo prazo para a sua entrega. Porém, nem mesmo o mau estado de Vandenberg serviu para convencer os credores.
     — Duas semanas — foi taxativo o dr. Wilson —, em duas semanas quero todos na rua, principalmente aquela mulherzinha abusada que deveria estar numa cozinha ou lavando roupas.
     Como Carlos não pôde provar nenhuma fonte presumível de fundos para saldar a imensa dívida, os credores, na pessoa do dr. Wilson, conseguiram permissão judicial para visitas de planejamento. Agora, de posse deste alvará, podiam transitar livremente dentro do Pueriso.
     Carlos informou Leila dos riscos que correria caso tentasse embargar aquelas visitas.
     — Mas não é entrar e sair ao bel prazer. É? — perguntou irada ao receber a notícia.
     — Não, claro que não — tentou tranqüilizar. — Eles deverão preparar um calendário de visitas e talvez hoje mesmo o leve para você tomar ciência.
     — E agora, Carlos? — perguntou virando-se de costas não permitindo ao advogado ver-lhe as lágrimas.
     — Temos que levantar os milhões de dólares e saldar nossas dívidas até o último dia útil deste mês — respondeu fingindo não lhe notar a comoção.
     — Mas não vamos conseguir isto — disse agastada caminhando de um lado para outro.
     — Que tal fazermos uma campanha? — perguntou Carlos animado.
     — E levantar 50 milhões de dólares em duas semanas para ajudar crianças famintas? — perguntou cética.
     — Não temos nada a perder, Leila. Veja só — disse exibindo um diploma perdido sobre a mesa — temos até o reconhecimento do UNICEF!
     — Mas são 50 milhões de dólares, Carlos! Se fossem para fabricar algum míssil ou financiar campanhas políticas, tudo bem — ironizou.
     — Não seja pessimista, Leila.
     — Eu realmente não conheço as pessoas — disse sentando-se. — Custo a crer que você seja uma criatura normal. Se fosse o Pedro...
     — Então você sugere que fiquemos aqui sentados enquanto o seu amigo prepara a vassoura para enxotar-nos como cães vadios?
     Leila ruborizou de raiva. A simples lembrança daquele homem atingiu-lhe em cheio.
     Foi exatamente o que Carlos pretendeu para sensibilizá-la.
     — A que horas podemos falar com o Walter? — perguntou levantando-se e olhando para o relógio na parede.
     — É cedo para ir ao banco — respondeu maroto. — Quanto a mim, vou organizar a veiculação da campanha em âmbito nacional. Mas antes — continuou pegando a velha pasta e preparando-se para sair —, vou dar uma passada no hospital e ver o estado de Vandenberg.
     Leila, lembrando-se da despensa vazia, fez várias ligações aos principais forne-cedores e empresas ligadas ao Pueriso, tentando não deixar com fome aquele contingente de centenas de crianças. Humilhou-se como nunca faria por si mas conseguiu alimentos por mais alguns dias.
     — Não podemos enviar caviar, mas feijão com arroz — disse um produtor que perdera a mulher na mesma época que Vandenberg e, em decorrência deste fato, tornaram-se amigos.
     — É mais do que preciso — agradeceu emocionada mesmo sabendo que as suas necessidades eram bem maiores que aquela oferta.
     Tentou ainda convencer o governo a liberar os estoques que estavam se estragan-do nos silos, comprados de maneira fraudulenta unicamente para atender às necessidades de alguns produtores.
     — É o senhor secretário de abastecimentos? — perguntou ao telefone.
     — Mas por que não pode liberar uma pequena parte?
     — Eu entendo que o país todo clama por uma cota, mas estes aí estão apodre-cendo.
     — Desculpe, Sr. secretário, mas as minhas crianças estão morrendo de fome e...
     Leila ia se irritando cada vez mais com as constantes tergiversações políticas do secretário...
     — Mas não podemos esperar tanto, sr. secretário. Tratam-se de crianças... O senhor compreende?
     — Eu sei... eu sei... mas são apenas algumas sacas, nada mais. Além de tudo, podemos trocar por alguns bens e...
     E, com a paciência esgotada por tão obtusa visão, desabafou:
     — Pois então enfia no rabo esta merda, seu porco imbecil. Se eu fosse um daqueles corruptos a conversa seria outra, não é? — gritou atirando longe o aparelho telefônico. Depois, nervosa, abriu a bolsa e pegou um cigarro.
     Voltara a fumar após longo período de abstinência, compelida pelas circunstân-cias.
     Ouviu bater na porta.
     — Entre — gritou envolta em fumaça.
     Era Julio, esforçando-se para ser um cavalheiro, cada vez mais entregue à sua fantasia. Viu-a fumando e lembrou-se quando, dias atrás, pediu-lhe cigarros. Sentiu-se, por isso, mais íntimo ao ponto de ensaiar algumas vezes chamá-la pelo nome. Tomara até o cuidado de retirar a aliança sem aperceber-se da profunda marca deixada em seu gordo dedo esquerdo.
     — O que foi, Julio? — perguntou interrompendo a tragada.
     — Aquele homem que a senhora brigou naquele dia, está lá fora. Boto ele prá correr? — perguntou sentindo-se o seu protetor.
     "Deve ser o maldito calendário" — pensou.
     — Não, não — respondeu colocando o cigarro na boca e abanando a cabeça.   — Manda ele subir. Mas fique na porta.
     — Sim senhora — concordou fazendo uma espécie de continência satisfeito pela missão recebida.
     — A doutora mandou o senhor subir junto comigo — disse com arrogância ao dr. Wilson.
     — Então vamos lá "seu guarda" — disse com um cinismo não percebido por Julio.
     Subiram a escada e, alcançando a porta, Julio interrompeu-lhe a entrada.
     — Ele está aqui — comunicou prostrado mostrando-se em primeiro lugar.
     Com um sinal, Leila mandou que entrasse, ao mesmo tempo que esmagava o cigarro no cinzeiro.
     — Bom dia, "doutora" — cumprimentou com menosprêzo.
     — Alguma boa notícia, "doutor" Wilson? — devolveu-lhe a hostilidade.
     — A senhora já deve ter sido informada pelo doutor Carlos que...
     — Eu já sei de tudo — disse interrompendo-lhe bruscamente as palavras.
     O velhote, coçando o incipiente bigodinho, passou-lhe as cópias do alvará e do calendário de visitas.
     — É só? — perguntou dando por encerrada aquela visita querendo livrar-se logo daquele homúnculo suarento e de testa brilhante.
     — Bem, doutora, não é nada pessoal mas...
     — Não é uma ova! — respondeu tal como Vandenberg fazia quando estava muito aborrecido.
     O dr. Wilson levantou-se em tom ameaçador mas Julio prontamente interviu:
     — Algum problema, doutora? — perguntou torcendo para o velhote agredí-la e valorizar a sua intervenção.
     — O dr. Wilson está de saída — disse acendendo outro cigarro.
     — Espera um instante — protestou o velhote que ainda não combinara determi-nadas questões.
     — Ela disse de saída — ameaçou Julio cerrando os punhos desejando que o valetudinário reagisse.
     O dr. Wilson ainda fez um gesto ameaçador mas, vendo-se em desvantagem, preferiu sair. Porém, chegando à porta, ameaçou:
     — Não se esqueça: são somente mais 15 dias. 15 dias... — repetiu com um sorrisinho.
     Julio, deixando o indesejável fora das cercanias do Pueriso, mais que depressa voltou à sala de Leila. A porta não estava totalmente cerrada e, antes de anunciar-se, ficou parado, observando aquela por quem faria qualquer coisa. Mesmo nos filhos, já não pensava, tão envolvido que estava no seu mundo do faz-de-conta. Cada momento vivido desperdiçava imaginando-se em seus braços, correndo naqueles jardins embalado pelo coral das crianças e sob o aplauso de Vandenberg. Mas, na realidade, bastava-lhe um olhar..., um pedido...
     Costumava fingir não percebê-la para valorizar-se e obrigá-la a brincar: "Ei, não está me vendo?" E responderia fazendo-se de muito ocupado: "Puxa, desculpe mas..."
     Era frustrante vir trabalhar e retornar sem vê-la. Do seu carro, conhecia cada avaria..., cada mancha... Invejava o volante que recebia suas mãos... e, vez por outra, afagava-lhe a tinta empoeirada tomando-o como um fiel aliado, sempre pronto para anunciar a presença da sua divina dona.
     — O que há, Julio? — perguntou Leila ao vê-lo parado à porta.
     — Ah! — respondeu num susto. — Vim saber se a senhora precisa de mais alguma coisa. Aquele homem... ( aliou-se a ela sem mesmo saber-lhe a razão)
     — Não, não preciso de nada — respondeu coçando displicentemente a orelha.
     E, virando-se rapidamente em sua direção, perguntou:
     — Ah! Sim, que horas são?
     — São exatamente 10:15. — respondeu de imediato exibindo o grande relógio prateado de fundo amarelo.
     Sem agradecer, Leila pegou o telefone e discou para o banco.
     — Walter? — perguntou com um grande sorriso sentando-se na cadeira e cofiando a mecha de cabelo.
     — Claro que posso! Estarei aí dentro de uns vinte minutos.
     Julio, ao ouvir aquele nome masculino, viu sua alegria partir. Sentiu-se um enjeitado. Humilhado e tomado pelo ciúme, foi saindo mansamente e voltou à portaria. Doía-lhe a garganta. Teria agora que destruir cada santuário erigido em honra da sua deusa, o que seria muito difícil diante de tantos templos. Pensou na mulher, feia e gorda, cozinhando no velho fogão. Viu os filhos correndo no quintal da meia-água de fundos no longínquo subúrbio. Agora, nada de carros reluzentes, nenhum apartamento de cober-tura... e nenhuma viagem. Pensou no miserável emprego que amargava e na única felicidade, representada nas folgas dominicais, dia consagrado às cervejas e ao carteado.
     Foi com grande alívio que soube, naquela mesma tarde, que o contrato da firma de segurança fôra rescindido e aquele o seu último plantão no Pueriso.

     — Olá, Walter — cumprimentou transpondo a porta envidraçada da gerência.
     — Quanto tempo! — levantou-se dando-lhe dois beijos na face. — Nós só faze-mos conversar por telefone!
     — É. Esses aparelhos facilitam as nossas vidas mas afastam as pessoas — disse Leila reparando nas melhorias feitas na agência.
     — Sente-se enquanto providencio um cafezinho.
     — Obrigado. Puxa, o ar está ótimo!
     Walter voltou com uma garrafa térmica e duas xícaras. Serviu ambas e foi direto ao assunto:
     — Então vocês querem abrir uma conta especial para a campanha.
     — Não é idéia minha, mas de Carlos — desculpou-se levando a xícara à boca.
     — Talvez vocês consigam algum dinheiro de pessoas caridosas, mas os milhões de que precisam... — disse com acentuado ceticismo.
     — Eu sei disso. Mas você conhece bem o Carlos.
     — Sempre muito religioso...
     — Ah! — lembrou-se num rompante de memória. — O Vandenberg não esqueceu aquele empréstimo.
     — Não se preocupe, Leila, ninguém está me pressionando. Na verdade, os patrões estão mesmo interessados nos quadros hipotecados.
     — Pobre Vandenberg — lamentou Leila com olhar baixo. — Vai perder tudo, não é?
     — Parece que sim, Leila. A situação é irreversível. Mas talvez ele nem viva para mais este sofrimento. O Carlos me disse que ele piorou muito.
     O mútuo silêncio foi quebrado pela presença da secretária de Walter.
     — Aqui estão — disse a moça afastando a xícara e colocando os papéis sobre a mesa.
     — Obrigado, Sonja.
     — Que belo nome! — comentou Leila após a moça retirar-se.
     — Ela é norueguesa — explicou olhando em direção à secretária sentada nova-mente a sua mesa.
     — Mas com nome finlandês? — observou Leila.
     — Até agora ela não se queixou... — respondeu Walter sorrindo.
     Leila também riu.
     — Bem — disse Walter após assinar os papéis —, aqui está. Estas são as suas cópias. Agora assine aqui. Lembre-se de que você, por segurança, é a única com poder de movimentar essa conta.
     — Transferir uns trocados, se é isso que você quer dizer — disse Leila após assinar e guardar suas cópias na bolsa.
     — Agora vamos até aquela máquina e colocar a senha numerada. Depois, bem, aí é com vocês.
     Leila cadastrou a senha e despediu-se de Walter. Ainda passou pela mesa da secretária e brincou:
     — Gostei muito do seu nome. Se eu tiver uma filha ela se chamará Sonja. É assim mesmo que se pronuncia?
     A loura riu com graciosidade expondo a bela dentadura branca.
     — Na verdade, o dr. Walter insiste em pronunciá-lo errado — explicou Sonja.
     — O que dá um certo charme, não? — acrescentou Leila.
     Leila aproveitou sua estada no centro da cidade e decidiu tomar outras provi-dências pendentes por falta de oportunidade. Passou pela imobiliária e entregou as chaves do apartamento que não mais podia pagar, passando a morar no Pueriso. Vendeu também o carro e empenhou alguns valores e, por fim, resolveu entrar num cinema.
     
