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  Texto selecionado
o menino do amendoim
jorge pires da silva

Resumo:
Trata-se da saga de um menino sem nome e sem família, que vive nas ruas. Por onde passa vai semeando o amor e a compreensão entre pessoas.



     Esse pequeno conto tem como finalidade difundir o amor e a compreensão entre pessoas. Espero que, ao final desta leitura, o seu coração esteja tão puro quanto o espírito do Menino do Amendoim.



        O Menino do Amendoim


Ninguém jamais soube seu nome. Ele era simplesmente conhecido por Menino do Amendoim. Era um menino tristonho e sereno e jamais alguém o vira sorrir. Tinha em torno de 5 anos, magrinho, fisionomia eloqüente e andava maltrapilho. Parecia que nunca havia trocado de roupa, dado o estado dos seus andrajos. À noite, se recolhia em um canto qualquer, sozinho, de olhar perdido nas pessoas que passavam por aquele menino invisível. Vez por outra, quando chovia, tinha a companhia de alguns cães vadios que também se refugiavam da água, junto a ele, sob algum alpendre da cidade.
Sua curta vida pode ser sintetizada em três fases: pequeno vendedor, faxineiro da Dona Lourdes e paciente do hospital. A primeira fase começa como vende-dor de amendoim torrado, um meio de vida que encontrou para mitigar a fome que o fustigava constantemente

Pequeno vendedor
Virgílio, um desempregado, vivia de pequenos biscates e da cata de materiais recicláveis. Costumava "empregar" meninos para ajudá-lo na colheita do lixo, que era trazido para o pequeno galpão improvisado e quase sem cobertura. Dizia-se que alguns dos meninos eram seus filhos, mas isso jamais fora com-provado. Tratava a todos com a rudeza de um ignorante apartado muito cedo dos convívios familiares.
Certa vez, ocupado em separar o material, não percebeu a aproximação silen-ciosa de um menininho magriço parado junto à entrada. Não sabia quanto tempo ele estava por ali, respeitando o umbral que o separava do interior. Virgílio apenas o fitou de relance e logo voltou aos seus afazeres. Por um longo tempo ficou concentrado na separação da lixarada, praguejando vez por outra pela quantidade pequena de coisas aproveitáveis. O pouco pudor e a idade precocemente adiantada e agravada pelas constantes dores articulares já eram empecilhos para ele mesmo coletar nos lixos. Virou-se instintivamente para a porta e o menino ainda lá estava, como uma estátua esquálida e mal acabada. Com sua rudeza habitual perguntou o que ele queria. O menino, antes de responder, fez uma expressão triste, daquela típica de quem vai ser expulso de um local ou ser maltratado, situação tantas vezes vivenciada.
- Eu quero trabalhar, moço. Preciso comer. Estou com muita fome. Eu faço qualquer coisa.
E, antes que Virgílio pudesse reagir a qualquer estímulo, ele completou:
- Eu posso limpar, carregar coisa, o que o senhor quiser.
Virgílio olhou aquela pequena figura humana de fisionomia tão abatida e entristecida que conseguiu abrandar sua tradicional rudeza. Normalmente responderia um seco "não tem nada aqui para você", conforme já o fizera dezenas de vezes. Mas aquele menino trazia uma expressão tão doce e triste que Virgílio não soube como responder. Parou um pouco e ficou olhando para ele. Deu um passo numa direção qualquer, coçou a cabeça e disse que não havia nada para comer, exceto alguns grãos de amendoim espalhados displicentemente em cima de um velho caixote. O menino, timidamente, olhou e perguntou:
- Eu posso comer?
O velho assentiu com a cabeça. O menino aproximou-se do caixote e comeu desesperadamente até o último grão, procurando intuitivamente alguns que por ventura estivessem caídos. Viu, com uma expressão de felicidade, outros perdidos pelo chão e os recolheu rapidamente. Após comer o último grão, perguntou:
- Posso trabalhar agora? Eu já comi.
- Você é muito pequeno para trabalhar, e também é muito magrinho.
O menino fez uma cara de choro e insistiu:
- Eu posso limpar. Me ensina a separar o que o senhor quer. Eu aprendo tudo. Só me ensina.
O velho então teve a idéia de aproveitar uma antiga lata cortada que fora usada um dia para vender amendoim torrado nas ruas.
- Tá certo, você vai vender amendoim. - Disse num rompante.
Acabou de dizer e foi pegar a lata, depois de remexer os entulhos e descobri-la quase por milagre. Desamassou algumas partes, sentou-se no chão e come-çou a ensinar o menino a colocar o carvão na base aberta e fazer os saquinhos em forma de cone, utilizando como modelo um pedaço de papel qualquer. Terminando a aula mandou que ele voltasse no outro dia, já que estava quase anoitecendo.
- Qual o seu nome?
O menino pensou durante uns instantes e olhou com aquela carinha triste em direção ao chão. Com suas mãozinhas próximas à barriga, abaixou os ombros e respondeu timidamente:
- Eu não sei. Ninguém nunca me chamou.
Mesmo uma criatura rude como aquele velho não pode evitar uma ponta de enternecimento.
- Então eu vou te chamar de Amendoim, tá bom?
- Tá bom sim, moço. - Respondeu animado. - Quando eu posso começar?
- Amanhã pela manhã bem cedinho. – Respondeu o velho tentando voltar ao trabalho e vendo o dia ser devorado pela noite. Esfregou as mãos na bermuda imunda, como se quisesse limpá-la, e se preparou para ir embora.
Amendoim foi saindo com uma fisionomia mais serena. Sentiu algo próximo a uma felicidade, porque alguém ia chamá-lo por um nome, tinha comido e sabia que no dia seguinte poderia comer de novo.
- Onde você mora, Amendoim? - Perguntou Virgílio quase do lado de fora do galpão
O menino apenas abanou a cabeça negativamente antes de dizer que não tinha para onde ir.
Virgílio coçou a cabeça novamente. Fazia isso quando queria alguma resposta. Olhou para o único canto que parecia o lugar mais limpo do terreno, onde não se acumulara o lixo imprestável e que tinha uma rudimentar cobertura e disse que se ele quisesse ficar ali poderia. Depois olhou para cima e completou:
- Se chover pode se cobrir com os papelões.
Virgílio saiu para a sua casa.
Seu barraco diferia apenas daquele terreno imundo em que trabalhava somente pelo fato de que era coberto e tinha algum mobiliário. Severina, sua companheira, preparava no fogão à lenha alguma comida em panela única. Muito provavelmente uma sopa ou um cozido feito do resto de comida que ela e os filhos conseguiam na vizinhança.
O velho chegou, comeu e tomou um gole de aguardente. Não falou do menino, mas ficou pensando nele durante um tempo antes de pegar em sono profundo, enquanto a mulher e os filhos tagarelavam com os vizinhos reclamando da vida.

