CONSELHO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE ( I.N.N.G.)
A TRANSFERÊNCIA
Autor: Dr. Gastão Pereira da Silva
l — O material de que dispomos
De posse de tais regras, já o leitor poderá indagar qual o material de que tem de utilizar-se para iniciar o tratamento psicanalítico. Pela história de sua personalidade? Pelas suas recordações? Através de suas impressões infantis? Pela história da própria enfermidade? Tudo isso pouco importa no começo. O que em verdade nos interessa é deixar falar o nosso paciente, o mais possível, sem intervir no que ele diz e sem selecionar as suas palavras.
Assim, pois, não devemos indicar-lhe nenhum caminho, senão o de lhe fazer ver que necessitamos saber tudo a respeito de sua vida. Esse primeiro encontro com o paciente não é nada fácil. Exige tato e habilidade de nossa parte. Em geral, o analisado nos chega sempre completamente desorientado, inibido por uma resistência quase invencível. De sorte que as primeiras palestras não passam, em essência, de conversas cordiais, que representam a fase preparatória para o verdadeiro início do tratamento. Nessas condições, a nossa atitude, de princípio, fundamentalmente passiva. Entretanto, depois de algumas sessões, já nos é possível ir conduzindo o analisado para um conversa que nada tem de comum com as palestras rotineiras. Já então, sem perder o fio do relato de nosso paciente, havemos de ir orientando as suas palavras para um campo mais propício. Como?
Advertindo-o de que os fatos que se passam presentemente deixam de nos interessar e que só o seu passado pode trazer à tona da consciência elementos dignos de serem registrados.
Em geral, a essa altura, os nossos clientes argumentam que o seu passado pouco interessa e que são fatos banais sem nenhuma importância para o tratamento. Devemos rechaçar tais ideias, convencendo-os de que a Psicanálise vive do detalhe dos acontecimentos aparentemente sem importância, e que por tanto o impulso que sintam de silenciá-los é fruto de uma resistência prejudicial ao andamento da análise.
O analisado, em regra, não atende com boa vontade ao convite que fazemos no sentido de nos relatar ocorrências que para ele carecem de todo valor. Mas nós devemos adverti-lo de que só mais tarde reconhecerá o grande interesse que apresentam aqueles fatos banais.
À medida que a conversação avança, havemos de ir salientando o poder negativo da autocrítica, a qual coloca no nosso caminho obstáculos de toda natureza. Assim, teremos de convencê-lo de que deve falar, procurando vencer a própria censura íntima, relatando tudo quanto lhe for passando pela cabeça, ainda que os pensamentos e ideias sejam despidos de qualquer interesse. O analisado deve conduzir-se como um viajante que, diante de uma janela de um vagão de trem, observa a paisagem, ou de um espectador que, diante da tela de um cinema, assiste a um filme. O filme, nesse caso, é a sua imaginação, o seu censório. Desse modo, deve-se abandonar completamente a visão introspectiva e não intervir ou comentar o que está vendo.
2 — A terapêutica
Não nos devemos esquecer, e é bom repetir, que a Psicanálise é a terapêutica da sinceridade. Por isso, devemos de início fazer um pacto para com o nosso analisado, no sentido de ele nos prometer, formalmente, ser absolutamente sincero nas suas revelações. Do contrário, tiraremos conclusões falsas e todo o tratamento fracassará.
Existem muitos pacientes que julgam conhecer o ponto de partida de suas enfermidades. Outros — os mais comuns — preparam o que vão dizer ao psicanalista antes de se submeterem às primeiras sessões.
Pensam que assim procedendo aproveitam melhor o tempo. Ambos os casos são inteiramente inúteis.
Aconselharemos, portanto, que prescindam de tal preparação, pois com isso nada mais fazem do que impedir que aflorem as repressões. Ainda outros pacientes procuram conversar com amigos sobre o andamento da cura e na presença do analista repetem a mesma conversa. É sempre prudente aconselhá-los então que devem considerar a sua cura como uma coisa absolutamente reservada e que é sempre prejudicial relatar os detalhes da mesma a qualquer pessoa, a não ser ao seu psicanalista. São bem mais interessantes os pacientes que guardam sigilo de suas neuroses.