     O sol já se punha quando regressou ao Pueriso. Tomou algumas providências junto aos funcionários remanescentes e depois foi à casa de Pedro.
     — Pedro... — gritou na portas do barraco.
     Ouviu o latido do cachorro ao longe e, quando ia nessa direção, viu a figura do negro.
     — Ô negão! Estás escondido? — brincou simpática.
     — Oi, Leila — cumprimentou arriando o maço de capim que carregava.
     — Para que é isso? — perguntou curiosa.
     — Ah! — respondeu com o seu habitual sorriso — É pro Marquinho. Bem — consertou —, é pro coelho dele.
     — Ah! Sim — disse olhando novamente para o maço. — Mas Pedro, você sabe que a partir de amanhã não teremos mais os seguranças.
     — Sei sim. O Julio falou.
     — Ótimo! Não sabe aquele seu amigo? — perguntou receosa em entrar neste assunto conhecendo-lhe a suscetibilidade.
     Ah! — interrompeu com alegria. — Lembra daquelas pranta que tavam morrendo? Olha lá! — apontou para uma exuberante e viçosa folhagem. — Eu falei com ele e ele mexeu os dedo em cima delas e olha só. Tão lindas!
     — Está certo, Pedro — concordou ainda que incrédula e sem virar o rosto na direção apontada. — Eu queria te pedir para não deixar ele andar por aqui sozinho. Você promete?
     — Prometo, Leila. Tá bom. Mas ele é um bom moço.
     — O Ricardo também era...
     — Que Ricardo? — perguntou Pedro que nunca tivera contato com o contador.
     — Bem, deixa para lá. Mas você promete, né?
     — Eu já prometi — respondeu sem entender aquela preocupação.
     Leila afastou-se e segurou o focinho do cachorro que ameaçava morder sua meia, mas não sem antes olhar para as plantas que Pedro apontara.
     "Mexeu os dedos e pluft!" — esse Pedro tem cada uma...

     
     Passaram-se alguns dias.
     Os bens de Vandenberg são interditados e colocados à disposição da justiça até a conclusão do processo.
     A campanha é insipiente e demonstrava, apesar dos esforços de Carlos, que não levantaria sequer fundos para as despesas mais urgentes.
     O desânimo imperava.
     Somente Pedro e as crianças, poupados da dura realidade, continuavam a viver suas vidas de maneira tranqüila, não compreendendo o porque daquelas fisionomias sérias.
     Carlos e Leila reuniram-se para traçar o destino final do Pueriso e tomar algumas providências quanto aos bens de Vandenberg caso viesse falecer, hipótese mais provável.
     — Já que falamos tanto em Vandenberg, como está ele? — perguntou Leila.
     Carlos fez um sinal negativo com a cabeça antes de responder.
     — O dr. Junqueira foi franco, Leila. Não há muito o que fazer a não ser esperar o desenlace, ou ... um milagre.
     — E quanto ao Pedro e as crianças? — perguntou baixinho olhando para uma folha que balançava debilmente num galho próximo à janela.
     Carlos passou a mão no rosto e tomou uma inspiração.
     — Tenho um amigo que possui um sítio e já se dispôs a ficar com ele. Quanto às crianças... serão espalhadas por vários orfanatos, já que são muitas e não há um lugar disponível para colocá-las juntas — respondeu lembrando-se da ira de Vandenberg ao dar-lhe semelhante notícia.
     Carlos interrompeu-se ao ver Leila caminhar em direção à janela e secar as lágrimas que desciam com as costas da mão.
     — Continue — pediu com a boca trêmula e reunindo as últimas forças.
     Carlos respirou fundo e continuou:
     — Os animais do zôo irão para uma reserva. Serão os únicos que não sofrerão com a mudança — ironizou.
     Leila esboçou um leve sorriso.
     — A propósito, Leila, o secretário de abastecimento está inclinado a interpelá-la judicialmente. Ele está com a gravação da conversa que tiveram e bastante aborrecido.
     Leila, com a cabeça entre as mãos, quase nem se mexeu.
     — Mas está disposto a esquecer se você se retratar.
     Leila pensou nas crianças e na possibilidade de ainda receber os alimentos que pedira.
     — Está certo... — cedeu pegando o telefone pronta para se humilhar.
     — Mas você não vai ligar para aquele palhaço e se desculpar pelas verdades que falou — disse Carlos interrompendo a ligação. — Tenho alguns amigos influentes que já dissuadiram o idiota. Pelo que me disseram, ele até já engoliu a tal gravação — comple-tou pegando-lhe a ponta do nariz e rindo. — Ah! Antes que eu me esqueça, alguém fez uma compra das grandes que será entregue amanhã.
     — O que? — perguntou arregalando os olhos castanhos ainda avermelhados.
     — É isso mesmo! E será o suficiente para essas duas semanas. Um pequeno milagre — completou.
     — Mas quem fez essa compra? — perguntou com um turbilhão de nomes lhe passando a mente.
     — Não sei — respondeu com um gesto. — Seja quem for preferiu o anonimato. Mas foi bom ouvir isso de você.
     — Isso o que?
     — Você disse "graças a Deus" — respondeu levantando-se e pegando o paletó.
     — Eu não disse isso, Carlos.
     — Então pensei ter ouvido...
     
     Lorbus estacionou a pequena nave dentro do Pueriso mas optou em permanecer do lado de fora, na mesma praça que escolhera como ponto de embarque. Pela cigarra instalada no portão, solicitou à religiosa que chamasse Pedro, no que foi prontamente atendido.
     Tomaram o costumeiro chá e permaneceram em silêncio por alguns instantes, quando Pedro lembrou-se das plantas. Falou delas como se fossem humanas, demons-trando grande felicidade por estarem tão bem; vendo naquela recuperação a de Vandenberg. Findo o relato, Lorbus tomou a palavra e entregou-lhe o objeto dado pelo conselheiro de Pentátilis.
     — Puxa! Que bunito! É mesmo prá mim? — perguntou ainda incrédulo ante o pesado crucifixo de ouro trabalhado em pedras preciosas.
     — É todo seu — respondeu emocionando-se com a sua reação. — É o presente do nosso amigo.
     — Que amigo é esse que nem conheço e que dá um presente tão bunito?
     — Qualquer dia você vai conhecê-lo. Não se preocupe.
     — O Vanderbeg é que vai gostá. Se ele quisé posso dá prá ele? — perguntou na esperança de vê-lo novamente naquela cadeira tomando chá.
     — Claro que pode — respondeu com um sorriso. — Posso te pedir um favor? — perguntou apoiando os antebraços nas coxas.
     — O que quisé — respondeu sentando-se no catre barulhento com os olhos fixos no crucifixo.
     — Leve-me até Leila.
     — Sim, vamos lá — concordou guardando o presente na gaveta.
     Caminharam pelo bosque, em companhia de totó que corria à frente tentando pegar um dos muitos vaga-lumes, até chegarem ao pavilhão onde estava instalado o escritório de Vandenberg. Pararam sob a janela e Lorbus insistiu:
     — Vamos comigo, Pedro. Queria que ela me visse em sua companhia.
     — Não é preciso — disse Leila chegando à janela.
     Lorbus então subiu, enquanto Pedro voltava rapidamente pensando em rever o presente que tanto o emocionou.
     — Sente-se — determinou Leila com a fisionomia séria.
     Lorbus sentou-se e viu no canto o pára-quedas que esquecera-se de pegar.
     — Você andou sumido — observou Leila sentando-se à sua frente.
     — É verdade — concordou.
     — Nós abrimos uma campanha para arrecadar fundos e... — interrompeu-se ao notar Lorbus abstraído.
     — Perdão — desculpou-se ao perceber que estivera ausente.
     Leila acendeu um cigarro e continuou:
     — Eu estava dizendo que abrimos uma campanha para arrecadar fundos e pagar as nossas dívidas.
     — Dívidas que não contraíram. Não é?
     Ao invés de responder, Leila mudou de atitude e passou a hostilizá-lo:
     — Olha — foi dizendo com a fisionomia transtornada —, eu sou uma mulher vivida, experiente e provida de alguns neurônios. Sei perfeitamente quando alguém fala a verdade ou finge dizê-la. Eu não sei qual é a sua participação nessa história toda mas posso adiantar que nunca engoli a história do pára-quedas. Não houve nenhum lançamento naquele dia. Eu mesma verifiquei. Só acho que você está agindo de má fé e aproveitando-se da ingenuidade de Pedro, insinuando uma falsa amizade. Um homem de verdade não age desta forma, aproveitando-se dos outros para conseguir os seus intentos. Pense naquela pobre criatura e tenha um pouco mais de decência. Respeite a sua ignorância.
     E, mexendo na bolsa, continuou:
     — Da minha parte, não vou mais permitir que você pise nesta propriedade enquanto eu for a administradora, ouviu bem?
     E, ameaçadoramente, concluiu:
     — Eu sei muito bem como evitar que cafajestes como você se aproveitem da ingenuidade alheia.
     Lorbus ia dizer que tudo não passava de um grande engano. Mas como fazê-lo sem revelar-se a alguém fora dos padrões do cromaton?
     Leila, sem aperceber-se da sua momentânea reflexão, insistiu:
     — Vamos lá, não faça esta cara de marido traído que para mim não funciona. Levante-se e ponha-se daqui para fora — ordenou gritando e quase fora de si.
     Lorbus levantou-se e saiu seguido por Leila, que caminhava com fortes passadas denotando seu descontrole. Ambos chegaram ao portão mas foi Leila, adiantando-se, quem o abriu, batendo-o violentamente ao fechá-lo. Passou a chave e colocou o enorme cadeado, voltando de imediato para o escritório.
     Tentou concentrar-se no trabalho acendendo outro cigarro e olhou para o canto, vendo o pára-quedas embrulhado. Lembrou-se da fisionomia serena de Lorbus e do seu olhar, sempre meigo e que em nenhum momento retribuiu-lhe a hostilidade. Num ímpeto, sem saber exatamente se para devolver-lhe o pertence ou para arrepender-se, chegou até a janela na tentativa de vê-lo ainda no portão. Mas já era tarde...
     O silêncio da noite amargou-lhe ainda mais a solidão.
     