Amendoim estava em um mundo diferente. Era a primeira vez que tinha um lugar certo para dormir. Estava feliz. Ficou caminhando no interior mal ilumina-do do galpão e olhou com carinho as paredes rachadas e sem reboco, afagou os caixotes e demais objetos como se fossem companheiros mudo do seu no-vo mundo. Seu rosto esboçava um leve sorriso. Não havia porta. Mas aquele era o seu lar e isso era o que mais importava. Ansiava pelo dia seguinte. Que-ria trabalhar para compensar o que tinha comido e também garantir a próxima comida. Sentiu-se importante. Sem se incomodar com a sede e a fome caiu em sono profundo. Sonhou que estava em um lugar muito bonito, com árvores, pássaros, montanhas, rios e lagos. Acordava sempre intrigado, pois esse era um sonho recorrente. Lá não sentia fome ou sede. Todos falavam com ele, sor-riam e o abraçavam. Mas ao acordar estava só e esfomeado.
Essa manhã foi um pouco diferente.
Amendoim foi acordado por uma algazarra, pois naquela hora começaram a chegar os outros meninos, os catadores do Virgílio. Eles simplesmente olharam o menino, mas depois o ignoraram rapidamente e começaram a falar de coisas comuns às suas atividades e troçar entre eles. Amendoim ficou, como sempre, encostado em um canto com seus olhinhos tristes vendo as brincadeiras. Estava acostumado a ser um menino invisível.
Virgílio chegou e distribuiu as tarefas. Reclamou mais uma vez do lixo inútil que haviam trazido e mandou prestarem mais a atenção no que deveriam catar. As ponderações dos meninos de que não havia quase mais nada de útil no lixo de nada adiantavam. Costumavam dizer: - Ninguém tá mais jogando coisa boa fora não,"seu" Virgílio.
- Quem vai comprar lixo? - Perguntava o velho aos demais meninos e gesticu-lando mais que o necessário.
A garotada se entreolhava mais preocupada com a pelada que iriam jogar no aterro sanitário da cidade do que nas reclamações de Virgílio. Munidos das suas esfrangalhadas sacolas os meninos foram saindo e levando o lixo inútil de volta. O velho apenas abanava a cabeça negativamente esperando nova e inexorável lixarada ao final do dia. Olhou para os lados e viu aquele tiquinho de gente encostado no canto da parede e, lembrando-se do dia anterior, chamou por ele. Amendoim se aproximou timidamente e começaram então preparar os saquinhos com os pedaços de papel que iam cortando. Virgílio tinha pego no mercado meio quilo de amendoim prometendo pagar depois. O carvão foi o resto do que ficou no fogão da Severina. Depois disse que o preço de cada saquinho era de 50 centavos. Amendoim interrompeu e perguntou com sua voz miúda:
- O que é 50 centavos?
O velho soltou uma expressão de espanto. Depois disse que era dinheiro.
- Eu nunca tive dinheiro, moço, por isso eu não sei. Me ensina? - Pediu humil-demente.
Virgílio pegou a única moeda que tinha e mostrou-lhe como exemplo. Explicou como deveria vender e Amendoim pareceu entender perfeitamente. O velho enfatizou energicamente que contaria os saquinhos vendidos e que o dinheiro deveria ser entregue. Disse também que o amendoim era para ser vendido e não poderia ser comido.
- Pode deixar, moço. Eu vou fazer tudo direitinho.
Amendoim saiu do galpão todo orgulhoso. Agora era um vendedor.
Com sua voz triste e melodiosa criou um refrão para vender e chamar a aten-ção dos transeuntes: "amendoim torradinhooo.... quem vai querer!?”
Após uma hora de caminhada pelos bairros do centro, e tomando cuidado para o braseiro não apagar, viu um senhor negro e gordo sentado em um banco de praça que o chamou gentilmente e comprou um saquinho. O menino jamais se esqueceria daquele freguês. Guardou a moeda num bolsinho improvisado feito de uma sacola de compras e se animou com a venda. Logo em seguida uma senhora comprou dois saquinhos e quis pagar com uma moeda de um real. O menino ficou olhando aquela moeda diferente com cara de espanto e disse que o preço era a moeda de 50 centavos, apontando para a que recebera. Somente aceitou a moeda diferente porque o primeiro freguês interveio e explicou a operação.
A senhora sorriu com um ar compungido e passou a mão carinhosamente na cabeça do menino, seguindo depois o seu caminho e reprovando o fato de uma criança tão nova estar naquela situação. Comprou os saquinhos apenas por piedade, desfazendo-se deles logo em seguir na primeira lixeira que passou.
Amendoim tinha aceitado a explicação e deu dois passos para continuar as vendas, mas depois voltou-se em direção ao homem sentado no banco e disse:
- Moço, eu estou com medo.
O bondoso freguês olhou com espanto e perguntou o porquê daquilo. Amendoim então explicou:
- O "seu" Virgílio disse que ia contar os saquinhos. O senhor disse que essa moeda vale dois saquinhos, mas ele não disse nada para mim. Eu tenho medo dele pensar que eu estou roubando e que eu comi um pacotinho. Eu não acho certo mentir ou roubar, por isso estou com medo dele pensar isso.
O freguês sorriu ante a ingenuidade honesta do menino. Sentou-o ao seu lado e abriu a carteira, mostrando algumas notas e outras moedas. Amendoim era inteligente e aquele homem inspirava um sentimento que ainda não experimentara antes. Ficou olhando aquele dinheiro e pediu uma nova explicação, para ter a certeza de que havia entendido. Coçou a cabeça e sorriu. O bondoso senhor comprou mais alguns saquinhos e fez pacientemente as contas. Ofereceu alguns de presente dizendo que aqueles ele poderia comer, pois ele os tinha comprado. Amendoim aceitou de pronto. Ficaram ambos juntos por um breve tempo comendo os amendoins. O bom senhor olhou para aqueles pezinhos sujos e maltratados que nunca tiveram um calçado e não pode evitar que os seus olhos se enchessem de lágrimas. Olhou para cima como se buscando algum consolo e respirou fundo. Amendoim mantinha aquele rostinho inocente alheio a tudo e parecia concentrado apenas em comer seus amendoins. Sacudiu o saquinho para extrair o último grão e, após comê-lo, desceu do banco. Agradeceu ao bom homem e seguiu em frente, atirando no lixo o saquinho vazio, coincidentemente, no mesmo lugar onde a senhora se desfizera dos seus ainda cheios.
Suas mãozinhas sujas de carvão seguravam a lata por um arame, à guisa de alça improvisada, trocando constantemente de lado quando a dor assim obri-gava ou o braço ficava dormente. Para ele, o mais importante era não deixar “seu” Virgílio aborrecido pelas poucas vendas, pois ao menos podia comer um pouquinho do amendoim não vendido. Esse seria o pagamento. Para o Menino do Amendoim, muitas vezes era o que somente conseguia comer durante todo o dia e ansiava imensamente a chegada desse momento.
Quando voltou ao galpão com quase tudo vendido o velho se admirou e abriu uma expressão de felicidade ao ver tantas moedas. Amendoim explicou que tinha aprendido a ver dinheiro e recebeu como recompensa mais alguns saquinhos para comer. Sentou-se no seu cantinho e descansou. Comeu vagarosamente e trouxe de volta as lembranças do senhor do banco da praça e da sensação boa que sentira em sua companhia. Nunca mais tornou a vê-lo novamente e sempre que passava por aquele banco lembrava-se dele. Certa vez, num momento em que sentiu uma grande solidão, aproximou-se do banco vazio e chamou baixinho o bondoso senhor, como se estivesse fazendo algum tipo de oração. - "Não é para vender não, moço. Mas eu queria muito falar com o senhor novamente." - Disse para si querendo se justificar. Fechou os olhinhos na esperança de vê-lo novamente ao tornar abri-los. Foi em vão.
Amendoim não sabia o que era domingo. Sabia apenas que era o dia em que não podia vender e, por isso, também ficaria sem comer. Os botequins que serviam as refeições populares costumavam fechar e não haveria nenhum resto das mesas para pegar. Ficava vagando pelo centro silencioso na esperança de alguma sobra. Costumava parar em frente a alguma loja de eletrodomésticos e ficava admirando as televisões ligadas. Através delas viajava para dentro dos lares nunca vistos aguçando a sua curiosidade sobre como era a vida daqueles que viviam dentro das casas sempre fechadas pra ele. - "Deve ser bom" - Dizia para si enquanto imagens felizes desfilavam através das telas. Nesses momentos esquecia completamente da fome e da sede, e o cansaço não o vencia. Porém não se aventurava a ir muito longe do galpão, temendo se perder e ficar privado do seu cantinho.
Vez por outra encontrava alguns mendigos conhecidos e sentava com eles. Eram as únicas companhias que conseguia nesses dias solitários. Não costu-mava conversar com nenhum deles, mas o simples fato de estar acompanhado já bastava, sem contar que geralmente conseguia que lhe dessem algo para comer.
Além dos domingos, o inverno também era doloroso. Não havia folhas de jornal suficientes o bastante para aquecer seu corpinho magro e desnutrido. Pior ficava quando chovia, molhando o papel e tornando-o frio e rasgadiço.
Inversamente, o domingo era o dia predileto de Virgílio. Seu barraco, embora muito pobre, tinha um luxo do qual muito se deleitava: a velha televisão em preto e branco. Divertia-se com os programas de auditório e deixava-se levar pelos devaneios eróticos vendo as lindas dançarinas ao ritmo dos musicais. Esquecia da vida miserável que levava, dos filhos jogados nas ruas e da mulher sempre negligenciada. Era o dia da televisão e da cachaça. Na hora do almoço sentia-se o verdadeiro soberano. Severina preparava a refeição com o que de melhor conseguia reunir durante a semana e assim podia dar ao marido um banquete digno de um trabalhador. Virgílio comia até se empanturrar, pois sabia que essa poderia ser a sua última boa refeição, dada a incerteza do seu trabalho. Não pensava em ninguém nessa hora. Depois de comer sentava-se novamente na surrada poltrona, fruto de um achado no lixo, até adormecer. À noite, conversava com os vizinhos ouvindo as queixas tradicionais sobre o transporte público, baixos salários, doenças e outras mazelas. Era o que podiam falar, pois os contatos que mantinham com o mundo somente os permitiam vê-lo por esse ângulo.
Quase todos os vizinhos eram retirantes expulsos de suas terras "pelas des-graças", que era como descreviam as mudanças climáticas que tornaram as terras produtivas em terrenos imprestáveis, acabando com a agricultura e com os pastos. Atraídos pela ilusão das cidades grandes e pelas histórias que ouvi-ram de retirantes vencedores, arriscaram tudo por uma nova vida. Agora eram os escravos da sociedade com direito apenas às reclamações domingueiras, confortados pelos religiosos que prometiam um mundo melhor no pós túmulo.
Quando a noite se encerrava Virgílio fechava a porta do tugúrio, após a entrada do último filho, e atirava-se no chão, já que o barraco não tinha cama ou qualquer outro cômodo. Não muito longe dali Amendoim encolhia-se no seu cantinho na esperança de um novo dia com boas vendas e a tão esperada recompensa, traduzida em alguns saquinhos de amendoim.
Passaram-se algumas semanas e Amendoim já havia incorporado a sua rotina. Tornara-se um menino conhecido por onde costumava passar. Seu método de venda era diferente dos outros meninos, que inventavam histórias mirabolantes com o fito de sensibilizar os pretensos fregueses. Nunca ofertava ostensivamente os seus amendoins. Ele apenas colocava a velha lata um pouco à sua frente e olhava com aqueles olhinhos serenos e tristes. Era difícil resistir a tamanha blandícia, quando não era invisível. Agradecia com um "muito obrigado" sempre que vendia um saquinho. Os outros meninos de rua não o incomodavam, pois não representava nenhuma ameaça como concorrente.
O galpão que Virgílio ocupava há muito era motivo de reclamações dos mora-dores, pelos roedores que se multiplicavam ou pelo odor que exalava. O terre-no não tinha um proprietário conhecido, porque toda aquela vizinhança tinha adquirido seus terrenos de terceiros, que invadiram a área em época remota quando o valor daquelas terras era irrisório e não tinham nenhum apelo comercial. Com o passar do tempo foram feitas algumas melhorias e aos poucos os terrenos começaram a ser legalizados. Virgílio não tinha dinheiro suficiente e, por isso, tanto o seu barraco quanto o galpão tinham apenas o precário status de posse. Vez por outra corriam boatos sobre a possibilidade de o “governo pegar de volta as terras”. Na verdade já havia há muito um processo de remanejamento daquela população para um lugar mais seguro, visto que aquela era considerada uma área de risco.
Certo dia Virgílio foi surpreendido por fiscais da Saúde Pública e policiais. Sem nenhum aviso prévio teve o seu galpão lacrado e seu barraco tomado, com a promessa de uma residência em outro bairro mais distante. De nada adiantaram suas lamentações. Soube, mais tarde, que havia sido colocado um aviso de despejo dias antes, mas a maioria analfabeta ignorou ou deu pouca importância àquele documento.
No mesmo dia teve que entregar o barraco e apenas conseguiu permanecer nele por mais uma noite porque os caminhões destinados ao transporte dos moradores e respectivos móveis estavam ocupados.
Amendoim, alheio a tudo isso, chegou ao final de mais uma tarde e ficou para-do à frente de um tapume nunca antes visto. Olhou para a vizinhança certifi-cando-se de que não errara o caminho e pousou sua latinha de amendoim na calçada, tentando arranjar algum sentido para o que estava vendo. Através de uma fresta procurou o interior do galpão e identificou o seu cantinho, agora impenetrável, e voltou a sentir aquela sensação de tristeza e abandono. Sentou-se o lado da sua latinha encostado-se no tapume e assim permaneceu o tempo suficiente para descansar um pouco. Estava faminto e precisava encontrar o "seu" Virgílio. Não ousou, em nenhum momento, comer os poucos saquinhos restantes sem antes prestar contas. Lembrou-se que certa vez um dos meninos havia dito onde o "seu" Virgílio morava, mas nunca havia estado no barraco dele. Levantou-se cheio de esperança e caminhou lentamente naquela direção. Algum transeunte, talvez o reconhecendo e associando-o ao velho, informou a localização exata do barraco.
Amendoim sentiu-se mais aliviado.
Nas imediações dos barracos todos os vizinhos estavam reunidos, revoltados com a decisão do governo em retirá-los para outra área. Virgílio era o que mais tinha a perder, pois ficou ao mesmo tempo sem o barraco e sem o meio de vi-da. Não teve tempo sequer de separar o pouco material reciclável que lhe daria uns míseros centavos.
Amendoim aproximou-se devagar e viu o seu velho protetor discutindo e gesti-culando, enquanto soltava imprecações para todos os lados. Ele simplesmente não conseguia entender absolutamente nada do que estava acontecendo. Com seu jeito tímido parou próximo ao velho e ficou apenas olhando, como era do seu costume.
Virgílio parou de falar subitamente ao ver o menino com sua lata de amendoim quase vazia e tentou, ao seu modo, explicar o que tinha acontecido. De manei-ra atabalhoada disse que o galpão tinha sido tomado pelo governo, assim co-mo o seu barraco e também os demais. Amendoim perguntou com seu jeitinho triste se ele podia continuar a vender amendoim e se Virgílio podia arrumar outro lugar para ele dormir.
A comoção se abateu sobre todos e houve um silêncio. Os vizinhos se entreo-lharam e perceberam que eles tinham perdido alguma coisa, mas aquele meni-no tinha perdido absolutamente tudo, inclusive a esperança. Alguns abaixaram a cabeça ou a viraram para o lado, pela vergonha das lágrimas que ameaçavam brotar nos seus rudes olhos. Virgílio não ficou imune. Apenas balançou a cabeça negativamente e sacudiu os ombros. Também não teve coragem de encarar o menino.
Depois de um silêncio que mais pareceu uma penosa eternidade, Amendoim tomou a palavra: - Eu sei que o senhor não pode. Eu entendi. Não precisa se preocupar comigo. Olha, eu vendi quase tudo. - disse mostrando a lata quase vazia. De imediato tirou um saquinho de plástico pendurado no seu short, onde costumava guardar o dinheiro, e o deu a Virgílio. Olhou depois carinhosamente a lata e entregou-a também. Deu um leve sorriso e, para surpresa de todos, agradeceu profundamente ao velho pela oportunidade de trabalho. - O senhor me ajudou muito. - Completou com uma humildade angelical.
Severina, bastante emocionada, pediu que o menino esperasse um pouco e entrou apressadamente no barraco e trouxe um pequeno embrulho contendo um pedaço de pão dormido, que havia guardado para comer à noite. Alguns outros vizinhos se reuniram e imitaram o gesto dela.
Amendoim guardou zelosamente tudo. Depois olhou carinhosamente para todos e beijou a mão de Virgílio olhando-o profundamente nos olhos como um agradecimento sincero. Virou-se e foi embora devagar sem olhar para trás, se-gurando seu precioso tesouro.
Um longo silêncio voltou a reinar sobre os vizinhos, que definitivamente para-ram de reclamar e olharam para o futuro sob uma nova perspectiva. Até aque-les que haviam ensaiado uma revolta para o dia seguinte, com ameaças e vio-lências contra os fiscais, desistiram do intento. Virgílio se recolheu ao seu bar-raco e ficou olhando demoradamente a mão suja que aquele menino beijara carinhosamente sem o menor pudor. Olhou o barraco miserável e pela primeira vez questionou seus valores. Espichou a cabeça para fora em direção ao ca-minho tomado pelo menino, sentindo uma imensa vontade de trazê-lo de volta. Mas sua vontade parou na inércia de anos de sofrimento.