3 — Uma fonte de fuga
Existem enfermos que requerem a aplicação de uma outra terapêutica interna, durante o curso do tratamento analítico. Quando isso se der, é preferível confiar essa outra terapêutica a um médico clínico. A prática de tratamentos combinados em casos de neuroses embaraça a cura analítica. Isto se dá em virtude de os pacientes perderem o interesse pela análise, procurando um derivativo clínico, se o próprio analista proceder assim. O analisado, no íntimo, entrega-se ao tratamento analítico com certa relutância e o tratamento orgânico é uma fonte de fuga.
4 — O início das confissões
Ao iniciar o tratamento, o analisado começa por dizer que não lhe ocorre coisa alguma à cabeça, que não tem nada a contar, que não se lembra de nada, que as suas ideias estão embaralhadas, nebulosas, obscuras, que os pensamentos fogem e assim não pode detê-los. Tudo isto é uma forma de despistamento, à qual não devemos ceder nem acreditar. Muito menos transigir.
Cabe-nos argumentar que não é possível uma tal ocorrência e que quando procede deste modo não está fazendo outra coisa senão selecionar o que vai dizer. Trata-se de uma forte resistência, que avança até a primeira linha, a qual o paciente não tem coragem de vencer. A nossa afirmação, enérgica, formal de que semelhante falta não tem razão de ser, obriga o analisado a iniciar as suas confissões com mais desembaraço.
5 — A argúcia do analista
O analista deve ser um observador arguto. Não deve perder o menor gesto, a menor atitude de seu cliente. No abrir uma porta, na maneira de olhar, de sentar-se, de cumprimentar, de dar um bom-dia, de preocupar-se com um detalhe qualquer, há um mundo de interpretações. Não é difícil interpretar essa classe de associações como uma transferência à pessoa do psicanalista, muito favorável, aliás, a transformar-se numa forte resistência.
Nesses casos, procuraremos descobrir os motivos dessa transferência, para encontrar acesso ao caminho das repressões patogênicas. As mulheres, por exemplo, que se acham preparadas a uma agressão sexual, e os homens que são portadores de complexos homossexuais reprimidos, ou recalcados, são os que mais comumente iniciam o tratamento, alegando uma falta de ideias para serem relatadas.
Também os primeiros sintomas e atos casuais dos pacientes apresentam singular interesse, pois: traduzem certos pontos recônditos de suas neuroses.
6 — A transferência
Podemos falar agora de um ponto capital em Psicanálise e que é conhecido pelo nome de transferência. A transferência é uma ocorrência importantíssima no tratamento analítico. Basta dizer que todo o curso da análise depende dela. Poderíamos definir a transferência — e é tão difícil definir — como a passagem dos complexos afetivos do paciente para a pessoa do psicanalista. Mas não devemos confundir, de maneira alguma, essa transferência com uma conquista amorosa. Não resta dúvida que se trata de um enamoramento entre o analisado e o psicanalista, se aquele é mulher, ou homossexual. Contudo este enamoramento é um enamoramento todo especial. Não se sedimenta em objetivos sexuais. É apenas sentimental, afetivo.
Entretanto, podemos supor que uma determinada paciente demonstre que se acha verdadeiramente apaixonada pelo psicanalista. Diante de tal situação, o curso da análise muda completamente e o tratamento terá que ser interrompido. Isto porque o amor, propriamente dito, nada tem a ver com o fenômeno da transferência, de vez que o amor transferido não é amor, ou, quando muito não é amor legítimo. O trato carnal coíbe de maneira definitiva o curso da análise. Desde que o amor se manifeste, a cura jamais poderá ser realizada. Nestes casos devemos ser o mais hábil possível. Nossa conduta será a de mostrar à paciente que as suas manifestações amorosas não são legítimas e sim a consequência das confidencias continuadas.