     Lorbus rumou para a mesma praça onde encontrara o bêbado. Estava triste, não exatamente com a atitude de Leila, mas com o que representava: o caráter das pessoas estava ligado ao que tinham ou nas respostas que podiam dar. O ser, na sua essência, não contava, ou, na melhor das hipóteses, estava muito abaixo das convenções sociais.
     Chegou à velha praça em ruínas que lhe pareceu mais triste mas não parou. Preferiu seguir o caminho seguido pelo bêbado, uma ruela estreita e escura. Saltou sobre valas e desviou-se do matagal quando cruzou à sua frente um menino coxo sangrando copiosamente.
     Lorbus percebeu-lhe a gravidade do ferimento.
     — Espere um pouco — disse para o menino que não parou. — Deixa-me ver a sua perna.
     — Não me bata mais, moço! — suplicou o negrinho deitando-se no chão imundo.
     — Eu não vou bater em você — acalmou com brandura. — Só quero ver a sua perna.
     — Não é nada, moço, só levei um tombo. Agora deixa eu ir — insistiu temendo ser encontrado e tomar outra surra.
     — Então eu levo você — insistiu tomando-o nos braços.
     — Não, moço — protestou o menino. — O senhor vai se sujar todo. Eu posso andar... — rogou sempre chorando.
     — Onde você mora? — perguntou ignorando-lhe os apelos.
     — Não vai lá não, moço, É muito perigoso.
     — Não se preocupe — disse sorrindo e tomando-o nos braços.
     Lorbus, seguido por alguns curiosos, carregou o menino até um barraco fincado perigosamente numa encosta.
     — É aqui — disse o menino apontando para o barraco.
     Uma negra gorda trazendo uma lata na cabeça aproximou-se.
     — Já aprontou mais uma. Né, Patinete? — admoestou colocando as mãos na cintura.
     — Eu caí, Mãe Preta.
     — Mintira! — afirmou a gorda com hálito de álcool abaixando a lata.
     E, virando-se para Lorbus, disse:
     — Só vive metido em confusão. Num güenta uma porrada!
     José era um menino frágil e de boa índole. Desde que contraíra a poliomielite, atrofiando-lhe a perna, ganhou o apelido de Patinete, pela maneira desajeitada que passara a andar. E, por não participar dos assaltos, era constantemente agredido pelos outros que o considerava um delator.
     Lorbus nem precisou do cromaton para ver-lhes as qualidades.
     — Pode deitá ele na sala — pediu a gorda apontando para um cubículo de terra batida infestado por insetos atraídos pelos restos de comida.
     Lorbus entrou e colocou o menino num canto que julgou menos sujo.
     — O Patinete morreu? — perguntou uma voz curiosa.
     — Num diz bestera — ralhou Mãe Preta arrastando uma cadeira e colocando sobre ela uma vela acesa.
     Lorbus examinou novamente a ferida e concluiu que logo se instalaria uma grande infecção se algo não fosse feito. Olhou em volta, como se procurando algo, e viu, pela janela de madeira podre, alguns narizes encatarrados e cabeças amareladas. Virou-se depois para Mãe Preta que parecia orar e pediu-lhe um pano úmido. Colocou-se de costas para a janela e digitou os microcircuitos. Esperou por alguns instantes e logo a poderosa fertílitis respondeu com sua irradiação terapêutica. Com o cromaton no rosto, viu o milagre da tecnologia em curso.
     — Aqui, dotô — veio Mãe Preta trazendo um trapo encardido embebido em água de qualidade duvidosa.
     Lorbus pegou o pano, espremeu o excesso e limpou o local da ferida, agora com uma leve cicatriz propositadamente programada.
     — Não era tão grave quanto pensei — disse levantando-se.
     Patinete olhou para a perna e sorriu com uma leve cumplicidade.
     — Tenho que ir — disse passando a mão na cabeça do menino.
     — Cuidado com os bandido, moço — advertiu Mãe Preta. — E muito obrigada — agradeceu sorrindo mostrando a boca desdentada.
     Lorbus desceu por um caminho escuro e acidentado, escorregando vez por outra sobre pedras lisas ou tropeçando em obstáculos até alcançar a parte plana, onde havia vários outros barracos. Chegou até uma improvisada ponte de tábua sobre uma vala e, antes de atravessá-la, foi barrado por dois homens.
     — É esse o gringo, Dentinho? — perguntou o mais magro de camisa aberta.
     — É ele mermo — respondeu cuspindo pela falha dentária e atirando na vala a ponta de cigarro.
     — Esse é esperto mesmo. Deixou a filmadora e a grana em casa — disse o magro coçando o pescoço suado.
     — Então vamo pegá o bobo — ordenou Dentinho olhando para o analisador de pulso. — Deve valê uma grana.
     Mal acabou de pronunciar, o magro esticou a mão e, num empurrão que derrubou Lorbus, alcançou-lhe o equipamento.
     — Dêssi eu nunca vi! — disse Dentinho virando a boca para o lado tomando-o para si.
     — Devolve, pôrra — irritou-se o magro.
     — Eu só tô vendo, merda.
     A discussão parou com a aproximação de um enorme negro, saído da escuridão.
     — O que é que tá pegando aí? — perguntou vendo Lorbus levantar-se.
     — Nada não, Furgão — respondeu o magro com inusitado respeito.
     — É isso aí, chefe — endossou Dentinho. — A gente só tava acharcando esse otário.
     Furgão virou-se para Lorbus que foi imediatamente seguro pelos dois.
     — Tá seguro, chefe — asseverou Dentinho torcendo-lhe mais fortemente o braço para trás.
     Furgão aproximou-se o mais que pôde e encarou o prisioneiro, afastando-se depois bem devagar.
     — Tira as pata dele — ordenou empurrando-os para trás e derrubando o analisa-dor em poder de Dentinho.
     Num gesto inesperado, baixou-se e pegou o objeto, entregando-o a Lorbus.
     — Safado eu conheço quando olho.
     Dentinho e Magriço entreolharam-se.
     — Vocês são dois babaca que não olha o que vê — disse balançando a cabeça com desprezo. — Vamos tomar um trago — convidou o desconhecido apontando a mesa da birosca miserável.
     Lorbus assentiu.
     — Zé — gritou com a sua voz alta e rouca. — Duas branquinha. Prá eles também — determinou apontando para a mesa em frente onde sentaram o Dentinho e o Magriça.
     Quase de imediato, um velhote barrigudo com uma toalha suja na cintura apareceu com dois copos engordurados e uma garrafa.
     — Passa a régua — ordenou.
     Mal o birosqueiro acabou de servir, Furgão, numa única golada, sorveu todo o conteúdo. Soprou devagar para baixo e olhou para Lorbus.
     — Você não bebe, gringo? — perguntou afastando o copo vazio.
     Sem ter tido tempo para analisar aquela bebida, arriscou:
     — Eu gosto da branquinha — disse imitando o gesto de Furgão e sorvendo de uma só vez a bebida.
     Furgão deu uma sonora gargalhada e virou-se novamente para o birosqueiro.
     — Zé. O copo do gringo furou.
     E beberam identicamente à vez anterior.

     — Ei, Furgão, não vai embebedar o anjo — gritou de longe um homem barbudo que Lorbus reconheceu.
     — Você conhece o Matusa? — perguntou surpreso.
     — Sim, conheci-o certa vez lá na praça.
     Furgão grunhiu algo ininteligível, balançou a cabeça e olhou para os lados. Tornou a olhar para Lorbus e, cerrando os punhos, perguntou:
     — Tá vendo tudo isso? — virou-se na cadeira apontando ao redor.
     Lorbus olhou novamente para os barracos mal plantados, o valão, as ruas escuras e esburacadas ladeadas por esgotos e deteve-se na montanha de lixo ao longe.
     — E então? — perguntou chamando o birosqueiro com um gesto. — Isso é lugar de gente morar? — perguntou novamente olhando de canto de olho para o barrigudo que servia.
     Aguardou o homem afastar-se e continuou:
     — Você acorda com cheiro de merda e olhando prá merda. Só pode sonhar com merda. Olha os barraco. As criança brinca com minhoca dentro dos barraco! Por isso tá todo mundo doente.
     E, vendo uma enorme varejeira pousada na cabeça encaracolada do Magriça, apontou:
     — Tá vendo? Até a mosca caga na nossa cabeça — disse espantando o inseto.
     Lorbus viu a mosca voar e alojar-se sobre um prato na mesa ao lado.
     — Você pensa que a gente gosta dessa vida ou tá acostumado? Nada disso! — respondeu ele próprio tomando o restante da bebida. — Mas quem pode pagá uma casa de gente com o salário que eles paga. É só o patrão disconfiá que tu tá na pior que a exploração aumenta. Aí num tem jeito. A gente tem que roubá senão morre de fome.
     Furgão mexeu-se incomodado pelo reduzido tamanho da cadeira e continuou:
     — Tem pilantra que se aproveita da miséria prá transá porcaria, mas isso é outro papo. A molecada fica injuriada com essa sacanage e em vez de ir prá escola fica por aí, ganhando mole e vendendo bagulho prá traficante. O pai sem emprego, a mãe lavando a ropa suja... Enquanto eles — disse apontando para as luzes da cidade ao longe —, tão gastando a grana e passeando de carro bonito. E a gente? — perguntou virando-se para Lorbus atento a narração e sem importar-se com a aparente prolixidade da linguagem. — Eles num sabe o que é pegá um trem lotado que nunca passa na hora...
     Furgão deu uma pausa e olhou para o birosqueiro que discutia com um bêbado e desistiu de pedir outra bebida. Virou-se para Lorbus e continuou:
     — É, meu amigo... — disse cerrando os punhos novamente — a dona Umbelina, que morava naquele barraco, morreu semana passada. Coitada! Veio do norte achando que ia ficá rica trabalhando... Se matô em casa de família a vida toda e quando morreu vagabundo ainda discutia se ela ia pro céu ou pro inferno. Acho que o diabo num ia ser tão mau fazendo um inferno pior que esse. E também, Deus num ia deixá.
     — Essas crianças estão na escola? — perguntou Lorbus lembrando das que vira pela janela.
     Furgão gargalhou.
     — Aquela escola toda bunita lá de baixo? — perguntou apontando a direção de uma à beira da estrada. — Só funciona quando tem visita de genti importante. Aí eles vem chamá a gente, dão cumida gostosa e deixa até as criança nadá na picina.   Mas só fica fechada...
     Furgão deu uma pausa como se estivesse lembrado de alguma coisa e levantou-se.
     — Ninguém bota a mão no anjo entendeu? — gritou colocando-lhe as mãos no ombro como símbolo de proteção.
     E, virando-se novamente para Lorbus, disse:
     — Pode andá sussegado que ninguém vai te acharcá.
     Depois, sumiu na escuridão.
     Lorbus levantou-se e despediu-se dos demais com um leve aceno de mãos, no que foi respeitosamente correspondido. Caminhou em direção à ponte onde fôra interceptado por Magriça e Dentinho e deparou-se com José, que desobedecera Mãe Preta para revê-lo.
     — Vorta aqui, demônio capenga — gritou a gorda do alto do barranco sem poder acompanhar-lhe a corrida.
     Lorbus tomou o menino pela mão e levou-o de volta até a mulher.
     — Cuida bem dele — pediu chegando até a gorda que secava a testa com o antebraço.
     — Craro dotô.
     — Qualquer dia eu volto para darmos um passeio, tá? — prometeu ao menino dando-lhe um forte aperto de mão. Depois afastou-se comandando a pequena miz pelo microcircuito. Chegou ao local eleito como ponto de embarque, na parte mais escura da praça, e embarcou rumo à fertílitis.