Faxineiro da Dona Lourdes

No caminho de volta Amendoim passou uma vez mais pelo portão da sua anti-ga residência. Procurou uma fresta e olhou pela vez derradeira o seu cantinho. Suas lembranças dele eram aquelas em que acordava ou dormia. As boas lembranças eram de quando podia comer bem devagar alguns saquinhos de amendoim ou quando Dona Severina mandava alguma coisa para ele. Agora estava novamente só, sem a sua latinha e sem destino. Não tinha para onde voltar ou ir. Começou caminhar lentamente pelas ruas escuras e vazias. Seus olhos paravam vez em quando em uma janela aberta e percebia dentro o movimento de pessoas. Nunca tinha estado no interior de uma casa, mas sabia que deveria ser algo de bom, conforme tinha visto pelas televisões das lojas. Também passavam por ele alguns carros e ônibus e então deu-se conta de que nunca estivera dentro de nenhum deles. Lembrou-se de uma vez em que estava no centro e viu um ônibus parado e sem passageiros. As portas estavam abertas e ele simplesmente, cedendo à sua natural curiosidade de menino, entrou por alguns segundos, quando foi enxotado com veemência. Um homem caminhou agressivamente em sua direção e Amendoim desceu devagar e ficou acuado na porta do coletivo. Ele não correu, apenas fechou os olhos e baixou a cabeça deixando-se afastar devagar aguardando algum tipo de agressão. Não seria essa a primeira vez que alguém tinha esse tipo de atitude e ele ficou apenas esperando pelo empurrão ou o tabefe na cabeça. O homem bateu na lataria do veículo com força e gritou: - Fora, seu ladrãozinho. Era comum ouvir impropérios desse tipo principalmente quando se aproximava de alguma mesa vazia para pegar os restos de comida antes dela ser limpa novamente.
Caminhou por um longo tempo até que parou em frente a uma casa qualquer. Era uma casa protegida por grossas grades, com um quintal grande e via-se pela fraca iluminação que havia uma árvore nos fundos. Havia também uma varanda mobiliada com algumas cadeiras e mesa e um carro estacionado pelo lado de dentro. Na sua inocência não podia compreender tantos espaços vazi-os e protegidos enquanto ele sequer tinha um teto para dormir ou se abrigar. Também não havia nenhum sentimento de revolta. Vencido pelo cansaço, A-mendoim comeu um pouco, guardando ciosamente o restante para o dia se-guinte, embora sua fome fosse suficiente para devorar tudo de uma só vez.
Amanheceu o dia e ele continuou ali, sentado e sem perspectiva. Tudo que sabia se resumia em fazer saquinhos de amendoim e vender.
Como quase sempre acontecia, as pessoas passavam por ele e não percebiam aquele menino invisível, sentado só e sem nenhum amparo.