No caso de não obtermos resultados satisfatórios, devemos então suspender o tratamento, pois a transferência deve ser como que uma confiança, de coração a coração, uma afetividade grandiosa, se assim podemos dizer, como a aluna pelo professor, a filha pelo pai, o amigo pelo amigo sincero. Mas nunca o amor com objetivos sexuais.
Ao psicanalista cabe prevenir-se contra uma possível transferência amorosa recíproca. Deve procurar demonstrar que tal atitude depende, como dissemos acima, de uma situação propícia, mas que não deve ser atribuída de modo algum aos seus próprios atrativos pessoais. A paciente que se apaixona pelo psicanalista (ou que desperta a paixão do psicanalista) perde todo o interesse pela cura, não querendo nem falar, nem ouvir, senão aquilo que se relaciona com o "amor". Já não mostra nenhum dos sintomas apresentados. Não quer saber deles para coisa alguma e, não raramente, declara-se até mesmo curada de todos os seus males. O cenário se transforma inteiramente, como se uma súbita realidade viesse interromper o desenvolvimento de uma comédia. É como se no meio de uma representação alguém gritasse "fogo!". ..
A primeira vez que um psicanalista se encontra diante de uma tal situação, fica como que atônito. Mas, uma reflexão mais ponderada lhe dará a visão nítida das coisas. Em primeiro lugar deverá suspeitar que tudo aquilo vem perturbar a cura que se está esforçando por realizar e assim deve encarar a transferência positiva (assim se chama o irrompimento do amor no tratamento) como uma manifestação da resistência e, pensando assim, explicará a participação do amor no curso da análise.
Nas mulheres existe um fator muito comum para se sobrepor à autoridade do psicanalista. As mulheres vaidosas e conscientes de sua beleza, de seus atrativos, de sua sedução, procuram, via de regra, quebrar toda a austeridade do psicanalista, fascinando-o a fim de pô-lo à prova. Mas em geral, diabólicas como quase sempre são, esperam qualquer esmorecimento do homem para reagir através de uma dura lição. Atuam apenas como um mero agente provocador, intensificando o enamoramento e exagerando a disposição de se entregarem sexualmente.
7 — O amor irreal
Conservemos, portanto, a transferência, ainda que com laivos amorosos, como alguma coisa de irreal, como uma situação necessária, capaz de nos levar fatalmente à cura, que há repousar sobre as origens inconscientes, e que há de nos ajudar trazer à consciência dos pacientes os elementos mais, ocultos da sua vida erótica, submetendo-a ao domínio inconsciente. As pacientes cujos recalques sexuais não tenham sido ainda expressos, porque estão relegados ao último termo, sentir-se-ão suficientemente seguras para comunicar francamente ao psicanalista todas as fantasias dos seus desejos sexuais e todos os caracteres do seu enamoramento, e assim procedendo nos darão margem para encontrarmos o caminho que nos conduzirá aos fundamentos infantis do seu amor.
A transferência, na mulher sem os desmandos do amor-desejo, não é difícil. Apenas uma pequena categoria de mulheres fracassará na tentativa. São as atingidas por paixões elementares, de naturezas primitivas, que não querem aceitar o psíquico pelo material.
A maneira de fazer aceitar, pouco a pouco, a concepção analítica a outras enamoradas menos violentas nos seus instintos está em convencê-las de que tais manifestações amorosas ressaltam de um inegável fator de resistência em seguir pelo caminho adequado em vez de derivarem para o caminho do amor. Estas consideram melhor a situação e reagem favoravelmente.
8 — A transferência, ponto vulnerável.
A Psicanálise, que tem sido tão combatida, tem na transferência um ponto aparentemente vulnerável para os seus opositores. Entretanto, em nada este fenômeno pode contribuir para os objetivos lícitos da sua terapêutica. Tomando aqui um exemplo de Freud, é-nos fácil saber que um psicanalista, em tais casos, opera como um químico num laboratório de explosivos. É claro, portanto, que terá de observar a mesma prudência e o mesmo cuidado, a fim de evitar o desastre. Ora, ninguém será capaz de proibir a um químico de trabalhar sobre o material explosivo porque este oferece perigo. Assim, a Psicanálise terá de ir conquistando, aos poucos, a mesma prerrogativa de tantas outras atividades humanas.