     Leila mal acabara de tomar o café da manhã quando viu os homens do dr. Wilson. Conteve o ímpeto ao ver o velhote com o esboço do projeto ensaiando a destruição que pretendia levar adiante.
     Era apenas uma questão de dias.
     "Filho da puta..." — disse baixinho ao seu cumprimento, subindo rapidamente para o escritório.
     O velho, sabendo que ouviria, escarneou como vingança:
     — Essa pocilga — apontou para o pavilhão onde se encontrava o dormitório das crianças —, será derrubada tão logo fique pronto o banheiro dos operários.
     A gargalhada foi geral, principalmente, porque ele era o chefe.
     Leila chegou à janela, mas sua gélida fisionomia só fez aumentar ainda mais o prazer do sexagenário.
     Ao final do dia, resolveu dar o que seria, talvez, o último passeio pelo Pueriso. Caminhou pelo bosque e, coincidentemente, parou sobre o mesmo montículo que Lorbus escolhera para ver o seu primeiro alvorecer. Permaneceu no lugar até o sol gentilmente ceder o céu às estrelas e lembrou-se de Vandenberg tentando mostrá-la, através do pequeno telescópio que mantinha no escritório, alguns planetas e constelações. Olhou para cima e deu um pequeno mas triste sorriso ao lembrar-se da emoção de ter visto, pela primeira, vez júpiter e suas luas. "Ah! Para mim é um monte de estrelinhas juntas" — dizia toda vez que ele tentava mostrar-lhe alguma figura nas constelações.
     Uma lágrima desceu no seu rosto ao lembrar-se ainda daqueles dias felizes em que acreditavam estar plantando, em definitivo, as sementes que um dia herdariam e mudariam o planeta. Na volta, resolveu passar em casa de Pedro.
     Aproximou-se do barraco e estranhou a atitude de totó, deitado e imóvel. "Deve estar doente" — pensou ao ver Pedro sentado ao lado do animal inerte.
     — O que aconteceu, Pedro? — perguntou ajoelhando-se ao seu lado sem importar-se com a roupa.
     — Aqueles hômis... — respondeu com certa dificuldade.
     — Que homens? O que fizeram? — perguntou sacudindo o velho.
     — Vão dirrubá o barraco... — disse aos soluços.
     Leila baixou a cabeça tentando encontrar algum consolo, mas encontrava-se vazia.
     — Um dêlis — continuou o velho interrompendo-se a todo momento pela emoção —, quis arrancá a porta dizendo que tava mesmo podre e totó num gostô e quis mordê ele. Aí veio outro e chutô sua barriga com força. Totó rolô no chão gritando e eli chutô novamente. Se num fosse o trovão acho que elis ia matá ele.
     Leila olhou penalizada para o animal que, embora com dificuldades, ainda respirava. Estranhou também o relato sobre o trovão já que o dia estivera o tempo inteiro claro e sem nuvens.
     — Eu vou chamar o médico de cachorro — prometeu sem importar-se com o custo extra. — Ele vai curar o totó.
     — Num vai adiantá, Leila. Eu sei. Olha que eli tá todo inchado. Quando fica assim é qui vai morrê... E agora eu já sei de tudo. Elis vão comprá tudo e tirá a gente daqui. Eu sei qui num é mentira...
     E, olhando para o céu, continuou:
     — Só quiria que o meu amigo tivesse aqui...
     — Olha, Pedro...
     — Eu sei qui você num gosta dêli... — interrompeu.
     Leila não insistiu.
     — O que é isto na sua mão? — perguntou olhando para o crucifixo que Pedro passava sobre o corpo do animal.
     — Foi um presente que eli mi deu — respondeu apertando-o mais fortemente.
     — Posso ver? — perguntou mal acreditando no valor incalculável que aquele objeto representava.
     — Podi — respondeu mais preocupado no gemido que o animal acabara de dar.
     Estupefata, examinou-o minuciosamente, apesar da pouca luz.
     — Ele te deu isso? — perguntou mais uma vez sem entender a razão de tal atitude.
     — Deu — respondeu afagando o animal que se aquietara novamente.
     — Pedro, isto vale muito dinheiro. Você pode vender e comprar uma casa grande e enchê-la de cachorros...
     — Eu num quero nada disso! — respondeu tocando o ventre do animal cada vez mais edemaciado. — Só quiria o Vanderbeg aqui junto do meu amigo e o totó cheio de carrapicho, correndo atrás dos vaga-lume. Isso vale tanto?
     Leila assustou-se com o lampejo que vira no interior do negro. Engoliu uma saliva seca e levantou-se com o pesado crucifixo nas mãos.
     — Você me empresta? — perguntou com a intenção de avaliá-lo e garantir-lhe um final de vida tranqüilo.
     O negro balançou positivamente a cabeça.
     Mal Leila se afastou, Pedro levantou-se e foi em direção às plantas de Vanden-berg, agora belas e verdejantes, e rezou profundamente. Englobou em preces simples, a saúde de Vandenberg, de totó... e o Pueriso.
     Leila ainda vagou solitária por muito tempo, até voltar ao escritório. Subiu as escadas devagar e, sem acender a luz, deixou-se cair pesadamente na poltrona. Ficou assim por alguns minutos olhando para aquele crucifixo até decidir-se olhar à sua volta. Virou-se para o lado e viu o sinal luminoso da secretária eletrônica piscando. pregui-çosamente, apertou o botão e preparou-se para as má notícias: era Walter.
     "Que diabo de urgência é essa?" — perguntou-se ao fim da mensagem.
     Pegou o telefone e ligou de imediato.
     — Walter? É Leila. O que está acontecendo?
     — Leila — respondeu nervoso —, a campanha está recebendo um enorme fluxo de dinheiro.
     — O que? — perguntou trocando o fone de mão e levantando-se de imediato.
     — É isso mesmo! — confirmou. — Não para de chegar dinheiro!
     — Como assim, Walter?
     — Sei lá! De toda a parte do mundo. Estamos tentando identificar os doadores, mas até agora, nada.
     — Não estou entendendo, Walter — disse nervosa.
     — Nem nós! Todas as doações vêm de contas numeradas. Contas secretas! — enfatizou.
     — Amigos ocultos? — perguntou com um nó na garganta.
     — Não creio — respondeu gaguejando.
     — Como assim?
     — Não sei, é só um palpite. Mas acho que algo de estranho está acontecendo.
     Sem importar-se com aquelas ponderações, Leila perguntou:
     — Quanto já temos?
     — Até o fechamento da agência, já tínhamos ultrapassado os 5 milhões! Amanhã vamos ter uma reunião no banco para examinar melhor essas doações, pois os agentes financeiros estão desnorteados. Acho que o mundo enlouqueceu — disse despedindo-se.
     Mal desligou, entrou em contato com Carlos.
     — Oi, Leila — atendeu com a voz animada. — Já sabe das novidades?
     — Acabei de falar com o Walter. Não é fantástico?
     — Para mim que acredito em milagres, não — brincou.
     
     O dia seguinte terminou frenético. A campanha atingira o patamar dos 30 milhões e, estranhamente, não caíra em domínio público.
     — Nem uma frase nos jornais — comentou Walter. — A comunidade financeira está absorvendo toda a informação e nós estamos proibidos de falar. Pediram encareci-damente para vocês nada comentarem até que tudo esteja esclarecido.