Lourdes era uma senhora que beirava os quarenta anos. Tinha o temperamen-to calmo e meditativo. Era casada e tinha um casal de filhos: Flávio e Clarice. O menino era mais novo e tinha aproximadamente uns doze anos, enquanto a menina aparentava uns quinze. Seu marido era do tipo competitivo, de perso-nalidade forte e dominadora. Flávio o via como herói, em detrimento da mãe, cuja personalidade submissa em nada o inspirava. Também nutria por ela até um certo desprezo, fruto da propositada influência paterna que assim amealhara as simpatias do garoto. Poder-se-ia até dizer que Flávio tinha desenvolvido uma má índole em função dos maus hábitos do pai. Era o tipo de garoto egoísta e que nunca deixava ninguém tocar nos seus brinquedos. Gostava de dar ordens e ser obedecido, pelo temperamento herdado, má educação e pelo seu físico avantajado para a idade. Tratava a mãe friamente, tal o pai fazia, e nunca tivera com ela qualquer gesto de carinho. Diferentemente quando se relacionava com o pai, que o bajulava e fazia-lhe todas as vontades.
Lourdes viu os erros naquele modelo de relacionamento e, na única vez em que ousou fazer um comentário o marido, em tom colérico, disse apenas que ela invejava o amor que o filho lhe devotava e que ela era incapaz de suscitar tal sentimento. As brigas do casal eram comuns, não por iniciativa dela. O ma-rido aproveitava sempre essas ocasiões para chamá-la de imprestável e inútil, enquanto se colocava na posição do sacrificado, por ter que trabalhar todos os dias para sustentar a família, enquanto ela permanecia em casa. Esquecia-se, propositadamente, que fora ele mesmo quem a obrigara deixar o emprego de professora de música para cuidar do lar e criar os dois meninos.
Clarice estava chegando na adolescência e não tinha a mesma atenção pater-na que desfrutava o irmão, mas também sofrera bastante a influência paterna. Na verdade tinha um certo medo dele, pois em diversas ocasiões presenciara as brigas e viu como ele se enfurecia quase ao ponto de agredir a mãe. Por vezes se lembrava de sons que pareciam agressões físicas quando o casal brigava com a porta do quarto fechada. Por isso é que sempre ficava ao lado do pai, mas sem a convicção do irmão.
Lourdes não era uma pessoa feliz. Vivia introspectiva e sentia-se impotente para modificar sua situação. Tivera o casamento praticamente arrumado pelo falecido pai, que por receio de entregar os seus negócios à filha, preferiu fazê-la casar-se com Rangel, um empregado de confiança, visando proteger os pró-prios bens. Estava quase que agradecida porque havia conseguido alguém para casar, afastando o complexo que carregava desde menina devido a uma pequena deformidade no tornozelo, fruto de uma fratura negligentemente tratada, porque o pai não se dispôs gastar o dinheiro que possuía no seu tratamento preferindo, ao invés, aplicá-lo nos seus negócios.
Aceitou o casamento arranjado porque acreditava que poderia um dia vir amar aquele homem, inicialmente um cavalheiro, mas que somente tentava impres-sionar a família visando os bens do sogro e que não tardou em mostrar a ver-dadeira personalidade, principalmente depois do acidente que matou os so-gros.
O fator que mais pesou para ruir de vez o relacionamento dos dois foi um deta-lhe no contrato de casamento. Rangel acreditava piamente que herdaria a for-tuna do sogro após seu falecimento, crença lograda pela cláusula espertamen-te colocada pelo advogado da família, Dr. Cristiano, que, contrariando as or-dens do falecido, estabeleceu que o casamento seria em comunhão parcial de bens. Portanto, não haveria a transmissão da sua herança. Rangel não cansa-va de dizer que ela era uma traidora por não confiar nele. Passou essa imagem negativa para os filhos, que aceitaram como verdadeira as ponderações do pai.
Na verdade, o advogado, talvez prevendo o futuro e tentando preservar os bens para Lourdes, assim procedeu e não dera ciência para ninguém. Lourdes sequer entendia desse tipo de assunto, preferindo aqueles ligados às artes e, principalmente, à música, razão pela qual seu pai nunca lhe confiou as rédeas dos negócios. Desde que o falecido manifestara a idéia de casar a filha com Rangel e externara seus motivos, o Dr. Cristiano duvidou que aquela seria uma boa idéia. Nunca simpatizou com o futuro marido e tomou aquela decisão colocando em risco a própria credibilidade. Mas seu apego à Lourdes, que via como uma filha que não teve, foi suficiente para correr tal risco. Nunca perdoara o velho por negligenciar a filha daquela forma mesmo havendo dito que o dinheiro para a cirurgia dela não afetaria sobremaneira os novos negócios.
Lourdes há muito deixara de sair com a família. Era comum sofrer veladas hu-milhações, principalmente quando caminhavam juntos, porque o marido adiantava-se propositadamente com os filhos deixando-a sempre para trás. Lourdes tentava acompanhar-lhes os passos, mas a sua incapacidade não permitia. Rangel então parava à frente e dizia com ar de contrariedade: “vamos esperar a sua mãe”. Também deixara de levar os filhos à escola, a pedido desses, pois confessaram que ficavam envergonhados quando os coleguinhas imitavam o seu modo de caminhar. Com o tempo somente Rangel saia com as crianças. Nas férias escolares ia sempre com elas para uma temporada na casa de praia. Lourdes ficava só. Sabia, intuitivamente, que o marido se afastava não só porque assim poderia evitá-la mas porque tinha razões para acreditar que Rangel tinha uma amante. Certo dia, sem querer, Flávio comentou que a Sônia seria uma mãe bem melhor. Indagado quem era essa pessoa, Flávio disfarçou e disse que era uma personagem de um filme que tinha visto. Com sua curiosidade de mulher procurou na agenda eletrônica do marido e constatou a existência de alguém com este nome. Viu também no arquivo de ligações várias chamadas para este número. Foi a última vez em que se preocupou com essas coisas e sentiu-se envergonhada de ter recorrido a esse expediente. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, o marido pediria o divórcio e os filhos ficariam com ele.
Foi nessa época que Amendoim chegou à de sua casa.
Lourdes acordou pela manhã bem cedo. Decidira voltar ao seu piano e futura-mente tornar-se novamente professora. De certa forma esse afastamento da família poderia trazer-lhe alguns benefícios, já que tocaria livremente sem as restrições dos filhos e marido, cujas alegações eram que "aquelas músicas atrapalhavam". Estava na cozinha preparando o café matinal quando viu do outro lado da rua aquele menino solitário sentado no meio fio. Tomou seu café em frente à janela e ficou por um tempo olhando aquela figura imóvel. A princípio julgou estar o menino apenas esperando alguém, visto ser muito pequeno. Mas, com o passar do tempo, percebeu que estava errada em seu julgamento. Saiu de casa e caminhou até o portão, certificando-se de que não se tratava de nenhum ardil para assaltá-la. A rua estava completamente deserta e o menino estava absolutamente só. Abriu o pesado portão e caminhou até ele e indagou se tinha se perdido de casa. Percebeu o embrulho malfeito, deixando à mostra um pequeno pedaço de pão, e logo deduziu que se tratava de algum menino abandonado ou fugitivo de alguma instituição. A principio ele não respondeu, parecendo estar saindo de um longo torpor e demonstrando um imenso esgotamento.
- Você precisa comer, está tão magrinho. Venha comigo.
Amendoim quase não acreditava no que ouviu. Tinha sido convidado a entrar em uma casa e ainda tinham oferecido comida. Estava como sempre faminto.
Lourdes olhou o aspecto lastimável do menino, completamente sujo e com o short praticamente em pedaços. Parecia não acreditar no que estava vendo. Perguntou se ele gostava de café, e o menino respondeu que simplesmente nunca havia tomado café. Lourdes sorriu com ternura e deixou o menino na varanda, enquanto preparava algo para ele comer. Receou que estivesse com alguma doença e, por precaução, deu-lhe a refeição em um velho prato de plástico e uma colher de alumínio nunca usada. Pegou a caneca que costumava usar para lavar seus pincéis na época em que pintava e colocou o café com leite. Amendoim, sentado no chão da varanda, arregalou os olhinhos quando o cheiro daquela comida invadiu suas narinas. Era o cheiro que sentia nas calçadas quando passava pelas manhãs à cata de alguma coisa para comer. Agora, pela primeira vez, tomaria um café de manhã. Lourdes pousou o prato e a caneca sobre a mesa e levou Amendoim para os fundos da casa, lavando-lhe vigorosamente as mãos na torneira do jardim. Depois voltaram para a varanda e Amendoim pode, finalmente, satisfazer seu imenso desejo. Pode comer sem se preocupar em guardar para mais tarde, porque foi-lhe dito que, se quisesse, poderia comer mais.
Lourdes nunca aprendera praticamente nada de cozinha e às vezes que tentou dar café da manhã para os filhos viu a cara enojada deles desdenhando a refeição. De nada valia a ternura da preparação. Agora, pela primeira vez, viu a satisfação de alguém comendo o que ela tinha preparado. De alguma forma, aquele inocente e faminto menino tinha lhe devolvido alguma auto estima.
Amendoim olhou para imenso quintal e disse que tinha que retribuir a refeição com trabalho.
- Eu preciso trabalhar para a senhora. Eu posso catar as folhas e tirar todo o lixo. Eu sei fazer isso.
E, olhando com aquele rostinho triste, perguntou. - Deixa?
Lourdes admirou-se com tamanha determinação e disse que não era necessá-rio. Mas o menino insistiu e ela acabou cedendo.
Amendoim muniu-se de uma pá de plástico e de uma vassoura desproporcional ao seu diminuto tamanho. Lourdes viu-lhe a expressão de felicidade quando começou a varrer e catar as folhas outonais. Deixou o menino nos fundos da casa e sentou-se ao piano. De vez em quando parava e ouvia o suave varrer nos fundos. Levantava e via aquele menino incansável que lentamente ia limpando o terreno. Sabia que, pela morosidade, o serviço nunca seria concluído, até porque sempre novas folhas tornavam a cair. Quando chegou na hora do almoço ela preparou um macarrão instantâneo e comeu sozinha, esquecendo-se completamente do menino. Voltou para o piano e, somente ao entardecer percebeu que não estava só. Levantou-se de súbito e viu o menino catando lentamente as folhas e nem parecia abalado pelo fato de não ter comido. Sequer pediu um copo com água, presumindo que tinha bebido da torneira ou simplesmente ficara com sede. Decidiu chamá-lo para comer algo e tentou lembrar seu nome, percebendo também que não perguntara.
- Ele deve estar morrendo de fome. - Disse para si.
Pegou então o prato de plástico e colocou o restante do macarrão que não co-mera e deu ao menino. Amendoim devorou com enorme satisfação e ficou ra-diante, pois essa era também a primeira vez que fazia duas refeições em um só dia. Amendoim não se atreveu pedir para ficar naquela casa. E, ao final da tarde, Lourdes abriu o portão e ele entendeu que era para ele sair. Olhou bon-doso para ela e foi se afastando bem devagar, ouvindo o estalido do portão se fechando às suas costas. Caminhou mais um pouco e deu apenas algumas voltas na vizinhança. Seu instinto lhe dizia para voltar àquela casa e, quando escureceu por completo, voltou e sentou-se novamente no meio fio da calçada esperando pelo amanhecer. Ali adormeceu e voltou a ter os belos sonhos que sempre tinha. A lembrança desse último sonho foi um pouco diferente. Nele, tinha perguntado se poderia ficar para sempre naquele local. A resposta foi que faltava pouco para isso. Amendoim acordou intrigado. Olhou em volta e o dia ainda não tinha amanhecido. O vento frio da madrugada obrigou-o a sair da beira da rua e aconchegar-se num cantinho, como se aquilo adiantasse alguma coisa. Os primeiros raios de sol aqueceram seu rostinho e ele acordou. Ao seu lado formigas inocentes carregavam incessantemente o que precisavam para abastecer o formigueiro. Amendoim viu aquele montinho de areia em forma de vulcão e ficou entretido com aquele vai e vem. Percebeu que elas carregavam folhas demasiadamente grandes e resolveu pegar algumas e picá-las, deixando-as bem pequenas. Sorriu quando algumas das formigas pegaram o seu presente e assim permaneceu distraído, olhando aquela grande família.
Lourdes acordou cedo e foi preparar o café da manhã. Estava cantarolando uma música qualquer, completamente esquecida do dia anterior, quando seus olhos vagaram pela janela. Lá estava novamente o menino. Colocou a xícara vagarosamente sobre a pia e ficou fitando aquela figura minúscula ao longe que não se mexia. Lembrou-se da satisfação dele ao comer e da tenacidade em querer retribuir a qualquer custo as refeições. Lembrou-se também dos seus andrajos. Respirou fundo e ficou algum tempo tentando decidir se abriria o portão e o deixaria entrar novamente. Seus receios e frustrações eram tão fortes que tentava reprimir a emoção que advinha do seu coração. No fim, ce-deu e foi ao portão. Abriu-o devagar mas o menino não se moveu, lançando sobre ela um olhar de esperança. Lourdes sorriu convidando a entrar. Amendoim abriu um sorriso e levantou-se imediatamente, perguntando se poderia continuar o trabalho. Lourdes assentiu e Amendoim foi de imediato aos fundos da casa pegando na velha vassoura e na pá. Lourdes engoliu uma saliva dolorida. Olhou aquele pratinho de plástico e a caneca esquecidos num canto da varanda e recolheu-os carinhosamente. Levou para a cozinha e lavou-os, colocando em seguir flocos de milho com leite e um pedaço de pão. Voltou para a varanda mostrando a refeição e pediu que o menino lavasse as mãos, como fizera da vez anterior. De maneira atrapalhada pela falta de prática, Amendoim abriu a torneira e o jato forte esguichou nele, provocando uma despojada gargalhada em Lourdes. Com suas mãozinhas pingando aproximou-se do prato e engoliu uma saliva de satisfação. Nunca tinha visto aquilo e ficou olhando alguns segundos antes de mergulhar a colher e comer. Aqueles flocos doces misturados com leite fez seu paladar viajar ao paraíso, acostumado que estava aos restos de comida quase deteriorados. Lourdes viu aquele menino esfomeado comer com tanta satisfação que preferiu manter-se em silêncio, perguntando a si o porque nunca vira os filhos ter igual comportamento. Para eles sempre havia um defeito, quer na aparência quer no paladar. Depois passou a observar melhor aquele corpinho imundo vestido num trapo e teve a idéia de comprar-lhe algo. Havia próximo à sua casa um pequeno bazar onde vendiam roupas populares e, deixando o menino nos seus afazeres saiu e comprou as duas peças. Lembrou-se depois de que ele também estava sempre descalço. Viu um par de sandálias de borracha na vitrine e comprou-as também. Voltando, encontrou o menino concentrado em catar as folhas que voavam ao vento e parecia se divertir, como se estivesse a brincar com elas. Estrategicamente, Lourdes preferiu somente entregar as novas vestimentas após o banho, supondo que ele iria para casa e sequer imaginando que ele simplesmente andaria pelo bairro até escurecer, sentando no seu cantinho à espera do dia amanhecer.
Ao final da tarde ela resolveu dar um banho no menino. Chegou até os fundos da casa, onde havia a torneira, e adaptou a mangueira de jardim nela. Já havia trazido o sabonete e uma luva de banho para esfregar a sujeira crônica. Uma velha toalha também fazia parte do seu arsenal de limpeza. A sacola contendo as novas roupas estava fechada, ocultando o seu conteúdo. Amendoim viu tudo aquilo em suas mãos mas não imaginou o que viria em seguida. Lourdes deu por encerrado o seu dia de trabalho e chamou o menino para junto dela. Obediente, o menino aproximou-se e Lourdes pediu para ele tirar aquele trapo. Amendoim tirou sem nenhum pudor, expondo ainda mais a sua magreza. Lourdes apontou a ponta da mangueira e começou a molhar aquele corpo já molhado de suor. Amendoim fez uma cara de satisfação. Toda a água que lhe banhara anteriormente era a proveniente das chuvas. Agora sentia aquela du-cha morna e a sensação era extremamente agradável. Lourdes calçou a luva já molhada e devidamente ensaboada e fechou a mangueira. O menino estava de costas. Aproximou a mão daquele corpinho e vacilou antes de tocá-lo. As lembranças das reações dos filhos praticamente impediram-na de continuar. Lutou contra aquelas memórias e tocou suavemente naquele corpinho imundo. Respirou fundo e aproximou mais ainda a luva das suas costas, tocando-as devagar. Foi ganhando confiança na sua iniciativa e começou efetivamente a esfregar com mais vigor, mas suavemente. Olhou em direção à face do menino que mantinha um sorriso leve e calmo e permanecia com os olhos fechados. Finda a limpeza com a luva, religou a mangueira e começou a esguichar a água no menino. Os jatos faziam cócegas e ele ria sem parar. Lourdes então começou a brincar com os jatos, e suas lembranças da última vez em que fez isso com os filhos foram as graves admoestações e impropérios deles. Mas dessa vez as más lembranças ficaram em segundo plano. Ela estava plenamente confiante de que Amendoim se divertia com esse seu lado de menina travessa que sempre manteve oculto da família. Quem passava de longe via uma mãe feliz brincando com seu filho. Ela estava realmente feliz.
Depois de enxuto, o menino viu-a abrindo a sacola e dela tirando um shortinho preto e uma camiseta azul com o desenho de um sapinho verde. Amendoim logo adivinhou que era para ele. Ficou imaginando que o trabalho que fazia era muito bem feito para receber tantos presentes e afagos. Aquele menino jamais tinha conhecido qualquer gesto de amor materno. Lourdes vestiu-o com imensa ternura e por fim deu-lhe as sandálias. Amendoim calçou-as meio sem jeito. Nunca usara nada parecido. Era uma sensação boa e diferente pisar em algo tão macio. Caminharam juntos até o portão e Amendoim saiu com o seu olhar agradecido. Não era de falar muito, mas a sua fisionomia era sempre eloqüente.
À noite, enquanto Amendoim se recolhia em seu cantinho na rua, extasiado com o que acontecera naquele dia, Lourdes sentava-se ao seu piano para mais uma etapa de exercícios. Com uma partitura à sua frente começou a tocar sem nenhuma concentração, errando a todo instante. Seus pensamentos estavam naquele menino calado e de aspecto tristonho. Sua memória trouxe os sons da vassoura alisando a grama do quintal e aqueles passinhos à cata das folhas. Sem perceber, suas mãos tocavam nas teclas do piano como se aquelas lembranças estivessem escrevendo algum tipo de melodia. Deixou-se levar por aqueles mágicos momentos sentindo apenas a música sair de sua alma. Tocou novamente alguns trechos que reteve de memória e resolveu escrevê-los. Fez depois pequenas adaptações tonais, acrescentando outros trechos, e tinha pronta uma composição ainda sem nome. Tocou-a algumas vezes até memorizá-la e depois foi dormir. Essa foi a primeira noite em que conseguiu um sono leve e reparador.
Logo que amanheceu o dia correu para a janela e, feliz, viu o menino sentado na calçada. Antes mesmo de tomar seu café, foi até o portão e fez o menino entrar. Amendoim lavou as mãos antes de sentar-se na varanda e ficou espe-rando o seu café da manhã. Ele não sabia onde colocar tanta felicidade. Hoje veio algo diferente mas, fosse o que fosse, era sempre bem vindo. Lourdes também estava feliz. Aos poucos estava recuperando a sua auto estima e a-creditando que era capaz de fazer alguém feliz, mesmo que fosse apenas um pobre menino desconhecido.
Amendoim continuou a sua tarefa enquanto Lourdes exercitava-se ao piano. Em dado momento, ela lembrou-se da música que havia composto no dia ante-rior e começou a tocá-la. Tocou-a com tanto empenho e amor que Amendoim deixou a sua tarefa e aproximou-se da varanda, onde poderia vê-la e ouví-la. Lourdes não viu o menino até que terminou a música. Virou-se para fora e o que viu foi um ouvinte comovido e compenetrado. As comparações com a família foram inevitáveis. Novamente aquele pequeno ser lhe dizia que ela era uma pessoa capaz de suscitar belos sentimentos sepultando de vez seus complexos. Ela ficou fitando aqueles olhinhos perdidos e encantadores e perguntou se ele queria ouvir a música novamente. O seu sorriso admirado foi a resposta. Lourdes tocou mais uma vez e depois disse que tinha composto aquela música para ele. Lembrou-se depois que nunca havia perguntado o seu nome. Ao ser perguntado, ele simplesmente disse que o "seu" Virgílio o chamava de Amendoim.
Acreditando que se tratava apenas de um apelido ela resolveu colocar o nome da música de Menino do Amendoim. "Ela é muito bonita, Dona Lourdes." Disse o menino. Passou mais uma semana e a bela rotina familiar continuou. Lourdes estava se curando das chagas psíquicas adquiridas ao longo da sua vida e sequer teve tempo de perguntar algo sobre a origem daquele menino. Aquele presente dos céus simplesmente apareceu em sua porta e assim foi ficando.