9 — "Eu já contei isto. . ."
Durante a análise, é frequente ouvirmos de nossos pacientes a advertência de que muitas das suas lembranças já foram relatadas em outras sessões: "Eu já contei isto da outra vez, doutor. . ." — dizem.
Em verdade, a repetição de fatos comunicados ao psicanalista é bastante frequente. Mas, na maioria das vezes, o paciente julga que relatou determinada ocorrência quando, em verdade, o está fazendo pela primeira vez.
Contestando o acontecimento, assegura, jura, dá a sua palavra de que já se referiu às mesmas lembranças, acrescentando que a nós é que cabe a culpa de haver esquecido. Seria totalmente antipsicológico insistir e afirmar que a razão está conosco. Sabemos que este sentimento de confiança na fidelidade da memória carece de todo valor objetivo, de vez que o equívoco tanto pode ocorrer ao psicanalista quanto ao analisado. Devemos, portanto, não discutir o caso e deixar mais para diante a solução do problema. Na maioria das vezes, como dissemos acima, o fato já devia ter sido relatado. Mas, não raro também, o equívoco é mais comum vir do paciente que do psicanalista.
A explicação do fenômeno, neste último caso, parece aflorar de uma intenção imaginária da parte do analisado em querer referir um determinado acontecimento, tendo, entretanto, adiado a sua revelação.
Deixando de lado aqueles casos em que a dúvida persiste, passaremos a ressaltar outros dados que apresentam real interesse teórico. Em alguns indivíduos, comprovamos repetidamente que a afirmação de nos haver contado algo que surge pela primeira vez tem um valor inestimável na análise. Trata-se de lembranças valiosas para a nossa interpretação, pois não passam de confirmações por nós esperadas, há muito tempo, cuja revelação é capaz de dar solução a uma parte da análise.
Quando, portanto, o paciente chega à conclusão de que em verdade nos fez "aquela" confissão pela primeira vez, surpreende-se com o fenômeno. Diz que realmente se enganou, continuando, no entanto, com a sensação de já nos ter dito semelhante coisa. Chamamos a isso de fausse reconnaissance, que é idêntica àquelas situações nas quais experimentamos a mesma sensação de haver vivido certa situação, quando em verdade não a vivemos. É o fenômeno do déjà vu.
Como é sabido, tais sensações têm provocado inúmeras tentativas de explicações, as quais podemos reunir em dois grupos. Em primeiro lugar, o fenômeno é explicado como sendo oriundo de uma lembrança esquecida. Em segundo lugar, a sensação surgiria de uma simples ilusão de memória, sem que possamos, contudo, explicar como se dá uma tal falha paramnésica da função. Tais fenômenos, todavia, abraçam um amplo círculo de motivos, começando pela antiga teoria de Pitágoras, na qual o déjà vu nos traz a prova de uma existência individual anterior, seguindo-se a hipótese anatômica de que o fenômeno depende de uma dissociação temporária dos hemisférios cerebrais. Essas explicações culminam finalmente com as teorias psicológicas mais modernas, segundo as quais o déjà vu não passa de uma manifestação oriunda da debilidade do poder perceptivo, consequente à fadiga, ao esgotamento, ou mesmo à atenção dispersa.
Como quer que seja, esses fenômenos tão comuns de "ter visto uma coisa", de ter "sentido", de ter "contado", etc., parece que indicam uma incontestável percepção inconsciente, capaz de num dado momento aflorar à consciência, sob a impressão de uma nova percepção análoga. Os sonhos esquecidos dão em geral sensações parecidas.
Inúmeras são as pessoas que contam terem visto coisas que nunca viram, principalmente em sonhos. Outras atribuem ao espiritismo muitos fenômenos idênticos. De qualquer maneira entretanto, pela qual se queira encarar o fenômeno, havemos de insistir em que tais ocorrências afloram do inconsciente, sendo, portanto, fatos psíquicos gravados na mente, sem a participação da consciência.
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