     No dia estipulado para o pagamento, a soma atingira os 50 milhões e manteve-se inalterada. Cessara o fluxo tão repentinamente quanto começou.
     Em sua fortaleza, na cúpula de uma torre que dominava a cidade, o dr. Wilson não se conformava.
     — Isso não é real. É tão somente um golpe contábil — dizia nervoso aos sócios do empreendimento enquanto se arrastava pelo felpudo tapete do luxuoso escritório.   — Isso é alguma tramóia daquela bruxa com aquele homossexual. Mas não se preocupem que eu vou descobrir tudo antes que façam a transferência para a nossa conta.
     Mas o que há de tão mal nisso? — perguntou um dos sócio sem entender.
     — Tudo! — respondeu Thompson, intermediário do golpe. — Acontece que se esse dinheiro for depositado até às 17 horas de hoje, a execução estará automaticamente suspensa.
     — E quem fica com ele? — perguntou ainda sem entender.
     — O Wilson é o síndico da massa falida e avalista do golpe. Sem o dinheiro, ele assume as dívidas e fica com as terras do orfanato, que é o que estamos querendo para iniciar nosso projeto.
     — Continuo sem entender... — repetiu o sócio.
     — É simples — recomeçou Thompson enquanto o dr. Wilson passava por eles em direção a outra sala: — se eles pagam, o Wilson tem que repassar o dinheiro para todos os credores e, principalmente, para o fisco, maior credor. O restante... bem... o restante é para os que "facilitaram" os trâmites. Parece ironia, mas nunca se desejou tão pouco tamanha quantia...
     — Mas de qualquer forma ele não teria que repassar esse dinheiro? — insistiu o sócio.
     — Naturalmente.   Mas com os lucros. Quanto aos impostos, isso ficaria para a gestão do prefeito que ele ajudou a eleger...
     — Agora entendi — disse finalmente. — Então ele terá que evitar de qualquer maneira o recebimento desse dinheiro.
     — De qualquer maneira! — enfatisou Thompson olhando para o dr. Wilson que voltara e acompanhava o final da explicação.
     — Chefe. É urgente! — gritou um funcionário com um fax na mão.
     — Não vê que eu estou ocupado? — respondeu o velhote irritado.
     — É a sua informação urgente — voltou a insistir o funcionário tentando parecer discreto.
     — Um momento — desculpou-se o dr. Wilson abandonando a sala e tomando o papel do funcionário com um ruído.
     Não demorou muito voltou encontrando Thompson falando ao celular. Esperou nervosamente terminar a ligação e, quando ia reiniciar a reunião, Thompson perguntou:
     — Quer que eu adivinhe o conteúdo do fax?
     Depois sorriu com ar insolente guardando o telefone na maleta.
     O dr. Wilson sentou-se boquiaberto.
     — Que tanto suspense é esse, Thompson? — perguntou novamente o sócio.
     — Acabo de confirmar que eles já podem dispor do dinheiro.
     A notícia caiu como uma bomba.
     O sócio olhou pesarosamente para o dr. Wilson e virou-se para Thompson que reabria sua maleta pegando uns papéis.
     — Mas ontem só tinham...
     — Eu sei — disse Thompson alisando o couro da maleta e olhando para os papéis que tirara dela. — Mas isso foi ontem...
     — É alguma manobra — insistiu novamente na sua tese. — Ninguém levanta tanto dinheiro assim em tão pouco tempo. Ainda mais para uma causa dessa!
     — Eu sei — repetiu Thompson. — Aqui está o nosso contrato — disse colocan-do lentamente sobre a mesa os papéis que estavam em suas mãos. — Se até o fim da noite eles não efetuarem o pagamento, nós assinaremos. Senão...
     O dr. Wilson sabia perfeitamente que se aquele contrato não fosse assinado, estaria arruinado. Empenhara tudo para tornar-se sócio do maior empreendimento imobiliário do país. Agora, com muita sorte, pegaria uns dois anos de cadeia e depois sairia para ser, mais tarde, um velho desempregado; objetivo bem diferente daquele que se propusera quando negociou com Ricardo. Era, portanto, imperioso o bloqueio daquele depósito.
     — Bom... — disse Thompson levantando-se. — Já tem a nossa palavra.
     Saiu e foi seguido pelo sócios, deixando o velhote com ar distante.
     — O que vamos fazer? — perguntou o dr. Wilson com ânsia de vômito.
     — Vamos ter que impedir esta transferência, chefe — respondeu o gordo com o cigarro apagado no canto da boca.
     — Como? — perguntou o velhote olhando o contrato em branco sobre a mesa.
     Carlos, num animado telefonema, instruía Leila de como faria o depósito, dando o número da conta credora. Ao final, brincou:
     — Vá com calma, menina. Você vale o Pueriso.
     Tentando controlar a efusão e manter-se calma, Leila foi banhar-se. Aprontou-se, pegou os documentos no cofre e viu o crucifixo de Pedro guardado.
     A lembrança do velho e seu cachorro ofuscou-lhe a euforia.
     Pelo menos a sua moradia estava garantida e, quanto ao cachorro, deixaria passar alguns dias e lhe traria um filhote que, fatalmente, conquistaria-lhe o coração. "É isso mesmo! Ninguém resiste a um filhote de cachorro." — disse para si contente com a decisão que tomara.
     Olhou para o relógio da parede e viu que tinha ainda algum tempo antes da agência abrir, embora Walter já estivesse a postos aguardando a sua presença. Foi ao barraco de Pedro e encontrou-o mais confortado, embora houvesse tristeza em sua fisionomia.
     — Oi, Pedro — cumprimentou com um largo sorriso.
     — Olá — respondeu sem muita emoção regando as rosas como uma última homenagem.
     — Pedro — chamou com olhar de menina levada. — Aqueles homens não vão mais tirar a gente daqui!
     O rosto do velho voltou a iluminar-se, esboçando novamente seu habitual sorriso.
     — Elis num qué mais? — perguntou surpreso sem entender aquela súbita mu-dança.
     — Depois eu conto tudo — respondeu admirando o roseiral e lembrando-se do crucifixo. — A propósito, depois eu devolvo o seu presente.
     — Num tem pressa — disse olhando para o barraco como se o tivesse readqui-rido.
     Leila não vira o cachorro e receou perguntar por ele. Disfarçadamente, olhou ao redor procurando algum vestígio de terra removida, mas acabou não resistindo:
     — Onde está o cachorro?
     Pedro coçou a cabeça grisalha e, embaraçado, olhou para cima.
     — Num fica chatiada não, Leila. Mas eu rezei e eli veio e levô o totó.
     — Não entendi — disse com uma interrogação na testa.
     — O meu amigo veio e levô o totó. Eli tava morrendo aí eli apareceu e disse que podia salvá.
     — E levou para onde?
     — Num sei. Mas eli volta — respondeu dando de ombros.
     — Tá bem, Pedro — disse meio aborrecida. — Depois a gente conversa.
     Tocou-lhe o ombro e afastou-se rapidamente em direção ao escritório para chamar um táxi. Estranhou a porta semi-aberta mas mesmo assim entrou.
     — Olá menina malcriada — cumprimentou o dr. Wilson que, juntamente com os seus homens, a aguardavam.
     Antes que pudesse esboçar uma reação, um dos homens rapidamente trancou a porta.
     — O que vocês querem? — perguntou ofegada pelo susto aproximando-se da sua mesa.
     — Calma... — respondeu o dr. Wilson com um olhar maldoso fingindo examinar a biblioteca. — Só queremos conversar um pouquinho... digamos... até amanhã.
     — Ouvi dizer que você é boa de briga — disse um dos homens fazendo-lhe alusão à faixa roxa que ostentava em judô. — Quer tentar comigo? — desafiou mordendo os lábios maliciosamente.
     Leila não respondeu. Deixou apenas sua mão deslizar para a gaveta da escriva-ninha.
     — Se é isso que está procurando... — disse o dr. Wilson com a arma na mão.
     — O que vocês querem afinal? — perguntou novamente sentindo o pânico tomar conta dos seus sentidos.
     — Fale baixo, pois assim você vai acordar as criancinhas — respondeu cínico o velhote.
     — Seu crápula sujo — gritou mais alto aproximando-se do velhote e reunindo as últimas gotas de coragem que lhe acudiram.
     O velhote desferiu-lhe um violento tapa no rosto. Antes mesmo da dor chegar-lhe ao cérebro, foi contida pelos outros dois.
     Leila ficou paralisada pelo medo. Seu único movimento foi um tímido mover de língua sobre o lábio ardido, sentindo um gosto de sangue.
     Com um movimento rápido, os homens colocaram-lhe uma mordaça e amarra-ram-lhe as mãos.
     — Fique bem quietinha. Você morta não nos interessa no momento — disse o dr. Wilson segurando-lhe os cabelos com força.
     Leila contraiu-se pela dor.
     — Meu bem — fingiu agora num ar paternal —, estamos abrindo uma conta em seu nome, no mesmo paraíso fiscal do Ricardinho. Lembra dele?
     Leila ouvia mas não podia acreditar que aquilo estava realmente acontecendo.
     — Nosso plano é bastante simples — continuou o dr. Wilson sentando-se sobre a mesa e derrubando o vaso de plantas. — Desculpe o mau jeito — disse enxugando-se com uma folha de papel enquanto um dos homens a colocava à sua frente.
     — Como eu disse, o plano é bastante simples. Você não aparece para fazer a transferência e nós assumimos. Depois divulgamos discretamente a sua cumplicidade, obviamente mostrando o número e o valor da sua conta. Então a soltamos por aí, livre e rica... Como vê, ilícito mas não ilegal — finalizou dando-lhe um tapinha na cabeça.
     — Joaquim — chamou um dos homens próximo à fresta da janela entreaberta.
     — Sim, chefe — respondeu servilmente fechando-a e aproximando-se do velhote.
     — Quais as nossas opções agora que a temos? — perguntou olhando para Leila que parecia querer despertar de um pesadelo.
     — Daqui para o aeroclube é só um pulo. Tenho lá alguns amigos que transpor-tam bagulhos e não se importariam em levá-la para fora do país. Embarcamos hoje e amanhã ela acorda num cinco estrelas com o bolso cheio e tendo muito a explicar — respondeu rindo com auto orgulho.
     — Não me parece uma boa idéia — contestou o velhote. — Aquele maldito advogado vai mover céu e terra se ela não aparecer no horário combinado. Ele é bem influente — finalizou olhando pela fresta da porta semi cerrada.
     — Então vamos levá-la para o canteiro de obras. Lá nunca irão procurá-la — sugeriu novamente Joaquim olhando-lhe parte dos seios através da blusa desabotoada.
     — Em pleno dia? — perguntou o velhote reparando naquele malicioso olhar.
     — É. Vamos trazer um daqueles caixotes e colocá-la dentro. O importante é não sermos vistos com ela — planejou imaginando-se com Leila num quarto dando vazão à fantasias eróticas.
     — Certo, chefe? — perguntou o outro concordando com o colega.
     — Está bem — aceitou sem entusiasmo.
     Leila, ainda torporosa pelo medo, ouviu-o combinar pelo telefone os detalhes da sua remoção:
     — E tragam a caixa do transformador na caminhonete — finalizou.
     O ruído do relógio na parede só se misturava aos passos de Joaquim que não lhe parava de olhar a blusa semi-aberta.
     Uma hora depois, uma viatura chegou.
     — São eles — informou Joaquim interrompendo suas passadas.
     — Vá certificar-se — ordenou o velhote ao outro que fumava um cigarro pego na bolsa de Leila.
     — São o Valdo e o Roberto — informou após breve ausência.
     — Ótimo! — disse o velhote esfregando as mãos. — Reforce bem essas amar-ras. Seria o cúmulo perder o negócio por causa de uns gritinhos histéricos.
     Os dois homens subiram trazendo a caixa de madeira.
     — Trouxeram até a palha — elogiou o velhote pegando um pouco nas mãos.
     — O conforto dos passageiros em primeiro lugar — brincou Valdo provocando risos.
     — Psiu — resmungou o velho pedindo silêncio. — Vamos colocá-la logo aí dentro e darmos o fora.
     — Vamos lá, gatinha — disse Roberto empurrando-a para dentro enquanto os outros tratavam logo de pregar a tampa.
     Na escuridão daquele exíguo espaço e ainda coberta pela palha, Leila nada pensava. Completamente torvada, somente sentia os balanços e as curvas que se su-cediam até a total parada do veículo. Sentiu-se depois removida, arrastada e, finalmen-te, colocada em um ponto fixo.
     — Chegamos — gritou uma voz acompanhada por uma forte batida na madeira.
     Viraram a caixa e ela saiu com dificuldades.
     Ainda coberta pela palha e levantando-se aos tropeções, ouviu as palavras do dr. Wilson:
     — Vamos fazer um acordo, mocinha: eu mando tirar a mordaça e as amarras e você fica quietinha. Mas se bancar a valentona vai ter que fazer xixi na calça. Tudo bem?
     Leila balançou a cabeça afirmativamente e os homens retiraram as contenções.
     Rapidamente, fechou a blusa frustrando os olhares de Joaquim, apesar do pouco comando que tinha sobre os membros gelados devido à tensão das cordas e ao medo.
     O esparadrapo foi retirado com tal violência que alguns fios de cabelo foram arrancados, provocando-lhe um gemido.
     — Se quiser posso ser mais carinhoso — disse Joaquim tentando tocar-lhe o corpo balançando ainda o esparadrapo na mão.
     — Deixe-a — gritou irritado o velhote. — Não é hora para essas coisas.
     Joaquim afastou-se e Leila foi trancada em um quarto miserável, mal iluminado e sem janelas. Felizmente, havia um banheiro que ela se utilizou sem dar importância à imundície que se encontrava.
     Seu pudor estava completamente arrefecido.
     Sentou-se no chão olhando os sulcos nos punhos provocados pelas cordas e assim permaneceu vendo o tempo escoar.
     Enquanto isso, Walter estava quase fora de si.
     Nervoso por causa das constantes reuniões que participara e, principalmente pela falta de notícias de Leila, já não sabia o que responder ante os insistentes telefonemas de Carlos.
     " Mas em que diabo de lugar está metida?" — perguntava-se nervoso.
     Sonja trazia as orelhas vermelhas, tantas vezes que telefonava.
     — Não respondem, dr. Walter — dizia também em desespero a cada número que discava.
     — Insista. Vai insistindo. Alguém deve tê-la visto.
     Carlos já acionara todo o aparato policial, graças aos contatos que possuía, e a cidade inteira estava sendo vasculhada.
     Era quase meio dia e o tempo corria sem piedade.
     — Walter, convença o banco a fazer-nos um empréstimo — suplicava Carlos num dos seus telefonemas.
     — Não podem, Carlos — lamentava. — Os diretores estão morrendo de medo. Esta situação é inédita... Não temos nenhum precedente para basear-nos e...      
     — Mas não temos o dinheiro? — interrompeu irritando-se com a negativa.
     — Sim, mas somente Leila pode retirar. Qualquer procedimento fora da rotina demoraria mais de um dia. Lembre-se de que há uma senha numerada que somente ela sabe — justificou. — Sinto muito, Carlos. Mas está fora do meu alcance...
     Inconformado, foi ao juiz da causa pedir um adiamento de, pelo menos, um dia, alegando o desaparecimento do titular da conta.
     — Veja, excelência, temos como honrar nossas dívidas.
     — E se ela resolveu ir embora com o dinheiro? — retrucou o magistrado. — Não está em seu nome?
     — Mas ela não faria uma coisa dessas...
     — Eu sei. Como homem, posso até concordar com o senhor, doutor; mas como juiz, não. Sinto muito, dr. Carlos, mas o prazo deverá ser mantido — sentenciou o juiz passando as mãos no rosto e sepultando-lhe as últimas esperanças.
     Com o ânimo abalado, dirigiu-se à agência credora e procurou o gerente:
     — E então? — perguntou sobre a transferência.
     — Até agora nada — respondeu com um lamento facial. — Mas o que está acon-tecendo que ela não transfere logo este dinheiro? O prazo está se esgotando.
     — Eu não tenho a menor idéia — respondeu Carlos olhando para a tela do termi-nal. — Mas se eu conseguir provar que foi por força maior, ainda poderemos ter uma chance.
     — Estamos todos torcendo por vocês — disse o gerente apontando para os fun-cionários que a todo instante consultavam a tela especialmente preparada para anunciar a transferência.
     E, virando-se novamente para o advogado, convidou:
     — Vamos lá, Carlos, sente-se numa dessas mesas e fique de olho na tela. Vou despachar mais alguns papéis e logo juntar-me a você para torcermos juntos. Que tal?
     Impotente, resolveu aceitar a oferta e sentou-se bem em frente à tela esverdeada que insistia em mostrar o saldo zerado.
     — Essa parte branca começará a piscar se a senha for digitada para qualquer movimento — explicou um dos funcionários que, como os demais, viam-na como um placar de um emocionante final de campeonato.
     