Paciente no hospital

Certo dia Amendoim sentiu um cansaço inesperado. Sua respiração tornou-se curta e rápida ao ponto dele não ter forças para trabalhar. Mas a sua tenacida-de foi maior e ele terminou suas tarefas conforme sempre o fizera. Já havia sentido algo parecido dias antes, mas creditou ao calor e ao cansaço. Durante o banho as corridas que fazia fingindo fugir dos jatos d'água foi extremamente cansativas. A uma certa hora caiu e assim ficou por alguns instantes. Lourdes, atarefada em enrolar a mangueira e guardar os apetrechos do banho, não per-cebeu no menino, acreditando que ele estava apenas a continuar a brincadeira. Amendoim descansou enquanto Lourdes voltava e levantou-se com alguma dificuldade. Saiu pelo portão e caminhou devagar. Sua respiração estava disparada e sentia o coração dolorido. Sua única preocupação era a de não poder trabalhar no dia seguinte. Achou que estava apenas cansado e não sentiu quando as forças lhe faltaram derrubando-o no chão. Acordou em uma cama com algumas luzes piscando ao seu lado e uma máscara em seu rosto. Pareceu-lhe mais um sonho, mesmo que bastante diferente dos que costumava ter. Olhou para os lados tentando reconhecer algo e notou alguns fios presos ao seu peito. Não entrou em pânico, apenas esperou pelos acontecimentos.
Passado alguns instantes um homem de semblantes pesados se aproximou dele, colocou algo no ouvido e encostou uma coisa meio gelada no seu peito. Ficou assim ouvindo e procurando algo que ele não entendia o que, até o ho-mem se apresentar.
- Eu sou o Dr. Roberto. Você dormiu bem? . Amendoim não soube dizer. Disse que estava na rua e acordou naquela cama. O médico olhou para ele exami-nando os seus olhos e mãos e fez algumas anotações. Amendoim percebeu a tristeza no olhar do médico e, na sua inocência disse: " não fica triste não, mo-ço, porque coisas boas sempre acontecem." O médico, tomado de surpresa pela percepção daquele menino, apenas sorriu e dirigiu-se para outro leito.
Há anos o Dr. Roberto atravessava uma crise familiar que ocultava até dos a-migos mais íntimos. Sua dedicação excessiva ao trabalho o tinha afastado do convívio familiar ao ponto da sua mulher pedir o divórcio. No fundo ele não sabia se aquela dedicação era fruto do apego ao trabalho ou uma desculpa para ficar distante da família. Havia se casado por imposição de um dilema moral, pois havia engravidado a mulher e lutava com o drama de consciência entre o aborto e o casamento. Prevaleceu o segundo. Nunca se sentira preparado para a paternidade ou para uma convivência em comum. Sua vida ainda era incentivada pelas utopias de adolescente aventureiro que não queria criar raízes onde quer que fosse. Agora era um médico com responsabilidades familiares e profissionais. O divórcio parecia a solução mais sensata, mas algo que ele não sabia impedia de ver essa como a solução para o seu caso. Relutava em começar uma psicanálise por sentir um certo pejo em mostrar-se tão intimamente para outra pessoa.

Lourdes acordou para mais um dia. Estava estranhamente bem, mesmo depois de uma pesada conversa na noite anterior com o marido. Por telefone, ele ha-via comunicado a intenção em pedir o divórcio e que as crianças haviam mani-festado o interesse em permanecer na sua companhia. Disse também que não tencionava voltar àquela casa preferindo continuar no apartamento do casal em zona mais nobre. Lourdes ouviu tudo sem nenhuma surpresa e apenas exigiu que o Dr. Cristiano fosse o advogado responsável pelo caso. Sentou-se na cama antes de levantar e fez uma breve avaliação de como seria a sua vida de divorciada. Sabia que os amigos do casal acabariam se afastando, pois eram amigos do casal. Mas também não tinha amigos a lastimar a perda, somente aqueles que teve na adolescência mas que se afastaram nas estradas das suas vidas. Levantou-se finalmente e dirigiu-se diretamente para o portão. Agora, mais que nunca, aquele menino faria parte de sua vida. Num breve momento, percebeu que nunca se interessou por ele, apenas o alimentou e banhou. Sentiu-se mal em ver-se tão displicente e egoísta cuja relação com ele visava apenas preencher o vácuo da sua vida. Seu coração apertou ao olhar a calçada e não ver o menino. Sua boca secou. Saiu e atravessou a rua para melhor visualizar a rua, mas ainda assim não o viu. Resolveu então dar uma volta no bairro. Pensou que poderia estar a caminho ou estar com algum mal estar e permanecido em casa. Enfim, poderia ser qualquer coisa. Passou em frente ao pequeno bazar e lembrou-se do dia feliz em que fez as compras. Viu a mesma senhora que tinha lhe atendido sentada em um banco à espera de algum cliente. Ela havia se tornado especial, pois de alguma forma participara da sua vida com o Menino do Amendoim. . Voltou para casa e ficou na varanda à sua espera esquecendo-se completamente de tomar o seu desjejum.
O dia passou lento e pesado. Lourdes praticamente nada fez, lembrando-se a todo instante do menino. Sentou-se ao piano e tocou a canção especialmente composta para ele, na veleidade dele aparecer como sempre acontecia quando ela tocava e via aquele ouvinte atento no cantinho da varanda segurando a enorme vassoura.
A mente humana é pródiga em criar fantasias quando precisamos de algo. En-quanto tocava, Lourdes ia criando cenas de carinho com o menino, não efeti-vadas em decorrência dos seus múltiplos traumas. Temia ser repudiada como tantas vezes o fora ao tentar um contato com o marido ou com os filhos. Torna-ra-se assim mais fria, embora o seu coração clamasse sempre o contrário. Dei-xou passar todas as oportunidades com o menino e agora buscava fragmentos de memória que mitigassem sua dor. Grossas lágrimas brotaram em seus o-lhos. A cena que mais ansiava a realidade era ela estreitando aquele corpinho contra o seu, transferindo todo o amor reprimido durante anos como uma erup-ção vulcânica.
Seus devaneios foram interrompidos pela campainha. Levantou-se penosa-mente da sua banqueta sem perceber que estava em completo jejum. Sentiu uma leve tontura e acendeu a luz da varanda. Já havia anoitecido. Com alguma dificuldade avistou o Dr. Cristiano no portão. Acionou o controle remoto e, pelo interfone pediu que entrasse.
Atirou-se sem nenhum pudor em seus braços soluçando convulsivamente. O Dr. Cristiano, a princípio, julgou ser aquelas emoções frutos do pedido de di-vórcio. Lourdes acalmou-se depois do advogado servir-lhe uma xícara de café, quando soube do seu jejum. Sentaram-se depois e, deixando o assunto do divórcio em segundo plano, contou toda a história do misterioso menino que um dia aparecera em sua porta e freqüentou a sua casa durante os últimos quinze dias. Lourdes jamais se abrira assim com ninguém, mas o Dr. Cristiano sempre fora um pai para ela. O advogado ouviu toda história atentamente sem interromper, mesmo quando a narrativa era cortada pela voz embargada pela emoção.
Finda toda a história, Lourdes desculpou-se e falou sobre o divórcio. O diligente advogado, já há muito esperando este desfecho, tinha preparado todo o inventário necessário à separação. Lourdes assinou o documento sem se dar ao trabalho de lê-lo, mesmo sendo advertida a questionar certos detalhes. Sua confiança no advogado era total e, além do mais, não entendia nada do que lia naquele calhamaço. Finda aquela formalidade o Dr. Cristiano tentou encetar algumas trivialidades com o fito de animá-la. Conversaram mais um quarto de hora e o advogado retirou-se, prometendo ser célere naquele desfecho. Antes, contudo, prometeu empenhar-se para descobrir o paradeiro do menino, caso não aparecesse no dia seguinte.
Chegando em casa jogou-se pesadamente na poltrona. Afrouxou o nó da gra-vata e serviu-se de uma bebida. Sorveu o primeiro gole e encontrou o olhar inquisidor da esposa. Olga era uma mulher madura e sensitiva. Conhecera o marido quando estudantes de direito e tiveram uma paixão fulminante. Casa-ram-se semanas após o primeiro encontro e, contrariando a todas as apostas, mantinham a união há quase cinqüenta anos. Olga tivera uma brilhante carreira de magistrada, alçando o posto de desembargadora até a sua aposentadoria. Dotada de uma convicção espiritualista a toda prova era a conselheira favorita de tantos quanto fossem buscar sua ajuda. O Dr. Cristiano, embora um católico sem muita convicção, respeitava-lhe profundamente as opiniões mesmo aquelas fundamentadas na doutrina Kardecista.
Olga ouviu atentamente a narrativa do marido acerca dos percalços de Lourdes e sobre o misterioso menino. Levantou-se em seguir dizendo que argüiria junto aos amigos desencarnados sobre o menino. Cristiano apenas fez uma careta descrente.