     — Hora de comer — disse Valdo entrando enquanto Roberto, armado, postava-se à porta.
     Leila fechou os olhos feridos pela súbita luminosidade. Olhou instintivamente as horas no relógio de Valdo e seu desespero aumentou: faltavam pouco mais de uma hora para o encerramento oficial do prazo. Pensou em fazer qualquer loucura obrigando-os a atirar e, quem sabe, matá-la. Assim, frustraria as expectativas dos seus raptores e salvaria o Pueriso. Mas não teve a necessária coragem e obedeceu candidamente as ordens.
     Subitamente, começaram algumas explosões.
     Os homens correram para fora deixando-a só.
     " O que será que está acontecendo?" — perguntou-se assustada.
     — Rápido, rápido. Por ali! — ouvia o gritar nervoso enquanto os tiros conti-nuavam.
     — Joaquim foi ferido! — gritou Valdo passando pela porta correndo sem sequer olhar para dentro.
     "Graças a Deus, é a polícia" — suspirou aliviada quando viu o dr. Wilson e seus homens sendo conduzidos para o pequeno quarto em que estava.
     — Que polícia eficiente! — disse quase aos prantos dirigindo-se para a porta.
     — Ele só não falou que era bunitona! — disse rindo-se um dos homem.
     — Vocês não são da polícia? — perguntou assustando-se mais uma vez.
     — Não, moça. Mas um amigo pidiu prá nós fazê o favor de levá você num ban-co. E é isso que vamos fazê — disse Furgão dando um sinal para Dentinho:
     — Tranca esses panacas e vamos saí batido.
     Entraram os quatro num carro e partiram a toda velocidade.
     Furgão, ao perceber Leila tentando ver a hora no painel enguiçado, acalmou-a:
     — Dexa comigo, moça, que vai dá tempo.
     — Como vocês me acharam? Como me descobriram?   Quem mandou vocês? — perguntou segurando-se no banco tal era a velocidade imprimida.
     — Calma, uma pergunta de cada vez — respondeu Furgão entrando ruidosa-mente numa curva e quase subindo a calçada. — O seu amigo — respondeu com natu-ralidade.
     — Mas que amigo? — perguntou pensando em Carlos.
     — Qual é mesmo o nome do anjo? — perguntou ultrapassando um caminhão cuja carroceria Leila viu a apenas alguns milímetros do rosto.
     — Não sei — respondeu Dentinho segurando-se no Magriça. — O Matusa nunca falou.
     — Então eu não sei — devolveu Furgão entrando noutra curva como um aluci-nado e buzinando sem parar.
     — Como é ele? Como é ele? Pelo menos viu a cara dele? — repetiu recusando-se a olhar para frente tal era a quantidade de obstáculos a transpor.
     — Claro! — respondeu Furgão divertindo-se com seu medo.
     — Então me diga. É muito importante — suplicou.
     Mal Furgão começou a descrevê-lo, Leila empalideceu e logo percebeu de quem se tratava.
     — Ele disse que o serviço valia... Esqueci. Quanto é mesmo que o anjo disse? — perguntou para o Magriça.
     — Ele escreveu aqui — respondeu tirando do bolso um papel amassado e pas-sando-o para Leila.
     — Ele disse para mim que o serviço valia isso e disse que você pagaria sem chiar — endossou Furgão olhando rapidamente para o papel.
     — Claro... — respondeu num gaguejo.
     — Chegamos! — disse Furgão parando próximo ao banco. — Dentinho, acom-panha a moça e pega a nossa grana. Esse foi o trato.
     Ambos desceram rapidamente e correram em direção da agência.
     Walter, vendo Leila naquele estado e ainda em companhia suspeita, fez soar o alarme.
     — Calma que está tudo bem — disse com toda a força do seu temperamento despertando a curiosidade nos correntistas que lá se encontravam. — Passe-me a máquina. Rápido. — determinou ao caixa sem sequer respeitar a fila.
     Como o homem hesitava, Walter, saindo completamente das suas característi-cas, explodiu:
     — Entrega logo esta porra! — ordenou apontando para a máquina.
     Leila procurou nos bolsos o código da senha e, achando-o, digitou a seqüência quase sem pensar. Inserido o último número respirou fundo e, numa emoção incontida, gritou apertando a tecla para a entrada dos dados:
     — Toma, seus filhos da puta!
     — Está vindo! — gritou um funcionário do banco credor olhando firmemente para a tela que começara a piscar.
     Carlos levantou-se mal acreditando que o milagre estava se concretizando.
     — Está vindo! Gritou novamente chamando a atenção de todos na agência que pararam o serviço para acompanhar a entrada daquele tão esperado depósito.
     Ficaram assim com os dedos cruzados enquanto a tela continuava a piscar até que o primeiro número apareceu. Carlos, com a garganta seca, aguardou o que pareceu uma eternidade pelo segundo algarismo. Os números sucederam-se até formar a tão esperada combinação.
     — Completou! — gritaram em coro alguns funcionários com lágrimas nos olhos e sabedores da importância daquele dinheiro.
      Logo, a agência foi tomada por uma enorme euforia quando, finalmente, o depó-sito se concretizou em tempo hábil.
     — Está feito — disse o gerente segurando Carlos pelos braços. — Está feito.
     De imediato, apareceu um copo contendo uma bebida que ninguém soube precisar de onde surgira, mas foi bem vindo.
     — Me dá essa quantia em dinheiro, Walter — pediu Leila passando-lhe o papel amassado.
     — É exatamente o que sobrou — observou o gerente conferindo o saldo.
     — Então passa logo, merda! — pediu com bom humor.
     Walter sinalizou para o caixa, que nada estava entendendo, autorizando a retirada.
     — Aqui está — disse nervoso passando-lhe o dinheiro numa sacola.
     Leila pegou o volume e saiu em companhia de Dentinho.
     — Depois eu explico — disse piscando com um sorriso.
     Caminharam até o carro e, quando ela fez a entrega da sacola para Furgão, surgiu a polícia.
     — Foi uma cilada! Foi uma cilada! — gritou Dentinho atirando-se dentro do carro pela porta traseira.
     Trazidos pelo alarme acionado por Walter e vendo a administradora do Pueriso em companhias tão pouco recomendáveis, o delegado não teve dúvidas para agir.
     — Saiam com as mãos para cima — ordenou certificando-se de que seus homens já estavam em posição.
     — Guarde esta merda! — gritou Furgão vendo o Magriça abaixar-se e pegar na arma. — Num tá vendo que é isso que eles tão querendo?
     — Mãos para cima é uma ova! — interferiu Leila colocando-se na linha de fogo.
     — Saia daí, doutora — ordenou o delegado.
     — Vocês não entendem. Foram eles que me ajudaram a fugir.
     — Não precisa mentir, doutora, eles já estão sob mira — disse o delegado certi-ficando-se novamente da posição dos atiradores.
     — Não estou mentindo — gritou mais alto. — Os verdadeiros bandidos estão trancados nos galpões da construtora à beira do canal.
     — Doutora! — gritou o delegado perdendo a paciência e vendo a aglomeração se formar. — A senhora está impedindo a ação da lei.
     — Os bandidos estão lá, merda! — gritou histérica apontando em direção ao canal.
     O delegado ia dar um sinal qualquer, percebido por Leila, que num gesto de extrema coragem abriu a porta do carro e tomou a direção.
     — Chega esse rabo prá lá! — disse para Furgão que, num pulo, caiu para o outro lado.
     Engatou a primeira marcha e desafiou:
     — Vão atirar em mim?
     — Saia daí — insistiu pela última vez o delegado.
     Leila arrancou com o carro a toda velocidade, atingindo uma das viaturas e ainda quase atropelando o delegado.
     — Merda de mulher maluca! — gritou socando o carro avariado. — Vamos até o maldito canal — ordenou.
     Furgão virou-se para trás vendo o irado delegado e deu uma ruidosa gargalhada, enquanto brincava com a sacola nas mãos.
     — Isso é que é mulher! — disse dando-lhe um tapinha nas costas.
     Quilômetros à frente e vendo-se em segurança, parou.
     — Agora é com vocês — disse saltando do carro.
     — O anjo tá bem apanhado — disse o Magriça chegando para perto da janela e olhando para Leila.
     Ela nem ouviu. Respirou fundo, quase não acreditando no dia que tivera e olhou para cima, agradecendo não sabe a quem. Afastou-se um pouco e olhou para Furgão que lhe dirigiu um cumprimento respeitoso. Ao acenar, porém, notou que estava sem a sua bolsa.
     — Espera! — gritou obrigando-o a uma brusca freada.
     — Minha bolsa ficou no banco. Será que você me empresta o do táxi?
     Furgão deu mais uma sonora gargalhada e colocou a mão na sacola, tirando uma quantia que não se deu ao trabalho de contar.
     — Depois eu mando o troco — disse sacudindo o dinheiro vendo o carro sair.
     — Manda pelo anjo — gritou Furgão acenando com o braço para fora.
     À noite, Carlos, Walter e Leila reuniram-se e analisaram a situação.
     — Aquilo foi loucura — disse Carlos comentando o gesto de Leila.
     — Não tive outra opção. Eles iam ser presos e ainda pensar que foram levados para uma cilada — justificou rejeitando o cigarro oferecido por Walter.
     — Pareceu até aqueles filmes de televisão — disse ele sorrindo. — Mas vamos aos fatos: fizemos um rastreamento completo sobre a origem das doações.
     — Alguma coisa ilegal? — perguntou Carlos preocupado.
     — Essa é a grande questão — respondeu mexendo-se na cadeira e soprando a fumaça para cima.
     — Essa não! — desabafou Leila. — Depois de tanto sacrifício...
     — Eu mal comecei a falar... — reclamou. — Eu não disse que era ilegal.
     — Merda! Então diga logo que eu estou ficando nervosa!
     Carlos riu baixinho daquela impaciência.
     Deixa ele falar — disse tocando-lhe a mão.
     — Como eu ia dizendo, causou muito espanto nos meios financeiros essa vultosa transferência em tão pouco tempo. O curioso — continuou soltando outra baforada —, é que todas as doações de grande monta vieram de contas secretas, cuja origem do dinheiro não pôde ser comprovada.
     — Dinheiro ilícito? — perguntou Leila interrompendo.
     — É mais ou menos por aí — respondeu batendo o cigarro no cinzeiro.
     E, assumindo um ar extremamente sério, disse:
     — Alguém dotado de uma tecnologia desconhecida conseguiu acessar os com-putadores, saber exatamente de quem eram as contas e transferir o dinheiro para a cam-panha.
     — Algum Robin Hood do século vinte? — perguntou Leila.
     — É isso aí, Leila — confirmou sorrindo. — Quem tem essa tecnologia pode dominar o mundo ou, pelo menos, virá-lo de cabeça para baixo.
     Leila virou-se para Carlos que olhava fixo para Walter.
     — Alguém muito, mas muito poderoso, deu uma valiosa ajuda para vocês e deixou muito corrupto sem dinheiro.
     Carlos teve um acesso de riso.
     — Então não haverá reclamações? — perguntou Leila na expectativa de rir também.
     — Como reclamar de um dinheiro que não se pode comprovar a origem? — res-pondeu perguntando num tom jocoso.
     Leila deu uma estridente gargalhada, fazendo coro com Carlos.
     — Quem sabotou os computadores sabia perfeitamente bem o que estava fazen-do. — concluiu Walter rindo também.
     E, levantando-se disse:
     — Gente, vocês tem um aliado muito poderoso, talvez o homem mais poderoso do mundo...
     — Ele nunca se mostrará para nós... — lamentou Leila com palavras perdidas.
     — Talvez já tenha se mostrado e não lhe tenhamos dado a devida atenção — completou Carlos.
     Leila engoliu a seco pelo que pensou.
     Mal Walter saiu, a euforia deu lugar a uma imensa tristeza causada pelo tele-fonema do dr. Junqueira:
     — Venham, por favor. Talvez seja a última despedida.
     Vandenberg acabara de entrar num coma profundo e seu estado era irreversível.
     Carlos foi até a cabana de Pedro enquanto Leila preparava Vaninha.
     Na saída, ainda deram um telefonema para Walter que ainda não chegara em casa e deixaram o recado na secretária.
     A calma rotina do Centro de Operações foi quebrada com o alarme de um dos painéis.
     — Que ruído é este? — perguntou o comandante.
     — É a leitura de um biotron — respondeu Arana examinando seus computado-res.
     — Algo fora do nosso controle está acontecendo — disse o comandante exami-nando as leituras junto a Arana —, pois não é normal esse acesso emergencial.
     — De onde está vindo? — perguntou outro cientista aproximando-se e acorrendo também ao alarme.
     — Parece um sinal refletido — respondeu o comandante —, mas a sua exata determinação só poderá ser feita através de outras técnicas.
     Imediatamente, acionou Ezin que teletransportou-se ao Centro.
     — É realmente um sinal refletido, comandante — confirmou o especialista após rápida leitura nos painéis. —Vou acoplá-lo aos computadores da Central de Decodi-ficação para um melhor rastreamento. E, virando-se para Arana, perguntou: — Você me ajuda?
     Ela respondeu com seu meigo sorriso.
     — Já identifiquei a causa da doença, comandante — disse Arana interpretando o sinal do biotron. — Vou preparar imediatamente a programação de cura.
     — O que há de errado nessas leituras? — perguntou ele ao ver-lhe a tensa fi-sionomia.
     — Nenhum dos nossos chegaria a um ponto desses sem que alguma providência fosse tomada — respondeu reexaminando o gráfico.
     O comandante aproximou-se.
     — Veja esses sinais — apontou Arana para um ponto específico do gráfico.
     — Ao que me parece, está morrendo — concluiu o comandante.
     — Estou quase determinando sua origem — disse Ezin virando-se para Arana.
     — Seja rápido! — pediu a jovem de Ramak. — Ou será muito tarde. A progra-mação de cura está pronta.
     Suas palavras foram seguidas por uma pequena indicação luminosa, em cor verde, que começou a piscar ao lado de outra, apagada, próxima ao controle de disparo.
     — É um sinal refletido fora da nossa galáxia, comandante — concluiu Ezin.
     — Preciso das coordenadas — insistiu Arana sentindo o tempo se esgotar.
     — Vem da fertílitis! — concluiu num espanto.
     — É de Lorbus! — adiantou-se o comandante num grande lamento. — Trans-mita a radiação de cura, Arana.
     — Não estão corretas essas coordenadas — angustiou-se Arana com o dedo sobre o disparador. — Não consigo transmitir.
     — Um momento — interferiu Ezin. — esses sinais não coincidem com os dos nossos padrões. Não são de Lorbus.
     — Mas vem da fertílitis — insistiu o comandante.
     — Estão sendo enviados a partir da fertílitis que age como meio refletor, comandante, mas a origem não está à bordo.
     — As coordenadas! Rápido, Ezin — angustiava-se cada vez mais Arana.
     — Já tenho as coordenadas reais — disse finalmente.
     — Coloque na tela — determinou o comandante enquanto Arana computava e preparava a transmissão, fazendo acender a indicação azul ao lado do disparador.
     Surgiu então, na enorme tela tridimensional, a imagem do quarto de Vandenberg.
     — Onde é isso? Que gente é essa? — perguntou intrigado o comandante.
     — Não sei — respondeu Ezin segurando o queixo e olhando fixo para a tela tentando encontrar alguma resposta. — Mas essas coordenadas foram calculadas por Lorbus que tentou, ele mesmo, elaborar a cura.
     — E não conseguiu porque esses padrões estão ausentes dos nossos bancos de dados. Tive que criar um — completou Arana.
     — Deve ser alguém muito importante para ele — disse Ezin.
     — O alvo está travado — voltou a insistir Arana. — Estamos prontos para transmitir — finalizou olhando para a luz verde que parara de piscar, ao lado da azul, indicando que a programação se completara.
     — Não! — disse o comandante com um grande pesar. — Não podemos transmi-tir este programa. É contra as normas da não intervenção.
     Arana retirou o dedo de sobre o disparador e olhou para Ezin.
     Ambos voltaram os olhos para o botão... 
     A desolação no quarto era total.
     Leila, sentada à cabeceira de Vandenberg, contava-lhe mentalmente a respiração, como se estivesse contando os seus últimos minutos de vida. Carlos, de pé junto a Walter, apertava um crucifixo dado por sua mulher e que sempre trazia preso ao paletó. Pedro, sentado junto aos pés de Vandenberg, olhava para Vaninha sentada no chão com seu inseparável ursinho.
     O dr. Junqueira, impotente, verificava os monitores e corrigia, vez por outra, a posição do traçado sobre a pequena tela verde, mais por preciosismo profissional do que propriamente como medida terapêutica.
     Os sinais cardíacos começaram a fraquejar, atraindo novamente a atenção do médico.
     — Está no fim — disse com a voz falhada e rouca.
     Leila lançou um olhar para o médico...
     Walter olhou intuitivamente para a mão de Carlos que continuava com os olhos fechados.
     Pedro esticou-se e descobriu a mão gelada de Vandenberg, tocando-a como uma última despedida.
     — Vovô tá morrendo — murmurou para Vaninha. — Dá tchau prá ele.
     De repente, algo de mágico toma conta do quarto.
     Vaninha levanta os olhos em direção à mão de Vandenberg e coloca as suas sobre aquela... fria e sem vida. Depois, olhou para um ponto além da parede...
     — Aquela criança parece estar olhando diretamente para nós — disse Arana aproximando-se da tela.
     — Isso é impossível! — refutou o comandante olhando para aquele olhar perscru-tador.
     — Fisicamente sim... — comentou Ezin —, mas vejam só... ela parece olhar para cada um de nós...
     Todos naquela sala aproximaram-se da tela.
     — Ela realmente parece que nos vê... — disse Arana com convicção.
     — Como isso é possível? — perguntou o comandante sem afastar seus olhos daquele olhar.
     No quarto, todos viram a mudança na atitude de Vaninha. Seu olhos, normal-mente ausentes, procuravam algo além daquela parede, algo que eles nunca poderiam imaginar que pudesse existir.
     — Deve ser algum tipo de choque emocional — diagnosticou o dr. Junqueira.
     No entanto, aquele rostinho infantil abriu-se num enorme sorriso.
     — Salva o vovô! — disse a princípio com uma voz fraca pelo desuso. — Por favor, salva o vovô! — insistiu olhando para o nada.
     — O que ela está dizendo? — perguntou o comandante.
     — Não sei — respondeu Ezin. — Não temos o relatório de lingüística. Lorbus ainda não enviou.
     — Estou vendo Deus! — disse Vaninha para espanto geral.
     "A menina pirou de vez" — disse Leila para si com tristeza.
     — Salva o vovô. Eu sei que você pode — insistia a menina.
     O dr. Junqueira ameaçou tirá-la do quarto acreditando tratar-se de algum colapso, mas foi impedido por Carlos.
     — Deixe-a, por favor.
     Neste momento, a menina ergueu os braços agradecida. Reunindo toda a gracio-sidade infantil que um humano pode ter, agradeceu chorando e emocionada:
     — Obrigado, Deus... muito obrigado...
     — Quem acionou o transmissor? — perguntou o comandante ao ver, pela tela, o intenso raio de luz.
     Quase ao mesmo tempo, todos viraram-se para trás e viram ainda aquelas mãos negras e engelhadas sobre o disparador.
     A tela mostrava ainda o rosto iluminado da criança sorrindo para o sábio de Pentátilis, que a correspondia. Depois, virando-se para os demais, o sábio falou:
     — Os caminhos para o bem são muitos. Sábio, é aquele capaz de o reconhecer na escuridão da ignorância.
     Deixe Lorbus iluminá-los, pois já sofreram muito.
     O velho fez um pequeno gesto para a menina e desligou a tela.
     — Inacreditável — disse o comandante sem entender o fenômeno.
     Arana olhou para Ezin emocionada pelo gesto do velho Conselheiro.
     