A hora da silenciosa faxina dos cômodos era chegada. Sara, a servente encar-regada do quarto onde se encontrava Amendoim, aproximou-se devagar. As-pergiu o produto de limpeza no chão e foi passando sua vassoura. Fazia ges-tos suaves e cuidadosos, evitando tocar os pés das camas para não incomodar os pacientes. Ao chegar próximo ao menino viu aqueles olhinhos abertos e curiosos, que acompanhavam os movimentos da sua vassoura. Ao aproximar-se ouviu-o dizer que tinha gostado daquela vassoura e que a dele fazia barulho ao varrer. Sara ouviu intrigada, imaginando como alguém deixaria um menino tão pequeno fazer faxina. Amendoim quis contar o que fazia, mas a enfermeira pediu que Sara se afastasse e deixasse o menino descansar.
No dia seguinte ela voltou à tarde, antes de começar o seu turno, e foi direto ao quarto do menino. No seu trabalho era comum ser ignorada como ser humano e aquele menino, de alguma forma, soube valorizar o seu trabalho e enxergá-la como tal. Encontrou-o rabiscando um bloco com lápis de cera. O menino reconheceu-a de imediato abrindo um enorme sorriso e mostrando os seus desenhos. Sara olhou aquelas garatujas que lembravam algo parecido a uma casa com quintal. Amendoim disse que era casa da Dona Lourdes e que queria voltar para lá assim que saísse do hospital. A servente já tinha se informado acerca daquele menino, cuja identidade era desconhecida, e foi-lhe dito que ele tinha uma grave doença no coração e que dificilmente sobreviveria mais de uma semana. Ela olhou o desenho com ternura e teve um ímpeto de tristeza ao perceber que a esperança daquela criança não se realizaria. Tentou disfarçar os olhos úmidos fingindo pegar alguma coisa no chão e, de costas, disse que voltaria à noite. Amendoim, alheio à gravidade da sua saúde, continuou rabiscar suas memórias no bloco de papel, dessa vez desenhando o que lembrava do cantinho do "seu" Virgílio.
Pela tarde o Dr. Roberto chegou para as visitas médicas. Deixou o menino por último sem saber o porque dessa decisão. Findas todas as visitas, aproximou-se de Amendoim e viu-o animado com os desenhos. Sabia da gravidade da sua doença e que, devido ao longo período em que passou se alimentado a-baixo do mínimo necessário, suas condições físicas não suportariam uma complexa cirurgia de transplante. Para agravar mais a situação, não havia doa-dores disponíveis. Amendoim estava condenado irreversivelmente. Hoje, po-rém, estava com um quadro clínico estável e compensado, embora sua estrutu-ra cardíaca se esfacelava de maneira acelerada. Amendoim parou de desenhar e olhou para o médico. Mostrou orgulhosamente os seus desenhos e apontou aquele que parecia a sua melhor lembrança. Sem poder identificar de imediato aqueles rabiscos pegou o bloco e ficou olhando. Amendoim foi dizendo que era a casa da Dona Lourdes e, numa linguagem infantil e resumida, contou porque e o quanto era feliz naquele lugar. Contou sobre os banhos, a comida e a música. Disse também que ela havia dado roupas novas para ele. Em dado momento o menino perguntou se ele sabia consertar coração. O médico assentiu e o menino pediu para consertar logo o dele, pois a Dona Lourdes devia estar preocupada e o quintal cheio de folhas. O médico perguntou se ele queria voltar para essa casa e o menino disse que era tudo o que ele queria. Ao final ele disse: "ela é muito boa para mim." Naquele momento o Dr. Roberto compreendeu o que era a felicidade. Viu como apenas um mínimo fazia tanta diferença quando não se tinha nada. Aquele menino sem nome tinha apenas uma mulher que o explorava em troca de um pouco de comida, mas para ele era o máximo de felicidade. Ele era realmente feliz nas suas lembranças e parecia externar um grande amor por aquela mulher. Lembrou-se da sua família em frangalhos e do filho que via eventualmente à noite. Afagou os cabelos do menino e deu alguns telefonemas. À noite, ao invés de correr para os bares como sempre fazia, foi direto para casa. Entrou sem fazer barulho e encontrou a esposa dormindo. Dirigiu-se para o quarto onde o filho dormia e sentou-se ao lado de sua cama. Era um menino cuja idade era próxima ao do hospital. Ficou olhando aquela criaturinha inocente e percebeu o quanto de felicidade poderia ter e dar se dispusesse de apenas alguns instantes. Seu pequeno paciente, sem querer, havia lhe ensinado algo que jamais aprendera em nenhuma universidade. Afagou os cabelos do filho e permaneceu ao seu lado arrependendo-se de cada instante passado longe dele. Pensou também na mulher dedicada e renegada ao segundo plano da sua vida. Tão concentrado que estava em suas divagações contritas que não percebeu a aproximação da esposa. Ela, estranhando completamente aquela atitude, sentou-se na cama do menino como se estivesse pedindo uma explicação, embora se mantivesse silenciosa. O Dr. Roberto olhou para ela e depois para o menino. Num lampejo de lucidez pode perceber o tamanho do abismo que cairia sem o amparo daquela família. Naquele relance percebeu a diferença entre a satisfação e a felicidade. Aquele menino sem nome havia dado uma lição que lhe salvaria e à sua família. Em sua busca irresponsável pela felicidade percebeu que eram apenas satisfações as suas conquistas. Baixou a cabeça e tampou o rosto com as mãos ocultando a tristeza e o opróbrio. Sentiu as mãos amigas da esposa e, como um menino, deixou-se cair em seu colo, convicto de que finalmente havia encontrado a si e ao seu destino.

Conforme prometera, o Dr. Cristiano implementou a busca ao menino. De pos-se da descrição da roupa que possivelmente estaria usando, sua descrição física e local do desaparecimento, não teve dificuldades de encontrá-lo. Por sorte reconheceu Marta, uma antiga aluna que migrara para o curso de assis-tente social, trabalhando no hospital onde o menino estava internado. Após as saudações de praxe a ex aluna disse que o menino esteve internado há pelo menos uma semana e que falecera no dia anterior. Mesmo sem ter tido a oportunidade de conhecê-lo, o Dr. Cristiano teve uma ponta de tristeza. Sentiu-se decepcionado em não poder ajudar Lourdes e agora teria o penoso dever de comunicar uma notícia tão trágica. Lembrou-se do seu estado lastimável, que misturava arrependimento e ausência, e ficou imaginando um meio de lhe dar essa notícia. Marta percebeu seu velho mestre absorto e disse, interrompendo aquela abstração, que aquele menino era um tanto especial. Cristiano olhou para ela e indagou o que aquilo representava. Marta moveu os ombros num mudo e eloqüente "não sei".
Ficaram conversando sobre o menino baseado nos fatos por ele revelados nas entrevistas obrigatórias que realizou. De certa forma, ao saber do estado de Lourdes, compreendeu seu sentimentos. O Dr. Cristiano foi embora com a tris-te missão de transmitir-lhe o falecimento. Pensou em ir diretamente à sua casa, mas ponderou se essa seria a melhor idéia. Depois lembrou-se de Olga. "Creio que ela seria a melhor pessoa para falar com Lourdes", pensou baixinho querendo tirar o peso daquela responsabilidade.

Marta passou um bom tempo relendo as suas notas procurando montar aquele quebra cabeça representado pelo menino. Lembrava-se dele em cada resposta que dava e passou a ter por ele também uma enorme empatia. Depois pegou os seus desenhos e sorriu com ternura ao ver o mundo daquele menino repre-sentado de forma tão pura e singela. Olhou detalhadamente cada rabisco e ficou afagando-os com a mente no passado. Virou-se para a porta e viu Sara com a sua vassoura silenciosa e lembrou-se de ter visto um desenho que parecia retratá-la varrendo. Chamou-a e mostrou-lhe o desenho. Sara ficou olhando e logo seus olhos se avermelharam antes de derramar copiosas lágrimas. Balançou a cabeça devagar e disse com palavras entrecortadas: "Foi o anjinho quem desenhou, né?". Marta assentiu e, dada a emoção da servidora, contou rapidamente o significado dos outros desenhos e sobre o sofrimento de Lourdes pela perda do menino. Sara não entendeu bem qual era a relação de Lourdes com ele mas, mesmo assim, avaliou-lhe a enorme perda. Lembrou-se repentinamente de quando ele adentrou ao hospital ainda em coma e os médicos tiraram a sua roupa apressadamente, atirando-as no chão. Ela as havia recolhido e guardado em seu armário até poder entregá-las de volta. Marta radiou-se de contentamento pensando em devolvê-las a Lourdes. Sara saiu carregando o seu desenho como se portasse um verdadeiro tesouro. Guardou-o cuidadosamente no seu armário e pegou as roupinhas de Amendoim, entregando-as depois a Marta. Voltou para as suas tarefas e a todo instante lembrava-se do interesse do menino que acompanhava vivamente os movimentos da sua vassoura. Sara já trabalhava há anos naquele hospital e nunca alguém lhe tinha dirigido a palavra de maneira tão doce, tal era o grau de afastamento que as pessoas guardavam de trabalhadores dessa natureza. A partir desta data tornou-se uma pessoa mais orgulhosa da sua tarefa. Se um anjo tinha usado uma vassoura ela também usaria a sua com o mesmo amor descrito pelo desenho daquele menino.
Pela manhã, ao chegar em casa, Sara encontrou o filho já acordado e fazendo as lições de casa. Sara era uma mãe solteira cuja maternidade aconteceu por puro descuido de adolescente. O pai desapareceu logo que soube da gravidez e ela, por puro instinto maternal, recusou o aborto. Trabalhou duro, fazendo toda sorte de serviço degradante com o único intuito de criar o filho e educá-lo para ser "um bom homem", como costumava dizer. Marcelo tinha em torno de dezesseis anos e amava profundamente a mãe, não deixando jamais ser influ-enciado por desvios tão comuns à vida de jovens favelados. Sara o havia ma-triculado em um curso profissionalizante mantido por uma associação de pe-quenas empresas. Marcelo tinha boas habilidades e saíra-se bem no curso de marcenaria. Tinha ambições de formar-se em uma universidade e dar um con-forto melhor para a mãe.
Sara já havia feito um comentário acerca do menino. Tirou da bolsa o seu valo-roso presente e mostrou-o ao filho. Marcelo olhou demoradamente e depois virou-se para a mãe e disse: "menino maneiro esse". Marta assentiu, repetindo a frase do filho. Colocou o desenho dentro de uma gaveta para melhor protegê-lo e foi prepara o desjejum do filho. Marcelo saiu depois para a oficina e, sabedor das medidas do papel usado naquele desenho, resolveu fazer uma moldura para pendurá-lo na parede do barraco. Pediu ao seu mestre o material necessário e contou rapidamente a finalidade daquele trabalho. O mestre ficou pensativo por alguns instantes e depois abriu um largo sorriso. Pegou no almoxarifado um material de primeira categoria e autorizou também usar o vidro para proteção frontal. Ao entregar esse material ao estupefato aluno, o mestre disse: "Capriche no trabalho."
Marcelo esmerou-se ao máximo e, ao final, mostrou-a orgulhoso ao mestre. Esse examinou o trabalho e disse que já algum tempo tinha notado nele algu-mas qualidades que já poderiam habilitá-lo como empregado em uma empresa.
- Esse trabalho está muito bom. Estou pensando em contratá-lo, tá afim? - Per-guntou sorrindo já sabendo a resposta.
Marcelo aceitou de imediato. O mestre deu-lhe o resto do dia de folga e tam-bém um endereço para apresentar-se no dia seguinte. Ficou olhando aquele moleque com um sinal de aprovação. Seus olhos experientes já tinham ante-visto as qualidades morais daquele aprendiz e, depois do que tinha contado, sentiu-se gratificado em ajudar uma família que merecia ser ajudada.
Marcelo chegou em casa antes da mãe voltar do trabalho diurno como diarista. Mesmo depois de um plantão de limpeza no hospital, ela ainda reunia forças para continuar sua rude jornada. Marcelo foi até a gaveta onde ela tinha guar-dado com tanto carinho o desenho e colocou-o na moldura. Dependurou depois na parede em frente à cama onde ela dormia, com intuito de permitir olhá-lo ao adormecer. Sara chegou para preparar o almoço e Marcelo evitou falar na surpresa. Almoçaram uma comida simples e Sara foi recolher-se para o justo descanso. Marcelo costumava lavar a louça. Porém resolveu acompanhar a mãe até o quarto para ver a sua expressão ao notar o quadro. Mal sentou-se na cama para deitar e divisou aquela moldura na parede. Aproximou-se e não pode conter sua emoção. Agradeceu abraçada ao filho e ambos ficaram assim, juntos, admirando aquela obra. Marcelo interrompeu o silêncio e disse que, graças aquele trabalho, seu mestre havia contratado-o como marceneiro em uma oficina. Sara abraçou mais fortemente o filho e fechou os olhos agradecendo a Deus por ter colocado aquele pequeno paciente em sua vida.