     Mas Vandenberg continuava em coma.
     — Vamos, vovô. Acorda! — disse a menina sacudindo-o.
     Leila teve a sua tristeza aumentada ao ver tanta esperança naquele rosto infantil.
     "Agora é que ela vai sofrer de verdade" — pensou.
     — Espere um pouco, Leila — disse o dr. Junqueira aproximando-se do monitor e afastando-a da sua direção.
     — O que foi? — perguntou levantando-se.
     — Há algo de estranho nessas curvas... Algo de muito estranho...
     Nesse instante, outro médico da sua equipe entrou no quarto, externando o mesmo ar estupefato.
     — Você está acompanhando? — perguntou o dr. Junqueira ao seu auxiliar.
     — Sim — respondeu olhando para o monitor —, mas não estou compreendendo.
     — Mas que diabo de mistério é esse? — perguntou Leila intrometendo-se na conversa.
     — Eu também não sei — respondeu o dr. Junqueira sem tirar os olhos da tela. — Mas parece que o seu coração está reagindo de alguma forma.
     Leila franziu a testa.
     — Isso é possível?
     — Cientificamente falando, não.
     Vaninha colocou o dedo próximo ao supercílio de Vandenberg e o levantou, abrindo-lhe o olho.
     — Acorda, vovô. Deus já curou você!
     Leila teve um ímpeto de impedir aquele ato mas interrompeu-se ao ver-lhe um movimento nos lábios.
     — Olha, ele está acordando! — apontou Vaninha com simplicidade infantil.
     Todos aproximaram-se da cama, incrédulos com aquela recuperação.
     Finalmente, Vandenberg abriu os olhos e teve um terrível acesso de tosse, provocado pelo tubo em sua garganta.
     — O eletro está normal! — disse o dr. Junqueira para o seu auxiliar com os braços abertos, sem nada entender.
     — Nunca vi isso na minha vida — comentou o auxiliar.
     — Segura a mão dele — gritou a enfermeira que entrara atraída pelo movimen-to.
     — Não dá para tirar esse troço dele? — perguntou Leila apontando o tubo.
     — Tem razão — concordou o dr. Junqueira —, não vejo mais a necessidade desta cânula.
     — Até que enfim — aliviou-se Vandenberg sentindo-se livre.
     — Exatamente o Vandenberg que eu conheço! Sempre resmungão — disse Walter apertando-lhe a ponta dos pés.
     — Viu? — perguntou Vaninha.
     Vandenberg sentou-se na cama e olhou ao redor tentando encontrar o motivo daquela reunião. Fixou primeiro o olhar em Vaninha.
     — Oi, vovô! — cumprimentou segurando o ursinho nas mãos.
     O velho coração passou pelo primeiro teste. Vandenberg engoliu a seco, sem saber o que responder e abraçou a menina, deixando-se chorar sem preconceitos. Ficou assim por um longo tempo, emocionando a todos que sabiam da sua luta para trazê-la ao mundo exterior. Depois, virando-se para o seu médico, elogiou:
     — Bom trabalho, Junqueira! Sinto-me ótimo.
     — Foi Deus que curou você, vovô — insistiu a menina.
     Vandenberg riu complacente.
     — É verdade! Eu vi! Era preto igual a ele — disse apontando para Pedro concentrado ainda em suas orações. — Ele mandou uma luz que iluminou você...
     Lorbus, à bordo da fertílitis de onde tudo assistiu, foi o único a entender o real sentido daquelas palavras. Sorriu ao saber, pela menina, que o conselheiro havia aprovado sua decisão.
     — Você não acredita, né? Mas não faz mal — disse brincando com o ursinho sem importar-se com aquele ceticismo.
     — Vandenberg. Eu não operei você — confidenciou o dr. Junqueira.
     — Não? — perguntou examinando o tórax.
     — Não — respondeu com um gesto. — E também não sei como você continua vivo.
     — Mas eu sei... — interferiu novamente a menina sentada no seu colo.
     — Então você vai me contar tudo, tá? — disse Vandenberg acariciando os seus cabelos.
     Por sugestão do médico e aceito com relutância por Vandenberg, foram realizados diversos exames e testes antes de ser dada a sua alta. E não era sem razão aquela conduta, pois ninguém em coma profundo levanta da cama e vai embora minutos depois de acordar...

     Vandenberg conseguiu livrar-se dos médicos somente à tarde, indo diretamente para o Pueriso. Lá chegando e depois de passar um tempo em companhia de Pedro e deixar Vaninha junto às outras crianças, foi informado de todos os acontecimentos ocor-ridos à época da sua internação. Ao final da narrativa, perguntou estupefato:
     — Quem poderia explicar essa série de acontecimentos?
     — Só um milagre — respondeu Carlos. — Ou será que alguém tem algum argu-mento lógico além de uma estapafúrdia série de coincidências... — desafiou.
     — Milagre ou não — interrompeu Walter —, mas a grande questão é que você está vivo e muito bem. Por isso, o nosso banco está oferecendo uma recepção para a reinauguração do Pueriso e da nova Tribuna. O que acham?
     — Reinaugurar? — perguntou Vandenberg brincando.
     — Ora, deixa de ser chato — interferiu Leila. — Acho a idéia genial!
     — Amanhã está bom, Vandenberg? — perguntou Walter.
     — Não está muito em cima?
     — Creio que não — respondeu Carlos — pois os seus amigos já estão cientes.
     — Então tudo bem.
     — Ótimo — disse Walter satisfeito. — Vou sair e providenciar os detalhes.
     — Eu te acompanho — disse Carlos saindo também deixando Leila e Vanden-berg a sós.
     — Voltar à vida não é tudo, Leila. Encontrar as coisas que você ama é o mais importante — disse olhando para a janela e respirando o ar puro do bosque. — Mas vamos colocar as coisas em ordem — disse dirigindo-se ao cofre para pegar alguns documentos. Pegou um maço de papéis e tocou em algo sólido.
     — O que é isso? — perguntou surpreso.
     — Um crucifixo, ora — respondeu quase sem pensar.
     — Mas que diabo, Leila. Eu sei o que é. Só quero saber de quem é e o que está fazendo aqui.
     — É de Pedro — respondeu levantando a cabeça e tirando o cabelo do rosto.
     — De Pedro? Como assim? — perguntou examinando-o mais de perto.
     — Essa parte eu não contei — respondeu passando as mãos no rosto e preparando-se para relatar o que nunca compreendeu.
     — E ele deu isso ao Pedro? — perguntou Vandenberg após o minucioso relato.
     — Sim, foi o que ele disse.
     — Isso é uma relíquia, Leila — disse após reexaminar mais atentamente alguns detalhes da peça. — Pega aquele livro, por favor — pediu apontando para uma luxuosa encadernação na prateleira.
     — Esse? — perguntou após subir numa pequena escada.
     Vandenberg confirmou ansioso e Leila puxou com alguma dificuldade o livro.
     — Cuidado com o peso — disse Vandenberg aproximando-se da escada e ajudan-do a segurar o grosso volume.
     — Você acha que ele roubou alguma peça de museu? — perguntou Leila vendo Vandenberg folhear freneticamente o livro.
     — Se ele roubou, então por que o deu? — respondeu levantando-se e pegando um catálogo.
     — Arrependimento... sei lá... É como eu disse, Van, o cara era meio esquisito...
     — Aqui está — disse Vandenberg parando em uma determinada página.
     — É igualzinho a esses dois — observou Leila comparando a peça na mão de Vandenberg com as fotos do livro.
     — Na verdade são três, Leila.
     — Como? Se há somente dois na foto.
     — Ouça agora — disse largando a lupa e pegando os óculos para ler uma nota de rodapé.
     "Constantino, o grande, após transferir a capital do império romano para a cidade de Bizâncio, fê-la mudar de nome: Constantinopla. Tornando-se César, após a morte do seu pai, cristianizou todo o império.
     Diz a lenda, que ele viu uma cruz contra o sol e foi a partir daí que resolveu adotar o cristianismo."
     — Veja só isso! — disse ao final da leitura apontando para o crucifixo. — É uma autêntica obra de arte bizantina.
     — Não pode ser uma réplica? — perguntou Leila não acreditando estar diante de uma autêntica obra de arte.
     — Não — respondeu do alto de sua autoridade de colecionador.
     — Mas poderia ser então roubada de algum museu... ou... — ia insistindo Leila quando Vandenberg a interrompeu.
     — Ouça o resto:
     "Na época em que teve esta visão, mandou confeccionar três crucifixos iguais, que deveriam ser portados por mensageiros por ele enviados com a finalidade de difundir as palavras de Cristo por todo o mundo. Ao primeiro, incumbiu de levar as mensagens para o leste; cabendo ao segundo, o oeste. Quanto ao terceiro..."
     Deu uma pausa na leitura e continuou-a depois em voz baixa.
     — O que foi, Van? — perguntou Leila preocupada com uma possível recaída de sua saúde, tal era seu estado de palidez.
     — Dê-me uma bebida. Mas encha o copo.
     — Mas Van... Você mal acabou de sair do hospital e...
     — Não encha o saco, Leila, faça apenas a pôrra do favor.
     — Está bem... está bem. Eu só estava preocupada. Mas pelo visto a doença fugiu mesmo — disse levantando-se e enchendo um generoso copo.
     — Obrigado — agradeceu rindo e tomando quase a metade num só gole. — Mas veja que interessante. Ouça o final:
     "O terceiro foi entregue a um viajante que freqüentou sua corte por algum tempo, indo embora numa carruagem de fogo e levando o símbolo para as estrelas"
     Terminou tomando de uma só vez o restante da bebida.
     — Por que essa lenda te incomoda tanto?
     — É porque o terceiro crucifixo nunca foi encontrado.
     — Mas Van... conforme você mesmo acabou de dizer, é apenas uma lenda.
     — Está certo. Mas e quanto aos outros dois?
     — Vai ver que o terceiro nunca existiu. Você, como jornalista, sabe muito bem que a mesma notícia pode ter diversas interpretações. Depende muito da qualidade do canal de transmissão ou de quem a recebe. Fora ainda a vontade em distorcê-la.
     — Você tem razão, Leila — disse olhando mais uma vez para a peça na mão e comparando-a com as fotos do livro. — Vou saber disso agora mesmo — disse pegan-do o telefone.
     — Para onde vai ligar?
     — Para o museu — respondeu discando uma série de números.
     — Não é um pouco tarde para encontrar o museu aberto?
     — Aqui, talvez. Mas não o de Nova Yorque.
     Completada a ligação, num inglês perfeito e sempre segurando o crucifixo, per-guntou sobre os dois que deveriam constar daquele acervo. Aguardou mais um pouco e lhe foi confirmado que ambas as peças estavam perfeitamente acondicionadas nos seus respectivos lugares.
     Vandenberg agradeceu e desligou.
     — Você está branco, Van. O que lhe disseram?
     — Que as duas peças estão lá, em perfeitas condições.
     E, virando-se mais para ela, pontificou:
     — Leila, estou disposto a admitir que este homem não é exatamente o que você está pensando.
     — Espera lá, Vandenberg — protestou levantando-se.
     — Preste atenção, Leila. Veja a série de coincidências...
     — Eu acho sim, é que o coma prolongado afetou a sua cabeça.
     — Ora bolas! Eu desisto. Você é muito cabeça-dura — disse largando o catálo-go e levantando-se para pegar mais um pouco de bebida. — Você é incapaz de acreditar em sonhos. Quanto a mim, prefiro acreditar que tenho um anjo da guarda estelar.
     — Bom, se você prefere acreditar em milagres...
     — Eles já aconteceram, Leila... Olhe ao seu redor. Íamos perder tudo... Quer saber de uma coisa? Vou até a casa de Pedro. Quero ouvir daquele velho a realidade dos fatos — disse saindo e deixando-a repleta de dúvidas.
     
     José estava eufórico. Era a primeira vez que alguém o levava para passear. Mãe Preta tinha remendado-lhe a camisa e agora, orgulhosa, postava-se à porta do barraco aguardando que ambos saíssem.
     — Anda minino. Num vai dexá o moço esperano.
     — Tá apertada, Mãe Preta. Tô com medo de rasgá.
     Na saída, esticou o braço gordo e passou-lhe um embrulho mal feito, contendo pão duro com manteiga conseguidos com as últimas economias.
     — Num vai esqucê a merenda — disse ajeitando-lhe a gola amarrotada.
     Ambos se abraçaram deixando em Lorbus uma emoção contida, raramente experimentada, vendo aquela cena de amor no meio de tanta iniquidade...
     Jurou, naquele momento, que tudo faria para reverter de vez aquela situação. Imaginou o Conselheiro de Pentátilis olhando-o do céu e, à maneira que aprendera, deu uma leve piscada para cima.
     — Onde você vai me levá? — perguntou José guardando com zelo o embrulho.
     — Que tal darmos um passeio pelas estrelas?
     — Num disco voador?
     — Sim — respondeu Lorbus rindo sem se ater aos olhares que perguntavam o que fazia em companhia daquele moleque preto e aleijado.
     — É verdade? Você tem um disco voador?
     — Sim, é verdade. E daqui por diante, vai ser o nosso segredo. Nós vamos trabalhar juntos. Tá?
     — Tá — respondeu com a atenção voltada para um filhote de pássaro caído ao chão, lutando por sobreviver.
     Lorbus viu o menino vencer a deficiência e trepar numa árvore, com o filhote na mão, e recolocá-lo no ninho, ajeitando-o delicadamente. Depois desceu com um largo sorriso dando mais uma olhada para trás.

     O Pueriso amanheceu em festa.
     Vandenberg parecia nem ter dormido, tal a quantidade de papéis e livros espalha-dos sobre a mesa.
     — Bom dia, Van.
     — Oi, Leila. Aproveita que o café ainda está quente — disse apontando para a cafeteira.
     — Ótimo — disse bocejando.
     — Você parece que não dormiu bem — observou Vandenberg vendo-lhe a fisio-nomia cansada.
     Leila não respondeu. Caminhou até a copa e pegou duas xícaras, sentando-se depois ao seu lado.
     Ambos tomaram o café em silêncio.
     — O que há? — perguntou Vandenberg percebendo que Leila não parava de fitá-lo.
     — Vamos conversar um pouco, Van — disse pousando a xícara.
     — É sobre o amigo de Pedro, não é?
     Leila confirmou com a cabeça.
     — Acredite, Leila, não existe lógica que explique esta série de acontecimentos. Veja a minha recuperação. O Junqueira está completamente atônito. Escute bem — disse virando-se um pouco mais —, se você pensa que foi fácil para mim admitir estes fatos, está muito enganada.
     E, pegando no crucifixo, continuou:
     — Foi uma pena não tê-lo conhecido — lamentou.
     — E eu o enxotei... — disse balançando a cabeça num grande pesar, ensaiando um choro.
     — Não carregue esta culpa, Leila. Como você iria saber?
     — De qualquer maneira, agi mal — disse olhando para o pára-quedas que ainda se encontrava no canto.
     — Se ele é o que pensamos ser, não poderá estar aborrecido, senão não nos teria ajudado. Ele não pensa como nós, Leila. Deve ter outros padrões, outros valores...
     — Então ele me perdoaria?
     — Quem compreende a razão, dispensa o perdão — disse rindo da rima que conseguira. — Mas eu acho que ele não está muito preocupado com isso agora.
     — Bom — disse animada — ,vamos trabalhar.
     — Nada disso — proibiu com benevolência. — O Walter disse que éramos convidados da nossa própria festa. Sugiro que você coma uma fruta e volte para a cama. Descanse mais um pouco.
     Leila preferiu não discutir. Estava realmente cansada. Voltou para o quarto, cerrou as cortinas e dormiu profundamente.
     








     Um intenso vozerio fê-la acordar.
     — Deus do céu! Que vergonha! — disse para si ao ver, pela janela, a noite chegada e a grande quantidade de gente em torno da mesa improvisada no pátio do Pueriso. Pegou a roupa e atravessou rapidamente o escritório, temendo que alguém a visse nesse estado, tomou uma rápida chuveirada, aprontou-se e desceu. Chegando ao pátio, ainda pôde ouvir o final do discurso que Vandenberg improvisara:
     "Bastaria que apenas uma geração fizesse o esforço de investir nas crianças para salvar de vez o nosso planeta.
     Se a nossa sociedade tivesse como pilares a fraternidade, a amizade e o amor, por certo, descobriríamos fantásticos seres humanos entre nós.
     Precisamos esquecer as nossas idiossincrasias e acreditar firmemente que nós, humanos, estamos acima dos nossos fenótipos"
     Muito aplaudido, desceu da cadeira que servira com palanque e viu Leila ao pé da escada. Aproximou-se e falou baixinho:
     — Você realmente levou a sério o meu conselho.
     Antes que pudesse responder aquela brincadeira, vários flashes espocaram à sua frente, seguidos por uma avalanche de perguntas.
     A repercussão da fuga que dera àqueles homens e a posterior prisão dos seus raptores expondo a história do Pueriso, atraiu a atenção da imprensa tornando-a uma celebridade.
     Com muito custo, mas sem poder deixar de responder as perguntas mais incisivas, livrou-se dos jornalistas. Procurou ser simpática com todos até finalmente conseguir ficar só.
     Contemplou aquele desfecho impensável, dias atrás, e convenceu-se de que o crédito de tudo aquilo devia-se a Lorbus. Lembrou-se do crucifixo e, sabendo que Pedro jamais o pediria de volta, resolveu devolvê-lo. Era também mais um pretexto para ver o velho que tanto interesse tinha despertado em tão extraordinária criatura.
     Subiu rapidamente as escadas até o escritório, pegou-o e dirigiu-se ao barraco.
     Longe do burburinho, aproximou-se da cabana silenciosa e, para sua surpresa, foi saudada por totó.
     A visão do saltitante animal deu-lhe tal ânimo que nem se importou com suas investidas sobre a saia branca. Pedro, ouvindo o alarido, chegou à porta e a viu abaixada acariciando o animal.
     O velho sorriu.
     — Olá, Pedro — cumprimentou sorrindo.
     — Você tá bunita — disse ao vê-la mais de perto.
     Leila demorou-se fitando aquele homem, tentando ver nele as qualidades nunca antes reparadas.
     "Que tipo de olhos ele possui para ver o que eu não vejo?"
     — Posso entrar?
     — Craro! Craro! Tô ficando um velho mal educadu — desculpou-se.
     Leila entrou e tirou o crucifixo da bolsa, sentando-se logo em seguida.
     O velho pegou delicadamente a peça de ouro.
     — Vanderbeg viu? — perguntou acariciando-lhe uma das pedras.
     — Sim — respondeu com a voz meio embargada. — E gostou muito.
     — Eu sabia. — disse com o habitual sorriso.
     — Ele curou o cachorro?
     — Ah! Até o machucadinho da orelha que nunca sarava.
     — Você não quer ir lá na festa?
     — Já tem uma festa aqui — respondeu apontando para o peito. — Mas você tá triste... — observou.
     — É verdade.
     O negro era bom ouvinte e não formulou mais nenhuma pergunta. Parecia conhecer exatamente a razão da sua tristeza.
     Leila sentiu-se à vontade para chorar e o fez pela primeira vez em muitos anos.
     Pedro manteve-se calado o tempo inteiro.
     Após muito chorar, olhou à sua volta tentando ver desesperadamente o que os seus olhos teimavam em não mostrar. Levantou-se depois e enxugou o rosto.
     — Já jantou? — perguntou guardando o lenço.
     — Ainda não — respondeu virando-se intuitivamente para o fogareiro.
     — Vamos jantar nós dois aqui?
     Pedro franziu a testa sem muito entender e Leila, percebendo que se levantaria para verificar a dispensa, adiantou-se:
     — Não se preocupe, eu trago da festa.
     Voltou correndo ao escritório e pegou uma travessa na copa, descendo logo a seguir. Procurou selecionar cuidadosamente o que levaria, pegando depois uma garrafa de refrigerante e, livrando-se dos inevitáveis encontros, embrenhou-se novamente pelo bosque. No caminho, avistou Vandenberg que conversava animadamente com um grupo. Num gesto, mandou-a prosseguir, concordando plenamente com aquela "fuga".
     Aproximou-se do barraco e viu que Pedro já tinha forrado a tosca mesa, colocando três pratos...
     Mal cruzou a porta, quase não conteve a emoção.
     — Seja bem vindo — disse finalmente com a boca seca, mal acreditando no que via.
     Pedro, segurando firmemente o crucifixo, sorriu, agradecido pelas preces atendidas...

                                

F I M.





Biografia:
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Contos A máquina da verdade jorge pires da silva
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