O Dr. Cristiano deixou passar mais um dia para contar à Lourdes sobre o de-senlace daquele menino. Telefonou e marcou um encontro à tarde, evitando antecipar qualquer notícias sobre o menino. Embora Lourdes tenha perguntado sobre o progresso da busca, Cristiano foi vago em responder, deixando implícito que a visita se resumiria a assuntos do divórcio. Chegou junto a Olga, a quem teria a incumbência de abordar o doloroso assunto.
Lourdes estava abatida e triste criando em Olga receios em dar aquela notícia. O Dr. Cristiano começou tateando com um assunto sobre o divórcio, explicando o processo e dizendo que o desfecho seria rápido, já que as partes não litigavam sobre bens ou a guarda dos filhos. - O Juiz somente vai homologar o que acordamos, - Disse ao final. Depois olhou em direção à sua esposa como que perguntando sobre quando ela iria contar a verdade. Olga entendeu aquele olhar, mas estava em uma espécie de oração. Respirou fundo e tomou a palavra. Cristiano sentiu um vazio no estômago.
- Lourdes, você sabe das minhas convicções religiosas, não é? - Lourdes as-sentiu sem muita emoção
- A minha doutrina diz que nunca perdemos nossos entes queridos. A parte nobre de uma pessoa é eterna, por isso encaramos a morte como uma passa-gem natural que em absoluto significa uma ruptura com quem convivemos. Acrescento ainda que é perfeitamente possível reencontrar todos aqueles que julgamos ter perdido, mas em um outro plano, o espiritual. A saudade de al-guém que se foi é inevitável, mas a tristeza da perda é perfeitamente superada quando temos essas convicções. Existem diversas provas disso, embora mui-tos a achem uma utopia. Sei que você foi criada em um ambiente católico e por isso denega os princípios Kardecistas. Mas sei também que você é meio místi-ca e as experiências com alucinógenos perpetradas na sua juventude foram claras tentativas de que buscava explicações fora das suas crenças.
Lourdes ouvia atentamente embora sem saber o motivo daquela peroração.
Olga continuou: - Nós acreditamos em Deus. Muitos cometem o engano ao dizer que Deus possui qualidades humanas. Nós humanos não temos a única qualidade que Deus possui, que é o amor infinito por todas as suas criaturas. Eu disse todas, e aí estão incluídos todos os que consideramos bons ou maus. Um Deus que ama infinitamente não castiga seus filhos. Mas o que costuma-mos ver ao nosso redor? Pessoas doentes, aleijadas, pobres, famintas neces-sitadas, miseráveis e etc. Como conciliar um Deus que ama infinitamente com tanta miséria, tanta indigência? Que espécie de amor é esse que ampara al-guns e sacrifica outros tantos? Nenhuma outra doutrina é capaz de explicar esse paradoxo a não ser a kardecista. Nela, tomamos consciência de que a verdadeira vida está além dos nossos sentidos naturais. O universo é infinito e seria outro paradoxo termos vidas finitas. Logo, o mais lógico é supor que as nossas vidas são também infinitas. Não é justo alguém nascer com todos os privilégios em detrimento dos miseráveis ao derredor. Por isso, para que a jus-tiça Divina seja compatível com Seu amor infinito, todos devem ter as mesmas oportunidades. Todos nós erramos e todos temos oportunidades de corrigir nossos erros. A maneira sábia que Deus concebeu para isso é nos dando múl-tiplos nascimentos. Daí o fato de existirem pessoas tão positivas, que parecem que nasceram somente para fazer o bem, enquanto outras são exatamente ao contrário. São os anjos e demônios trabalhando juntos seus erros e acertos.
Olga olhou firme nos olhos de Lourdes e disse: - O teu anjo passou por aqui e te ensinou algumas coisas, tenho certeza disso. Os anjos não ficam muito tem-po entre nós, fazem o serviço e depois voltam para junto do Pai. Normalmente eles vêm disfarçados, geralmente em andrajos repulsivos, que nos obrigam a desnudar dos nossos ornatos adquiridos pelas nossas vaidades. Quando es-tamos assim, livres desses acessórios inúteis, adquirimos a sagrada visão de-les. Alguns são mais felizes e com eles convivem, nem que seja por alguns instantes que valem por toda a vida. Você foi uma privilegiada, pois ele esteve aqui em sua casa.
Ao final ela complementou: - Seu anjinho voltou para o Pai.
Um pesado silêncio se abateu sobre os três. Lourdes compreendeu que aquela fora a forma mais suave que Olga tinha encontrado para dizer que o menino tinha morrido. Sentiu o coração ser contraído numa dor que parecia consumi-la. Desejou morrer naquele instante. Se era tudo verdade o que Olga dissera, nada mais importava do que a companhia daquele menino. Queria estar com ele.
Depois de mais algum tempo o casal se foi, deixando Lourdes na solidão da sua casa.
Ao voltar para o carro, Olga manifestou extremas preocupações pelo estado de Lourdes. - Ela não chorou, e isso é muito preocupante. Sei que ela está pro-fundamente deprimida com o ocorrido, mas não desabafou, não colocou para fora suas emoções. Precisamos fazer algo, Cristiano.
Lourdes viu o carro se afastar e novamente o silêncio se apresentou como uma tormenta. Estava torporosa pelas noites mal dormidas e pouca alimentação. Sentou-se na varanda olhando para fora, na ilusão de ver novamente o menino mesmo em forma de um vulto. Mas apenas a luz bruxuleante dos postes se faziam presentes. Olhou para os lados e sentiu o enorme vazio tragando seu ser. Procurou lembrar as palavras que Olga tinha lhe dito sobre a vida e a morte e rogou a Deus para que fosse tudo verdade. Agora de nada valia o pudor religioso que insistia em negar aqueles argumentos. O que mais importava era alguma forma de trazer de volta aqueles poucos dias felizes que viveu. Os únicos dias realmente felizes da sua vida.

Amendoim abriu os olhos e viu aquele cenário sempre descortinado em seus sonhos. Olhou para os lados e parecia saber onde ir, tal o número de vezes que tinha sonhado com aquele lugar. Encontrou o sorriso das pessoas, as ár-vores, as flores, as montanhas e tudo o mais. Parou e olhou para frente, identi-ficando um banco parecido àquele que encontrara o seu primeiro comprador. O lugar era diferente, mas aquele banco, de alguma forma, o fez lembrar daquele dia. Aproximou-se intrigado e sentou-se, relaxando e olhando as belas paisagens. Sentia-se leve, sem dor, fome ou cansaço. Colocou a mão no coração e sorriu, achando que o médico o tinha consertado, conforme pedira. Suspirou feliz pela possibilidade de voltar para a casa da Dona Lourdes, comer aquelas comidas gostosas, ouvir novamente a música que ela tinha feito para ele e depois tomar um banho na mangueira. Enquanto assim imaginava, não percebeu de imediato que alguém sentara ao seu lado. Foi por puro instinto que virou o rosto para o lado. Abriu um largo sorriso quando pode rever o seu bondoso freguês. O homem passou seu gordo braço por trás daquele corpinho e trouxe-o mais para perto, num fraternal abraço. Amendoim sentiu-se protegido, como nunca tinha sentido. O bondoso senhor olhou para aqueles pezinhos absolutamente limpos e sorriu, balançando a cabeça como se estivesse aprovando algo. O menino parecia cantarolar algo enquanto balançava as pernas. Depois disse que estava tentando lembrar da sua música. O bondoso homem assentiu emitindo um som peculiar. Depois olhou para o menino e disse que ele precisava continuar o seu trabalho. Amendoim, na sua inocência, fez um sim com a cabeça e respondeu que agora podia voltar para a casa de Dona Lourdes, pois já estava curado. O homem voltou a assentir e disse que o trabalho agora seria um pouco diferente. O menino olhou interrogativo. O homem então perguntou:
- Lembra de quando você vivia em seu cantinho lá com o "seu" Virgílio?
Amendoim balançou a cabeça e acrescentou:
- Foi lá que eu aprendi a vender amendoim.
- Certo, - confirmou o homem.
- E lembra depois que você não pode mais ficar lá e encontrou a casa da Dona Lourdes?
- Foi sim, - Respondeu um pouco mais concentrado.
- Depois foi para um hospital, não é?
- É sim, respondeu o menino mais pensativo.
O homem então acrescentou que cada fase representava um trabalho diferen-te. Amendoim ficou pensativo e perguntou:
- Mas que trabalho é esse que o senhor está falando? Eu só sei vender amen-doim e varrer, não sei fazer mais nada. O homem riu daquela inocência.
- Sabe sim, Amendoim. Você dá e ensina coisas importantes para as pessoas. As coisas mais importantes que uma pessoa deve aprender, acrescentou com ênfase. Amendoim pensou e ficou imaginando o que seria.
- Então eu não vou voltar mais para a casa da Dona Lourdes?
- Não, Amendoim. Estamos precisando de você em outros lugares, por isso trouxemos você de volta.
O menino ficou olhando sem entender. O homem virou-se mais para ele e dis-se:
- Vou te explicar umas coisas. Você se lembra de quando estava no hospital e o seu coração doía muito? Você estava sempre cansado. Bem, o moço não consertou o seu coração, ele parou de funcionar e você deixou de viver naquele lugar. Agora vive aqui.
- Então eu morri? - Perguntou surpreso.
O homem soltou uma sonora gargalhada e acrescentou:
- Não, Amendoim, você não morreu porque a morte não existe. Apenas saímos de um lugar e entramos em outro. Quando você sonhava, o que ocorria de fato era uma visita que você nos fazia. Você nos visitava sempre, porque o trabalho que você fazia exigia muito sacrifício. Por isso você não tinha casa e vivia com fome.
Amendoim ficou intrigado pelo fato daquele homem saber tudo sobre ele. Em dado momento perguntou:
- Como o senhor sabe tanto sobre o que eu fazia? O senhor conhece o "seu" Virgilio, sabe do meu cantinho, sabe da Dona Lourdes...
O bondoso senhor gargalhou de novo.
- Eu era o seu anjo da guarda e estava sempre ao seu lado.
O menino olhou curioso e o bondoso senhor continuou:
- Eu dormia ao seu lado todos os dias no seu cantinho. Te acompanhei em todas as vendas que você fez. Quando você perdeu seu cantinho eu te guiei até a casa da Dona Lourdes. Sentei-me com você na calçada e ficava contigo esperando ela abrir o portão. Lembra das formigas?
Amendoim sorriu surpreso. O bondoso guia continuou:
- Ouvi ao seu lado a música que ela fez, enfim, eu estava sempre contigo, nunca te abandonei. Você sofreu porque através do seu sofrimento as pessoas puderam aprender coisas importantes sobre elas próprias. Você as deu amor e cada uma o recebeu ao seu modo, conforme suas necessidades.
Amendoim baixou a cabeça e ficou pensativo.
O homem ainda acrescentou:
- Eu estava te ouvindo quando você parou naquele dia no banco e chamou por mim.
Amendoim sorriu e emendou:
- É que eu estava precisando muito falar com o senhor.
- Ainda assim eu te ouvi, - completou abraçando mais fortemente o menino.

Lourdes continuava a viver a sua vida como um zumbi. Na verdade, sequer podia-se dizer que vivia. A casa tornara-se enorme e sem sentido. Em dado momento pensou que se o arrependimento viesse antes ninguém cometeria erros.
Seus dias eram inúteis e assistia apenas as horas se arrastando morosamente. A monotonia só era interrompida com as breves visitas do advogado. Porém, um telefonema de Marta mudaria sua vida.
Marta ligou para o Dr. Cristiano e comentou sobre os desenhos e também do desejo de entregar as roupas do menino. O advogado ponderou se isso seria uma boa idéia, dado o estado emocional de Lourdes que se culpava pela morte prematura do menino e por não ter dado a ele a assistência necessária. Nesse rol de culpas, insistia que deveria ter tido um interesse mais verdadeiro por ele, e não usá-lo para mitigar suas dores. Mas, ainda assim, resolveu encontrar-se com a assistente social, que lhe contou pormenores da relação afetiva do menino com a sua cliente. Cristiano ligou para Olga e quis saber a sua opinião. A intuitiva mulher pediu ao marido para convidar Marta e os três juntos iriam à casa de Lourdes para entregar-lhe os pertences. Por sugestão ainda de Olga, pediu a Marta que relatasse à Lourdes todos os detalhes que apurou da entrevista realizada durante a estadia do menino no hospital. Isto posto, marcaram para o dia seguinte a visita.



Lourdes recebeu o trio sem muito entusiasmo. Foi o Dr. Cristiano quem apre-sentou Marta. Olga pegou nas mãos de Lourdes e pediu que ela ouvisse aten-tamente o que Marta tinha a dizer, pois foi ela quem por último falou com o me-nino. Marta sorriu simpática. Sentaram-se e Marta abriu a sacola pegando as peças de roupa de Amendoim. Lourdes, com as mãos trêmulas, pegou-as e trouxe para perto de si.
Esperavam que ela derramasse uma lágrima ao ver aquelas roupinhas cuida-dosamente dobradas por Sara.
Após algum silêncio, Marta pegou os desenhos e foi mostrando e relatando o significado de cada um. Lourdes ouvia as explicações e sentia que a sua culpa e saudade aumentavam mais ainda. Cada tosco desenho trazia de volta à sua mente a cena nítida que representava. Podia até ouvir o som da sua voz e do sorriso franco ao correr dos jatos de água quando brincavam com a mangueira. Aquelas lembranças foram extremamente dolorosas, pois a culpa que sentia não diminuiu nem quando Marta lhe disse que o menino sentiu-se extremamente feliz e bem tratado na sua casa. Marta sabia que ele fora apenas um veículo para aliviar as suas próprias dores, e ninguém conseguia demovê-la desse pensamento. Não deixara sequer que ele entrasse na sala para ouvir a sua música.
Ao final do encontro os três se despediram e Lourdes ficou novamente só. Entrou e olhou os desenhos sobre a mesa e as roupinhas que ela havia comprado. Fechou os olhos tentando chorar, pois sabia que isso poderia trazer qualquer forma de alívio, mas não conseguiu. Sua garganta doía com o nó da angústia, mas ainda assim não chorou. Exausta, deitou no sofá e dormiu pesadamente.










O bom senhor passeava com Amendoim pelas belas paragens daquele paraí-so. Em dado momento o guia sentou-se e chamou o menino para perto de si, como se fosse confidenciar algum segredo. O menino sentou-se também e o bom senhor disse:
- Você precisa completar a sua missão.
Amendoim perguntou intrigado:
- Eu vou nascer de novo?
- Ainda não. - Respondeu o bom guia com um sorriso compreensivo.

Lourdes abriu os olhos e viu-se em sua sala, sentada no sofá. Estava sentindo o corpo leve, parecia que flutuava. A sensação de leveza aliviava as dores da sua culpa e ela sentiu uma pequena trégua. À sua frente um vulto luminoso começou a tomar forma. Uma brisa fresca e perfumada emanava daquela apa-rição que em nada a assustava. O vulto começava a tomar a forma de uma pequena figura humana que ela logo identificou. Ele estava ali, em seu sonho, olhando e sorrindo em sua direção. Lourdes ajoelhou-se como se reverenciando uma santidade e o menino aproximou-se dela. Ficaram um tempo olhando-se mutuamente e foi ele quem tomou a palavra:
- Eu vim aqui para dizer que a senhora não precisa continuar sofrendo. Nin-guém me tratou tão bem quanto a senhora. Ainda tenho muita saudade de vir aqui, de comer da sua comida, de varrer as folhas, ouvir a minha música. Foi tudo muito bom. Eu vim agradecer. A senhora foi a única mãe que eu tive e eu não vou nunca esquecer. O meu anjo da guarda disse que nós vamos ficar juntos novamente. É verdade.
Amendoim aproximou-se mais ainda e Lourdes finalmente abraçou-o com for-ça. Sentiu seu perfume, seu corpo e seu amor. Agora chorava copiosamente abraçada ao menino, sentindo suas mãozinhas acariciando os seus cabelos. Ela permanecia ajoelhada, com a cabeça encostada ao peito do menino, sen-tindo o seu coração bater. Em dado momento afastou-se um pouco e, olhando naqueles olhinhos molhados pela emoção, pediu perdão por tratá-lo como tra-tou. Amendoim sorria com carinho e disse que não havia nada a perdoar, pois fora extremamente feliz enquanto estava com ela. Pegou nas suas mãos e le-vou-a para o seu quarto. Lourdes deixou-se levar. Estava tão leve que flutuou nas mãos do menino.


O dia amanheceu e Lourdes lembrou-se nitidamente do sonho. Sentia-se alivi-ada. Sentou-se na cama recordando todos os detalhes que reteve e, surpresa, lembrou-se de que adormecera no sofá. Levantou-se da cama e foi em direção ao sofá, onde viu o vulto do menino surgir. Fechou os olhos e sorriu, querendo acreditar que não se tratara apenas de um sonho. Ligou de imediato para Olga, que afirmou não ter sido apenas um sonho.
- Seu anjo veio te dar algum recado, acredite.
O mais fantástico que viu a partitura da música que compôs aberta no piano. Sabia que tinha guardado, com a promessa de não mais tocá-la. Agora ela es-tava aberta, como se ele estivesse pedindo para tocá-la novamente. Tomada de uma emoção incontida de extrema felicidade, tocou o Menino do Amendoim pensando nele. Depois tomou o café da manhã e parou para admirar os dese-nhos, desta vez com outros olhos. Ficou olhando os detalhes daquelas garatu-jas abraçada com as suas roupinhas, acreditando agora que aquele menino também fora feliz. Estava com saudades sim, porém sem os remorsos e culpa. Procurou o seu pratinho, caneco e colher e juntou com as outras lembranças e guardou-as junto com os objetos que lhes eram os mais valiosos. Lamentou não ter nenhuma foto, mas pintou um quadro que lhe pareceu a fisionomia mais fiel daquele anjo. Reparou depois no cartão deixado por Marta e ligou para ela perguntando onde ele tinha sido enterrado. Marta notou o novo animo em sua voz e tomou a iniciativa de ir com ela ao cemitério. Tomou também a liberdade de convidar o Dr. Cristiano e a Olga.
Chegando ao cemitério Marta guiou-os até o local da sepultura. Havia uma lápide escrita com nome " Amendoim" e a data de falecimento. Marta adiantou-se e disse que o enterro havia sido encomendado pelo Dr. Roberto e que ele fez questão de tratar pessoalmente de todas as formalidades, já que o menino iria ser enterrado como indigente. Disse também que no enterro estavam presentes muitos funcionários do hospital, que sentiram muito a morte daquele cativante menino. Lourdes anotou o endereço da sepultura com a viva intenção de voltar aquele local.
Passado um mês, Lourdes decidiu retornar ao cemitério. Desta vez foi só, por-que queria fazer uma prece. Colocou algumas folhas colhidas do seu quintal sobre o túmulo e chamou por ele. Ajoelhou-se depois e pediu a Deus para que um dia realmente pudesse estar com aquele menino novamente, conforme ele disse que seria possível. Olhou a lápide com o seu nome e pensou nele com o carinho de uma mãe. Depois, finda a prece, afagou a terra e levantou-se deva-gar. Olhou em volta e viu um menino parado, olhando curioso em sua direção. Lourdes aproximou-se dele e perguntou o seu nome. Ele respondeu que era Antonio, mas que ela poderia chamá-lo de Tuninho. Disse que morava naquela casa, que Lourdes soube logo que se tratava de um abrigo para menores sem lar. Ela respirou fundo e disse para si: - Dessa vez não vou repetir meu erro.
Pegando a mão do menino, que parecia ter a idade aproximada de Amendoim, foi com ele até o abrigo. Chegando, foi admoestado pela funcionária que re-clamou das constantes fugas dos meninos, alegando falta de pessoal suficiente para manter a guarda dos menores. O menino, cabisbaixo, foi entrando devagar, quando foi detido por Lourdes.
- Espera aí, onde você vai com tanta pressa? - Disse segurando carinhosamente seu braço.
O menino sorriu e disse simplesmente que "ia lá para dentro". Lourdes pediu para ficar mais um pouquinho com ele, o que foi concedido pela funcionária meio a contra gosto. Ficaram conversando mais algum tempo e, depois do me-nino entrar, ela quis saber de mais detalhes sobre aquela criança. Ela fazia parte do enorme contingente de crianças abandonadas que viviam pelas ruas. De imediato, Lourdes ligou para o Dr. Cristiano e disse que tinha a firme intenção de adotar aquela criança.
Embora o processo fosse demorado e agravado por ser Lourdes divorciada, Cristiano, com a prestimosa colaboração de Marta, conseguiu uma guarda pro-visória. Agora Tuninho tinha um lar e Lourdes passou a ajudar diversos abri-gos. Adotara uma criança e cuidava da manutenção das demais.
Certo dia Tuninho chegou perto dela com as mãos para trás e disse que tinha uma surpresa. Lourdes sorriu e disse que adorava surpresas. O menino disse que o presente foi um pedido que outro menino tinha feito. Lourdes pensou nos diversos meninos do abrigo e depois que Tuninho mostrou as mãos ela começou chorar copiosamente. Num gesto agradecido se abraçou ao menino que segurava um saquinho de amendoim torrado.

Em uma esfera superior o Menino do Amendoim sorria satisfeito. Havia com-pletado a sua missão.


FIM




Biografia:
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Outros títulos do mesmo autor

Contos A máquina da verdade jorge pires da silva
Contos pueriso jorge pires da silva
Contos o menino do amendoim jorge pires da silva


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